CARLOS CARRANCA PEDRO PEREIRA LEITE - ces.uc.pt · Ficha Técnica: Informal Museology Studies...
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CARLOS CARRANCA
PEDRO PEREIRA LEITE
A IDEIA DA EUROPA E
A DIGNIDADE HUMANA
Informal Museology Studies nº 10
Summer 2015
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 2
Ficha Técnica:
Informal Museology Studies
Papers on Qualitative Research
Issue 10 – summer /2015
Directory
Pedro Pereira Leite
ISSN – 2182-8962
Editor: Pedro Pereira Leite
Publisher: Marca d’ Água: Publicações e Projetos
Redaction: Casa Muss-amb-ike
Ilha de Moçambique,
3098 Moçambique
Lisbon: Passeio dos Fenícios, Lt. 4.33.01.B 5º Esq.
1990-302 Lisbon –Portugal
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 3
Conteúdo Apresentação ................................................................................ 4
A ideia de Europa no Diário XVI de Miguel Torga ............................... 5
A dignidade humana e a nova narrativa para a Europa ..................... 17
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 4
Apresentação
Neste número dos Informal Museology Studies apresentamos o texto
do Professor Carlos Carranca que serviu de base à sua intervenção na Tertúlia
“Café Europa” realizada no dia 6 de março de 2015 na Universidade Lusófona
de Humanidades e Tecnologias. Segue-se um pequeno texto que acompanha a
exposição sobre “Uma nova narrativa para a Europa” que realizamos para esse
evento e que esteve patente ao público durante o mês de março na biblioteca
Vítor de Sá, onde abordamos sinteticamente as novas narrativas e a ideia da
dignidade humana.
Este número sai numa altura em que a Europa enfrenta, enquanto
projecto político, um dos seus maiores desafios. Curiosamente encontram-se
já enunciados na Ideia de Europa de Miguel Torga, que aqui o Professor Carlos
Carranca tão bem disseca.
Neste mês de julho de 2015 os caminhos da Europa, da sua União e
desunião estão uma vez mais na ordem do dia. A questão grega é sem dúvida
uma questão política e económica. São sinais duma crise que eclodiu em 2008
e que mostrou diversos desenhos duma arquitectura imperfeita. Para além da
crise financeira e da crise da moeda única a Europa, enfrenta agora, de forma
clara, uma crise estrutural.
Estará em condições de a superar, recriando-se numa arquitectura de
povos solidários ou iniciou, mais uma, vez um caminho de conflitos? Uma
resposta que está nas mãos dos cidadãos.
Lisboa julho 2015
Pedro Pereira Leite
.
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A ideia de Europa no Diário XVI de Miguel Torga1
Carlos Carranca2
Talvez toda a literatura tenha nascido de um golpe, de uma ferida
que se torna cicatriz de um corpo, de uma pátria, de um continente. É
sempre algo que nos dói e nos torna mais conscientes da nossa
condição. Cicatrizes como resultado de um sem número de
deslumbramentos, de ganhos e de perdas. Cicatrizes como roteiro
dessa viagem de exílio que é a do escritor. Porque escrever é estar
sempre fora, ansiando por uma pátria ideal, feita de velhas raízes e
novos ramos, sob os quais possamos pernoitar, habitar e conviver, à
sombra da sua altura.
A nossa literatura, a portuguesa, é, como se sabe, desde o início,
uma literatura marcada pela errância. Errância pelo mundo, por todos
os continentes do homem. Talvez Fernando Pessoa seja o exemplo mais
universal dessa errância, sem sair do lugar. De uma errância feita pelo
desdobramento da personalidade, pelo muito imaginar, por uma certa
forma de navegação espiritual, que tão bem sintetiza a nossa História e
o nosso Povo.
1 Publicado em Rua–L. Revista da Universidade de Aveiro, n.º 1, II (2012)
http://revistaualetras.regiaocentro.net/ 2 Professor auxiliar convidado da Universidade Lusófona, docente da Escola Superior
de Educação Almeida Garrett e da Escola Profissional de Teatro de Cascais. Foi
presidente da Direcção da Sociedade de Língua Portuguesa e fundador e elemento da
Direcção do Círculo Cultural Miguel Torga, e da Sociedade Africanóloga de Língua
Portuguesa. Integra o Centro de Estudos de História Contemporânea e fundou o
Centro de Iniciação Teatral, juntamente com Carlos Avilez e João Vasco
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Das duas profundas e dolorosas feridas – as Guerras Mundiais-,
restam hoje as cicatrizes que ajudaram, até há pouco, a dividir a
Europa e o mundo. Delidas essas marcas, hoje cumpre-nos, a nós,
europeus, olhar sem paternalismo e conviver sem reserva. Mas será
possível, neste momento, onde se erguem na Europa novos fantasmas
herdeiros de velhos senhores e novos senhores herdeiros de velhos
fantasmas, sossegar a nossa condição de humanos atentos ao nosso
tempo, singular e difícil, num continente antigo que nos cumpre viver?
No ano 2004, na Holanda, George Steiner terá afirmado, numa
conferência realizada no Nexus Institute, e dedicada à Europa que a
vida não reflectida não é efectivamente digna de ser vivida.
É por esse caminho, já trilhado por Torga e por todos aqueles que
procuram um sentido, individual ou colectivo, que vamos.
Regressemos a Steiner para avivar o caminho já percorrido: «[…]
ser europeu é tentar negociar, moralmente, intelectualmente e
existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de
Sócrates e da cidade de Isaías.» (Steiner, 2006: 36). E terá sido nessa
combinação de herança helénica com a judaico-cristã que o império
romano se forjou, dando sentido a uma Europa onde os particularismos
ou identidades nacionais ou regionais contribuíram para o reforço da
dimensão universal.
A responsabilidade partilhada, ou a consciência dela é, no caso do
tema que encima este artigo, a marca torguiana de um percurso de
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vida, que obriga os escritores a serem «[…] os mágicos de papel e tinta
que, da claridade dos Parnasos ou da penumbra das mansardas, a
enobrecem [a humanidade] com mensagens e obras de beleza, paz e
concórdia.» (Torga, 1995: 126).
Conhecer a ideia de Europa, na obra literária de Miguel Torga, as
ideias políticas, a sua adaptação literária, assim como o seu discurso
crítico e argumentativo, será tarefa própria para uma tese de
doutoramento e impossível de concretizar num texto crítico limitado
pelo número de páginas e pelo escasso tempo necessário a uma análise
de grande fôlego. Sendo assim, optámos por uma breve abordagem ao
derradeiro Diário do poeta transmontano e, a partir dessa leitura,
encontrar alguns dos dados estruturantes do seu pensamento de
europeu do extremo ocidental da Ibéria, da pátria de Camões.
