Boletim Meridiano 47 - Nov-Dez. 2012

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Volume 13 – N o 134 – Novembro-Dezembro – 2012 SUMÁRIO ARTIGOS 3 A Inserção Internacional do Brasil nas Últimas Décadas Brazilian International Insertion in the Last Decades MATEUS FERNANDEZ XAVIER 11 Os eixos da Política Externa do Paraguai de 1954 a 1989 The axis of the Paraguayan Foreign Policy from 1954 to 1989 TOMAZ ESPÓSITO NETO 19 China e África: Uma parceria estratégica China and Africa: A strategic partnership HELTON RICARDO OURIQUES ALINE LUI 28 As dificuldades de fundo do Mercosul The great difficulties of Mercosur TULLO VIGEVANI 32 As negociações comerciais do Brasil: uma estratégia em três trilhos Brazilian trade negotiations: a tree-tracks strategy IVAN TIAGO MACHADO OLIVEIRA 39 A difícil governança monetária internacional: o caso das cotas do FMI The difficult international monetary governance: the case of IMF quotas RODRIGO MASCHION ALVES RESENHAS 48 A Primavera Árabe: entre a democracia e a geopolítica do petróleo ALEXANDRE CESAR CUNHA LEITE 50 La política exterior de Chile, 1990-2009: del aislamiento a la integración global CARLOS EDUARDO VIDIGAL 53 Relações Internacionais e Política Externa do Brasil PAULA GOMES MOREIRA BOLETIM MERIDIANO 47 ISSN 1518-1219

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  • Volume 13 No 134 Novembro-Dezembro 2012

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    OARTIGOS

    3 A Insero Internacional do Brasil nas ltimas Dcadas Brazilian International Insertion in the Last Decades MATEUS FERNANDEZ XAVIER

    11 Os eixos da Poltica Externa do Paraguai de 1954 a 1989 The axis of the Paraguayan Foreign Policy from 1954 to 1989 TOMAZ ESPSITO NETO

    19 China e frica: Uma parceria estratgica China and Africa: A strategic partnership HELTON RICARDO OURIQUES ALINE LUI

    28 As dificuldades de fundo do Mercosul The great difficulties of Mercosur TULLO VIGEVANI

    32 As negociaes comerciais do Brasil: uma estratgia em trs trilhos

    Brazilian trade negotiations: a tree-tracks strategy IVAN TIAGO MACHADO OLIVEIRA

    39 A difcil governana monetria internacional: o caso das cotas do FMI

    The difficult international monetary governance: the case of IMF quotas

    RODRIGO MASCHION ALVES

    RESENHAS

    48 A Primavera rabe: entre a democracia e a geopoltica do petrleo

    ALEXANDRE CESAR CUNHA LEITE

    50 La poltica exterior de Chile, 1990-2009: del aislamiento a la integracin global

    CARLOS EDUARDO VIDIGAL

    53 Relaes Internacionais e Poltica Externa do Brasil PAULA GOMES MOREIRA

    BOLETIM MERIDIANO47ISSN 1518-1219

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  • 3A Insero Internacional do Brasil nas ltimas DcadasBrazilian International Insertion in the Last Decades

    Mateus Fernandez Xavier*

    Boletim Meridiano 47 vol. 13, n. 134, nov.-dez. 2012 [p. 3 a 10]

    Introduo

    O conjunto de atores internacionais integra o que estudiosos compreendem como sociedade internacional. Esses agentes interagem entre si de acordo com contingncias existentes em cada momento histrico e essas restries e condicionalidades que se apresentam de acordo com o contexto de cada perodo so os principais fatores que compem as caractersticas do sistema internacional.

    No h dvidas de que o m da con gurao bipolar marco nos estudos de Relaes Internacionais. A dcada de 1990 testemunhou o m de sistema internacional em vigor desde 1945 e o surgimento de outro, com con gurao diversa e cujas principais caractersticas ainda permanecem pouco claras.

    Nesse contexto de incertezas e mudanas aceleradas, qualquer erro de leitura ou interpretao a respeito do sistema internacional pode ser prejudicial aos Estados. Junto s contingncias impostas pelo contexto internacional existem tradies diplomticas geradas ao longo da histria que exercem grande in uncia na insero internacional de cada pas. Buscando ir alm do debate ideolgico existente, o presente artigo tenta demonstrar como semelhanas e diferenas entre as Polticas Externas dos presidentes que se sucederam desde 1990 podem ser melhor explicadas pelas con guraes do sistema internacional emergente e pelas caractersticas basilares da atuao externa do Brasil.

    Para melhor delinear a insero brasileira das ltimas dcadas, necessrio entender quais so as foras profundas (RENOUVIN, 1994) que moldam a diplomacia nacional e compreender as principais caractersticas do contexto internacional do ps-Guerra Fria. Aps a apresentao desses aspectos, breve levantamento sobre a insero internacional brasileira nas ltimas dcadas ser feito.

    A Insero Internacional do Brasil das ltimas Dcadas

    Amado Luiz Cervo distingue os conceitos de diplomacia, poltica exterior e relaes internacionais e mostra como os trs so inter-relacionados (Cervo, 2008). Quanto abrangncia, o autor argumenta que as Relaes Internacionais so o conceito mais amplo, dentro do qual est o conceito de poltica exterior que, por sua vez, abarca o conceito de diplomacia. O termo Relaes Internacionais inclui trs categorias de agentes que interagem entre si, denotando um conjunto de in uncias recprocas composto por: a) a diplomacia; b) o governo com suas polticas; e c) a sociedade com suas foras.

    O autor remete a Jean Baptiste Duroselle quando a rma que o processo decisrio dos governos equivale a um clculo estratgico de meios, ns e riscos, caracterizado pelas foras sociais que fornecem os meios de ao, os objetivos externos (correspondentes a interesses a serem realizados) e a conduta diplomtica coerente com os dois

    * Diplomata de carreira, Mestre em Relaes Internacionais pela Universidade de Braslia UnB e Mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco IRBr ([email protected]).

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  • 4elementos citados. A diplomacia compreenderia a ao externa dos governos expressa em objetivos, valores e padres de conduta vinculados a uma agenda de compromissos pela qual se pretende realizar tais aspectos. Assim sendo, a diplomacia s pode defender os interesses da sociedade domstica no relacionamento com os demais atores da arena internacional caso haja penetrao das foras sociais no processo decisrio da formulao da poltica externa do pas.

    O resultado dessa dinmica uma poltica exterior caracterizada por interesses e valores que buscam moldar as regras do ordenamento global de modo mais favorvel aos setores domsticos. Assim, a poltica exterior de um dado pas leva em conta os interesses internos de sua sociedade, j que cabe a ela fornecer o contedo da diplomacia. Em outras palavras, a utilizao dos conceitos de relaes internacionais, poltica exterior e diplomacia, por Amado Cervo, tenta demonstrar como os padres de interao entre os pases so resultantes de presses de grupos e setores domsticos de cada Estado, bem como de cada contexto mundial espec co.

    Desse processo ativo ao longo de nossa histria, advm aquilo que Amado Cervo entende por Acumulado Histrico da Diplomacia Brasileira. Segundo o autor, o Brasil desenvolveu, ao longo da histria de suas Relaes Internacionais, algumas caractersticas pautadas por princpios que exercem duas funes bsicas: a) do previsibilidade ao externa, tanto para observadores nacionais quanto para estrangeiros; b) moldam a conduta externa de diferentes governos, impondo-se sua sucesso. Essas caractersticas resistem ao tempo e contribuem para fazer da poltica exterior, poltica de Estado, tendo destaque: I Autodeterminao, no-interveno e soluo pac ca de controvrsias; II Juridicismo; III Multilateralismo normativo; IV Ao externa cooperativa e no-confrontacionista; V Parcerias estratgicas; VI Realismo e pragmatismo; VII Cordialidade o cial no trato com os vizinhos; VIII Desenvolvimento como vetor; e IX Independncia de insero internacional.

    Principais caractersticas do Sistema Internacional na atualidade

    Os acontecimentos que precipitaram o m da ordem bipolar, vigente no cenrio internacional por mais de 40 anos, podem ser considerados surpreendentes em termos polticos e tericos. A disputa ideolgica e armamentista entre os EUA e a URSS no deu qualquer sinal de que chegaria ao m de forma abrupta e relativamente pac ca como ocorreu. Assim sendo, o impacto desses desdobramentos no campo acadmico das Relaes Internacionais foi signi cativo.

    A ordem bipolar dava suporte a um sistema internacional centrado no antagonismo entre EUA e URSS e fornecia diversos elementos empricos que corroboravam aspectos do Realismo/Neorealismo. Preocupaes com segurana e ganhos relativos pareciam ser condizentes com a maior parte das aes engendradas pelos Estados poca. A Agenda Internacional dava grande importncia a temas afetos segurana enquanto aspectos ligados a meio ambiente, direitos humanos e cooperao eram relegados a segundo plano, quando no simplesmente ignorados.

    Se a atual ordem mundial ainda no possui uma de nio precisa quanto a sua polaridade, no h dvidas de que o mundo bipolar faz parte do passado. O novo sistema internacional estabelecido na dcada de 1990 provocou signi cativa reviravolta na con gurao da agenda internacional. Os ditos novos temas ganharam importante destaque, conforme a dcada das conferncias comprovou (ALVES, 2001). As questes afetas segurana passaram a compartilhar com os demais temas internacionais a ateno dos Estados e da sociedade civil, bem como os escassos recursos polticos e econmicos disponveis dentro dos regimes democrticos.

    Apesar da rapidez com que a estrutura do sistema internacional vem mudando1 e da incapacidade de se apontar tendncias de longo prazo na poltica e na economia mundial, existem algumas propenses de curto e mdio prazos que devem ser mencionadas. A primeira o aparecimento de blocos econmicos e polticos. A Unio Europia foi

    1 O surgimento de movimentos por maior liberdade individual nos pases rabes e a ascenso pacfica em termos polticos e econmicos da China, so alguns exemplos que corroboram esse fato.

