Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
-
Upload
danielcosta -
Category
Documents
-
view
216 -
download
0
Transcript of Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
1/129
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
2/129
Síndrome
do
Desfiladeiro
Cássio Corrêa
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
3/129
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
4/129
Síndrome
do
Desfiladeiro
Cássio Corrêa
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
5/129
Imagem da capa:
Belíssima foto encontrada no site Ônibus Brasil,
atribuída ao Acervo Mário Mendes, postada por
Eduardo A. Almeida, sob o título “Raridade
Sorocabana”.
1ª impressão – independente
dezembro de 2013
São Paulo / Campinas
Contato: [email protected]
As poesias deste livro podem ser reproduzidas
parcial ou totalmente, desde que não haja fins
lucrativos e sejam citados autor e fonte.
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
6/129
Tenho a sorte de ser amigo das pessoas mais doidas
do mundo – cada uma a seu jeito
mantém pegando fogo essa fogueira
da poesia-quotidiano.
Para cada uma delas, vai esse livro.
E para Jeff, Paulo e Rodrigo.
E para Daniel e Gera.
E para Patricia.
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
7/129
Índice
Recebi a nota fiscal da farmácia..............................1
Há essa coisa meticulosa........................................7
A menina que trabalha no correio...........................8
O ecodopplercardiograma......................................12
O caminhão da prefeitura.....................................14
O surrealismo não é suficiente..............................16
Se perguntam como era nosso tempo....................19
Uma hora a coisa chega no seu normal.................22Vamos sair pela cidade.........................................26
Eu poderia conseguir falar....................................28
As senhoras da ocupação......................................30
O barulho dos helicópteros...................................33
Acordar com palavras...........................................35
Poncherello chega em casa....................................37
O funcionário da prefeitura...................................40
Não se trata de ter medo de morrer.......................44
O livro diz o mundo é você....................................46
Foi na esquina da Bela Cintra...............................48
A igreja encheu o portão.......................................49
Encontra, primeiro, teu lugar................................52
Cuidado, Anne Frank............................................58
No sábado de aleluia.............................................63
Já falei de comer o asfalto.....................................68
Estão pintando uma parede..................................71
Vemos o cemitério realocado.................................73
A eficácia desses poemas......................................76
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
8/129
O fim do mundo não é mais..................................79
Tem dias que o precipício transborda....................81
É difícil fazer de cada poema.................................83
O mendigo se parece com......................................85
Nos sonhos com tigres..........................................88
Faria mistos quentes.............................................90
Cidade ocupada viaturas.......................................93
O oficial de justiça................................................95
Há o túmulo de Apollinaire...................................97
As carpideiras cantam no The Voice......................99Pedir independência da fila indie.........................100
A polícia militar estrangula a rua........................105
Punk rockers que gostam de Guns......................108
O junkie pobre atravessa a avenida.....................109
A loja centenária.................................................112
É dessas paradas de ônibus................................113
Escolhe os chocolates, pequena..........................114
Cada segundo a mais o sol queima......................116
No fundo.............................................................119
Sobre o autor......................................................120
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
9/129
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
10/129
1
RECEBI A NOTA fiscal da farmácia e atrás dela
estavam vocês.
Mas não estavam já encontrados – eram homens
paralisadosem fotos velhas, fotos de quando estavam e alguém
tirava sua foto
e havia alguém para tirar a foto
e havia você, para alguém tirar a foto.
Onde estarão nessa manhã, moços?
Terão tomado café? Dormido em cama quente?
Amado mulher? Terão um cachorro?
Vestirão essas mesmas roupas da foto?
Terão essa mesma idade? Pararam o tempo?
Você, Amadeu, 23 anos, desaparecido em 2009
(semana que vem fará 4 anos),
ainda olhará com esses olhos de furadeira?
e ainda veste essa barba?
e ainda está descalço?Saiu sem sapato na noite aberta?
Onde aponta
tua dor esta noite?
Seu Francisco – mais velho nesta foto do que
tua idade diz,
estará mais velho?
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
11/129
2
Terá sua doença mental passado?
Estará com mente nova, mente boa?
E você, Robério? Tinha 20. Quantos anos têm
agora?
Você sumiu nesse dia 13 ou antes?
O dia dessas notas é do desaparecimento ou da
descoberta de que não estava mais lá?
Não sei tua idade ou quando sumiu, Fidelço,
porque o papel cortou bem em cima
(é que, depois de deixar claro que a transação foi
feita com senha pessoal, não há mais interesse do
papel em nos informar)
Mas você fazia um gesto na foto, menino.
Era um V ou um paz e amor.Que V ou 2 era esse? Quem venceu? de quem era
essa paz? Quanto?
Percebo agora que todos os contatos têm o mesmo
telefone.
Será duma mesma mãe a perda de quatro filhos?
Liga nesse número e ele toca
como esse telefone maldito que toca de madrugada
existe a palavra esperança
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
12/129
3
Qual cigarro é esse que foram comprar? Que fumaça
espalha e cobre o mundo,
ela vai tampando nossos olhos, não consigo ver
quem está do meu ladose você esteve do meu lado no ônibus, ou se estava
sentado na praça,
a fumaça da besta da noite levando as crianças
grandes,
deficiente mental, deficiente químico, deficiente
emocional, deficiente de atenção, deficiente de
palavras, deficiente de você, menina, que saiu
primeiro e me fez sair depois, a rua desconhecida, o
primeiro ônibus que tiver,
a cidade que não sei qual é, a noite e a morte, vamos
falar a verdade agora
onde estão vocês? na cadeia, mortos, sendo
estudados na faculdade de medicina,
esquecidos num hospício, drogados, histéricos, nus,
são expoentes da minha geração,
são poetas malditos gritando na madrugada, sãopais ensinando o filho a soltar pipa, são prostitutos
chupando o pau mole dos velhos da praça
são políticos odiados, são jagunços ou são
guerrilheiros, são traficantes ou são usuários, são
dentistas ou são otários, são garçons ou são
serventes, são motoristas ou são cadáveres,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
13/129
4
são bailarinos ou são profetas, são paulos, são
joãos, são franciscos, são sebastiãos, são anjos ou
são deuses ociosos, ou são deuses vingativos, ou são
a chuva, ou são a própria fumaça ou são o tempo
que parado ficou no simples momento que alguém
chegou em casa e você não estava
foto no ponto de ônibus, busca nos hospitais, na
polícia, na casa dos amiguinhos, no bar da esquina,
no banco da praça ou no trabalho
sumiram sem deixar lancheira, sem deixar desenho,
sem deixar brinquedo espalhado
sem largar carrinho vazio ou mamadeira pingando,
sem deixar a porta batendo
um dia, iam pro trabalho e não voltarama polícia pegou e matou
roubaram os órgãos
subiram aos céus, como corpo imaculado que
ascende com as veias cheias de cocaína
os olhos roxos da briga do bar, o lombo espancado
pelo cassetete
o fogo queimando seu corpo de madrugada e a
molecada correndo em câmera lenta
em algum lugar do universo suas cinzas constroem
vida nova
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
14/129
5
pode ser isso, que começaram vida nova longe,
não disseram nome, não contaram histórias,
arrumaram emprego recebendo em dinheiro vivo
alugaram uma vaga em pensão, falaram pouco,ficou amigo dos imigrantes,
aprendeu línguas novas, conheceu uma moça no
baile e inventou nome bonito
não era mais Amadeu ou Robério ou Francisco ou
Adelço, mas nomes como Neymar ou Romário
Edson Arantes Michael Jackson Sílvio Santos
Abravanel Allen Ginsberg Cássio Corrêa do 8
tiveram filhos e educaram com vigor
sem pais, que estavam mortos no passado da cidade
antiga, do nome antigo,
e um dia foram comprar aspirina pra criança e
pegaram a nota da farmácia
e viraram o papel e viram as fotos dos colegas de
desaparecimento e viram o rosto antigo
a barba aposentada e a tristeza que tinham naquela
épocaa rodoviária e a violência da cidade, cheira cachorro,
polícia e vingança
o pessoal do crack, os bêbados velhos deitados nas
calçadas, com suas histórias
os noias vivendo na utopia de Atlântida,
naufragados na manhã,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
15/129
6
viram a roupa que gastou até o fim
e a data que perceberam que tinham partido
a data oficial do sumiço
esse sumiço cortante
que faz a vida em duas metades
que não se juntam
mais
como a nota da compra e a nota do cartão
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
16/129
7
HÁ ESSA COISA meticulosa em arrumar cada letra
da tábua de preços
apagar com paninho carinhoso e escrever cada letra
do porpetone com pincelreclamando do tempo e da falta de tempo, 20 anos
sem tirar férias, sem saber o que é sentar
fazer a carne com esmero, realizar suas coisas como
se fossem esses poemas que falam das coisas
de coisas simples, de ruas cheias de pessoas
cortando o pão com a faca serrada, o braço
estendido pra que as cascas caiam fora da roupa
um casal de velhos sempre passava no açougue
um dia a esposa caiu da escada e o marido foi
ajudar levantar e caiu também
e lá ficaram, passaram a noite caídos,
um sobre o outro,
no dia seguinte, ao notar que não passaram no
açougue, o homem foi olhar na casa deles
e notou pela janela, os dois caídos no chão
chamou um colega mais magro, que pulou o muro eabriu a porta e o portão
e foram acudir o casal
cada cinema que fechou ou que abriu, cada