Que imagem de Europa encontramos plasmada, criticada ou
exaltada, no décimo sexto volume (de 11 de Janeiro de 1990 a 10 de
Dezembro de 1993) do Diário?
Talvez não seja de todo desajustado citar um excerto de uma carta
datada de 7 de Maio de 1974 – já o poeta tinha encerrado
definitivamente a sua obra, sete meses antes do seu falecimento, a 17
de Janeiro –, a Mário Soares, em que a dado passo, afirma: «Eu
também sou, e com desvanecimento europeu. Mas disse um dia destes
a um jornalista do ”Le Monde” que 2só o era com significação se
continuasse a ser plenamente português.» (apud, Rocha, 2000: 180).
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Daqui se retira o elemento estruturante da sua ideia de Europa: uma
Europa de povos independentes, de nações autónomas, mas
colaborantes para um ideal comum.
Daqui à ideia de Europa anterior a Roma, a de Hesíodo, no poema
”Teogonia”, onde pela primeira vez se terá referido expressamente o
vocábulo Europa, jovem formosíssima, princesa fenícia, raptada por
Zeus e transformada em rainha e mãe da futura dinastia de Minos,
“fica-nos” o mito e o sentido inicial da sua evolução como comunidade
cultural, que Roma tão bem soube incorporar.
A ideia de Europa terá evoluído para a pluralidade dos Estados
Soberanos, de uma Europa da Cristandade (desde a Idade Média), para
uma Europa da Humanidade (século XVIII) que consolida a filosofia
crítica, a da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, a da secularização da sociedade, para a de um
século XIX, onde serão consagrados o direito dos povos e o princípio da
nacionalidade, respeitando a individualidade de cada nação, construída
sobre a Língua, a História e a Religião.
É esta a herança que Torga sabe receber e de que não está disposto
a abdicar. Quer ”deixá-la” aos vindouros, num acto de consciência
cívica, patriótica e europeia, sempre atento às novas realidades e
sempre de sobreaviso perante os falsos profetas, os novos patrões
ideológicos do velho continente.
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A carta de Torga a Mário Soares é um grito de desespero de alguém
que, sem deixar de assumir a sua dupla identidade de português e de
europeu, não deixa, contudo, de se afirmar radicalmente português,
como marca de água da sua visão de europeu da Ibéria,
inequivocamente orgulhoso da Língua que, ganhando carácter ao longo
da sua longa História, se universalizou, construindo esse património
variado que a confirma.
Assentando os seus princípios de homem e de artista na «tríade
bendita» (Torga, 1995: 200) que jurou defender e que, galhardamente
e obstinadamente cumpriu vida fora – «o amor, a verdade e a
liberdade» (ibid.)–, é na procura desses valores que o poeta sente a
Europa como um todo, um corpo com alma, e “dói-lhe” a
irresponsabilidade daqueles que, em seu nome, a traem na qualidade
de representantes eleitos. E é nessa linha que Torga vai verberar o
Tratado de Maastricht, na Holanda, a 7 de Fevereiro de 1992. Livre
quanto possível, refractário às autoridades teológica e política, como
Espinosa, Torga zurzirá no tratado que, segundo o poeta, virá a ser
«[…] uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no
curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor
do seu génio criador pela febre usurária.» (1995: 140).
Assim se iniciava o que hoje se tornou por demais evidente: o poder
criminoso da especulação financeira, substituindo o idealismo do
projecto humanista de uma Europa social, unida pelas artes, pela
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ciência, pela cultura e pelo trabalho, respeitando e compreendendo um
património erigido pelo génio dos seus filhos.
O poeta de S. Martinho de Anta condena a dependência de Portugal
e a sua «subserviência às mãos de uma Europa sem valores» (1995:
144), porque cresceu a acreditar «[n]um Portugal que serve o mundo
em vez de o dominar, que regressa antes de ser expulso.» (2001: 192).
Em que Europa crê o poeta? Não é, por certo, «numa Europa que dia
a dia masoquistamente se desfigura, como que envergonhada da sua
nova identidade.» (1995: 140). Nem na Europa que percorreu e sofreu
no início da guerra civil de Espanha, a de «[um] povo espanhol,
atraiçoado em 36 pela conivência de algumas nações e pelo egoísmo de
outras.» (1976: 112). Nem na Itália que visitou na mesma época e
onde «cada italiano que interpelava, culto ou inculto, dava-me sempre a
impressão de que faiscava, em vez de raciocinar.» (1971: 93).
Mais tarde percorrerá a pátria de Verdi, visitando Pisa, Veneza,
Florença, Roma, Nápoles, Capri, Pompeia e Sicília, na procura
angustiada de um sentido colectivo, fraterno, para um futuro pelo qual
se batia como cidadão e como artista de uma Europa idealizada.
Torga teima em acreditar numa Europa não comandada pela «batuta
de um novo Bismark» (1971: 121), mas pelo génio criador de um
Goethe, de um Hölderlin, de um Rilke, de um Kafka, de um Thomas
Mann, que tanto admirava.
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A sua Europa renasce sempre que folheia a “Odisseia” de Homero,
ou se confronta com as aventuras do ”D. Quixote” de Cervantes ou do
de Miguel de Unamuno; ou embarca em “Os Lusíadas” e se afunda no
“Diário” de Amiel, ou se redescobre mais europeu e mais moderno
numa tela de Picasso; ou se revifica,”sentindo-se” mais ibérico, numa
composição musical de Falla; ou reencontrando-“ –se” com o Homem
nos “Ensaios” de Montaigne, ou navegando nesse mar chão de uma
«Grécia velha, milenária, de fatalidades e maldições cristalizadas na
memória.» (1995: 187).
A Europa de Torga está no génio versátil de Erasmo, na fraterna
comunhão entre os homens e a natureza de S. Francisco de Assis, essa
«realidade de um santo com santidade para todos os tempos» (1995:
143), no Horácio do carpe diem, numa «Europa […] a soletrar a custo
Fernão Lopes, Gil Vicente […] e o padre António Vieira.» (1995: 183,
184).
O poeta ”deixa-nos,” contudo, a triste realidade adivinhada de uma
Europa a morrer como sonho, como projecto, e negligente quanto ao
seu passado. Uma Europa poluída em Roma, sua capital espiritual, e
a desfazer-se em Atenas, seu berço e sua tumba.