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  • 5pioneira nesse sentido, considerando o advento das Comunidades Europias. Em seguida, outros blocos surgiram no leste da sia, na Amrica do Norte e na Amrica do Sul, conforme a ASEAN, o NAFTA, o Mercosul e a UNASUL servem como exemplo.

    Outra tendncia importante o fortalecimento das instituies internacionais. Desde 1990, o sistema internacional tem sido pautado pela crescente regulao e normatizao de diversos temas, os quais tm consolidado seus regimes espec cos e levado suas negociaes para o bojo de organismos internacionais. Assim, as discusses atinentes ao meio ambiente so tratadas no Programa das Naes Unidas para o meio Ambiente PNUMA; os tpicos relativos aos direitos humanos so tratados no Conselho de Direitos Humanos; o controle e a inspeo relativas no-proliferao cam a cargo da Agncia Internacional de Energia Atmica AIEA; as regras e normas do comrcio internacional esto sob guarda da Organizao Mundial de Comrcio OMC.

    A reboque dessa crescente normatizao das Relaes Internacionais, cresce a importncia do Direito Internacional na mediao de interesses divergentes. Sinal de tal fato o surgimento de diversos tribunais permanentes nas ltimas dcadas, que se somaram ao trabalho histrico encetado pela Corte Internacional de Justia. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Europia de Direitos Humanos, o Tribunal Penal Internacional e o Tribunal do Mar so exemplos do fortalecimento do Direito Internacional na atualidade.

    A con gurao mundial no sculo XXI ainda questo aberta, mas a forte competio econmica, poltica e cultural qual os pases foram expostos a partir de 1990 certamente contribuiu para o surgimento de blocos de concertao poltica e econmica. A tendncia a institucionalizao das relaes polticas e econmicas por meio do surgimento de fruns, como a OMC, o G-20 nanceiro e do fortalecimento de rgos da ONU, por exemplo, fator que busca trazer previsibilidade s aes dos atores internacionais e diminuir os custos de transao entre os mesmos, na medida em que possibilita maior estabilidade nas relaes internacionais (LANDES, 1996.). A jurisdicionalizao das aes dos agentes internacionais tenta impor sanes aos que violam as regras estabelecidas, garantindo maior e ccia s normas vigentes no sistema internacional.

    A noo de legitimidade ganha mais fora e as aes dos agentes internacionais tm tentado se fundamentar sobre essa perspectiva, sendo isso vlido mesmo para atores com grande poder blico2. A importncia de decises multilaterais se eleva pelo seu carter democrtico e legtimo, substituindo aos poucos as medidas unilaterais que antes predominavam no sistema internacional. Parafraseando Ko Annan, mesmo que medidas multilaterais no sejam sinnimo de sucesso, cada vez mais iniciativas unilaterais esto fadadas ao fracasso e isso no s porque a legitimidade seja importante, mas tambm porque diversos temas da agenda internacional simplesmente no podem mais ser tratados de modo isolado por um pas, por mais poderoso que seja.

    A competio entre os pases no deixou de ocorrer, no entanto o carter dessas disputas diferente do que se observou no perodo da Guerra Fria. A busca pelo poder ainda ocorre, mas a noo de poder alterou-se. No h dvidas de que um aparato blico diversi cado, numeroso e estrategicamente posicionado confere grande vantagem militar a qualquer pas. No entanto, possuir essa vantagem blica no signi ca vantagens em outros mbitos e temas da agenda internacional.

    Assim, desdobramentos em meio ambiente, direitos humanos e desenvolvimento econmico podem surtir poucos efeitos sobre questes atinentes segurana. Poder militar no se traduz necessariamente em poder para in uenciar o sentido das negociaes dos demais tpicos da agenda. Enquanto os EUA tm grande poderio blico, suas participaes nas discusses de meio ambiente so, por vezes, refratrias e contraproducentes e isso faz que os norte-americanos sejam antagonistas dos europeus, nessa questo espec ca. J o Brasil, apesar de no ter grande capacidade militar, um dos principais protagonista do regime internacional de meio ambiente, sendo ator relevante e interlocutor necessrio na maioria das decises tomadas nesse mbito. Percebe-se que competio entre os atores

    2 Para debate mais profundo a respeito da Legitimidade no atual sistema internacional ver FONSECA Jr. 1998 e 1999.

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  • 6internacionais continua a existir, mas de forma fragmentada, variada e conforme o tema em debate.O embaixador Gelson Fonseca Jr consegue ilustrar de maneira sucinta essas caractersticas do atual sistema

    internacional aos a rmar que

    (...) a ordem internacional tenderia a ser competitiva, mas no necessariamente conflitiva. A competio seria domesticada e centrada na economia. Os acordos multilaterais, especialmente na rea de segurana (no-proliferao), seriam gradualmente reforados. A legitimidade estaria fundada em bases amplas. O Direito Internacional prevaleceria. O recurso a ideologias que fundem aes unilaterais seria questionado. A poltica de blocos seria substituda por processos de alinhamento regulados por geometria que variaria em funo do tema em pauta de discusso. (FONSECA Jr., 1999, p. 55)

    Ainda que a ltima a rmao seja uma previso, h evidncias nos dias atuais para tal. No futuro, a poltica de blocos pode vir a dar lugar a alinhamentos de geometria varivel. Na atual Poltica Externa Brasileira essa noo pode ser encontrada tanto em discursos quanto em prticas, ainda que o objetivo do Brasil no seja substituir uma estratgia pela outra, mas sim utiliz-las como medidas complementares. nesse sentido que o Brasil estabelece, nas palavras de Celso Amorim, coalizes de geometria variada, como o BRIC, o IBAS, o BASIC no meio ambiente, o G-20 nanceiro e o G-4 para a reforma do Conselho de Segurana da ONU, ao mesmo tempo em que o Mercosul e a UNASUL se consolidam.

    Insero internacional do Brasil a partir de 1990

    Segundo o embaixador Gelson Fonseca Jr, o Brasil chegou a 1990 com algumas hipotecas3 face comunidade internacional. Durante os anos do Regime Militar, crticas s condies dos direitos humanos e do meio ambiente no Brasil, por exemplo, foram interpretadas como estratgia dos pases ricos para congelar o poder mundial, nas palavras de Araujo Castro.

    Os governos autoritrios da poca consideravam injusta a noo preservacionista advogada pelo Clube de Roma, dado o estrago histrico que os pases do centro capitalista j haviam causado sobre seus recursos naturais e as crticas feitas s condies de direitos humanos no Brasil eram tratadas como ingerncia em assuntos internos do pas. Assim sendo, at 1990, vigorou o que o embaixador Gelson Fonseca denominou autonomia pela distncia (FONSECA Jr., 1998).

    A ascenso de novos temas na agenda internacional trouxe maior valorizao aos debates internacionais sobre no-proliferao, meio ambiente e direitos humanos, tornando as hipotecas brasileiras mais pesadas. A lgica da autonomia pela distncia, ao invs de garantir margens de ao su cientes para a busca dos interesses nacionais, estava tolhendo as possibilidades de atuao do pas no contexto mundial.

    Nas administraes de Collor e Fernando Henrique Cardoso FHC passou-se a buscar nova estratgia. O pas passou a buscar sua margem de ao atravs da participao nos principais regimes e fruns internacionais. Foi estabelecida tendncia denominada autonomia pela participao, nas palavras do embaixador Gelson Fonseca. De vilo ambiental o pas passou a ser protagonista desse regime, sediando a Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento CNUMAD em 1992, no Rio de Janeiro. A gesto de Direitos Humanos no pas sofreu grande mudana qualitativa desde 1990, tendo sido recentemente elogiada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. A ltima hipoteca saldada pelo pas foi a adeso ao Tratado de No-Proliferao TNP em 1998, apesar das criticas recebidas poca.

    3 Segundo o autor, as trs hipotecas eram a no adeso do Brasil ao TNP e a recusa do pas em debater em mbito internacional questes relativas a Direitos Humanos e Meio Ambiente.

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  • 7No campo econmico, medidas liberais foram implementadas e o papel do Estado na economia foi drasticamente reduzido. Reduo das tarifas de importao, privatizaes de empresas pblicas e m de subsdios em diversos setores procuraram dar maior e cincia economia nacional. Como o desenvolvimentismo parecia ter exaurido todas suas possibilidades na dcada de 1980, novas alternativas foram buscadas para se alcanar o desenvolvimento nacional.

    A adeso inicial maioria dos regimes internacionais produziu poucos resultados ao pas. Ao nal de seu governo, FHC reconheceu esse fato e alterou algumas das posturas do pas em relao aos Estados Unidos e Unio Europia. At autores crticos do governo de FHC reconhecem que esse presidente assentou bases para muitas das aes externas encetadas pelo presidente Lula.

    O Estado neoliberal, cujo modelo implantou-se no Brasil durante o governo de Collor de Melo, entre 1990 e 1992, e consolidou-se com o de Fernando Henrique Cardoso, durante seus dois mandatos (1994 2002), no significou uma adoo dos parmetros da globalizao pela via da interdependncia, como ocorreu, por exemplo, com as relaes internacionais da Espanha e Portugal no mesmo perodo. No Brasil, em razo de abertura econmica indiscriminada, e longe do equilbrio interno-externo, aprofundaram-se dependncias estruturais com relao ao exterior de modo a fazer prevalecer sobre o interesse nacional os interesses carregados pelas foras transnacionais da globalizao (...).

    (...) Cardoso preservou em certa medida a influncia de alguns princpios e propsitos da fase anterior e lanou sementes de outro paradigma de conduta externa, que chamamos de logstico (...). (CERVO, 2008, p. 51-53)

    Alguns temas da agenda diplomtica brasileira corroboram o continusmo entre a poltica externa de FHC e a de Lula: a nfase no fortalecimento do Mercosul e na integrao sul-americana; boas relaes com os Estados Unidos, Japo e com os pases da Europa ocidental; crescente importncia dada aos fruns multilaterais, sejam esses institucionalizados ou no.

    Com a ascenso de Lula presidncia, esperavam-se grandes mudanas de gesto em relao ao governo FHC. Apesar disso, nem todos os setores da burocracia apresentaram mudanas signi cativas. Na economia, a austeridade scal e monetria foi mantida. O papel do Estado na economia mudou, na medida em que privatizaes pararam e intervenes desse agente no mercado voltaram a ter destaque.