camiseta ou óculos escuros,
os prédios e o chão, cada poema, eu, você e Allen
Ginsberg
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
17/129
8
A MENINA QUE TRABALHA no correio e o menino
eletricista
começaram a me assustar
comprando os móveis para a casa nova, passam por
cima de tudo
porque são a certeza – e não pensarão se tiver gente
no caminho
porque são a certeza
deles mesmos
e assim, vão, comprando enxoval bom
pra gente ruim
é que o rapaz eletricista tem ambições bem grandes
e está puxando o saco do chefe pra ser como o chefe
ele diz que quando era criança gostava de carro- mas toda criança gosta, de um jeito de criança
gostar –
e isso justifica tudo, pelo jeito
a menina que trabalha no correio, como é inteligente
e bem articulada,
já está fazendo faculdade e com certeza garantirá
uma pós
ela estuda Derrida e já fala bem inglês
a ideia toda é que daqui a pouco tempo os 4 estejam
jantando juntos
a menina e seu rapaz o patrão e sua esposa
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
18/129
9
e os 4 discutirão as soluções fascistas que
conseguem entender
para dar jeito em quem entra no meio da música
para arrancar as ciganas da ruapara controlar suas paranoias de casadinho de novo
a cidade mesmo já está se tornando isso
estacionamentos e descaracterização de tudo
lajotas psdebistas impedindo o flanar, lojas de
salgados no lugar dos restaurantes
crianças com brinquedos genéricos, bonecas com
analista e consultor de multas de trânsito
Luciano Huck é a voz que ecoa pela rua vazia,
sábado começo de tarde,
o cachorro quente pós-moderno, prensado na chapa
de inox, se faz diante da pregação dele
o mundo com sotaque de elite, cada viatura
alucinada tirando finas das pernas dos pedestres
toda calçada é um navio negreiro,
cada lanche leva a marca de seu chapeiro, essa
sabedoria do tempo que o queijo ficadelírios de analistas de padaria, blogs com imensas
fórmulas de dar gosto ao mundo,
o velho que cuida do frango assado puxa uma
pelinha e disfarça
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
19/129
10
a moça levanta da cadeira redonda com uma bunda
desproporcional
caminha sua miséria e dor lentamente ao caixa e
esbarra sem querer nas carolinas
ela quer que alguém a ame e deve ter quem ame sim
eu nessa hora a amo e a trago pro meio desse poema
já somos vários contra os 4 cavalheiros do
apocalipse e Luciano Huck
ele vai ser presidente, mas a gente não vai viver a
vida que
eles querem
nem eu, nem as ciganas, nem o velho do frango,
nem a moça obesa, nem o chapeiro
um garoto insiste patriótico numa bandeira pro jogodo Brasil
o avô compra por pechinchados 3 reais e plástico
que enrola no mastro e estraga logo
dura uma foto da copa de 90, meu cabelo capacete,
meu avô forte e meu irmão bebê no colo
a casa que já foi demolida, a cidade antiga jogada
pra trás
os estupradores do bairro que nos metiam medo na
infância já são cinquentões
mas o ponto não é a saudade pessoal das esquinas
ou das coisas de pequeno
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
20/129
11
o problema são os estupradores da vida adulta
violentando a vida dos outros com suas sanhas de
maníaco
decidindo quem vive ou morrecomo quem escolhe entre frutado ou sei lá o quê
na degustação de vinho maldita
que fazem toda quarta de noite
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
21/129
12
O ECODOPPLERCARDIOGRAMA
princípio de ondas e distância, ambulância que
distorce sirene ao longe de mim,
e o hospital, paredes pastel, marcas de cores no
chão, caminhar pros exames, internações, nunca a
saída,
seguranças e pulseiras
se você internado sair fugido é crime, minha mãe
indo de camburão atrás do pai que sequestrou a
filha da pediatria,
nunca sem minha filha, sessão da tarde na TV de
plasma
sem som, closed caption desanimado, gestante e
ultrassom,dona Eliza, parabéns, e os pais futuros andam pelas
linhas coloridas, logo depois a adolescente mãe sai
com sua
criança chorando – arrependimento, insônia e amor,
Freud e suas explicações arrancando um copinho e
bebendo a água com gosto ruim do bebedouro,
banheiro unissex cheirando doença e sopa da
cozinha do hospital, a sirene Doppler lá fora, algum
acidentado no PS, sangue suor e cerveja, briga de
trânsito e o suicídio tentado que anda pelas linhas
pretas do chão,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
22/129
13
lázaro que levanta da maca e arrasta
as canículas de soro e sangue, bolsa de urina
pendurada na humanidade, é aí que vemos comosomos poucos,
fracos e de carne feita de areia de praia, o sopro
final sai com a morte, espírito do tempo que esvai
num quarto dos fundos,
o choro dos mortos fica escondido nas paredes
veladas das UTIs
e no jardim psicológico-zen que fica na frente, onde
os parentes choram as últimas gotas
as crianças brincam no parquinho e as enfermeiras
fumam apressadamente.
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
23/129
14
O CAMINHÃO DA prefeitura e a polícia recolhem
os trapos das pessoas debaixo do elevado
colchões, sacos, cobertores e caixas de pizza
Expurgar a sujeira da rua
A primeira vez que vi
mas não foi a primeira vez que aconteceu
E o carro-pipa lava a lajota
e lava a possibilidade de sentar de novo
Vai chover
Começa a chuva
Vento
E trovões que soam como bombas
Bombardeando esse campo de guerra
Água agente desfolhanteDesentocando os que dormem
nas praças
para a ratoeira das marquises
A água do carro-pipa
é redundante
A chuva está do lado da prefeitura
Água sobre água lavando a cidade
E os bueiros bulímicos vomitam água
E os carros jogam água de cima do viaduto
como se fosse o Playcenter
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
24/129
15
Porque a vida imita o plástico
Que cobre as cabeças nesse começo de tarde
Vai passar
sempre passae suja de novo
E a gente vai entendendo
como tudo sempre suja de novo
O bueiro acaba engolindo a água que tinha vomitado
antes
E o mormaço desinfeta a democracia
Os missionários distribuem mais cobertores essa
noite
Porque poemas são muito finos pra cobrir o corpo
Mal tampam o rosto de quem os escreve
Quando chovia forte desse jeito
me diziam que era Deus
chorando por causa das injustiças do mundo.
Já sei que não é.
É que todo mundo aprende
a seguir em frenteporque a vida
continua.
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
25/129
16
O SURREALISMO NÃO é suficiente
o mágico estilhaça o relógio da necropsista no saco
enfeitiçado
ela ameaça bagunçar seus órgãos na hora da morte,
pensa um órgão, mas não fala,
vai rodopiar pelas marcas de água no chão, o calor
corta seu palco em dez, na hora do cachê
as pessoas saem, muita demora pra ver o pinto sair
do saco na mão do moço,
já vimos isso tudo mil vezes e ainda estamos
estupefatos pelo céu, turistas fotografam nossa
idade média, em campeonatos de damas e duplas
caipiras desconhecidas, ainda há um país vivo
debaixo das pedras que a prefeitura larga, há aprostituta iniciante comendo fandangos em sua
celulite, velhos com camisas floridas e dinheiro
contado de viúvo procurando xana
não efetuamos trocas aos sábados, pouco caso e
sovaco no quarto mal pintado, a mão cheia
de farelo punhetando SOS na pica velha, viagra por
14,99, o capitalismo é um sistema
oferta e procura, ruas temáticas, homens de
negócios em pé, escora química da cidade devastada
as putas velhas do jardim da luz em suas fontes
secas, anfiteatros de tijolos aparentes,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
26/129
17
bolsas falsificadas e o tempo pendurado nos fios dos
cabelos de arco-íris, TV telefunken colorida
passando a novela do dia, o naipe de violoncelos
atravessa as calçadas desviando dos troços cagadosnos postes,
partituras penduradas nas janelas dos cortiços,
vamos assoviando a vida
debaixo do universo sobre nós, universos de pentes
de pentear bigode e outras vidas de homem
vou fazendo a ronda nos bares, assistindo o Brasil
perder o ouro pro México, falta time
aqui eles jogam, mas fora tremem, todos nós vimos
o cara subir pra cabecear sozinho, na falha
da marcação das coisas, sair desse bar, andar um
pouco e parar mais a frente, debatendo a falta
e chacoalhando nossa democracia, virão os clichês
de ouro de sierra maestra, os clichês
de cristos caídos na calçada, politeísmo de mendigos
em posições uterinas, dormindo nas mãos
de parkinson de nosso senhor, as crianças um diacrescerão e olharão por cima dos muros,
verão a linha do trem que agora se esconde e
escreverão foda-se o sistema na parede da ponte,
e escreverão deus é inseto na parede do céu da
boca, e escreverão versos repetidos
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
27/129
18
dizendo não se pode beijar a boca do lixo, esse é
nosso mundo, tem coisa demais acontecendo
e esqueço, esse poema era melhor no pensamento,
aconteceu nas ruas, entrava por meus olhos
e ocupava todos lugares abandonados de mim, a
cidade me povoa em seus poemas e delírios,
revoluções abandonadas em estátuas, as pessoas
sofrem e a poesia não é remédio,
apenas é algo que carrego aqui, como sacola de
compra importante feita nesse sábado da eternidade
termino no balcão de Pfs do Ita, o mundo é muito
grande pra um só homem entender
o bar está cheio de barbudos como eu, a cidade é
imensa e ainda não sei de tudo nem o começo
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
28/129
19
SE PERGUNTAM COMO era nosso tempo
Era o tempo ruim que todo tempo é
Bombas digitando guerras pelo cosmos
E outras explodindo nas ruasAs pessoas em tempo de paz
lutando a vingança de não sermos todos felizes
como o tempo de paz exige historicamente
remédios e telefones, para falar com deus enquanto
se espera na fila
Elas dizem pra mim: só quero viver minha vida, hey
Se perguntam como era ser feliz
sem fome ou com pernas boas
(o menino com sapatos feios vira inimigo do mendigo
sem pernas)
só respondo que cada um vivia sua guerra
noticiada 24 horas em coberturas especiais -
a justificativa que os tribunais pedirão de nós
Os poetas não queriam o fim do Estadoporque dependiam dele para viver sua miséria
E os jornalistas cínicos duvidavam
porque não há cosmogonia maior que a deles
e dos cientistas sociais explicando as relações
políticas
entre os diversos atores sociais
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
29/129
20
Mas os poetas só se preocupam
com a olhada que o político deu para a secretária
feia
e com a referência mitológica dos deuses nórdicos e
seus carros alados
Me chamo de poeta
Se não me chamaria do quê?