Crítico feroz da União Europeia, da abolição das nossas fronteiras e
consequente livre circulação de pessoas e de bens, deixa registado no
seu Diário, com data de 2 de Janeiro de 1993:
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[…] ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados previamente
pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus
de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira (1995:
189-190).
A 31 de Agosto do ano de 1993, na cidade de Chaves, a notícia de
que o primeiro-ministro britânico se encontrava a passar férias em
Portugal, mereceu-“-lhe” o seguinte comentário:
[…] tem comido bem, bebido melhor e passeado. Até figos vindimos
provou e saboreou, dizem os jornais. Os nossos velhos donos dão,
como sempre, sinal na hora própria. […] Este barão actual espaireceu
num rabelo motorizado, sem risco e sem passaporte restritivo, apenas
com licença magnânima da C. E. E., que lhe disse que sim, que
aproveitasse, que isto agora é baldio, comunitário, multinacional, e
deles, ingleses, com particular direito”. (1995: 149).
Homem de grande frontalidade, Torga nunca transigirá na defesa
dos valores e dos ideais pelos quais se bate permanentemente:
“Ninguém me encomendou o sermão, mas precisava de desabafar
publicamente. Não posso mais com tanta lição de economia, tanta
megalomania, tão curta visão do que fomos, podemos e devemos ser
ainda, e tanta subserviência às mãos de uma Europa sem valores”.
(1995: 173).
Torga, «orfeu rebelde», nunca deixará de, em todas as
circunstâncias, colocar o seu génio ao serviço do cumprimento de uma
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sociedade mais justa, onde os princípios e valores do socialismo
democrático – entendidos à escala planetária –, caminhariam no sentido
do Homem Universal. E assim sonhava um destino para a Europa, nesse
combate espiritual, intelectual, moral e social.
Agindo sempre por sentido do dever, Torga sabia que em
democracia o poder reside, efectivamente, no povo e que os caminhos
que estavam a ser trilhados pela União Europeia não eram o da
aproximação dos povos, de um aprofundamento da cidadania, mas uma
via para o domínio dos mais ricos.
Torga sabia que a defesa da liberdade, da independência, passa,
primeiro que tudo, pela garantia de mecanismos de intervenção contra
a agressão exterior à nossa individualidade e pelos limites da acção
individual no espaço que é de todos.
Combatente da liberdade contra todas as formas de totalitarismo,
resistente à ditadura, socialista humanista […] cidadão livre,
inconformista e, por vezes, incómodo, que sempre lutou contra o medo,
a subserviência e o indiferentismo cívico. (Amado, 1996: 3), assim o
caracterizou Jorge Amado.
Mais do que europeu, Torga ”sentia-se” cidadão do mundo, ainda
que, primeiro que tudo, português e português fiel às suas origens
rurais, eterno cavador do espírito, castiço por dentro e por fora, nunca
renegando as suas origens sociais, geográficas e cívicas, ampliando
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essas raízes ao extremo da Ibéria, no simbólico uso da boina basca da
pátria pequena de Unamuno.
David Mourão Ferreira afirmará que o poeta representa «quanto há
de viril, vertical, insubornável, no homem português contemporâneo.»
(Mourão Ferreira, 1978: 1094).
Daqui se conclui que quanto mais local, mais enraizado no solo
pátrio, mais europeu, mais universal. É nessa afirmação de virilidade
que Torga entende a liberdade como plenitude e como direito.
Torga sabia que «a única maneira de ser livre diante do poder, é ter
a dignidade de o não servir» (1995: 76), e reconhecendo a nossa
incapacidade, como já o havia afirmado o etnólogo Jorge Dias em Os
Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, de agir dentro da
lógica capitalista, só uma profunda consciência de nós mesmos poderia
salvaguardar a independência arduamente conquistada através dos
séculos. Será dentro desta lógica que o poeta exige patriotismo e
maldiz o Tratado de Maastricht, alertando para os seus malefícios, que
trariam consigo a dependência dos estados de menores dimensões:
[…] só que as grandes potências podem ”dar-se” ao luxo de todos os
jogos malabares e safadezas, e assim assinar até tratados ardilosos
com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas, não. Se,
por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho
da independência, perdem-se de vez. (1995: 121).
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Entre o mito e a realidade ”fica-nos” a tragédia de uma Europa
incapaz de revelar uma vontade na sua pluralidade cultural, que se
deixou raptar por um Zeus que tudo pode e a subjuga e que, ao invés
do mito, não a transforma em rainha e mãe da futura dinastia de Minos,
mas em servente da prepotência financeira, incapaz de compreender e
sentir a unidade espiritual que ela comporta, e que lhe foi conferida pela
“tradição eterna” dos seus povos, como gostaria de afirmar Miguel de
Unamuno, ou pelas cafetarias de Lisboa ou de Copenhaga onde, no
dizer de Steiner, Pessoa, Kierkegaard e outros, se sentavam a desenhar
o mapa da Europa.
A ideia de Europa no “Diário XVI” de Miguel Torga resume-se à
lucidez de quem, do seu tempo, e observando-lhe” as profundas
mudanças, adivinha o futuro comprometido na vulgaridade massificante
de um “shopping-center” enorme, gerido por agentes de um poder sem
rosto, e onde alguns humanos, como formigas, sem lugar nem tempo
para ocuparem a mesa de um café ausente, nervosos, inseguros e sós,
bebem um cafezinho apressado, e onde outros, sem vida para esse
tempo, fumam um cigarrinho triste.
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Bibliografia
AMADO, Jorge «Prefácio», in: T., M., (1996), Portugal, Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, p. 3.
MOURÃO FERREIRA, David (1978), «Miguel Torga», in: COELHO, Jacinto
do Prado (dir.), Dicionário da Literatura, vol. IV, 3.ª ed., Porto,
Figueirinhas, p. 1094.
ROCHA, Clara (2000), Miguel Torga. Fotobiografia, Lisboa, Dom Quixote.
STEINER, George (2006), A Ideia da Europa, Lisboa, Gradiva, 3.ª ed.
TORGA, Miguel (1971), Criação do Mundo, O Quarto Dia, Coimbra, Ed. de
Autor, 2.ª ed.
—(1995), Diário XVI, Coimbra, Ed. de Autor.
—(1976), Fogo Preso, Coimbra, Ed. de Autor.
—(1996), Portugal, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
—(2001), «Traço de União», in: T., M., Ensaios e Discursos, Lisboa,
Dom Quixote.