    No setor social, Lula lanou abertamente o desa o de acabar com a fome no pas, dando continuidade e fortalecendo programas de assistncia a necessitados e de transferncia de renda cujas bases foram elaboradas na gesto Cardoso. Ademais, por meio de Emenda Constitucional, o Estado passou a ter a obrigao de prover alimentos a todas as pessoas, demonstrando a importncia que Lula deu ao combate fome.

    A poltica externa no deixou de re etir as mudanas advindas de uma mudana de presidncia e de fatores externos como o ataque terrorista de 11 de setembro e as negociaes da rodada Doha. A chancelaria de Celso Amorim aproveitou-se das lies auferidas pelo governo anterior ao demonstrar que a simples participao nas negociaes dos principais regimes internacionais no era su ciente para alcanar os principais interesses nacionais.

    As crticas contra algumas caractersticas da estrutura do sistema internacional, feitas ao m do governo de FHC, foram reforadas por Lula. Aos poucos cou evidente que a Europa prega a liberalizao econmica por parte das naes menos desenvolvidas, mas reticente em abrir seus mercados a produtos primrios do sul. Os EUA criticam a situao dos Direitos Humanos na sia, na frica e na Amrica Latina, mas no assinam a Conveno Americana de Direitos Humanos nem desativam sua base em Guantnamo. A China defende maior liberalizao de mercado, mas mantm sua moeda arti cialmente desvalorizada para incentivar suas exportaes.

    As falhas existentes na aplicao de normas e princpios estipulados pelos diferentes regimes internacionais caram mais evidentes a partir da dcada de 2000, estimulando uma postura mais crtica do Brasil em relao

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  • 8ao sistema internacional. As negociaes em torno da ALCA e a formao do G-20 no mbito da OMC tambm demonstraram como o pas tornou-se mais assertivo na busca de seus interesses, contrapondo-se, quando necessrio, a aes das naes mais ricas.

    A luta para reformar os fruns internacionais intensi cou-se. O discurso externo brasileiro passou a enfatizar o fato de instituies como o FMI, o Banco Mundial e o Conselho de Segurana da ONU serem re exo da distribuio de poder do imediato ps-Segunda Guerra. A legitimidade das decises desses rgos est vinculada a capacidade de representao do contexto internacional atual, con gurado por um nmero signi cativamente maior de Estados e por outros plos de riqueza, como Brasil, ndia, frica do Sul, China e o sudeste asitico.

    Diante das di culdades encontradas nos fruns multilaterais, o Brasil procurou desenvolver novas parcerias e abrir novos mercados para seus produtos. Diferentemente das aes que ensejaram a autonomia pela distncia e a autonomia pela participao, no governo Lula, surgiu o que Vigevani e Cepaluni denominaram autonomia pela diversi cao. De modo sinttico, os autores de nem tal conceito

    (...) como adeso aos principais princpios e s normas internacionais por meio de alianas Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros no tradicionais (China, sia-Pacfico, frica, Europa Oriental, Oriente Mdio etc.), pois acredita-se que eles reduzem assimetrias nas relaes externas com pases mais poderosos e aumentam a capacidade negociadora nacional. (VIGEVANI e CEPALUNI, 2007, p. 283)

    Nos ltimos anos, as coalizes Sul-Sul foram reforadas e a poltica externa brasileira reforou sua vocao globalista. A formulao de grupos, como IBAS, BRIC e G-20 OMC para concertao poltica e econmica, BASIC para debates sobre assuntos ambientais e G-4, composto por Brasil, ndia, Japo e Alemanha, para reivindicar a reforma do CSNU, so exemplos de como o sistema internacional possui divergncia de interesses em reas distintas e como o Brasil vem respondendo a isso por meio da formulao de coalizes de con gurao varivel.

    Programas de cooperao com pases mais pobres tiveram destaque nos ltimos anos, assim como o esforo para abrir novos mercados ao empresariado nacional. Impulsionada nas ltimas dcadas, vrios analistas apontaram para a diversi cao de nossas parcerias comerciais como um dos fatos que explicam o porqu de o Brasil ter sido um dos ltimos pases a sentir os efeitos da Crise Financeira e Econmica de 2008. O mesmo no valeu ao Mxico, dada a alta concentrao de suas relaes comerciais com os EUA.

    O Brasil vem reagindo bem s contingncias estabelecidas pela estrutura do novo sistema internacional nos ltimos anos, sendo reconhecido como protagonista em vrios mbitos, seja por pases ricos, seja por naes menos desenvolvidas. Apesar de algumas crticas feitas por setores domsticos a insero internacional do Brasil tem recebido mais elogios do que censuras no mbito mundial.

    Amado Luiz Cervo entendeu a transio da poltica externa de FHC para a de Lula como detentora de trs tendncias

    (...) a) tirar a poltica exterior das iluses da harmonia kantiana e de divisas e orient-la para a conquista da reciprocidade real nas relaes internacionais, ou seja, a transio do multilateralismo utpico para o multilateralismo de reciprocidade entre pases centrais e emergentes; b) enfrentamento das dependncias estruturais financeira, empresarial e tecnolgica com o fim de atenu-las; c) a idia de reforar a Amrica do Sul como plo de poder e plataforma poltica e econmica de realizao de interesses brasileiros. Por meio dessa estratgia, que contempla, enfim, a expanso dos empreendimentos brasileiros no exterior, cogita o governo do PT aproximar-se da interdependncia real da era da globalizao. (CERVO, 2008, p. 56).

    Nesse sentido, se se pode a rmar que a leitura do sistema internacional feita pelos burocratas de Lula foi mais acurada do que a realizada pelos de FHC, grande parcela esse fato decorre do aprendizado obtido com as experincias

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  • 9do perodo compreendido entre 1990 e 2000. As mudanas intensas pelas quais o sistema internacional passava foram aspectos negativos s avaliaes internacionais realizadas nesses anos. A partir da dcada de 2000, feitas as correes necessrias, a insero internacional brasileira apresentou melhora signi cativa, tendo o pas aumentado seu prestgio internacional de modo geral.

    Concluses

    Na dcada de 1990, a insero brasileira foi claudicante, na medida em que as leituras do cenrio internacional feitas pelos governos da poca apresentaram algumas de cincias. A consequncia natural desse fato foi a falta de consistncia e continuidade s estratgias internacionais surgidas no perodo.

    A partir de 2000, ainda sob governo FHC, a poltica externa brasileira passou a delinear-se por um conjunto de estratgia mais assertivo e mais adequado s novas caractersticas do sistema internacional emergente. A diplomacia brasileira esforou-se por ampliar o nmero de parceiros econmicos e polticos do pas sem negligenciar as relaes tradicionais com a Europa e com os Estados Unidos. Iniciativas de cooperao no eixo Sul-Sul foram fortalecidas de modo complementar s do eixo Norte-Sul.

    No entanto, a existncia de continuidades nas estratgias de insero internacional encetadas por FHC e Lula deixa evidente que explicaes de cunho ideolgico so insu cientes para se analisar de modo comparativo as atuaes do Itamaraty nas ltimas dcadas. Ao restringirem as atuaes de cada ator conforme o contexto internacional em voga, as condicionantes externas no podem ser relegadas na medida em que assumem papel importante compreenso da estratgia encetada pelos presidentes do perodo. Alm disso, pode-se perceber que nos ltimos 20 anos no houve estratgia de ao que pusesse em risco o conjunto do acumulado histrico da diplomacia brasileira. Ainda que alguns autores a rmem que uma ou outra caracterstica tenha sido alterada em uma das gestes presidenciais dos ltimos anos, no houve alteraes substanciais ao conjunto desses princpios histricos.

    Referncias Bibliogrficas

    ALVES, Jos Augusto Lindgren. Relaes internacionais e temas sociais. A dcada das conferncias. Braslia, Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais IBRI, 2001.

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    Resumo

    O artigo visa analisar como o contexto internacional ps-Guerra Fria e as tradies diplomticas estabelecidas ao longo da histria do Brasil exerceram influncia na insero internacional do pas desde a dcada de 1990.

    Abstract

    The article analyses how the international context of post Cold War and diplomatic traditions established along Brazilian history exerted influence on the countrys international insertion since the 1990.

    Palavras chave: Insero Internacional; Sistema Internacional; BrasilKey words: International Insertion; International System; Brazil

    Recebido em 16/10/2012Aprovado em 16/10/2012

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    Os eixos da Poltica Externa do Paraguai de 1954 a 19891

    The axis of the Paraguayan Foreign Policy from 1954 to 1989

    Tomaz Espsito Neto*

    Boletim Meridiano 47 vol. 13, n. 134, nov.-dez. 2012 [p. 11 a 18]

    Introduo

    No perodo de 1954 a 1989, Alfredo Stroessner, com apoio do Partido Colorado e das Foras Armadas, governou o Paraguai com mo de ferro. Os trinta e cinco anos de Stronatto destoam da histria poltica paraguaia ps 1870, cujo signo principal a instabilidade poltica. Quarenta e quatro pessoas, dentre as quais nove militares, ocuparam a presidncia do Paraguai de 1870 a 1954, e vinte e cinco golpes de Estado foram bem sucedidos nesse perodo. Por meio de uma mdia aritmtica simples, chega-se a uma durao aproximada de dois anos para cada mandato presidencial nessa fase (GOIRIS, 2000, p. 21).

    Alguns autores, como Lewis (1986), Goiris (2004) e Acal (2005), afirmam que o uso extensivo da violncia e o autoritarismo so parte da ideologia e da cultura poltica paraguaia, cujas razes se encontram na formao do Estado, em especial nos governos dos ditadores Jos Gaspar Rodrguez Francia (18111840), Carlos Lpez (18441862) e Fernando Solano Lpez (18621870).

    A ditadura de Stroessner tambm fez uso extensivo dos aparatos de represso e perseguio aos seus opositores. No entanto, esse fato, isolado, no explica a longevidade do Stronatto. Ento, como Stroessner se manteve tanto tempo no poder?