Analista para assuntos administrativos
o Estado comprando minha mão de obra
que carimba certificados de matrícula e carrega
mesas provisórias
Mas se não comprasse, quem compraria?Estudamos para ser professores, mas a escola nos
cuspiu fora
Nos arrancou como uva
desse imenso vinhedo
jogou num balde e pisoteou
Pressão alta, obesidade e as noites inteiras
discutindo
como o mundo pode mudar através do
conhecimento
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
30/129
21
(na volta, os pastores acharam o corpo apodrecido
no espinheiro)
Talvez já falte argúcia de explicar o mundo
e se passe por ele apenas porque morrer dá medo
ainda
A parábola do semáforo pode ajudar:
antes, 10 segundos era verde para o pedestre
atravessar
e 5 segundos piscava para avisar que o sinal abriria
para os carros
agora, o semáforo fica verde para os pedestres por 5
segundos
e 10 segundos ele pisca, para garantir a
segura
travessia
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
31/129
22
UMA HORA A coisa chega no seu normal
E assim, hoje, demorou, mas vi, a prefeitura em sua
velha sanha de perseguir os mendigos
andava disfarçado demais, noturnamente demais
os sofás e barracas e mochilas esfarrapados
convivendo na calçada, com a palavra convivendo
mas as leis são naturais, caem como a gravidade ao
chão
naturais e históricas, históricas e naturais
naturais como ser a maçã que cai nas observações
do império britânico, sir Isaac Newton e sua
opinião sobre a cidade publicada na gazeta do bairro
E assim, a cena se repete, com a Kombi e a viatura
da GCM, limpando a rua, o tempo, a veiaescolheram o mais fascista dos motoristas – e sua
perua estilizada, carro oficial com rodona
e rebaixado, vidro com mensagem do evangelho e
vigilância sanitária
e chamaram os carregadores – peões da prefeitura
que mais se parecem com os mendigos
do que comigo e com o prefeito, alguns ex-
moradores de rua, que fizeram supletivo e concurso
mas guardaram suas tatuagens
descem do seu navio e passam a carregar os
espólios
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
32/129
23
sofás conseguidos com trabalho, carregar desde lá
até aqui, a casa do cachorro e a barraca comprada,
50 garrafas de rum e homens ao mar
piratas que cantam e berram enquanto 1, 2 e 3lançam o móvel pra caçamba
ei La ÔOOO, fifth bootles of rum!
a cena nos revira os olhos e cresce a raiva
um dia entram na casa e roubam seu sofá
levam seu sofá
mas não é o seu sofá
é o sofá de um mendigo não é o seu não é o meu
eles levam o sofá, um dia eles entram e levam seu
sofá
o deles, porque o seu e o meu ainda não levaram
ninguém dá bola, ninguém dá bola
passos adiante, esse poema sendo pensado
(o poema já aconteceu),
vejo uma casinha linda no Bixiga e me permito
pensar – coisa de 2 segundos – como seria bom
morar nelacom meu sofá e minha poesia e minha indignação e
minha barba de pirata
mas não é assim
as coisas são mais complexas,
uma das fascistas que passou botando fogo no lixo e
asfixiando as crianças de colo que moram na rua
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
33/129
24
disse para o pai que na rua não é lugar de criança
morar
só moram as da classe média, com seus brinquedos
de matar
homo ludens enterrando mendigos, queimando
mendigos, estuprando e testando vacinas
com suas câmaras de gás portáteis passam a foice
em quem é restolho na calçada
falta a esses nazistas de nosso tempo
a preta velha que serviu de babá
e que adoçou a boca dos artistas dos anos 60 com
suas tetas de negra da mistura
poetas e cantores entendendo o Brasil pela força da
antropologiamas sobra a elas o papo furado fascista das
professoras de escola
com seus teoremas de exceção e suas fórmulas de
justiçamento
assim, entre caminhões que roubam sofás
(porque pegar o que é de outrem é roubo,
ainda que sofá velho)
ou em maçaricos crescidos com danoninho
em assassinos
e indignados
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
34/129
25
Volto atrás na fala anterior
dão bola
– bola demais,
sobra bola,país da bola
dão bola
mas precisaríamos dar bombas
E elas explodiriam a maldade
e os mendigos, sentados em seus sofás,
leriam esse poema
e lamentariam o procedimento discursivo
mas dariam um desconto pela citação
à Pessoa
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
35/129
26
VAMOS SAIR PELA cidade
procurando uma lembrança pra levar pra casa dessa
visita, renovando memórias em calçadas tortas que
piso lentamente
aqui foi um rio e ali é o maior prédio de nossas
vidas,
outro foi feito em aposta
um mundo de tijolos que se afasta de mim e de você
cinemas com filmes nunca assistidos e PFs com
provolone ao invés de mussarela
fotografias novas que me mostram já na decadência,
montanhas russas que sobem e descem
pelos fios, corpos mecânicos lutando pra ver as
profecias escritas nas pedras do chãoo céu é o mesmo de nossas casas,
mas o tempo passa rápido
e as folhas verdes ficam marrons
era uma vez outras teorias que contava, como
cantigas de ninar sobre viadutos e trólebus
atacantes que não ficaram pra história e alfajores
uruguaios que valerão mais quando eu morrer
faltará muito entre as placas de luto e
completaremos com nossas projeções
você ainda viu a polícia abusando das pessoas como
cartão postal do nosso tempo
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
36/129
27
e me viu brigando com os carros que violentam a
liberdade das pernas
quais imagens irão formar os recortes desse dia?
a cidade e suas lembranças, estive aqui e melembrei de você
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
37/129
28
EU PODERIA CONSEGUIR falar dessas coisas
mas tudo some e aparece em poesia
dizer para a moça do PF
que a batata foi uma das melhores que já comi
Ao sair, um velho mendigo de Sorocaba,
com seus óculos de solda e capacete,
ele que eu invejava ao descobrir Pessoa
ainda está vivo e forte
carregando suas tralhas pela cidade
desfiladeiro
eu quero o canto daqueles que não fazem diferença
que como eu não fazem diferença
o derrotado do rock que troca relógioo velho que pinta as falhas da tinta da parede do
mercado
trabalho inútil, que não vai fazer diferença
cantar cada qual que não faz diferença
O pastor que foi sonegado no recebimento
do dom da palavra
clichês em looping
Deus dá, Deus tira, digo em resposta
ao gracejo das meninas da loja
que falavam de suas repressões
perversões em sapatos ruins
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
38/129
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
39/129
30
AS SENHORAS DA ocupação São João
acampam nas calçadas
cantam e oram
entra na minha casa
entra na minha vida
e eu acredito
e peço que você entre mesmo, Jesus.
Mas que não seja um burguês loiro
amigo do juiz que assina liminares
playboy que abusa de ser filho do dono
Que não seja um burocrata divino
que tem mãos atadas
apenas por cumprir ordens
se não perde o emprego.Entra na casa delas que não existe
e para com seu corpo poderoso na frente dos
tanques
carregando sua sacola com o pãozinho francês que
pegou no extra
segura os escudos da polícia
e transforma as balas de borracha em gelecas
molengas
que a criançada vai pegar e zoar
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
40/129
31
Entra na casa sem paredes delas
e ajuda a segurar a chuva do fim da tarde,
seu próprio corpo a parede
(inverte: você é a parede, não o quadro)muda a vida com seu poder místico, que seja,
desvia a chuva
faz os cegos enxergarem
Acredita que a intervenção divina se faz importante
e admite que o livre-arbítrio é uma cagada
quando misturado com o abuso do poder
Interfere no mundo do teu pai
porque o filho será o pai
põe tua mão em cima, vai,
esquece que a gente é ateu e que acredita que vai
derrubar o inimigo maior
e entra na casa daquelas senhoras
É que elas são fraquinhas
e já não podem mais dormir nessa calçada.