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A Dignidade Humana e a Nova Narrativa para a Europa
Pedro Pereira Leite3
O projecto “Uma Nova Narrativa para a Europa” foi uma
iniciativa da lançada pela Presidência da Comissão Europeia em Abril de
2013 à qual se associou o Parlamento Europeu e um largo conjunto de
personalidades, da política e da cultura4. Proposta com o objectivo de
alargar o debate sobre o projecto Europeu no espaço público e
desenvolver a participação dos cidadãos na construção duma nova
narrativa, em Portugal, a iniciativa foi dinamizada pelo Centro de
Informação e Documentação Jacques Delors5.
Como marco de referência para a nova proposta de narrativa,
será apresentada, em março de 2014, na Academia das Artes de Berlim
a “Declaração o Corpo e a Mente da Europa”. Um documento que
resultada do trabalho dum corpo de peritos convidados e reflectir sobre
a “narrativa da europa” e o seu futuro.6
3 Pedro Pereira Leite – Investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, Professor na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. 4 http://ec.europa.eu/culture/policy/new-narrative/index_en.htm 5 http://www.pensareuropa.eu/ 6 http://novanarrativa-europa.eu/files/o_corpo_e_a_mente.pdf
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Foi ainda preparado uma Brochura, com a forma de Kit
pedagógico, que serviu de base à preparação das diferentes atividades
de participação dos parceiros7.
A construção desta nova
narrativa inspira-se no passado,
procura identificar os problemas
no presente e preparar os
desafios do futuro. O mapa
conceitual (Mind Map8) que é
apresentado nessa publicação é
bastante ilustrativo da inspiração
e dos seus propósitos. Nos seus
alicerces valoriza a diversidade
cultural, os movimentos sociais
de emancipação, a cultura (curiosamente nomeadas de gramática).
Sobre a narrativa situa a questão do fim da guerra e do fim da divisão
leste-oeste e acentua os efeitos da crise de 2008.
7 http://www.pensareuropa.eu/files/Brochura_final_WEB_19112014_1628.pdf 8 Técnica de Trabalho desenvolvido por Tony Buzan, que se apresenta na forma dum
diagrama, usado para resolução de problemas ou elaboração de projetos.
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 19
Cem anos duma narrativa europeia que permitem continuar a
pensar o presente a partir de três pontos. A
questão financeira, a narrativa e a
necessidade de mudança de paradigma. Não
deixa de ser curioso a ausência de quaisquer
referências ao processo político e à
implementação do Tratado de Lisboa, que
levou a uma configuração das estruturas
europeias muito pouco funcionais.
Mais relevante contudo no mapa conceitual é a aspiração do
futuro. O pensamento europeu hipervaloriza a relação entre passado e
o futuro, tendendo a atribuir relevância ao presente. Já num outro
trabalho sobre Walter Benjamim, na análise da sua XI Tese sobre a
História, tínhamos chamado a atenção esta dupla perspectiva do tempo
que herdamos dos gregos. O Cronos e o Cairos9. No Cronos
inscrevemos o tempo linear, sequencial. No Cairos, a poética do tempo.
A sua essência, ou a interpretação.
Na tese de Benjamin, que trabalha sobre uma figura de Klee, o
tempo do cronos olha simultaneamente para trás, onde vê ruínas; e
para a frente, onde vê a utopia. Um não lugar que se projecta como
vontade. Sobra o encontro com o presente. O presente é o lugar de
onde se observa. Os conceitos que a narrativa apresenta reflectem isso.
Esse será a sua limitação e a sua validade.
9 http://globalherit.hypotheses.org/1791
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 20
Quanto à narrativa sobre o futuro escolhido, voltamos a uma
maior riqueza conceptual.
Procura-se um “novo
renascimento”, repensar a
política com base na
cultura e no conhecimento.
Afirma-se a necessidade
de que a Europa se apoie
no conhecimento.
Interrogam-se os
caminhos de
transformação da
sociedade que se vê a si
própria como impulsionadora. Já lá voltaremos a uma crítica da
narrativa.
A representação da comissão europeia em Lisboa decidiu alargar
do debate aos cidadãos portugueses, através dum conjunto de
iniciativas públicas, que culminaram em Maio de 2015 com um evento
publico e a publicação duma pequena brochura sobre o projecto10.
A nossa participação neste projecto iniciou-se em novembro de
2014 com o convite para participação numa ação de divulgação sobre o
programa “Café-Europa”. Na sequência dessa participação
10
http://www.pensareuropa.eu/uploads/event_assets/23/original/Livro_Uma_Nova_Narr
ativa__para_a_Europa.pdf?1431621275
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 21
desenvolvemos diversas iniciativas públicas, entre as quais destacamos
a que decorreu na Universidade Lusófona de Lisboa, a 6 de março do
corrente ano.
Ao longo destas diferentes iniciativas11 fomos articulando
diferentes ideias,
sobre a diversidade da
História da Europa e
sobre os complexos
desafios que
enfrentava. Uma parte
dessas reflexões foram
incorporada na Exposição “Uma Nova narrativa para a Europa” que
elaboramos em colaboração com a Universidade Lusófona e que esteve
patente ao público entre os dias 2 e 14 de março, no auditório da
Biblioteca Victor de Sá12.
11 Em 13 de janeiro, realizamos uma sessão “café-europa” na Universidade de
Coimbra. Em 20 de fevereiro, um Café-Europa no Liceu Camões em Lisboa. A 24 de
fevereiro realizamos uma aula Debate na Universidade Lusófona. O projecto culminou
com o Café Europa que se realizou a 6 de março na Universidade Lusófona. 12 http://www.pensareuropa.eu/narrativa/96
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A metodologia do café-europa
O Café Europa foi uma atividade essencialmente prática e
envolveu crias várias dinâmicas de grupo com base na metodologia do
"World Cafe"13. A metodologia é
relativamente simples e procura estimular
o debate dum dado temas relevante entre
todos os membros dum grupo,
incentivando todos a participarem.
A partir dum dado contexto, divide-
se o grupo em pequenos grupos entre 4 a
6 participantes. Selecciona-se um tema relevante e cria-se um espaço
de debate amigável. Nomeia-se um ou dois relatores e debate-se a
questão. É útil ter previamente preparado um conjunto de cartões com
questões relevantes que o grupo discutirá. Ganha-se tempo, mas
restringe-se a criatividade do grupo na produção de relevância.