    A tese mais aceita a de que Stroessner, como profundo conhecedor da realidade paraguaia, criou os meios de sustentao do seu regime por meio de uma estratgia articulada entre poltica interna, internacional regional e global, tambm conhecida como poltica externa pendular de vis realista (MENEZES, 1987: FARINA, 2003).

    O presente ensaio tem como objetivo analisar os principais eixos da poltica exterior paraguaia do governo Stroessner, de 1954 a 1989, em especial suas relaes com os Estados Unidos, Brasil e Argentina.

    A ascenso de Stroessner

    Alfredo Stroessner nasceu e cresceu na pequena Encarnacin, e, devido a sua ascendncia alem, ficou conhecido como El Rubio; posteriormente, j na presidncia, receberia um novo apelido, El Supremo. Ingressou ainda adolescente na Escola Militar em 1929, e ganhou projeo na Guerra do Chaco (19321935), quando comandou uma fora da artilharia paraguaia. Stroessner causou boa impresso nos seus superiores e subordinados, e passou a ser tido como um oficial valoroso e promissor (FARINA, 2003, p. 43: LEWIS, 1986, p. 128).

    1 Verses desse texto foram apresentadas no V Congresso Transdisciplinar Internacional Direito e Cidadania no 3 Encontro Nacional da Associao Brasileira de Relaes Internacionais ABRI com o ttulo As Possibilidades e os Limites do Realismo Perifrico: A Poltica Externa Do Paraguai de 1954 a 1989.

    * Professor da Universidade Federal de Grande Dourados UFGD, Doutor em Cincias Sociais pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP ([email protected]).

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    Entre 1940 e 1941 fez um curso de artilharia no Brasil, e nessa ocasio cultivou uma rede de contatos com militares brasileiros, que se mostrou muito til em diversos momentos, tanto para brasileiros como para paraguaios. Desde ento, El Rubio ascendeu gradualmente na carreira militar, e passou a se envolver diretamente na poltica paraguaia.

    Stroessner teve papel crucial na frente sul da guerra civil de 1947, quando permaneceu fiel ao ento presidente Mornigo e combateu as foras revoltosas, comandadas pelo coronel Franco (LEWIS, 1986, p. 132).

    Em 1948, participou de dois golpes de Estado. O primeiro, em 3 de junho de 1948, derrubou o presidente Morngo, e El Rubio aproveitou a oportunidade para eliminar grande parte dos seus desafetos, como o coronel Enrique Gimenez. O segundo golpe, em novembro do mesmo ano, conspirou contra o presidente Natalcio Gonzlez; no entanto, dessa vez a manobra foi frustrada por foras leais ao presidente (LEWIS, 1986, p. 139).

    Perseguido, Stroessner foi obrigado a se esconder no porta-malas de um veculo da Misso Militar Brasileira para conseguir entrar na embaixada do Brasil em Assuno, onde se refugiou at a concesso de um salvo-conduto para o exlio em Posadas, na Argentina (FARINA, 2003, p. 67). Mas ele retornaria ao Paraguai j em 1949, aps o sucesso de um novo golpe, capitaneado por Frederico Chvez e Mlas Lpez, novamente contra Gonzlez. Graas aos contatos internos e externos e ao prestgio junto aos militares paraguaios, retornou aos quadros das foras armadas paraguaias, assumindo cargos importantes (LEWIS, 1986, p. 140).

    Em 1951, foi nomeado comandante em chefe das Foras Armadas Paraguaias. Discretamente, iniciou a reorga-nizao e redistribuio das tropas no territrio paraguaio, perseguindo seus oficiais inimigos e substituindo-os por homens de sua confiana. Com o incremento de sua influncia poltica, Stroessner atraiu a ateno de autoridades estadunidenses, brasileiras e argentinas. Passou ento a ser adulado, recebendo homenagens e outros regalos. Continuou a cultivar uma extensa rede de contatos e a ter acesso direto aos gabinetes de governos estrangeiros (LEWIS, 1986, p. 140).

    Don Stroessner percebeu a importncia dos militares no conturbado contexto poltico paraguaio, marcado pela constante luta pelo poder entre os partidos Colorado, Liberal e Febrerista. Assim, mesmo filiado ao Partido Colorado, nutria um imenso desprezo pela maioria dos polticos paraguaios: Los civiles crean problemas y luego quieren solucinarlos mandando a militares a balearse (FARINA, 2003, p. 99).

    Em 1954, o Paraguai enfrentava mais uma crise poltica. Stroessner aproveitou-se disso para um novo golpe de Estado, em 5 de maio, quando conseguiu se impor sobre as demais foras polticas com apoio dos militares. Assumiu formalmente a Presidncia da Repblica em 15 de agosto de 1954.

    Iniciou ento uma perseguio poltica aos seus reais e potenciais adversrios. Seu objetivo era domar as foras polticas paraguaias enquanto expandia sua influncia, fosse cooptando, fosse eliminando as vozes divergentes. Os opositores que escaparam da perseguio se exilaram em territrio argentino; de l e com apoio do governo da Argentina, conspiravam contra Don Alfredo.

    No mbito interno, o governo Stroessner apoiou-se num trip formado pelas foras de segurana (foras armadas e policiais), o Partido Colorado e a burocracia.

    As foras de segurana, detentoras do monoplio da violncia, eram responsveis pela represso e perseguio aos inimigos do regime, e so consideradas como a face mais terrvel da ditadura paraguaia. Todos os oficiais eram obrigados a pertencer aos quadros do Partido Colorado e jurar lealdade a Stroessner.

    O controle social estendia-se para dentro de outras instituies, como as pertencentes ao poder judicirio cujas autoridades foram corrompidas por Stroessner e o Servio de Inteligncia, formado pelos pyraques2, que aprisio-navam, torturavam, condenavam e matavam opositores, muitas vezes sem denncia formal. Assim, espalhava-se o

    2 Funcionrios pblicos e membros do Partido Colorado que trabalhavam paisana como delatores de possveis oposicionistas.

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    clima de medo e terror. Chiavenato (1980, p. 8) afirma que o terrorismo poltico e a corrupo foram as bases de sustentao de Stroessner.

    Afora isso, o controle estatal sobre as informaes e os veculos de imprensa impedia a circulao de ideias dissonantes do repertrio oficial, alm de dificultar a organizao da oposio e a emergncia de novas lideranas poltico-sociais.

    J o Partido Colorado era o interlocutor privilegiado entre o Estado e a sociedade, com a capacidade de identificar e desarticular segmentos descontentes com o governo. A Igreja Catlica foi a nica exceo. Essa possua uma margem de manobra poltica um pouco maior do que os demais grupos poltico-sociais.

    Os cargos burocrticos eram ocupados por membros do Partido Colorado e das Foras Armadas, fiis ao Presidente, que no raramente utilizavam-se das suas posies para extrair prebendas, privilgios e favores do Estado e dos outros grupos sociais (GOIRIS, 2000, p. 43). Muitos ministrios tornaram-se verdadeiros feudos de famlias importantes do Paraguai (LEWIS, 1986, p.224). No entanto, Stroessner nomeou tcnicos de renome, oriundos das classes mdias paraguaias, para postos importantes, como o das Relaes Exteriores e a presidncia da ANDE (Administracin Nacional de Eletricidad), e esses profissionais dinamizaram setores importantes da economia paraguaia.

    O controle estatal das principais atividades produtivas, como o estabelecimento de monoplios comerciais e a obrigatoriedade de licenas prvias, criou uma grande dependncia da sociedade em relao aos favores das autoridades do Estado, o que alimentava a corrupo. Tambm era notrio o vnculo de algumas autoridades do primeiro escalo com atividades ilcitas, como trfico de drogas (principalmente herona), receptao de carros roubados no Brasil, contrabando de armas, comrcio ilegal de mercadorias, lavagem de dinheiro e proteo a criminosos internacionais (FARINA, 2003, p 281-286).

    Don Stroessner, mesmo sem ser um lder carismtico, utilizou as mais diversas instncias para instituir o culto sua personalidade: suas fotos estavam em toda parte, as rdios difundiam peas musicais como a polca Don Alfredo, e vrias autarquias, estradas, aeroportos, bairros e mesmo cidades, como Puerto Stroessner (atual Ciudad del Leste) foram batizadas e/ou renomeadas com seu nome. Stroessner centralizava em torno de si as principais decises de Estado e acompanhava com muita ateno a movimentao dos diversos grupos poltico-sociais paraguaios (LEWIS, 1986, p. 200).

    Resumiendo, Stroessner constituye la fuerza directriz y cohersiva del rgimen. Sin l, podra disolverse en una serie de facciones incoherentes. Ha suoerado la aparentemente endmica anarqua en Paraguay con slo exiliar a todos los polticos de mentalidad independiente y concentrar en sus manos una gran cantidad de poder. Ejerce una supervisin cercana y personal sobre las tres burocarcia que rodean su rgimen: la militar, la del partido y la del servicio civil del gobierno. Cada nombramiento y acenso militar, cada reunin, resolucin o eleccin del partido, cada miembro mayoritario dentro del Congreso, cada disposicn legislativa, cada magistratura, cada puesto ejecutivo y cada decisin del gabinete deve llevar su sello de aprobacin (LEWIS, 1986, p. 200).

    O ditador compreendeu que a chave para sua manuteno no poder era o crescimento econmico. Alm de atenuar a pobreza na base da sociedade, mantinha lubrificadas as engrenagens da corrupo poltica atravs do fluxo ininterrupto de recursos para os grupos leais ao governo (FARINA, 2003, p. 93).

    El Paraguay de 1954, com sus 1.500.000 habitantes, era um pas pauprrimo, sin infraestructura fsica, sin caminos (de 1.215 kilmetros de rutas, solo 87 kilmetros tenan asfalto), con casi nula produccin industrial, La nica ciudad que poda preciarse de tal era Asuncin y ni tan siquera contaba con servicio

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    de agua potable, un anhelo desde 1901 que nunca se poda concretar porque los gobiernos de la poca estaban ms inmernsos en sus problemas internos con revoluciones y contrarrevoulciones...