Sei que você está no meio delas,
mendigo deitado do outro lado,que vem e me pede um dinheiro pra janta
e eu não tenho
só cartão, acredita, senhor,
essa nossa contradição.
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
41/129
32
E sendo poderoso, Jesus,
com toda humanidade que só quem entra na casa
de alguém pode ter,
vê se consegue perdoar
os filhos duma puta daqueles
guardas municipais
que passaram com a viatura no meio da calçada
e do canteiro
só pra humilhar
só pra intimidar
(como se a casa sem casa não fosse bastante)
contrariando a ONU
o mecânico do amortecedor
e até seu fac-símile de papel Bíblia, Jesus,perdoa esses lazarentos
porque eu
não vou perdoar
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
42/129
33
O BARULHO DOS helicópteros da polícia atrapalha
o dendlenzar chatinho do violão MPB
passa pela calçada um homem com o cabelo do
Marighela, raspado do ladoele tem a mesma cara do Marighela
os bancos são quebrados
coitados dos bancos, pobres bancos,
que fazem tanto pelo meio-ambiente, bancos,
bancos que inverteram as coisas e passaram a ser
os coitados que são atacados
bancos que fazem velho chorar, bancos que fazem
um homem colocar o revólver na orelha
e explodir sua cabeça
(no cérebro que voa, os publicitários percebem o
contraste entre as cores
e aproveitam no próximo comercial)
compositores folk, caixas e auxiliares de limpeza, de
mãos dadas com os helicópteros
Amarildo desaparecido, estado de exceção
permanente não é exceçãoassassinos eleitos
assassinos contratados por concurso público
descrição das atividades correlatas, cargo amplo,
cada gerente
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
43/129
34
mas o banco faz mais poesia que esse poema
ele salva o mundo, ele salva Amarildo só para matá-
lo de novo, aos poucos
a PM vai vencer e derrubar os bancos?
ou os bancos vão vencer e endividar os PMs?
há a esquina onde Marighela foi morto e haverá a
esquina onde Amarildo foi morto
garotos e garotas aprendendo história com um
professor ateu
1984 está nas ruas, minha gente
respeitem as faixas amarelas e não escrevam coisas
perigosas demais
os jornais são reescritos e a gente está fudido
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
44/129
35
ACORDAR
COM PALAVRAS demais na boca, teses com
laranjada, se a cidade não dorme, ela não para de
pensarsão discos voadores invadindo a
universidade de são paulo, objetos cheios de gente,
ônibus carregados de alteridade, estudar mas não
acreditar no que se estuda, as ditaduras
aparecem nos guardas da esquina, dentes afiados
deslacando regras e alvarás, segurança
patrimonial, segurança familiar, segurança da
tradição acadêmica nacional, discutir a direita
em seminários de croissant, ser a direita no café da
manhã do departamento,
a cidade existe, independente de publicarem suas
teses, a vingança da academia
é taxar todo pensamento de acadêmico, vampirismo
maldorento de manter presos os livres
pra sempre me chamarão de acadêmico, ainda que
tenha dado com pé na cara deles,a vingança dos reprimidos é expor a vergonha dos
outros de tirar a calça, mijar no gabinete do WC,
proteger-se com os mármores anti-urina que muram
o alcance dos teus músculos excretores,
estamos andando em ombros de gigantes, só não
sabemos quais,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
45/129
36
os gigantes das ruas
que insistem em existir, mal rompe a manhã, os
gigantes montando suas barracas de melancia
os gigantes da literatura universal, do rock, Gérson
dando lançamentos precisos para Baudelaire,
os motoristas de ônibus míticos da infância, com
suas suíças brancas e seus câmbios estilizados,
a pós-modernidade, baby, é colocar aço inox nas
alavancas da memória,
por isso, mãe, eu só to sangrando, mas um sangue
de outro gosto, que percebido ou não,
lava, e que entra pelo buraco do sapato e fecunda a
perna, a rua, o tempo, a luta,
as formas são fiapos de totalidade, fomos dormir,acordamos e o viaduto ainda liga as décadas
vemos os prédios que pegaram fogo no passado, mas
viraram crentes,
as gretchens com fogo morto, bagaços de cana dos
anos 70, crenças mantidas,
mas o carro, esse a gente troca todo ano
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
46/129
37
PONCHERELLO CHEGA EM casa no fim do
expediente
hoje meteu uma bala na cabeça de mais uma pessoa
a primeira já faz tempo, e existem trabalhos porqueprecisam ser feitos, se desculpa,
a estrada é perigosa, liga aqui até lá e no caminho
estão os que atrasam
pobres em suas ocupações
o mundo já lhe dá razão
ser americano na TV é mais fácil do que ser
cavaleiro em sua moto
os adolescentes se deslumbram com a moto
rasgando a boiada em revoada
suas botas, óculos, capacetes, jaquetas de couro e a
técnica de pilotar com uma mão e
atirar com a outra
um dia serão mortos por uma moto dessas, na meia
noite da chacina
Poncherello assassino oficial do Estado OCP
a cidade é uma Detroit privatizada e os executivosviajam em helicópteros com raybans
um dia, tem vontade,
matarão as ciganas de cima da ponte
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
47/129
38
elas grudam na mão dos transeuntes, lendo o futuro
no rosto de medo
suas saias coloridas e seus olhos sendo espiados de
dentro do trólebus Machado de Assis,
uma cigana bonita chama a atenção
anos 70 e suas mulheres voluptuosas, paraguaias,
ciganas, galopeiras de cabelo ensebado
e peitos de Victor Hugo, Poncherello quer matar o
que não for apocalipse de St. James
quer destruir o que não for multishow de
madrugada, soft porn das professoras primárias
teatro mágico no foursome, o governador dando
dicas de kama sutra, o coronel explicando
suas táticas de conquista, o pastor tampando ospelos da buceta de sua esposa, que galopa
em sua rola pós-moderna, encapada com aço-inox
da verdade e do presente
papel de presente que embrulha o sexo das ciganas
e vende em lojas no mercadão
nunca a cidade esteve vazia
ela só se esvaziou da sua burguesia maldita, perdeu
senhoras de sombrinha e espartilho
seus esposos ainda restaram nos escritórios de
advocacia
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
48/129
39
perto dos fóruns, das faculdades, dos restaurantes
de quepe e espada
os cafés viraram estacionamentos, onde guardam
seus veículos de exceçãoao fim do dia viajam para seus cinturões,
fascist belt
que vota PSDB
onde seus filhos usam camisas polos e suas
empregadas vestem roupas de fetiche
a cidade está cheia de gente de verdade
vão embora e não voltem, lazarentos de pasta
sansonite
e vade mecum no meio do cu
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
49/129
40
O FUNCIONÁRIO DA prefeitura gentilmente
arruma uma das sacolas dos acampados
no caminhão da prefeitura
Pra qual distância das calçadas históricas vai?
pra lugares sem história, sem fotos clássicas
antes, aqui era tudo mato e mato em preto e branco
não tem nada de mais
Os garotos australianos descem pela rua que vende
ferramentas e eu também
minha cidade, abacaxi gelado no saquinho,
ouvindo a pluralidade dos chineses, coreanos que
seguem o mundo
o brasil é o pior lugar do meu mundo
cogita patrimônio dos prédios, canonização da pedradar título de santo é comprar o humano,
tirar seu sangue e encher de gesso.
Rodela, da TV, faz seu show no viaduto,
patrimônio, ela é famosa, mãe,
esse pessoal que para pra ver o show mas não dá
uma moeda
dez centavos que seja, irmão, já tá valendo
o vendedor de gaitas sopra dodecafônico
ô, madre, mira, pra teu irro
e o moleque toma um puxão no braço
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
50/129
41
se lembrará de um viaduto na memória,
falará português, planejará visitar os avós que não
conhece,
e, um dia, os trará pra cá, tirará fotos de cima doviaduto com a bandeira da praça
tremulando internacionalmente atrás,
porque eles querem destruir a cidade, mas a cidade
resiste, abuelo,
eles querem tirar as pessoas na marra e as estátuas
vivas
e encher de telhados de shopping,
e seguranças de paletó e fone de ouvido,
rádios garantindo que nada vai entrar
pelas fissuras do asfalto,
eles querem tombar tudo e fazer seus prédios de
vidraria,
formol guardando os esqueletos das meninas do
telemarketing e seus namorados tarados,
botas com pelúcia e calças saruel
o menino toca sua gaitaolhos-tristes garota da baixada,
que subiu de van pra cidade
ver o japonês fotógrafo pisar no meu pé
e dizer sóri
meu abacaxi gelado no saquinho
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
51/129
42
o brasil é o pior país do meu mundo
porque vivo perto de gente ruim, e tudo é grave,
o café do chefe que atrasou e ele fica bravo
e tem vaga especial e corta caminho pelo corredor do
ônibus
mas não porque seu avô toca gaita sobre o viaduto
ou porque seu país é do outro lado do mundo
e aqui vamos recebê-lo, com sua mochila e seus
filhos sem língua
que falarão português, mas não vai adiantar,
porque quando o café não chega na hora,
o chefe nem quer ouvir
nem quer ouvir essa língua misturada
que, faz tempo, defenderam na semana de artemoderna
Nesta semana tem programação especial,
e a filha do chefe dançará balé no municipal
mas ele brigará com o manobrista, que por sua vez,
nem faz ideia
de quem é o mário de andrade pintado de prata
que faz seu show no meio da cidade.