O relator deverá ter a preocupação de ouvir todas as vozes e
procurar relevar as diferentes perspectivas. Ao fim do tempo de debate,
que deve ser previamente definido com razoabilidade, os membros dos
grupos rodam entre si, ficando em cada mesa, pelo menos um dos
relatores, que apresentará os resultados alcançados aos novos
membros. A segunda ronda de discussão contará com novos membros
e, de acordo com o tempo definido deverá efectuar um conjunto de
concussões que serão apresentadas e escritas ao grupo em plenário.
13 http://www.theworldcafe.com/
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 23
A metodologia pode ser usada para trabalhar diferentes temas e
os seus resultados dependem das dinâmicas e empenhamento dos
participantes.
No caso do Café Europa e das aulas-debate, cada um dos
resultados forma compilado na brochura e apresentados à Comissão
Europeia como contribuição dos Cidadãos Portugueses. A metodologia
permite dar uma voz activa aos participantes e desencadear processos
participativos.
A metodologia do “World Café” tem sete princípios base e é de
aplicação simples e eficaz. Pode ser aplicada num formato flexível e tem
como objetivos incrementar o diálogo entre um grupo alargado. Tem
como vantagem a possibilidade de ser usado de acordo com as
necessidades específicas, os contextos, o número de participantes, os
seus objetivos, e outras circunstâncias. Pode ser aplicado num único
simples evento, ou para várias sessões, pode ter formas variadas, para
uma ou mais questões. O modelo tem contudo 5 componentes básicas:
1. Cenário (Setting).
Tem como objetivos criar um ambiente favorável ao diálogo. Muitas
vezes tem a forma de “café”, com pequenas mesas redondas. É
aconselhável dispor de papel e lápis. Adicionalmente a mesa pode estar
decorada com vazos de flores e outro tipo de material para escrita
(como por exemplo canetas de cor, sticks). Cada mesa deve dispor de
quatro a cinco cadeiras:
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2. Acolhimento:
Quem recebe deverá prestar um acolhimento afável aos participantes.
Deverá ser feita uma breve introdução ao método, explicar o contexto
do trabalho sugerido e explicitar a “ética” do Café: o livre debate e o
respeito pela opinião de todos. Os participantes devem ser colocados à
vontade.
3. Formação de pequenos grupos.
Os participantes são convidados a sentarem-se aleatoriamente em volta
da mesa. O primeiro debate deverá ter uma duração aconselhada de 20
minutos. Em cada mesa é escolhido um relator. No final dos vinte
minutos, cada membro da mesa sai para uma mesa diferente. O relator
permanecerá na mesa, fará o acolhimento dos novos membros e fará
uma síntese do debate. O grupo poderá escolher outro relator.
4) Questões:
Em cada roda de debate é escolhida uma ou duas questões para
debate. É uma frase criada especialmente para o contexto da discussão
pretendida para o World Café. A mesma questão pode ser usada nas
duas rodas de debate, ou poderá ser reformulada em função das
discussões que foram desenvolvidas, por vontade do grupo.
5) Colheita:
Após as rodas de debate (ou se necessário entre as rodas de
debate) os membros dos grupos são convidados a partilhar, em roda
alargada, o que cada um achou relevante na discussão. É conveniente
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 25
que o processo seja visual, com a afixação de imagens gráficas e
poderá ser usada a imaginação para estimular a criatividade
A aplicação do processo é simples de aprender. Apresenta
contudo algumas dificuldades e precisões que importa ter em atenção.
A primeira dificuldade tem a ver com o contexto. Como pode ser
aplicado em diferentes contextos, tudo deverá ser adequado ao
contexto do grupo e ao número de participantes. O desenho das
questões não é irrelevante, já que condicionará a forma como ela se
iniciará. A experiencia do dinamizador será também relevante para
obter resultados. É por isso aconselhável que o processo seja
acompanhado por profissionais qualificados na aplicação da
metodologia.
Existem vários recursos disponíveis para aprofundar a aplicação
do método. Podem ser procurados no sítio do grupo que desenvolve a
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 26
metodologia14, bem como a participação na comunidade de
aprendizagem..
Os sete princípios do “world café” estão integrados no modelo e
resultam das ideias e praticas que foram testada na aplicação do
processo. Para a optimização dos resultados importa ter em atenção
1) A definição do contexto
Ter em atenção a razão da reunião das pessoas, os seus
interesses individuais e o que se procura atingir. Definir os objetivos do
encontro é o modo mais fácil de conduzir o processo para atingir os
resultados pretendidos. Importa definir se o dinamizador participa na
discussão, definir o tipo de questões a abordar, que tipos de resultados
são mais úteis.
2) Criar um espaço acolhedor
A ideia de esta num café em volta do mundo enfatiza a ideia de
criar um ambiente acolhedor para o desenvolvimento do processo. Cada
participante deve-se sentir descontraído, seguro e acolhedor. Quando
nos sentimos confortáveis, no espaço, connosco e com os outros, as
pessoas tornam-se mais criativas, pensam melhor, falam mais e estão
mais abertas às aprendizagens.
É importante pensar a forma como o espaço pode ser acolhedor.
Olhar para a iluminação, para o conforto térmico, a acústica, a
decoração da sala. A disponibilidade de água e biscoitos podem ser
14 http://www.theworldcafe.com/world-cafe-book/
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 27
questões a ter em atenção. No World-Café é interessante ter, por
exemplo, disponibilidade de café. Fazer o possível para criar um
ambiente agradável é um passo importante desta metodologia.
3) Explorar questões relevantes
O conhecimento emerge como resposta a problemas. Criar
desafios estimula a criatividade. Procurar responder a problemas reais
do grupo é fundamental. É necessário procurar questões que sejam
relevantes para todos os participantes do grupo. Isso ajuda a criar a
coesão em trono do processo e estimula a focagem do grupo nas
questões propostas. O processo depende do empenhamento dos
participantes na criação de sinergias de grupo. O objectivo do processo
é procurar a energia criada colectivamente para intervir no sistema.
Para ajudar a dar respostas úteis à vida de cada um. Dependendo do
tempo disponível, o processo do “World café” pode ser usado para dar
resposta simples ou para procurar ir aprofundando as questões em
diversos encontros de debate.
4) Encorajar a participação de todos
Enquanto dinamizadores do processo é necessário estar muito
atento à relevância da participação. Dum modo geral as pessoas,
quando estão motivadas tendem, não só a participar, como
frequentemente querem contribuir de forma activa para a resolução dos
problemas. Muitos querem marcar a diferença. Por isso é muito
importante que todos tenham ocasião para participar activamente nos
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 28
processos, respeitando a postura e os desejos de cada um. É necessário
ter em consideração que há indivíduos que participam apenas através
da escuta activam, e que isso pode ser usado pelo grupo.