    El Paraguay era el nico pas en Sudamrica que no tena una solo ciudad, ni tan slo su capital, servida por agua corriente. Tal era el grado de pobreza y atraso [...] (FARINA, 2003, p. 93, grifo do autor).

    Para tanto, Stroessner iniciou a articulao entre as polticas domstica e internacional para estabilizar a economia e obter financiamentos externos para obras de infraestrutura e investimentos em atividades produtivas, essenciais para o crescimento da economia paraguaia.

    A poltica externa do Paraguai de 1954 a 1989

    Como foi dito acima, o principal objetivo da poltica externa paraguaia de 1954 a 1959 era manter as bases de sustentao do Stronatto, por meio do isolamento dos opositores do regime e da obteno de financiamentos e investimentos externos, com o objetivo de continuar alimentando a corrupo poltica e atenuar o estado de penria presente na base da sociedade.

    Os trs eixos principais dessa poltica externa eram: a manuteno das boas relaes com os Estados Unidos, com vistas a obter recursos externos e apoio poltico essencial para a legitimao do regime; a aproximao com o Brasil, para conseguir investimentos e, assim, diminuir a influncia argentina na vida poltica paraguaia; e por fim, a manuteno de relaes maduras com a Argentina, buscando evitar a satelitizao do Paraguai pelo Brasil.

    A poltica internacional de Stroessner, por sua vez, pode ser dividida em trs grandes fases: a construo de sua poltica externa (19541973); o apogeu dessa poltica (19731982); e o esgotamento desse modelo de insero internacional (19821989).

    As contraditrias relaes entre Paraguai e Estados Unidos

    A ascenso de Stroessner, com sua poltica de combate aos movimentos subversivos de esquerda e sua retrica anticomunista, agradou s autoridades norte-americanas. O alinhamento poltico do Palcio Lpez s diretrizes e ideologia da Casa Branca tornou as relaes paraguaio-estadunidenses muito amistosas entre os anos de 1954 e 1960 (MORA, 2001, p. 4-5). O Paraguai, em contrapartida ao apoio e aos servios prestados, recebeu cerca de 53,2 milhes de dlares de ajuda norte-americana (MORA, 2001: FARINA, 2003).

    Entretanto, no perodo entre 1960 e 1977 Washington redimensionou suas relaes com Assuno. A Casa Branca passou a pressionar o Palcio Lpez no sentido de obter uma maior cooperao no combate s atividades ilcitas, como trfico de drogas, lavagem de dinheiro e prostituio infantil, entre outras.

    A partir da, iniciou-se o desgaste nas relaes estadunidense-paraguaias. Na gesto Jimmy Carter (19771981), marcada pela poltica de promoo dos direitos humanos, o embaixador

    norte-americano denunciou a violncia praticada pelas foras paraguaias de segurana, e os Estados Unidos reduziram sensivelmente a ajuda financeira ao Paraguai.

    As relaes Assuno-Washington se deterioraram ainda mais durante o mandato de Ronald Reagan (19811989). A guerra s drogas promovida pelo governo norte-americano causou o aumento da presso sobre o governo paraguaio: Washington praticamente cortou os repasses financeiros Assuno e suspendeu o Paraguai da lista do Sistema Geral de Preferncia (SGP) (FARINA, 2003; MORA, 2001, p. 12).

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    As relaes Brasil-Paraguai: destinos unidos por Itaipu

    Desde o incio do seu governo, Stroessner priorizou uma aproximao entre Assuno e Braslia, tentando contrabalanar a influncia argentina oriunda da dependncia paraguaia do porto de Buenos Aires para suas comunicaes externas, devido a questes geogrficas.

    [...] O governo de Stroessner punha grande importncia na nova relao por motivos econmicos e polticos. A razo econmica era que aquela aproximao representava um novo caminho para exportar e importar produtos sem a imperiosa necessidade de ir atravs do porto de Buenos Aires. A razo poltica era que Buenos Aires era a base e o quartel general da oposio ao seu governo [...] (MENEZES, 1987, p. 54).

    Stroessner buscou atrair a ateno do Brasil para o potencial hidrulico do Paraguai, com o objetivo de enred--lo na poltica e na economia paraguaia (BOETTNER, 2004). O Brasil, por sua vez, vislumbrava no Paraguai um aliado poltico e um importante mercado para o comrcio e os investimentos na regio (MENEZES, 1987, p. 54).

    Os laos se estreitaram ainda mais em 1957, quando as autoridades dos dois Estados assinaram acordos importantes: a construo e pavimentao de estradas entre a fronteira brasileira e grandes cidades paraguaias como Concepcin; a construo da usina de Acaray; a construo da ponte da Amizade, que ligaria a cidade de Foz Iguau a Puerto Stroessner; a abertura de uma Misso cultural e a construo do Colgio Experimental Paraguai-Brasil, entre outros convnios (SILVA, 2006, p. 67). No entanto, o litgio territorial por Sete Quedas quase ps tudo a perder. Tudo parecia perfeito entre Brasil e Paraguai desde a administrao de Juscelino Kubitschek. Mas a polmica sobre Sete Quedas quase partiu ao meio aquela nova relao (MENEZES, 1987, p. 64).

    O litgio territorial em torno de Sete Quedas, ou Salto de Guair, comeou com a divulgao do projeto de construo de uma imensa usina na regio, em 1962. O Paraguai, por meio de uma reinterpretao do Tratado de 1872, afirmava que a rea da futura barragem era territrio paraguaio; o Brasil reiterava que as cataratas encontravam-se em territrio brasileiro. Em 1964-1965, uma srie de incidentes na fronteira colocou os dois pases muito prximos de um conflito. O mal-estar somente foi resolvido com a assinatura da Ata das Cataratas em 1966, que no resolvia a questo da soberania sobre Sete Quedas, mas garantia aos dois pases igual participao em qualquer projeto hidroeltrico na rea (ESPSITO NETO, 2008).

    Pouco tempo depois, o governo brasileiro nomeou Gibson Barboza embaixador brasileiro em Assuno. No seu livro de memrias, Barboza relembra as tenses vividas na poca. Afirma ser de sua autoria a ideia de construir Itaipu e submergir o litgio territorial com o Paraguai (BARBOZA, 1992).

    Em 1967 foi criada uma comisso mista para analisar a viabilidade e os detalhes tcnicos da construo da obra. Aps intensas negociaes por anos a fio, os dois Estados assinaram o Tratado de Itaipu (1973), que versa sobre o aproveitamento hidroeltrico das cataratas de Sete Quedas. Assim, Brasil e Paraguai, apesar de suas assimetrias, tornaram-se scios na empreitada de Itaipu, e seus destinos, a partir de ento, foram unidos pelo concreto e pela energia dessa grandiosa obra.

    Essa iniciativa, no entanto, enfrentou uma obstinada oposio de Buenos Aires, pois as elites polticas argentinas temiam a ruptura do equilbrio de poder no subsistema do Prata em favor do Brasil e em detrimento da Argentina, com a consequente satelitizao do Paraguai (GUGLIAMELLI, 2007). Essa questo somente seria resolvida com o Tratado Tripartite (1979).

    Apesar do casamento entre Brasil e Paraguai, Assuno iniciou um affair com Buenos Aires, quando assinou os acordos para a construo de Yaciret e Corpus, ainda em 1973. Stroessner reformulou sua poltica externa de aliana com o Brasil, transformando-a em uma neutralidade pragmtica (MENEZES, 1987, p. 112).

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    [...] Na verdade, quem se encontrava em uma boa posio era o pas Guarany, pois o que ele perdesse em Itaipu com o rebaixamento da cota, recuperaria das usinas de Corpus e Yaciret. Assim o desacordo era mais entre Brasil e Argentina, com o Paraguai em uma excelente posio, principalmente porque um daqueles projetos j estava em construo e desse modo seu poder de barganha aumentava (MENEZES, 1987, p. 112).

    A partir do final da dcada de 1970, novos desentendimentos (sobre a ciclagem e o preo da energia, entre outros), a crise econmica da dcada de 80 e mudanas sistmicas acarretaram uma redefinio das relaes entre o Palcio Lpez e o Palcio do Planalto.

    A questo da ciclagem da energia (1977) surgiu com a exigncia, por parte de Assuno, de que metade das turbinas de Itaipu gerasse energia ao padro 50 Hz, ou seja, o adotado por todos os pases do continente sul-americano, exceto o Brasil, cujo padro de 60 Hz. Na prtica, o Brasil no poderia comprar a energia paraguaia de Itaipu, a menos que investisse uma vultosa soma na construo de um sistema de converso para o padro brasileiro (MENEZES, 1987: ESPSITO NETO, 2006). Outra soluo possvel seria mudar o padro do sistema paraguaio para 60 Hz, o que implicaria na troca de grande parte dos eletro-eletrnicos do Paraguai, mas no haveria nus para o Tesouro brasileiro. Stroessner, ao retardar a deciso, procurou forar uma nova barganha com as autoridades brasileiras, que, cansadas da postura paraguaia, decidiram assumir os custos do sistema de converso (MENEZES, 1987, p. 124).

    Os reclamos paraguaios por um papel mais proeminente na direo de Itaipu binacional (DEBERNARDI, 1996, p. 356) e os apelos por um aumento real no preo da energia vendida ao mercado brasileiro (MENEZES, 1987, p. 127: DEBERNARDI, 1996) foram outros motivos do esfriamento no relacionamento Brasil-Paraguai.

    Na dcada de 80, fatores como a crise econmica, a redemocratizao e o endurecimento brasileiro no combate s atividades ilegais na fronteira envolvendo altas autoridades paraguaias fizeram com que as relaes brasileiro--paraguaias perdessem o seu flego.

    As relaes Paraguai-Argentina: o afastamento pragmtico

    Logo aps o golpe que o levou presidncia, Stroessner reorientou a poltica externa paraguaia e iniciou um processo de distanciamento em relao a Buenos Aires. Uma de suas primeiras medidas foi denunciar o Convnio da Unio Econmica entre Argentina e Paraguai, assinado em 1953 (MORAES, 2003, p. 382-383).