E assim, vamos construindo tetos abertos
porque dá pra ver o céu, e ver que ele é grande,
imenso, subindo como os olhos do avô
que posa para a foto do neto
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
52/129
43
Na parede da calçada onde o povo acampava,
um guarda municipal
vê o desenho
livreque uma das crianças pintou
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
53/129
44
NÃO SE TRATA de ter medo de morrer e isso travar
as pernas
a raiva é do autoritarismo da morte, de vir e parar
tudo no meio
quando um carro desgovernado ou tiro ou câncer
corta a experiência
E farão epitáfios nos jornais, dizendo poeta e a
profissão que tiver na época
Ninguém acreditará na obra do morto, eu não lerei
sua poesia só pra conhecer,
E pegarão poemas abandonados da infância e
publicarão
só para aumentar o espólio da sua obra – porque
sua poesia é universal,mas seu copyright é familiar
E enterrarão com bandeira de time de futebol ou de
partido
Se famoso, os adolescentes treparão em seus
túmulos
Ou se cremado, terá uma plaquinha num
columbário
ou essa chuva cinza pouca que cai no fim do dia (se
conseguirmos pagar o caro valor de um
helicóptero de aluguel) ou termina em clichê de
praia ou samambaia
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
54/129
45
Se famoso, dirão Faleceu, hoje, aos sei lá quantos
anos, de falência múltipla dos órgãos,
no hospital tal, na zona, de que cidade for, o poeta e
profissão que tiver na época, Cássio CorrêaO Brasil fica mais triste ou o país fica mais medíocre
ou o que o valha
O céu ficará mais poético
Se juntará a Roberto Piva e Syd Barret
Abertura em jogral de jornal da Globo:
o país perde uma de suas maiores vozes
morre o poeta das multidões
enterrado no Cemitério São João Batista
com a presença do presidente das Organizações
Globo, jornalista Algum Marinho da época
@ presidente declarou em nota que: A raça humana
perde hoje um de seus maiores cantores
E assim vai...
Nada acontecerá.
Aos amigos mais próximos – os poucos que
conhecerão esse poema – espero, ao menos, que zoem minha cara
Lendo bem teatralmente as partes grandiloquentes.
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
55/129
46
O LIVRO DIZ o mundo é você e o ônibus para e o
mundo corre para chegar primeiro
o ativismo nas ruas celebra o fragmento das coisas,
as coisas são apenas coisas, a filosofia
contente com passagens para onde se faz melhor
poesia, na margem do Minho,
num pub na Baker Street, as margens célebres do
Sena, Bleecker Street e muitos dólares a mais,
assim, não sobrará escolas em Frankfurt, se todos
se cansam, por que os pensadores não?
a caverna é um reality show das sombras, e o cerne
dessa crítica não é a celebridade,
mas sim o livro que é lido pela moça secretária, ou
pelo intelectualqualquer Tchecov mal interpretado, todo Kafka lido
em fila de museu,
seria minha barba de Cláudio Cunha em
Oh, Rebuceteio! parte dessa mesma ética?
sempre apontando para algum lugar que seja fora
daqui, a realidade é um post crítico
de um amigo crítico que está cada vez mais
neurótico ou uma mensagem fanática
de um parente fariseu – o ponto é que não há rede
social que tenha inventado o que já havia
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
56/129
47
busca a cerveja moleque, não mija aí moleque, você
precisa se emendar moleque,
se emenda na puta que te pariu, filho da puta, broxa
fariseu, e toma a cerveja com o catarromoço das primeiras manhãs do século – a poesia
ultra-romântica nos fez mais ternos, como a lua,
como a morte do lateral que não saiu na foto da
Copa,
pede-se memória quando o esquecimento é o padrão
país de mal de Alzheimer, velhos senis gritando pela
janela como cachorros desguelados
e tem a mesquinharia nacional, essa raiva de pobre
que alimenta a classe média
Baudelaire censurado Poe sua passante você que
veio do norte Belchior
(nota para um editor do futuro: procure nos jornais
do passado a repercussão da contratação de
médicos
estrangeiros para trabalhar em buracos que
nenhum médico brasileiro quis)
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
57/129
48
FOI NA ESQUINA da Bela Cintra com a Fernando de
Albuquerque
as bombas vinham zumbindo
o gás lavava o rosto de cada um
mas ninguém desistia.
Num bar largado às pressas,
garrafas quebradas por toda calçada.
No meio da correria,
com os cavalos já em cima do povo,
uma moça, bem nova, pequena,
se abaixa
e pega um caco de vidro.
Coloca de leve num canto escondido.
“Imagina se alguém pisa”, seus olhos molhados sussurram.
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
58/129
49
A IGREJA ENCHEU o portão do seu estacionamento
de arames farpados
os mandamentos já não convencem, e a comunidade
não acredita na lei dos homensum dia o sacristão acorda no meio da noite e vai
tirar um homem empalado de sua rede
pescador de homens, ladrões de toca-fita GPS, Jesus
era bom, mas não era frouxo,
teria seguro hoje, porque o que é de César os
homens querem,
ladrão que rouba ladrão morre na cruz lateral,
explicar pros fieis a morte nos espinheiros
cruzada contra a Jerusalém simbólica sitiada, são
Paulo cidade ocupada, olhos de coruja
espiando os passos das pessoas, raio mortal
instalado na lua, satélite de observação
estacionado sobre as calçadas, passando em cima
da perna dos mendigos e das caixas
de papelão dos camelôs, as mesas viram cama, as
fontes secam banhos, são privadas cagadasembalagens de marmita e sopa, deserto árido, não
se gasta água com essa gente da cidade
não se corta a grama que é proibido pisar, é proibido
comer porcaria da rua, a carne podre
dos churrascos ou hot-dogs faz mal, faz bem o
cérebro carne-louca buzinando histerias
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
59/129
50
e paranoias, a chapa quente do fascismo torrando
cada neurônio, a neurologia é o açougue
científico que explicará os posicionamentos e o
cósmico, ela vence a psicologia no MMA dos
campos de concentração, tabela o cérebro nas
ligações sinápticas interligadas por táxis
conectores químicos que vencem a carne, a fé e a
droga, que desarmam a bomba da poesia
mães mal comidas se masturbam enquanto leem
suas literaturas de classe, letras certas que devem
ser tocadas, painéis de neon acesos com as letras
certas, roletrando
girando o carrossel desnorteado dos loucos, de todos
tiposos que tiveram o cérebro lobotomizado, arrancado
pelo nariz de cocaína, pelo álcool, pelo trabalho, pela
família, pela polícia, pelo capitalismo, pelo moloch
gigantesco nas galerias
oficiais de arte, moloch de cimento arrebentando as
cabeças e comendo o cérebro como noz
como gelatina vermelha colocada em copinho
plástico na festa de aniversário
aperta o plástico do crânio e engole a gosma que
passa fria pela garganta do monstro
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
60/129
51
já há o apocalipse racionalizado dos extermínios,
das desocupações de prédios, da matança dos
porcos que gritam alto, logo eles virão, chegarão e
arrancarão nossas cabeças,espanhóis portugueses bandeirantes peregrinos
proprietários policiais jornalistas neurologistas
sem metáforas, sem linguagem, canibalizando a
carne das ruas,
completando o ciclo do saque: a cidade proibida será
deles, que comerão nossa carne
nas ruas, sem legislação nenhuma que impeça que
arranquem meu coração de um espeto
e lambuzem de limão e farofa de mandioca torrada
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
61/129
52
ENCONTRA, PRIMEIRO, TEU lugar na barricada
perdido, saio de casa.
sei o lado que fica meu trabalho, mas o vento é frio
essa hora da manhã
a rua não tem barricadas
têm carros, motos e gente com medo, mas ainda não
barricadas
os leões fogem das jaulas nos circos e comem a
criança
depois, a autópsia descobre que seus estômagos
estavam vazios
não comiam há meses, como o urso que se
alimentava de fubáou o elefante que balançava seu corpo neurótico
Parkinson tonelada, procurando o caminho de casa
minha bisavó com o vidro de colírio, perguntando
onde a filha morava
meu pai a encontrou e levou de volta pra casa,
ela usava fraldas de pano como proteção de cabeça
e ganhava, todo natal, um sapatinho novo
escondia pão duro no armário
não trocava a roupa de baixo
e chorava de medo da noite
que vinha bater em sua janela
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
62/129
53
monstros que estavam naquele quarto
onde dormi minha adolescência
ouvindo os mesmos gritos que ela ouvia na janela
minha mãe dizia que se o leão fugisse,deveríamos entrar em sua jaula:
único lugar que ele não estaria nunca mais
o leão achando seu lugar na barricada
terei Alzheimer na velhice
perguntando onde é a jaula da vó-filha,
onde o leão está que posso ficar em sua jaula?