5) Ligar as diferentes perspectivas
A mudança dos membros das rondas de discussão é uma ocasião
para encontrar novas pessoas e incorporar novas visões na discussão. A
descoberta de novas ideias decorre muitas vezes de discussões em
círculo alargado. Essa é umas das características distintivas do World-
café”. Cada participante apresenta as suas ideias a debate, troca de
perspectivas e gradualmente vai enriquecendo a sua visão. Muitas
vezes, no final, cada participante é surpreendido com as mudanças que
sentiu na sua posição.
6) Ouvir conjuntamente para partilhar padrões e relevâncias
A capacidade de ouvir o outro é um importante recurso de
aprendizagem. No café saber ouvir é talvez uma das mais importantes
características que determina o sucesso do processo. Através da prática
do ouvir e prestar atenção às questões relevantes, permite ir
construindo uma nuvem de padrões. A construção da relevância advém
da sua partilha social. A construção das relevâncias emerge a partir da
conexão de cada indivíduo aos temas gerais. É por isso importante
encorajar cada membro do grupo a escutar activamente enquanto não
está a falar e a partilhar com os outros as suas emoções.
7) A partilha das descobertas colectivas
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 29
A conversa na mesa-redonda deixa entender o padrão
dominante das opiniões. O que une e o que separa. A partilha das
conclusões entre as mesas acentua a facilidade de descobrir esse
padrão comum. A última fase do Café, chamado de “colheita” permite
reforçar o padrão da totalidade que emerge na discussão. O objectivo e
torna-lo visível para todos através da imagem gráfica. Pode se útil
convidar o grupo a fazer uma breve pausa para reflectir sobre o que
pensava sobre a questão do início e o que pensa no momento. Isso
facilita cada um a tomar uma maior consciência dos padrões e da
profundidade das questões.
A relevância a imagem gráfica ´dos resultados finais permite
fazer uma síntese que fica retida na memória, tornando a percepção da
mudança mais sólida. É também importante, para efeito de
documentação do processo, recolher imagens dos quadros finais,
sobretudo se o trabalho se prolonga por várias sessões. A gravação das
sessões é também uma opção, mas deverá ter a aceitação dos
participantes
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 30
A Exposição
A exposição foi concebida para ocupar um espaço circular na
entrada da Biblioteca Victor de Sá. Trata-se dum espaço com alguma
movimentação diária, e pretendia-se por isso que a exposição
apresentada não ocupasse demasiado espaço e fosse facilmente lida.
Implicava portanto uma narrativa sintética em torno de temas
problema. Escolhemos sete temas, abordado cada um num cartaz
cromático do tamanho do A0. As cores escolhidas foram a do arco-íris,
com o objectivo de mostrar a diversidade.
A questão da europa não é uma narrativa fácil. Podemos afirmar
que a História da Europa é um tema vasto que nos consumiu vários
anos de estudo na licenciatura (1981-1985) e mestrado (1995-1997)
em História, que realizamos na Faculdade de Letras de Lisboa. No
âmbito da licenciatura, que se dividia em 4 anos, trabalhos a
Antiguidade Clássica (Grécia e Roma) e as Idades Média, Moderna e
Contemporânea.
Para além da História de Portugal, o que se trabalhava era
essencialmente a História da Europa, sobretudo os casos franceses e
ingleses, e na fase contemporânea a Alemanha. Em grande parte devia-
se essa aproximação devido aos autores da escola francesa (mais) e
inglesa (menos). Falava-se pouco da história fora deste contexto. A
minha opção em História de África levou-nos á especialização nos
Estudos Africanos (1985-1986), mas do resto do mundo, das américas,
da Ásia pouco se trabalhava e o que conheço deve-se sobretudo à
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curiosidade científica de ler a célebre colecção “Rumos do Mundo”15,
abordava o “Mundo Chinês”, O "Islão", "os Eslavos", "As Américas" etc.
numa visão que ultrapassava os limites da geografia da Europa e da sua
expansão colonial.16
É certo que havia no ar uma confiança no futuro. Portugal estava
à beira de entrar na então Comunidade Europeia. O mudo apresentava-
se dividido entre o Ocidente (a democracia) e o Leste (o comunismo).É
certo que havia o terceiro mundo e o não alinhamento. Grosso modo,
na divisão entre o norte (desenvolvido) e o sul (subdesenvolvido ou
dependente) verificavam-se mais alinhamentos do que caminhos
autónomos.
Só alguns anos mais tarde, já no mestrado, é que dei conta que
havia uma “História da Europa”, ou melhor uma narrativa sobre a
Europa. Esse era aliás o título dumas das cadeiras do mestrado.
Lembro-me que nessa altura trabalhei sobre as guerras intra-europeias,
num trabalho que entretanto perdi o rasto, mas que tinha por base os
relatórios do SIPRI17 que havia trazido duma das conferências de paz
que havia participado nos anos oitenta em Amesterdão. E por aí ficamos
sobre a construção das narrativas europeias, embora tenha andado
sempre em trono das problemáticas das relações norte-sul.
15 A edição francesa foi dirigida por André Vargnac, e começou-se a publicar Portugal
em 1963, pela Editora Cosmos. O seu volume 6 intitula-se “O Nascimento da Europa” 16 Para um maior detalhe sobre esta questão veja-se o nosso livro “Mercadores de
Letras” in http://recil.grupolusofona.pt/handle/10437/3936 17 SIPRI - Stockholm International Peace Research Institute
http://books.sipri.org/index_html?seq_start=20&c_category_id=1
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 32
O evento “Uma nova narrativa” para Europa foi a oportunidade
para reactualizar as leituras e as problemáticas sobre as narrativas
europeias. Essas leituras estiveram na base elaboração da exposição.
Já acima enunciamos o conceito gerados da exposição, de
procurar relacionar as pulsões internas para a reunião e desunião da
Europa. Há por isso um conjunto de painéis de natureza, mitológica,
geográfica, histórica e política.
O primeiro painel com o título Europa
o lugar onde o sol se põe aborda a matriz
dual da herança mitológica europeia. Se o
nome Europa tem a sua origem no mundo
mediterrâneo, referindo-se na mitologia
grega ou clássica como a filha de Zeus, não
podemos descurar a forte influencia que a
sua herança tem por via do mundo romano (administração) e pelo
mundo judaico (por via do disporá judaica e cristão, e mais tarde
islâmica).