    Houve uma aproximao entre Braslia e Assuno. A diplomacia argentina no conseguiu obstruir esse processo, em virtude das inmeras crises polticas e econmicas oriundas das lutas entre peronistas e anti-peronistas. As autoridades de Buenos Aires se dispuseram a agir somente quando se iniciaram as tratativas brasileiro-paraguaias, que redundaram no Tratado de Itaipu.

    A estratgia argentina era impedir a construo da imensa barragem atravs da multilateralizao da questo de Sete Quedas e da introduo do princpio da consulta prvia, sem oferecer qualquer alternativa para solver a necessidade brasileira de energia e as demandas paraguaias de desenvolvimento. Assim, a Casa Rosada enfrentou uma forte oposio do Palcio Lpez e do Palcio do Planalto, que passaram a coordenar a ao na arena internacional, alm de acelerar as negociaes em torno de Itaipu (ESPOSITO NETO, 2008).

    No seu segundo mandato, Pern (19731974) alterou as diretrizes da poltica externa argentina, passando a cortejar as autoridades paraguaias com a oferta de duas hidroeltricas (Yaciret e Corpus) em termos similares aos do acordo brasileiro-paraguaio de Itaipu. Buscava assim cindir a aliana entre Brasil e Paraguai, suscitando o problema da ciclagem e outras questes tcnicas, como a necessidade da harmonizao do nvel das cotas da lmina dgua entre o projeto de Itaipu e de Corpus (PARDO & FRANKEL, 2004, p. 239).

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    A morte de Pern (1974) e a lutas entre as diversas faces argentinas pelo poder provocaram uma nova srie de crises econmicas e polticas que impediram a continuidade de sua poltica. Agregou-se tambm s crises a disposio brasileira em negociar a partir de uma posio de fora por meio da construo de Itaipu.

    O fracasso do Processo de Reorganizao Nacional (PRN) imposto pela ditadura argentina (19761983), a guerra das Falklands/Malvinas (1982), a crise econmica da dcada de 80 e o governo de Raul Afonsn (19831989) que nutria um verdadeiro desprezo pelas ditaduras fez com as relaes argentino-paraguaias esfriassem e os projetos de cooperao fossem atrasados ou abortados, por falta de recursos ou mudana de prioridades.

    A queda de Stroessner

    Ao lado do carter repressivo, o sistema de legitimao do Stronatto dependia basicamente da atrao de recursos externos, para sustentar o crescimento paraguaio atravs do investimento estatal em infraestrutura e manter lubrificadas as engrenagens da corrupo nos diversos grupos do Partido Colorado e dos militares. Estados Unidos, Brasil e Argentina eram os potenciais financiadores do Estado paraguaio.

    Durante anos, a estratgia paraguaia funcionou muito bem. Contudo, as mudanas nas diretrizes da poltica externa norte-americana, as transformaes no cenrio internacional com o fim da Guerra Fria, a prolongada crise econmica e a mudana dos regimes polticos na Amrica do Sul na dcada de 80 erodiram a base da poltica interna e externa paraguaia de Stroessner (FARINA, 2003, p. 329).

    Assim, El supremo viu-se sem recursos para manter a sua base de apoio, e logo seus antigos aliados e tradicionais opositores iniciaram as maquinaes contra ele. Em 3 de fevereiro de 1989 as foras conspiradoras, lideradas pelo General Andrs Rodrigues, destituram Alfredo Stroessner, que se refugiou na embaixada brasileira e asilou-se, at a sua morte, em territrio brasileiro.

    Concluso

    Foram apresentados aqui os principais eixos da poltica externa do governo Alfredo Stroessner, certamente uma das ditaduras mais duradouras na Amrica do Sul. Essa longevidade explicada por uma estratgia que articulava as polticas interna e externa do Paraguai.

    Seu principal objetivo era conseguir os recursos necessrios para o desenvolvimento do pas e para manter em funcionamento a mquina de corrupo paraguaia.

    Os trs grandes eixos da insero internacional paraguaia eram o alinhamento com os Estados Unidos, a aproximao com o Brasil e o afastamento pragmtico da Argentina. So considerados xitos desse perodo o grande crescimento econmico e a construo de grandes obras de infraestrutura no Paraguai, como Itaipu, Yaciret, rodovias, ferrovias e aeroportos, dentre outras.

    No entanto, Stroessner no conseguiu se adaptar s mudanas na poltica, na economia e nos valores da comunidade internacional da dcada de 80, o que resultou no isolamento internacional do Paraguai e na perda de prestgio do ditador. Os velhos e novos conspiradores encontraram ento um terreno frtil para depor Stroessner, j velho, carcomido e fraco, assim como sua ditadura.

    Os resqucios do Stronatto permaneceram durante muitos anos; a perenidade da mquina poltica do Partido Colorado uma prova disso. A eleio de Fernando Lugo indicou que uma nova etapa na poltica paraguaia poderia se iniciar. No entanto, um processo sumrio de impeachment, conduzido por parlamentares colorados e ex-colorados, derrubou Fernando Lugo e demonstrou a fora dos partidos tradicionais paraguaios.

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    Referncias Bibliogrficas

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    Resumo

    A longevidade da ditadura Stroessner destoa da instabilidade poltica vivenciada desde o fim da Guerra do Pa-raguai, podendo ser atribuda represso social e crescimento econmico devido, parcialmente, a uma poltica externa pragmtica e realista, cujos principais eixos so aqui analisados, principalmente em relao aos Estados Unidos, Brasil e Argentina.

    Abstract

    The longevity of Stroessner dictatorship clashes with the political instability experienced from the end of Paraguayan War. It can be attributed to social repression and economic growth due, partly, to a prag-matic and realistic foreign policy, whose main aspects are here analyzed, regarding especially United States, Brazil and Argentina.

    Palavras-chave: Paraguai; Poltica Externa Paraguaia; StroessnerKeywords: Paraguay; Paraguayan Foreign Policy; Stroessner

    Recebido em 18/09/2012Aprovado em 19/10/2012

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    China e frica: Uma parceria estratgica China and Africa: A strategic partnership

    Helton Ricardo Ouriques* Aline Lui**

    Boletim Meridiano 47 vol. 13, n. 134, nov.-dez. 2012 [p. 19 a 27]

    1. Introduo

    O objetivo do presente artigo to somente realizar uma breve descrio acerca das relaes entre a China e a frica. Como mostraremos inicialmente, o envolvimento da China com a frica no recente, mas tinha uma natureza muito distinta da atualmente apresentada, pelo menos no contexto da Guerra Fria. Em um segundo momento, discutiremos a mudana na agenda chinesa para a frica, que parece estar atrelada s necessidades do processo de desenvolvimento chins. Em outras palavras, a frica vem se tornando cada vez mais importante para a China por conta da abundncia de recursos naturais estratgicos para aquele pas. Por fim, faremos um breve balano acerca do perodo atual, descrevendo alguns resultados do aprofundamento do relacionamento econmico entre a China e alguns pases africanos.

    2. Breve histrico das relaes entre a China e a frica

    Ao lanar o olhar sobre o passado da relao entre a China e a frica, nota-se que esta vem se intensificando desde o perodo da Guerra Fria. Deve-se ressaltar que, com a queda da URSS e o rearranjo no cenrio internacional a partir dos anos 1990, agregado ao acelerado crescimento econmico chins, os interesses desse pas em outras regies do mundo, notadamente no continente africano, tornaram-se mais evidentes, pela escala do envolvimento, principalmente econmico.

    Aps a Revoluo Chinesa (1949), foi possvel observar um maior aprofundamento dos laos, a partir da iniciativa chinesa. Naquela conjuntura, a China tinha como objetivo exportar a revoluo, o que coincidiu com a proliferao de movimentos de libertao nacional na frica. Foram vrios os processos de ajuda militar e tambm humanitria, a partir de Pequim. De acordo com Alves (2009), o estreitamento das relaes foi usado, tambm, como meio de impedir a aproximao dos pases africanos com Taiwan e seu reconhecimento como nao independente. Como resultado, o apoio africano foi importante para Pequim conseguir retirar de Taiwan o status de representante legtimo do povo chins.

    Na dcada de 1970, a China pde expandir ainda mais seus investimentos no continente africano. Isso ocorreu em razo da diminuio da presena sovitica na regio, pois a URSS enfrentava problemas internos e vinha se

    * Professor do Departamento de Economia e Relaes Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC, do Programa de Ps-Graduao em Relaes Internacionais da mesma instituio e membro do Grupo de Pesquisas em Economia Poltica dos Sistemas-Mundo GPEPSM/CSE/UFSC ([email protected]).

    ** Estudante do Curso de Relaes Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Foi bolsista do programa de iniciao cientfica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico PIBIC/CNPq ([email protected]).

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    apresentando como um grande concorrente para a China na regio africana. Os investimentos direcionaram-se principalmente para a infraestrutura. Um projeto importante foi a construo da ferrovia Tanzan. Na opinio de Taylor (2010), esse projeto, que foi recusado pelas potncias europeias e pelos EUA, deu China a oportunidade de se mostrar como potncia alternativa. O objetivo dessa obra era ligar a Tanznia e a Zmbia, como parte do projeto de constituir uma pan frica. Esta parceria aumentou ainda mais a influncia chinesa no continente africano.

    Na dcada de 1980, nota-se um relativo afastamento da frica, pois a China estava priorizando questes internas, traduzidas pelo processo de reforma e abertura. Na mesma poca, o continente africano comea a enfrentar uma crise generalizada, como destacado por Castells (1999). Para esse autor, enquanto uma economia global e dinmica se instaurava em boa parte do mundo a partir do final dos anos 1970, a frica Subsaariana experimentava um processo de significativa deteriorao de sua posio relativa no comrcio, investimentos, produo e consumo em relao a todas as demais reas do globo. Esse autor nos recorda que, em perspectiva histrica, entre 1870 e 1970, durante a incorporao da frica economia capitalista, [...] as exportaes africanas tiveram crescimento acelerado, com sucessivos aumentos da participao no total de exportaes dos pases em desenvolvimento (p. 108). Contudo, a dcada de 1980 marcou uma reverso nessa tendncia, j que [...] em 1950 a frica respondia por mais de 3% das exportaes mundiais; em 1990, contudo, por cerca de 1,1%(idem, ibidem). Alm disso, as exportaes africanas mantiveram-se restritas a commodities primrias, como menciona Castells e, dada a fragilidade dos mercados internos, a industrializao por substituio de importaes e a produo agrcola para os mercados internos tambm no se sustentou: entre 1965 e 1989, o ndice do valor agregado total de bens industrializados em relao ao PIB no passou de 11%, comparado a um aumento de 20% a 30% verificado em todos os pases em desenvolvimento (Castells, 1999:110).