o chimpanzé fugiu do zoo e foi encontrado num bar,
bebendo com 3 pinguços locais
outro, atravessou o lago e foi apanhar dos macacos
pregos
caipira de araçoiaba, domingo no zoológico
levar lata de goiabada cheia de merda pro exame
o doutor falou pra cagar na latinha
e colocar história na internet e levar o riso global na
cara
o homem atravessando o rio de caronte, a proibiçãodo primitivo
indo cobrar dos primatas seu lugar na barricada
planeta dos macacos pregos
sociedade desenvolvida,
exclusão e neurose
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
63/129
54
não faltam relatos de desgraças em circos
itinerantes
machucando os bichos, amarrando elefantes com
correntes
a diferença entre um elefante africano e indiano
pode ser descoberta pelas orelhas
o africano tem a orelha maior, com formato do
continente
o indiano é menor, e a orelha parece o mapa da
índia
os elefantes de pelúcia de casa
minha bisavó me deu um
eu era bebê e ela tinha cérebro
não era uma pasta degenerativa balançando em seurosto enrugado
ela ia ao Bamerindus e comprava caminhões de gás
e elefantes de brinquedo
recolhia sua aposentadoria de mulher trabalhadora
teares da Santa Maria apodrecendo na memória da
terra
madeira velha e tijolinhos de chaminé
assistindo a escola Achilles de Almeida e suas
glórias
demolição, enterro e alguém sentado em cima de seu
túmulo, vó
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
64/129
55
gritando que quer sair de casa, que está com medo,
que sua mãe é sua filha
que eles estão chegando – os leões
eles estão chegando – os discos voadoreseles estão chegando – os neurônios que ainda
funcionam
eles estão chegando – meu vô rancoroso jogando
água na cara enrugada dela
eles estão chegando – algum ancestral curando o
xamanismo
eles estão chegando – batem nas janelas
eles estão chegando – sobem as escadas do quintal,
passam pelo chão com lixo grudado
eles estão chegando – seu chorume vara a noite,
como gato no telhado, como leão louco
como elefante vagando pela madrugada, você chega
antes da manhã
lava as louças com esponjas sujas,
bebe água com sabão
sai de combinação pela casafede o banho que toma chorando, filho da puta,
grita
eles estão chegando – vá para a puta que o pariu, e
eu entendo o xingo, vó
a puta que me pariu te ama e te dá banho de neta,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
65/129
56
chorando sua enfermagem científica
distanciamento de sua calcinha suja, ser medicina e
compaixão
eles estão chegando – vão celebrar a missa de
domingo, virão em suas brasílias
com adesivos da arquidiocese, perdoarão todas as
faltas,
você é católico, mas não é viado, né vô? pode bater
na cara da sogra
covarde que teve seu perdão num aperto de mão
minutos antes da morte dela
adolescente vendo os dedos dizerem o que a boca
não pode
o cérebro se refaz em memória e discernimentoo rosto seca da água suja vingativa e você escolhe
o perdão?
piedade, piedade, piedade de nós (2x)
ó cristo que vieste salvar, os pecadores e
humilhados
eles estão chegando
– e vão arrebentar as portas
a senhora pode fugir pra dentro do quarto
ela nunca voltaria pra dentro
sua barricada de pão com ovo
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
66/129
57
criando seus netos porque a filha dava aula
carregando seus bisnetos nas fotos
e lhes dando esse elefante
que ele vai carregarem sua barricada própria
quando a manhã fria
chegar
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
67/129
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
68/129
59
sobre o gordinho que se esconde com você
espera! Não, era só alguém que dorme no sofá e se
mexeu
fica tranquila, que estamos juntosse eles chegarem, terão que me levar junto
e terão que me passar tifo, antes que cheguem os
soviéticos
eles vão chegar
eu sei que você estará morta, mas talvez não
talvez esteja viva numa outra dimensão
aqui não se preocupam com seu nariz de judia,
fica aqui, se quiser
mas não ande de bicicleta que te matam
te matam a pé também
ou de ônibus
te matam de qualquer jeito, mas com mais
dignidade?
a gente te matricula numa escola boa e você acaba a
escola
depois vai estudar numa boa faculdade e fazer pós eviajar pra Amsterdam
seus amigos estarão mortos, mas você não
fica quieta! Eles não podem passar por aqui,
reescrevemos a história
e podemos te levar conosco
se disfarce com minha boina
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
69/129
60
e vá nos contando sobre suas brigas com sua mãe e
seu pai e esse seu lance freudiano barato
não, isso é normal, todo mundo briga, siga
escrevendo
dando esperança que eles não te pegarão
mas eles te pegaram e não tem palavra que refaça
isso
e você morreu de tifo e logo depois a guerra acabou
morreu todo mundo, mas seu pai não
a moça guardou o diário e ele foi lançado em várias
línguas, isso é legal, admita
também escrevo e ninguém dá muita bola
se você puder dá uma lida
eu aprendi alguma coisa de holandês e vou falar issopros meus amigos, confirma por favor,
daí a gente vai pra Sorocaba e come uma coxinha
ótima que tem lá
e você morre assim, que nem diz o cartaz, mas você
sabe porque já está morta
sua casa está cheia de novo, é não é sua casa, mas
chama mais atenção
está cheia e tem gente de todo lugar e dessa vez não
vamos te matar
porque somos melhores que os nazistas e não temos
motivos,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
70/129
61
pelo menos,
e você cresce e te esquecem logo, aparece num
programa de TV de tarde,
dá seu depoimento, posa pra Playboy,ou fica na sua, mas viva, sem tifo,
sei lá, no fundo, isso tudo é um papo furado
não tem nada de nada: se você fica viva e me beija
ou se sai pelada ou se sai na TV
ou se fica na sua e ninguém se lembra, alguém vai
lembrar,
sua vizinha vai, porque te vê sempre
tem um filho, ele vai te amar,
e se ficar feia e não achar ninguém, sei lá, vem em
casa
seja minha amiga, tenho poucas, escreve algo pro
sarau,
aprende a cantar e entra na banda, sei lá,
mas você morreu mesmo
os caras eram soldados e os cartazes explicam tudo
direitoa gente morre
alguns dessa forma que você morreu
e isso é horrível, Anne
e só quero agora chorar pra caramba
mas não dá porque a casa está cheia de gente
e ficariam me olhando
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
71/129
62
como se meu choro fosse seu tifo, mas não é
nunca te vi, mas gosto da tua história
a Patricia leu teu livro e te adora
e ensina tua história pra seus alunos
eles são pessoas boas
e acreditamos que serão pessoas boas
mas não dá pra dizer mais que isso
e vamos embora, porque os canais lá fora são lindos,
desculpa, isso não se fala, desculpe, Anne
não tem o que fazer, são experiências, todos nós
vamos
e não posso acreditar que você virá pegar na minha
mão
porque são muitos os que virão, sei lá pra ondeé isso que angustia, não?
Sei que o que te angustia é saber que eles estão lá
embaixo,
e isso não é uma metáfora não
não sei, o melhor é acabar esse poema logo, Anne
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
72/129
63
NO SÁBADO DE aleluia a cidade cheia dos crentes,
ônibus lotados de viagem longa
a sagrada família em suas excursões, perder o
pequeno num banheiro químicoassistir a palestra dos doutores que trocam relógio
na praça, debater política com os aposentados
da lei mais dura que arranca as pernas duas vezes,
uma em máquina outra em texto de sentenças,
são tantas palavras com a loira tingida do banco de
trás, a madrinha comendo cheettos falsificado
coca-colas abertas de madrugada não dá pra dormir
nesse ônibus, só jesus, jesus chegando no domingo
de ramos em seu jumento com suspensão a ar e
toilete a bordo, dvd e microfone para
a liturgia dos videokês, balançando os ramos das
praças, arquitetos de elite chumbando cercas
nas praças: se é praça acho graça, se é prédio acho
tédio, diz o poeta que nos abocanha
jesus comendo milho cozido, eu também sou um
jesus cristo da poesia, exagerovou caminhando com minha cruz de isopor
pregada com palitos gina, essa cruz de não ser lido,
nem comprendido
se jesus não agradou, para sempre estaremos salvos
do fracasso, mas são várias missões
são aqueles que vão redimir os pecados,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
73/129
64
aqueles que vão passar naturalmente
pelos letreiros
do sex shop, cristo procurando calcinhas
comestíveis para os pobres, sabe o que eu queria
multiplicar, Pedrera?,
descendo a São João pelo caminho contrário, minha
poesia tem esses
marcos geográficos, queria ter um mapa de
arredores do meu livro, mas como Cesário Verde
lamento minha Lisboa de idiotas, poetastros nos
jornais, motoristas católicos carregando crentes
a prefeitura da estância climática de norungaba
cedeu gentilmente o ônibus laico das estrelas
dinossauro nielsen, câmbio invertido do tempo, umdia serei lido pelos busólogos por essa citação,
cristo me diz em conforto não esquenta, cada um
com sua cruz, velho, e vamos caminhando
se fosse o poema VIII do guardador de rebanhos,
teria que explicá-lo que o dinheiro não dá pra
coxinha, coca e brinquedo, um ou outro,
um power ranger ou um hot weells falsificado
e assim vamos seguindo, a bandeira dos sem-teto
diz que o prédio é mais que um cimento em
caderneta de poupança, a bandeira paulista sobre o
teto do banespa,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
74/129
65
um dia ele estará ocupado de
gente de verdade, e a bandeira nova vai tremular,
com mais cores que o preto e o branco racista dos
colonizadores que chegaram no flor de maioportuguês, rio tamanduateí de merda e ranço,
quando meu pai vem me visitar nós comemos nos
restaurantes da memória dele,
quando formos velhos, amigos da banda e poesia,
nossas memórias terão 20 anos a mais que nós
ou vamos lembrar de cadeados gourmet nas
calçadas experiences, o passado será um dia de lona
e barraca de um sábado de chefs na praça, meus
restaurantes são balcões doloridos,
a perna balança e não sou conhecido dos garçons,
apesar de falar deles na poesia,
não recebo a caipirinha cortesia dos amigos, nem o
pudim de brinde das noivas dos clientes,
nem sei o nome de todos que ainda não ouvi
chamarem pelo nome, no entanto estão na poesia
mas dizem, cá entre nós, senhor, de que adianta sercitado numa poesia sem leitor?