Se o primeiro painel aborda a questão substantiva do nome, o
segundo painel aborda a questão dos seus limites geográficos. A Europa
é como que uma península da Ásia. O seu território não aparenta
dúvidas a Norte (Mar Báltico e Mar do Norte), a Ocidente (Atlântico) e a
Sul (Mar mediterrâneo. As dúvidas são maiores na fronteira leste.
Fronteiras mais políticas do que naturais, há quem defenda a sua
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 33
extensão até aos Montes Urais e aos Cárpatos, a inclusão da Anatólia.
Já do ponto de vista da delimitação. Para
Heródoto o mundo dividia-se em três partes.
Europa (a Trácia), a Ásia e a Líbia (África),
sendo a Europa delimitada por três rios os Rios
Don, Eufrates, e Nilo, ao passo que a Oeste, as
colunas de Gibraltar delimitavam o mar
exterior.
O primeiro esforço de unificação é, se assim podemos dizer, um
esforço do Império Romano: A Civititas era o mundo que se opunha ao
mundo dos Bárbaros, que se estendia para lá do Limes (a fronteira do
norte estabelecida no rio Reno. Se por um lado o Império Romano
exclui uma boa parte do que é hoje a Europa, inclui, por outro lado toda
a bacia do mediterrâneo. Com a derrota de Cartago em 146 a.C., o
mediterrâneo torna-se num mar romano.
Uma divisão entre culturas que ainda
perdura nos dias de hoje. A cultura do vinho
e da oliveira, e a cultura da cerveja e do
centeio.
Ainda que o Mundo Romano, do
mediterrâneo, não seja o início dessa
narrativa sobre a Europa, ele é uma das suas influências. Será Carlos
Magno (742-814) o Rei dos Francos inaugura um movimento de
integração do espaço europeu numa unidade política e religiosa.
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 34
A fundação do Sacro-império Romano Germânico corporiza a
primeira integração político-militar no ocidente europeu uma figura
política e religiosa que se irá manter ao longo da História Europeia como
uma configuração hibrida e fluída no centro da europa. Ela passa por
vários períodos com mais ou menos intensidade, e atinge o seu auge
com Carlos V (1500-1558), da casa de Áustria, que através de
sucessões dinásticas agrega vários territórios europeus, incluindo a
Espanha e suas possessões coloniais.
Já nos alvores da nossa contemporaneidade, o exercito
Napoleónico, de Napoleão Bonaparte (1769-1821) imperador dos
franceses extinguirão esta experiencia dinástica e inaugura a
experiencia dos movimentos sociais. Napoleão será derrotado, mas
levará o seu exército até à Rússia. A europa que renasce à destruição
napoleónica será uma Europa de Nações.
A Europa tem uma identidade fluída,
difícil de precisar. Como tal encontram-se
no seu seio profundas divisões e
antagonismos não resolvidos. No passado
as guerras assolavam o território europeu
com regularidade. A guerra dos cem anos
no século XIV, as Guerras Religiosas no século XVII, as Invasões
francesas e a guerra franco prussiana no seculo XIX, os dois conflitos
mundiais no século XX, para não falarmos de inúmeros conflitos
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 35
regionais que de modo mais intenso ou pacífico foram aflorando a vida
dos seus povos, e que deixaram um rasto de carnificinas e destruição.
Para além da unidade e da divisão política europeia, a Europa é
também o continente onde surgirá a moderna
ciência e a arte. São duas componentes da sua
narrativa que não podemos descurar. O
Renascimento (que se inicia nos finais do século
XIV) caracteriza-se por ser um período de
redescobrimento da antiguidade clássica, dos
livros da filosofia, da ciência e da história da sua
herança clássica europeia.
A moderna ciência, que será também um dos instrumentos de
dominação do mundo afirma-se como um dos pilares da narrativa
europeia. Das várias realizações cabe destacar a cartografia e a ciência
náutica, permitem navegar em mares abertos e construir embarcações
resistentes aos mares que viabilizam o comércio transatlântico, o
domínio da Pólvora Seca que permitirá uma supremacia militar sem
precedentes, o desenvolvimento da arquitectura, que assegura a
conquista. Mais tarde a botânica e a física irã permitir aos europeus
construir vários mundos novos fora das suas fronteiras naturais. Grosso
modo o ocidente torna-se numa alternativa do oriente e as revoluções
agrícola e industrial conquistaram a natureza, garantido a supremacia
europeia no mundo, elementos que estão bem presentes nas várias
narrativas civilizacionais.
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 36
Será também a Europa que inventará a Democracia, ou melhor
reelaborará herança grega do governo de cidadãos, alargando-a aos
diferentes corpos sociais. A invenção da democracia é uma história
longa e complexa que fundamentará, por um lado a emergência do
estado como instituição de regulação
política dos territórios, e, por outro
lado cria um sistema de regulação do
poder político, periodicamente
renovado, através de sistemas de
representação. Um poder que se
organiza em corpos funcionais de
legislar, governar e justiçar e que
interagem entre si, mantendo a sua
interdependência. O sistema Europeu
de formação de estados estará também nos fundamentos da criação da
ideia de Nação, que ao longo do século XIX e XX servirá de fundamento
para as relações internacionais.
A democracia parte da naturalização do ser humano, na ruptura
com a teocracia e alicerça-se nos princípios da igualdade da liberdade e
da fraternidade. Mas a democracia na Europa foi e é um importante
campo de tensão social. Apesar do que pensou a Europa permanece
como um espaço de conflito latente.
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 37
Fréderic Nietzsche caracteriza a Europa como um “apolíneo
dionisíaco”. Trata-se duma oposição entre razão (a europa do norte) e a
emoção (a europa do sul) que se mantêm como fonte de tensão.
No último painel procuramos sintetizar algumas questões que a
europa enfrenta na construção da sua narrativa.
Se por um lado a Europa inventou a
vida moderna, o mercado, a máquina, a
democracia, a cultura e as artes (a
literatura, a musica a dança o teatro, a
pintura, a escultura, a fotografia e o
cinema) e amor, que se generalizaram
por todo o mundo e que de certo modo
se tornaram valores universais; enfrenta
no seu seio importantes desafios de
inclusão de outras formas de ser e estar no mundo global.
Também ao nível político a tal democracia, como sistema de
representação que a Europa enfrenta importantes desafios em termos
de processos de representação e inclusão de dinâmicas participativas. A
exposição termina com algumas questões em aberto que procuram
abrir o debate. Qual o lugar da cultura cosmopolita na europa e no seio
das suas nações? Que nova narrativa inclusiva? Qua valores vão ser
usados? Que instituições?