    Para Castells (1999), tais condies levaram a maioria das economias africanas dependncia da ajuda inter-nacional e dos emprstimos externos. Em nmeros, isso significou para a frica, 30% do montante destinado ao auxlio financeiro no mundo todo, enquanto a dvida externa total saltou de 30,6% em 1980 para 78,7% em 1994 (em termos de porcentagem de PIB). Nota-se tambm que, paralelamente, o investimento externo direto na regio foi praticamente irrisrio. Assim, [...]cientes da impossibilidade de a frica saldar a dvida, os credores do governo e as instituies internacionais valeram-se dessa dependncia financeira para impor polticas de ajuste sobre os pases africanos, exigindo subservincia em troca do perdo parcial da dvida ou de sua renegociao (Castells, 1999:113). Por isso, as dcadas de 1980 e 1990 marcaram a marginalizao da frica na economia global.

    Modificaes mais perceptveis no relacionamento entre a China e a frica vo ocorrer a partir de meados dos anos 1990, principalmente aps a viagem do presidente Jiang Zemin ao continente africano, em 1996 (Vines, 2007). Na ocasio, ele apresentou a proposta dos cinco pontos, que visava estabelecer os termos de uma nova relao com a regio. Os cinco pontos seriam a amizade confivel, a igualdade soberana, a no interveno, o desenvolvimento mutuamente benfico e a cooperao internacional (Alden, 2007). Essa linha de atuao vai ser reforada a partir do ano de 2000, com a criao do Frum de Cooperao China-frica (FOCAC), realizado em Pequim. A ideia foi proposta por Jiang Zemin, e estava baseada em planos de ao para criar metas e estratgias para os programas bilaterais. importante ressaltar que, neste perodo, a China j consolidava a ideia de que a poltica externa estava subordinada estratgia de desenvolvimento do pas. Consequentemente, a segurana energtica, que era considerada como parte fundamental da segurana nacional, passou a estar intimamente interligada poltica externa.

    Portanto, aps a Guerra Fria, nota-se que as estratgias polticas de vis ideolgico so substitudas pela nfase econmica. A seo seguinte visa esclarecer as caractersticas da atuao da poltica chinesa na frica, com nfase no investimento externo direto1.

    1 No presente artigo, dadas as limitaes de espao, no discutiremos a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento.

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    3. Entendendo a atuao chinesa na frica

    De acordo com Alves (2009), a poltica externa chinesa est voltada promoo da coexistncia pacfica com outras naes, que segue cinco princpios: respeito mtuo da integridade territorial e da soberania, no agresso mtua, no interferncia em assuntos internos de outros pases, vantagens mtuas e igualitrias, e coexistncia pacfica. Segundo o autor, a poltica de no interferncia em assuntos internos tem se destacado na estratgia adotada, pois prioritria a busca dos recursos naturais. Em outras palavras, os chineses no se preocupam com a questo do state-building nos seus contatos com a frica. Eles trabalham com os governos que comandam seus respectivos Estados, sem tentar modific-los, diferentemente dos pases ocidentais, para os quais os assuntos domsticos so importantes o suficiente para paralisar uma negociao2. Isso traz uma enorme vantagem para as firmas chinesas, que enfrentam pouca concorrncia nas disputas por campos de explorao de petrleo, minerao etc.

    Ao mesmo tempo, inegvel que a maior presena chinesa na frica esteja ligada prpria necessidade daquele pas por recursos energticos3, necessrios para sustentar seu notvel crescimento econmico dos ltimos trinta anos. Alden (2007) ressalta que a empresa estatal chinesa de petrleo China National Petroleum Corporation (CNPC) estava investindo fortemente em parcerias no Sudo4, Angola, Arglia e Gabo, pases que possuem reservas de petrleo. Dessa forma, a China tem conquistado diversos governos africanos atravs de seus investimentos em infraestrutura. Ainda que a maioria dos investimentos em estradas, ferrovias, portos e dutos favoream a exportao de petrleo e outros recursos naturais para a China, os benefcios de tais construes acabam transbordando para a populao africana. O mesmo pode-se dizer dos investimentos feitos em escolas, hospitais e redes eltricas que, a princpio, visam atender a presena de cidados chineses na regio, como destacado por Michel (2008). Mesmo assim, proliferam crticas atuao chinesa no continente, como nos recorda Duarte (2012).

    No tocante ao investimento direto externo (IDE), as empresas chinesas foram incentivadas a investirem no exterior a partir da estratgia do Going Global. Essa foi uma iniciativa do governo, pela qual foram promovidas mudanas na legislao, proporcionando a simplificao no processo de aprovao de projetos, estmulo ao inves-timento exterior, gesto cambial e avaliao estatstica. Certamente, tal poltica viabilizou a internacionalizao de muitas empresas chinesas, na primeira metade dos anos 2000.

    J em 2006, o governo chins anunciou a inteno de desenvolver zonas econmicas especiais (ZEEs) no continente africano, como as j existentes na China. As ZEEs chinesas visam expanso e desenvolvimento de setores especficos, alm do aumento dos nveis de empregos, a partir de incentivos fiscais. Uma das primeiras ZEEs a ser desenvolvida encontra-se em Chambishi, no Zmbia, ocupando uma rea de 45 quilmetros quadrados em um cinturo de cobre. Alm disso, as companhias, ali localizadas, receberiam diversos incentivos alfandegrios. A segunda zona oficial est localizada em Maurcio, considerado um centro financeiro com atrativas leis relacionadas a investimento externo direto. As zonas econmicas especiais tambm se estendero para a Etipia, Egito e Nigria.

    2 Esse tema abordado com profundidade por Sautman e Hairong (2009), que realizaram uma pesquisa emprica em vrios pases africanos. Tal pesquisa evidenciou a forma positiva pela qual a China na maioria das naes africanas porque, entre outras coisas, esse pas no se intromete em negcios internos e porque, como reconhecido pelo prprio Banco Mundial, segundo os autores, a China constri de forma mais barata e eficiente grande parte da infraestrutura atual na frica.3 Para a compreenso da diplomacia do petrleo chinesa, ver Taylor (2006).4 Em 09.07.2011 o Sudo do Sul tornou-se oficialmente independente do Sudo. Como o artigo citado datado de 2007, o autor estava se referindo ao antigo Sudo.

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    Grfico 1. Fluxo de IED da China na frica.

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    1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2006 2007 2008 2009 2010

    Em milhes de dlares, preos correntes.

    Fonte: Unctad. Disponvel em: www.unctad.org/

    Grfico 2. Fluxo de Investimento Externo Direto para pases exportadores de petrleo, em milhes de dlares (preos correntes).

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    Algeria

    Angola

    Libyan Arab Jamahiriya

    Nigeria

    Fonte: Unctad. Disponvel em: www.unctad.org/

    Como se pode perceber no grfico 1, o IED chins nos pases africanos atingiu o seu pico em 2008, com US$ 72 bilhes, um valor cinco vezes maior do que o registrado no ano 2000. O crescimento do IED at 2008 foi suportado pela alta dos preos das matrias-primas, particularmente o petrleo, que desencadeou uma grande expanso nos investimentos dirigidos aos pases produtores de petrleo. A partir de 2008, nota-se uma queda no fluxo de IED, ocasionado pela crise financeira global. Por um lado, os investidores foram afetados e reduziram os seus investimentos; por outro, a crise levou a uma diminuio da procura das mercadorias africanas. Esta quebra na procura reduziu o investimento de capital nos setores e pases onde historicamente se concentra a recepo de fluxos de investimento externo, como por exemplo, no setor petrolfero. Apesar disso, como relatado pela publicao The China Analyst

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    (2012), desde 2009 foram implantados novos investimentos no Leste da frica5. A mesma publicao nos informa que o comrcio total entre a China e a frica passou de U$ 10,8 bilhes em 2001 para U$ 166,2 bilhes em 2011.

    No caso da crescente presena da fora de trabalho chinesa na frica, Michel (2008) afirma:

    No difcil enxergar os motivos pelos quais levam os imigrantes chineses at a frica. Na China, os salrios no ultrapassam U$150 por ms, alm disso, h cada vez mais trabalhadores rurais migrando para as cidades litorneas da China. Segundo Huang Zequan, vice presidente da Associao de Amizade dos Chineses e Africanos, residem 550.000 chineses na frica, que convivem com mais 100.000 franceses e 70.000 americanos, atualmente. [...] A forma como os governantes africanos encaram os interesses chineses , em sua maioria, bem-vinda. Os lderes africanos no hesitam ao entregar os encargos pblicos China. a ela que eles direcionam-se quando necessitam construir escolas, hospitais e alojamentos frequentemente antes das eleies com o objetivo de obter lucros com os projetos de infraestrutura (p. 41).

    Ao mesmo tempo, a migrao de fora de trabalho chinesa para a frica um dos pontos crticos da atualidade, como apontado por Tan-Mullins et alli (2010) e Ajakaiye (2006), por implicar o no aproveitamento dos trabalhadores locais, mesmo em atividades com menor necessidade de qualificao.