Esses daqui não são poetas mas têm facebooks lidos
e colegas de escritório,
jesus tímido olha a alça de gel do sutiã da prima
biscate do luizinho
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
75/129
66
guarda carros na esquina do lado de lá, e anda com
os amigos da pós mostrando o centrão velho,
esconde uma montanha russa de medos,
cantarolando Vieira, experimenta óculos com lentes
verdes
cristo john lennon na galeria do rock fuma cigarro
com as meninas, cristo menina tatuada
que queria ir no the cure mas tá sem grana,
mendiga que mija na rua o fio fino da urina cheia de
sopa
que empilha nuvens sobre o carro, que embrama
fios e sepulta rios debaixo desse vale do
anhangabaú, que nada pelos canos das águas
embalsamadas, dos prédios suicidas, dos prédiosconformados e dos prédios que se converteram, o
pastor é um trompete de bebop convertido,
imagina se deus fosse um fascista? Desses que
dizem que cansaram de ser empregado e
abriram seu próprio negócio, e que preferiam, com
perdão da palavra, ter filho pregado na cruz
do que filho viado, cristo chora com as crianças
abandonadas da praça, cuidado cidadão,
área cheia de pickpocketes, fãs de rolling stones
também se mijavam nas calças,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
76/129
67
queria dizer mais uma coisa, para vocês que não
entendem minha obra
o que mais me iguala a Bukowski é a porra do
desprezo pela poesiae o erro de vocês é focar a porra
no livro de Enzensberger, edição da brasiliense,
1985, há uma referência a um livro que fala
da militarização do cotidiano e a implosão das vidas
e da bomba que ia explodir
qual é a bomba? pergunto para todos que cruzo
nesse poema
vejo o Martinelli – eu sou o último mamífero do
martinelli,
copacabana essa semana sou eu: como é perversa
a juventude do meu coração
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
77/129
68
JÁ FALEI DE comer o asfalto que solta do chão, de
cavar até bem fundo, debaixo de tudo
onde tem as cidades do passado e os rios de história
e gente que vagam
e agora vou mais longe e abro essa cratera que
atravessa o planeta, vazando pelo espaço
até mais que o fim de mundo, nessa ferida vou
micróbio até a carne do universo
buraco vermelho de lava e sonho, estrelas, dúvidas e
coisas que não vemos porque estão
debaixo das pedras que choveram a noite toda, o
lado escuro do sol – não há um lado escuro
do sol, ele é todo escuro, brilha como helicóptero em
perseguição nesse deserto chamado tempoas poesias são as mesmas, amigo, só trocamos as
palavras de efeito, há um mundo e sua cadeia
o sistema solar foi aceito, mas o sistema social ainda
causa geocentrismo,
hoje, só hoje,
queria deixar o fardo de explicar o país e ficar nessa
ioga o dia todo, posição do arado que apanho
a sensação de que o sol pode ser mais vitamina D e
menos polícia militar do céu,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
78/129
69
Trotski foi fazer algo em Genebra,
os estudantes do meu lado no ônibus especulam se
morariam
lá, sem sovietes (você quase leu sorvete?), jaquetasgrossas para aguentar o frio,
não queria pensar isso mas é inevitável: quem pode
escolher onde morar? eles
mas eu boto a mão no coração porque acordar muito
cedo pode fazer mal pra saúde, e olho a massa de
cardíacos
com mochilas de aluno presente do estado,
bolsas falsificadas e perfumes, o dia começa em
ondas, vai acordando aos poucos, vai dormindo aos
poucos, fim da novela, do jogo,
do poema
que horas o dia vai começar a ficar ruim?
sonho com a vida chamada mais simples, queria
mais, Snyder guardando florestas
mas o capitalismo está no ar que passa em tudo,
o supermercado de vila é fascista como a maiorcorporação, e as empregadas nas cidades pequenas
ganham até menos do que nas grandes
não posso me surpreender com o que já sei, polícia
sempre será ruim
e exército só serve pra
exceção,
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
79/129
70
quando abandonei a universidade não tive dúvidas,
mas sei que isso é pouco
para ser budista, deixar de ser cristão, é possível
mudar mas não consegui ainda
escrever poemas é uma forma de eu estar
acompanhado, esse você renitente que aparece
são todos vocês que leem e os que leem por cima e
os que nem leem
mas sou eu também, desfazendo a poesia de minha
época em copos americanos de casa
os bares hoje me repugnam – quero as histórias que
conto aqui,
não aquelas
um motorista de ônibus encosta o veículo e começaa chorar
no trânsito parado e tudo mais
me faz chorar o homem que chora
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
80/129
71
ESTÃO PINTANDO UMA parede de prédio onde fica
uma pixação que falei num poema
escuto Belchior ao escrever esse poema
acabei de ouvir as músicas que Paulo feze escrevi para Jeff em Montevidéu
com Ibero Gutierrez na alma
li um e-mail antigo que dizia que São Paulo estava
me fazendo bem
hoje me faz mal
estamos, meu amigo, na espera da mudança que em
breve vai acontecer
lutando com as palavras contra essa América do Sul
de gângsters
na rua, nas veias, na mente, nos dentes, no sexo e
nas tripas
quero falar mais do mundo, da minha doença de
festim e da palavra esquina
porque se somos poetas da rua, malucos que gritam
pela rua
da Consolaçãonosso mundo está na lua,
mas está no chão
a luta é palavra polissêmica, fecundando meu olho,
minha mão
e meu inconsciente
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
81/129
72
lutar contra os camburões,
contra a solidão, contra a varíola que se alastra por
dentro
arrancar a fraqueza que nos injetam logo cedo e
falar mais alto
mais alto que as sirenes e as mesquinharias do fim
do dia
porque eu sei que quem me dá a ideia
de uma consciência e nova juventude
está na rua,
lutando também
e assim nossos poemas são facas
que cortam os arames farpados as paranoiasdescascam as laranjas
abrem a lua no meio,
tiram fiapos da carne,
rasgam o mundo no meio
e, daí, saem as luzes que trazemos nos olhos
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
82/129
73
VEMOS O CEMITÉRIO realocado: translado de
ossos que viram muros
muros que viram torrones para a burguesia
túneis de carpo varando a morte e separando os doislados da mente
São todas essas estações fantasmas largadas dentro
da nossa terra
vivos remanejados para que o osso vire ouro
alquimia simbólica dos planos econômicos – só deus
sabe
Os muros vão cair quando estiverem maduros para
serem vendidos
lascas de pedra embrulhadas em jornal para que
amadureçam a visão histórica dos turistas
Os muros vão cair no meio do sábado, chuva da
madrugada, filme proibido,
pijamas da copa de 90: só deus sabe o que a gente
vai ficar sem
A bomba de cobalto da Santa Casa vai explodir e o
leão vai fugir de sua jaulae a morte vai levar nossas vós e nossas escolhas,
a menina que gostava da gente e era feia
vai ficar bonita e a bonita vai ficar com seu cabelo
pintado na sua ecosport
buscando os filhos nas varizes da cidade, a cidade
destruída pela bomba
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
83/129
74
amendoim e nougat e cal branca, guaritas e guardas
pela noite,
arrastando as lanternas dos opalas sobre as árvores
da rua
(quando a esposa morrer, cortar todas as árvores
que lembrem ela
e morar num pedaço de pedra branca, tijolo velho,
ser escorpião em luto,
até que deus saiba a hora de me levar também)
O psiquiatra expõe o paciente dizendo que toma
rivotril
os poetas se expõem dizendo que tomam rivotril ou
psiquiatras
as casas velhas da Vila Alice viram o córrego sermodernizados e elas não
incubadoras de homens esperando a explosão do
cobalto em seus sacos com câncer
Dona Eva é chamada para a mamografia e o garoto
X-men sai do
raio-X
com seu dedo quebrado, entalado com alumínio
gelado e um gibi do Donald de suborno
a vida vai indo assim assim, hoje estou feliz,
amanhã não, mas quem sabe?
pra que lado vai nosso olhar essa noite, Walt?