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 38
Também procuramos interrogar algumas questões sobre a Relação
da Europa com o mundo. Nomeadamente quais as relações que procura
estabelecer com as suas fronteiras? Qual o papel da Turquia? Haverá
integração dos Balcãs?
E na fronteira leste. Será o futuro uma Europa do Atlântico até aos
Urais, incluindo a Rússia, ou regressaremos a uma outras Guerra Fria,
que parecer estar a ser iniciada a Ucrânia. E finalmente qual será o
lugar do Sul nesta Europa. Como é que ela se irá relacionar com esse
mundo multipolar.
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 39
A dignidade Humana e as novas narrativas
O debate realizado foi vivo e empenhado. Contou com a
participação Carlos Poiares18 de João de Almeida Santos19 e de
inúmeros docentes e alunos. Dele ressaltamos algumas questões que
merecem destaque.
Em primeiro ligar ficou claro que a Europa é uma construção
política que procura a paz. A construção da europa é um processo de
Paz, que conduziu ao mais longo período de ausência de conflitos
directos no continente. É certo que se verificou a excepção da guerra na
antiga Jugoslávia, um conflito que acabou por resultar da fragmentação
duma unidade política criada na sequência dessa guerra.
Um segundo momento fundador da europa relaciona-se com a
constituição, primeiro da CECA (Comunidade Económica do Carvão e do
aço), e depois da Comunidade Económica Europeia. Nesse projecto
tiveram papéis relevantes Robert Schumann e Jean Monet e Konrad
Adenauer.
Finalmente num terceiro momento, a discussão sobre o processo
económico (a política agrícola comum, por exemplo) passa a centra-se
na dimensão política. Uma dimensão que será sempre polémica, com
um campo de tensão a que podemos nomear federalistas (que tem
como figura de proa Alfredo Spinelli, que em 1985 apresentará um 18
Carlos Poiares- Vice-reitor da ULHT e director da Faculdade de Psicologia 19 João de almeida Santos – director da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e
do curso de Ciência Política. Neste número, por razões que nos são alheias não foi possível incluir a sua intervenção.
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 40
projecto de constituição no Parlamento Europeu20), e um outro campo
de tensão que privilegia a “comunidade de estados sobramos”. Um
processo que culminará com o Tratado de Lisboa, em 2007 onde se
procurou um compromisso entre órgãos próprios da União (Parlamento,
Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Tribunal de Justiça,
Tribunal de Contas, Represente Europeu para a Política Externa, Política
Comum de Segurança de Defesa e demais agências); e o poder do
Conselho Europeu, constituído pelos diferentes estados. Esta
arquitectura tem vindo a demonstrar que o poder decisório se mantém
no Conselho Europeu.
A prática também tem vindo a mostrar que com o alargamento aos
Estados Bálticos e do Leste da europa, a comunidade de estado tem
vindo a perder relevância para uma afirmação dos chamados
“directórios”, com a Alemanha a assumir um maior protagonismo.
A crise económica e financeira de 2008 foi um factor que tem vindo
a condicionar a vida política europeia, como o caso da Grécia tem vindo
a demonstrar neste ano de 2015. A europa parece estar à procura dum
novo lugar num mundo multipolar, onde o eixo de hegemonia transitou
para o Pacífico, enfrentando o desafio da sua coesão interna como
entidade política e económica.
Haverá uma Europa para além da Europa é a questão que agora
tentaremos sistematizar.
20
http://europa.eu/about-eu/eu-history/founding-fathers/index_pt.htm#box_11
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 41
As diferentes narrativas sobre a Europa, as suas leituras sobre o
passado e o futuro acentuam, do passado o legado mítico e os
diferentes instrumentos e ferramentas construídas pelos europeus para
conquistar o mundo; e sobre o futuro, o usso desses instrumentos como
elementos distintivos. Ciência e Democracia parecem ser os dois
conceitos emergentes nessa relação. Podemos criticar essa hegemonia,
argumentando que a ciência também permitiu a construção das
máquinas de guerra, que a europa pretendeu evitar, tal como a
democracia não conteve o autoritarismo. Não faltarão hoje argumentos
para criticar a falta de democraticidade da arquitectura política
europeia.
No nosso ponto de vista, como acima assinalamos a propósito da
IX tese sobre a História de Walter Benjamin, não podemos continuar a
esquecer a relevância do presente como ponto de partida. É nesse
ponto que nos encontramos hoje. O que para nós é relevante nesta
Ideia de Europa é a sua capacidade de ter pensado a dignidade da
pessoa humana e das formas de como se agregam. Como afirma
Habermas, em “O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos
Direitos Humanos” (Habermas, 2012) Europa afirma-se como espaço de
afirmação da dignidade humana e de afirmação da sua pluralidade de
configurações. Habermas disseca a emergência do conceito de direitos
humanos, realçando que no seu enunciado se encontra a raiz da
dignidade: da pessoa humana e dos povos. Demonstra que o conceito
de dignidade se demora a consolidar, mas que ele está presente, quer
Informal Museology Studies, 10, summer 2015 42
na formação da memória, (do holocausto), quer na formação da
“utopia”. Demonstra que direitos humanos e dignidade humana são
inseparáveis, ao mesmo tempo que abre campo para a inclusão dos
direitos sociais. A ausência do direito social, recorde-se, é uma das
críticas que tem sido feita à teoria dos direitos humanos a partir da
Epistemologias do Sul. (Santos, 2011), que parece ignorar a
configuração do social e dos papéis sociais. A dignidade humana
como direito fundamental parece ser um conceito a continuamos a
aprofundar do ponto de vista teórico. Será possível uma Europa sem a
respeito pela dignidade dos seus povos. A Grécia será um caso a seguir
para melhor compreendermos as nossas opções.
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Benjamin, Walter (2012). Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio
de Água.
Galtung, John (1998). Direitos Humanos: Uma nova perspectiva, Lisboa, Instituto
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Habermas, J. (2012). Um ensaio sobre a constituição da Europa. Lisboa: Edições 70.
Honnet, Axel (2011). Luta pelo Reconhecimento: para uma gramática moral dos
conflitos sociais, Lisboa, Edições 70.
Santos, Boaventura de Sousa. (2002). A Crítica da Razão Indolente: Contra o
desperdício da Experiencia, Porto, Edições Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa. (2006). A Gramática do Tempo: para uma nova cultura
política, , Porto, Edições Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula. (2011). Epistemologia do Sul,
Coimbra, Edições Almedina.
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