    4. Impactos e balano das relaes entre China e frica

    Com relao s queixas do Ocidente em relao presena chinesa na frica, caracterizada inclusive como um novo colonialismo por alguns, duas ponderaes tem que ser feitas. Em primeiro lugar, como assinalado por Caniglia (2012), a maior presena da China no continente resultado do prprio vcuo causado pelo ostracismo a que foi submetida a frica pelos principais pases ocidentais desenvolvidos desde o incio dos anos 1980. A China vem se tornando cada vez mais importante economicamente para muitos pases africanos porque empresas e governos ocidentais simplesmente deixaram de investir ou investiram muito pouco nos mesmos. Em segundo lugar, h vrios indcios de que os governantes africanos enxergam a China de forma muito distinta em relao aos pases desenvolvidos do Ocidente, compreendendo esse pas mais como um modelo a ser seguido do que como um novo conquistador (Sautman e Hairong, 2009). De acordo com Caniglia (2012), a maioria dos pases africanos parece apreciar as novas oportunidades oferecidas pelas parcerias com a China. Alm dos ganhos econmicos provenientes da exportao de recursos naturais, os pases africanos sentem que esto engajados em um dialogo entre iguais, pois a China adotou a poltica de no interferncia nos assuntos internos dos pases africanos. Por isso, como destacado tambm por Arrighi (2008), [...] os lderes africanos buscam cada vez mais no Oriente o comrcio, a ajuda e as alianas polticas, libertando-se dos vnculos histricos do continente com a Europa e os Estados Unidos (p. 217).

    De qualquer forma, vrios pesquisadores apontam as motivaes econmicas como determinantes de uma maior presena chinesa no continente africano. Em outras palavras, a necessidade de obteno de matrias-primas para suprir o processo de desenvolvimento chins que tornou a frica um espao importante de atuao da poltica externa da China (Carmody & Owusu, 2011). E a questo da segurana energtica, obviamente, crucial para as pretenses desse pas, porque a elevada demanda da China por petrleo e gs natural deriva da grande participao da indstria pesada intensiva em energia na sua estrutura produtiva. Somado ao consumo industrial, considera-se tambm um fator do boom de consumo de energia a difuso do automvel, estimulada pela urbanizao e pela expanso da renda per capita.

    5 De acordo com o documento em questo, Burundi, Ruanda, Qunia, Tanznia e Uganda vem recebendo fortes investimentos chineses, nos setores de infraestrutura, energia, minerao e mesmo na indstria de transformao (The China Analyst, 2012, p. 29).

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    De acordo com Oliveira (2007), a expectativa de aumento da dependncia da China por essas fontes de energia, para garantir a sustentabilidade de sua industrializao. Esta nova realidade tornou-se estrutural e, consequentemente, estratgica. Do mesmo modo, a crescente dependncia da importao de gs, como forma de reduzir a participao do carvo e reestruturar a matriz energtica chinesa, apresenta-se igualmente como um desafio estratgico para os chineses.

    Certamente, a expanso extraterritorial chinesa refletir em uma economia consolidada com a contribuio de insumos africanos. A frica ter boas perspectivas se a China continuar com um bom desempenho em sua economia, na viso de Oliveira (2007):

    possvel ver a China em plena edificao de uma economia de dimenso continental, repetindo o precedente histrico da continentalizao da economia dos EUA, na segunda metade do sculo XIX. Se tudo ocorrer bem para eles, os chineses podero dispor dentro de vinte ou trinta anos de um mercado nacional nico, solidamente montada sobre modernssimas malhas de transportes e telecomunicaes. As relaes polticas e econmicas globais acusaro, certamente, o impacto do aparecimento desse polo de atrao mundial, alternativo aos EUA, e a frica desfrutar de posio privilegiada por seu auxlio na obteno de tal resultado (p. 7).

    Quanto ao princpio de no interferncia, a China tenta no se envolver na complexidade das disputas internas. Entre personalidades e faces dos pases africanos, os chineses do primazia edificao de economias nacionais. A assistncia e os investimentos chineses so dados com a mais profunda sinceridade e sem condicionamentos polticos (declarao do Primeiro Ministro Wen Jia Bao no Frum de Cooperao China frica, COCAC, em 2003). Alden (2007) aponta tambm que o crescimento econmico fenomenal da China incentiva os governos e empresas africanas a buscarem o fortalecimento de laos com aquele pas, visto por muitos como a nova superpo-tncia mundial. Alm disso, h uma atrao simblica envolvendo a China, pas que tambm foi, outrora, vtima do imperialismo ocidental e que aparece como um modelo de desenvolvimento a ser seguido.

    Mas no somente recursos energticos motivam a China. Os chineses tm investido na atividade turstica no continente africano, e [...] desde que liberalizou os investimentos estrangeiros para o turismo em 2003, a China estabeleceu oficialmente 26 destinos tursticos na frica em pases distintos a fim de recompensar e estreitar as relaes com os governos dessa regio (Carmody & Owusu, 2011:242). Alm disso, a venda de armas aos pases africanos tem se mostrado um negcio rentvel para a China porque, de modo geral, a frica um mercado em crescimento para as exportaes de armas chinesas: [...] o governo chins vendeu 12 caas supersnicos para o governo do Zimbbue no fim de 2004, e mais ainda em 2006. Ademais, vendeu ainda US$ 1 bilho em armas para a Etipia e a Eritreia durante a guerra de 1998-2000 (idem, p. 254).

    Evidentemente, o relacionamento sino-africano possui certos pontos de frico, como no comrcio. A indstria txtil e a de manufaturas africanas de baixa tecnologia vm sendo abaladas pelo fluxo de produtos baratos chineses (Carmody & Owusu, 2011). As empresas de grandes redes de lojas da China espalham-se pelo continente, aumentando o descontentamento de pequenos comerciantes africanos. Como j mencionado anteriormente, o fato de a China empregar cidados chineses nas obras de infraestrutura, assim como importar materiais de seu pas como forma de criar demanda para suas cadeias produtivas, impossibilita afirmar que os investimentos chineses sejam apenas benficos6. Em relao fora de trabalho africana, bem possvel que a falta de contratao da

    6 Como apontado por Duarte (2012): In almost all of Africa dissatisfaction and criticism against the Chinese presence has been increasing. Although China has promised to be a good brother in its partnership with Africa, the African trade unions (in Dakar or in Lesotho, for example) threaten to boycott the sales of Chinese products that contribute to the growth of unemployment. The complaints manifest themselves, among other ways, through murder and/or kidnapping of Chinese that work in Africa. Furthermore, many of the contracts signed with Beijing are canceled or cannot even get signed (p.26).

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    mesma seja pelo motivo de diferenas culturais e idiomticas. Mesmo assim, importante frisar que, ciente das queixas de lderes africanos da Nigria e frica do Sul acerca do assunto, o Ministrio do Comrcio chins tem incentivado as empresas a aumentar o treinamento de pessoal local, para elevar as contraes de fora de trabalho africana (Ajakaiye, 2006).

    Por fim, podemos mencionar alguns fatos relevantes que refletem a crescente difuso do soft power chins no continente africano. Comeam a surgir Institutos Confcio para o estudo do idioma chins e estudos chineses (Duarte, 2012); est sendo aumentado o fluxo de estudantes africanos nas universidades chinesas; tem havido um aprimoramento dos diplomatas africanos na China e h vrios casos de transferncia de tecnologia.

    5. Concluso

    A China cultiva um relacionamento com a frica que pode ser observado durante e ps-guerra fria. Como vimos, a ao chinesa obedecia a motivaes estritamente polticas que se concentravam na sustentao de movi-mentos de libertao nacional. Contudo, trs dcadas de forte crescimento econmico fizeram com que a China encontrasse na frica a soluo para sua necessidade de matrias-primas. Alm disso, no houve uma histria de colonizao entre China e frica, o que tambm faz com que a presena chinesa seja vista com menos desconfiana por parte de lderes africanos, apesar da existncia de alguns problemas relatados brevemente neste artigo.

    O volume dos investimentos externos diretos na frica, aliado ajuda oficial ao desenvolvimento, demonstram que se trata de uma parceria estratgica, especialmente para a China. Segundo as fontes pesquisadas para esse artigo, os chineses vendem um pacote completo: com financiamento, planos de cooperao e obras de infraestruturas. Um pacote que mantm, em sua maioria, a posio firme de no interferncia e preservao da soberania, que parece agradar os lderes africanos (Sautman and Hairong, 2009). O que pode ser criticado, nesse caso, a conivncia da China (em nome dos negcios) com situaes documentadas e denunciadas pela comunidade internacional a respeito de violaes dos direitos humanos em alguns pases africanos, como no antigo Sudo7.

    Para alguns pases africanos, depois de pelo menos duas dcadas de dificuldades econmicas, a crescente presena econmica chinesa parece significar novas oportunidades, como brevemente apresentado nesse artigo. Contudo, a experincia histrica mostra que o boom das commodities, por si s, no suficiente para a promoo do desenvolvimento econmico de longo prazo das economias perifricas. Isto , sem uma mudana nas estruturas produtivas para setores e nichos produtivos de maior valor agregado, possvel que os atuais ganhos sejam apenas um interstcio fugaz de uma trajetria mais longa de espoliao do continente africano.

    Por fim, para a China, pode-se afirmar que a sua presena na frica resultado da combinao de dois vetores centrais da poltica econmica: em primeiro lugar, o acesso a mercados necessrios expanso comercial e, em segundo lugar, a garantia de insumos suficientes para a manuteno de seu desenvolvimento e estabilidade social. Seria previsvel afirmarmos que a ao chinesa est concentrada unicamente na segurana econmica. No entanto, importante relembrar que sua atuao engloba tambm reas no ligadas ao acesso s matrias-primas existentes na frica, como destacado por alguns autores aqui citados. Em pesquisas futuras, pretende-se aprofundar a descrio aqui realizada com uma anlise crtica dessa denominada parceria estratgica, estudando os pontos positivos e negativos, principalmente para os pases africanos. Certamente pesquisas de carter emprico sero bem-vindas. Cabe assinalar que uma maior compreenso sobre as relaes econmicas e polticas entre a China e os pases africanos extremamente relevante. E no somente para o meio acadmico, mas tambm para governantes

    7 Contudo, como contraponto, importante mencionar que os pases desenvolvidos ocidentais tambm j foram e so coniventes e mesmo apoiadores de vrios regimes violadores de direitos humanos, tendo em vista a prioridade histrica dimenso econmica nos relacionamentos entre Estados.

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    e lideranas empresariais daqueles pases que estiverem interessados em negociar e estender suas prprias relaes com a frica, como parece ser o caso do Brasil em anos recentes.

    5. Referncias bibliogrficas

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