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
84/129
75
vagando pelas ruinhas da vida, com muros
descascando pixações velhas,
o asfalto com as marcas das copas antigas, pipas
enroscados nos fios,bares abandonados no tempo, patrocinados por
novas cervejas, jogo de mesa e cadeira
a maioria dos clientes morreu ou não pode mais
beber
Top Stop passa o ponto e o pregador discute com
Bon Jovi
o diabo gosta de rock dos anos 80 – o tempo passa e
a gente fica pra trás
nossas referências sendo ridicularizadas pela neta
que curte Adelle
Mas ele diz que pelo menos viu o Muro subir e
descer,
e viu mesmo – não ficou sabendo por museu ou pela
Wikipedia,
e diz que sua vida tem polêmicas mais importantes
do que saber se a pronúncia das coisasé pédia
ou pídia
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
85/129
76
A EFICÁCIA DESSES poemas tem sido prejudicada
por meu olho enguiçado
são radares que percorrem as frases e manchas
espalhadas em garfos de plástico e teologias de
calçada,
fixam em paranoias e mastigam nervosamente o bife
duro da marmitex
a rua segue com suas únicas doze notas,
distribuídas randomicamente em suas planilhas
apresentadas em reuniões de mitologias, as estrelas
azuis espalhadas em minha camiseta, abóboda-
pança, planetário de Kepler
(Pepe, de Portugal e do Real, se chama Kepler)
Thyco Brye sendo elogiado por Carl Sagan, osmoleques pobres vendem livros de colorir,
astrologias poderosas que dão a corda em nossas
pernas.
a poesia e as babás vestem branco e carregam filhos
dos outros,
sangue-corretivo sujando a lapela, bebês ateus
criados por mulheres evangélicas, violino rompido
nos toques de celular de sintetizador, super mário
rogai por nós que recorremos a vós,
princesa sara nossa terra, compra nossos livros,
experimenta nossos sapatos
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
86/129
77
jesus cristo redentor mostra o tamanho do peixe que
pescou e pedro duvida
os poetas amam os mendigos, aprendem suas
filosofias e escutam suas baboseirasouvidos esquizofrênicos ouvindo teorias sem
conspiração, lógica, custo e benefício
ei, seu guarda, o senhor assiste os filmes que
confisca do camelô cult?
ou curte mais charles bronson e dirty harry
– são filmes cult –
o GM do prefeito fuma só em lugares abertos e toma
sukita que rouba do ambulante
no meu sonho eu já vivi um lindo conto infantil tudo
era magia era um mundo fora do meu
e ao chegar desse sono acordei foi quando correndo
eu vi um cavalo de fogo ali, que tocou meu coração
quando me disse então que um dia rainha eu seria,
se com a maldade pudesse acabar no mundo dos
sonhos pudesse chegar e tirasse os sapatos e lesse
nossos livrosnão somos os 20 escritores mais promissores do
país, amigo
mas temos nossas poesias de abdução, fazemos a
palavra dar esses baques
como o horário planando sobre nossas cabeças
a chuva que não vai cair pelo jeito
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
87/129
78
não tenho cara de babá, nem de judeu, nem de
poeta, nem de nada
sei lá o que pensam se me olham parado nessa guia
cheio de livros de colorir na cabeça – quando parar
de me deslumbrar com os brinquedinhos com
elástico que os caras vendem vou embora
eles sobem azuis sobem sobem e caem
não somos esses brinquedinhos, na metáfora de
planeta orbitamos algo que não deu pra pensar
verdade é que sobra esse enfado do poema
o poema já aconteceu e na cabeça era melhor
abra minha mente, baby, a noite escapando dos
neurônios, feixes elétricos explicados por
fórmulas que não entendi – fui até bem na prova pramaquinista do metrô
exceto nessa parte de elétrica – mas falando a
verdade, acho que não trabalharia nisso
o poema acabar de repente divide opiniões
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
88/129
79
O FIM DO mundo não é mais o chapéu do burguês
ventando pela cidade
nas ruas de burguês antigo,
imigrantes vendendo bolsas falsase fones de ouvidos
o fim do mundo é a nota de 10 que voa de alguma
mão e vai flanando pelos bulevares,
comprando canetas de famílias deficientes,
comprando esfirra de promoção,
a nota vai parando nas lojas,
só dar uma olhadinha
assiste o show dos malabaristas,
ora com os crentes,
e passa encarando os PMs
na base comunitária com garrafão de água e café,
a nota toma uma bomba energética
compra sapatos no outlet, rodopia,
destruindo o mundo, parando a ação do filme
botão de pause, dá pra juntar qualquer valor
- se diz agregar valor - à palavra apocalipsetodos saturnos de exceção
e poéticas de milho verdejantes
qualquer um pode ser poeta,
todos cavalos de estátua
entraram na história de tabela
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
89/129
80
a nota vai descendo e antes de chegar ao chão, um
pai de família pega e taca no bolso
sem cerimônia ou sequer procurar o dono em volta,
sem contar pra esposa,
ou resolver o doce da filha, embolsa a nota
e o mundo acaba, se reconstrói, e os bondes saltam
dos viadutos e as bolsas caem
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
90/129
81
TEM DIAS QUE o precipício transborda
cidade interditada
os passeios viram veias entupidas de
paranormalidadesmolochs destroem os prédios
cavam minha carne
São obras profundas operando na galeria paranoica
por onde escoam as coisas de psicanálise,
extraterrestres e delírios
andares pra dentro do chão, pro fundo do asfalto,
da gordura, da china
essa prisão de filme B,
me intestinando o medo da
loucura
da cidade que vira bairro e do retardado na saída da
escola
cuspindo nas crianças e correndo atrás de quem
chama de louco
ele perdeu tudo coitado, era moço inteligente,
nem te contovai Corinthians! brasilsilsil!
grita no eco das profundezas,
Macário chegando em Sorocaba vê os prédios e fica
sentido
sua calça de moletom metonímica
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
91/129
82
é que as calçadas estão cheias de ferros de alicerce,
pontudos dirigidos ao céu
ereções tampadas por garrafas pet, casas desistidas,
geminamento das coisas
janelas que abrem padarias, escrever na parede com
barro do chão
o que ofende as elites nos letreiros dos pobres é a
desproporção das letras
a mensagem começa grande e vai acabando o espaço
antes da palavra
sempre sobra uma letra na linha de baixo, na
anarquia da separação das sílabas
meu coração é esse macaco-prego correndo pela ilha
no meio do lagoe todos os pássaros do mundo são as mensageiras
que vêm ver se a água abaixou
uma das melhores lições que aprendi da minha mãe:
se o rinoceronte te perseguir, pula pro lado que sua
visão é ruim
e ele vai demorar pra perceber e fazer a volta
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
92/129
83
É DIFÍCIL FAZER de cada poema o último
que diga tudo e seja o fecho que amarra a poesia e a
vida
porque não sou agradável nem bonitoe nas festas fico no canto e nos lançamentos prefiro
ficar em casa e ver a Premier League
mas vi os expoentes da minha geração nas sarjetas
loucos histéricos e nus, perdidos entre suas vacas
de apertar e requebrar e suas dúvidas
e cantei a melancolia com Simon and Garfunkel
e encontrei Belchior no Uruguay, rio e mar e sol,
chimarrão e alfajor,
sentados na grama do parque Rodó
e eu lhe disse seja meu Woody Guthrie, e serei seu
Dylan,
mas o avião não caiu na volta
Agora escrevo de uma sala genérica, com paredes de
dry-wall
pintadas num homofóbico salmão degradê
Não resta sequer a beleza de madeira de umarepartição de pornochanchada
e as secretárias fornecem apenas pós-modernismos
e corpos de sigla
MILFs no anoitecer, o dia já passou tanto, mas
ainda faltam 3 horas,
minha geração e suas iniciais de punheteiro
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
93/129
84
Como te contar, menina, que essa noite o mundo
acabou e hoje começou de novo?
Só resta o silêncio que não consigo ficar.
Porque os sábios são os que calam
e morrem entendendo a miséria humana
Arrumar os poemas na pasta do computador, como
um Sá-Carneiro bunda-mole
que escreve e-mails para os Pessoas do mundo não
responderem agora
minha arca da aliança estará cheia de bons poemas
e amigos dispostos a publicarem
em edições caseiras, dadas de graças para amigos
que não vão ler,
como diria Paulo José Vieira, poeta
-
8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro
94/129
85
O MENDIGO SE parece com um bailarino soviético
seus olhos como fumaças e seus cabelos sujos
debaixo do capuz
anda pelo meio da rua, numa linha reta ao universo,os carros fazem filas irritadas atrás de seu corpo
magro
ele ocupa as faixas, ocupa os olhos, ocupa as linhas
do poema
ocupa a língua, a carne, ocupa a conversa
ocupa a língua e suas variantes, ocupa a culpa,
preocupa, toma os céus como avião
da esquadrilha, deixa marcas com seus pés,
sapatilha de asfalto riscando o palco
pega ladrão! Grita o homem de camisa de crente,
correndo atrás do punguista,
as pessoas assistem o espetáculo, bufões em
correria, o homem furtado vai ter um enfarte
e o ladrão vaga pelos vãos de gente incrédula, sem
saber se arma ou rasteira,
é brincadeira dos dois ou é a cidade que não brincanunca,
e lá seguem, atraindo nossos periscópios, meteroros
rabiscam o negativo das fotos,
e o homem gordo se so