Boca do Inferno número 22

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BOCA DO INFERNO Estamos de volta! NESTA EDIÇÃO ABRIL DE 2010 EDIÇÃO Nº 22 Jornal do Centro Acadêmico de Letras da Universidade Federal do Paraná Professora nos deu um depoi- mento digno de autobiografia (tanto dela como da Universida- de, acreditem!). Temos também a participação (espantosa, em vista de antes) de vários colegas, com textos que vão da produção artística e literária à análise his- tórica e cultural. Além disso, contamos com a participação mais que bem vinda dos professores para abrilhantar este nosso ―velho - novo‖ Boca. Neste temos o Professor Paulo Soethe, da área de Alemão, tra- tando do novo convenio entre UFPR e a Universidade de Za- greb, na Croacia (p.2) . Enfim, caros colegas, vocês têm em mãos um periódico bem eclético, descolado e, acima de tudo, democrático. Então, não hesitem: abram, leiam, folheiem, comentem, falem, discutam, gri- tem.... Sintam-se à vontade! Com visual novo, novas ca- racterísticas, o Boca do inferno está de volta! Queremos, desta vez, que torne-se um periódico de fato, um instrumento de informa- ção e divulgação DE e PARA os alunos de Letras da UFPR. Entenda melhor: a partir desta edição, o jornal passa a ter seções, colunas e outros fru-frus, que facilitam a leitura e dinami- zam o espaço do folhetim. Entre estas, temos as colunas ―sub- realidade‖, sob a pena (a literá- ria, não a punitiva) do Willian Pinheiro e ―Abrindo a boca‖, que traz as polêmicas que nos rodei- am e os assuntos que circulam pelos corredores dos ―Dons Pe- dros‖. Na seção ―Entre e Vista‖, falamos com uma de nossas ilus- tres professoras, Prof. Dra. Mari- lene Weinhardt, atual presidente da ABRALIC - Associação Brasi- leira de Literatura Comparada. A 2 8 15 4 12 16 6 14 20

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Boca do Inferno, Jornal do Centro Acadêmico de Letras - UFPR, edição 22, abril de 2010

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BO

CA

DO

IN

FER

NO

Estamos de volta!

NESTA EDIÇÃO

A B R I L D E 2 0 1 0 E D I Ç Ã O N º 2 2

Jornal do Centro Acadêmico de Letras da Universidade Federal do Paraná

Professora nos deu um depoi-

mento digno de autobiografia

(tanto dela como da Universida-

de, acreditem!). Temos também

a participação (espantosa, em

vista de antes) de vários colegas,

com textos que vão da produção

artística e literária à análise his-

tórica e cultural.

Além disso, contamos com a

participação mais que bem vinda

dos professores para abrilhantar

este nosso ―velho-novo‖ Boca.

Neste temos o Professor Paulo

Soethe, da área de Alemão, tra-

tando do novo convenio entre

UFPR e a Universidade de Za-

greb, na Croacia (p.2) .

Enfim, caros colegas, vocês

têm em mãos um periódico bem

eclético, descolado e, acima de

tudo, democrático. Então, não

hesitem: abram, leiam, folheiem,

comentem, falem, discutam, gri-

tem.... Sintam-se à vontade!

Com visual novo, novas ca-

racterísticas, o Boca do inferno

está de volta! Queremos, desta

vez, que torne-se um periódico de

fato, um instrumento de informa-

ção e divulgação DE e PARA os

alunos de Letras da UFPR.

Entenda melhor: a partir

desta edição, o jornal passa a ter

seções, colunas e outros fru-frus,

que facilitam a leitura e dinami-

zam o espaço do folhetim. Entre

estas, temos as colunas ―sub-

realidade‖, sob a pena (a literá-

ria, não a punitiva) do Willian

Pinheiro e ―Abrindo a boca‖, que

traz as polêmicas que nos rodei-

am e os assuntos que circulam

pelos corredores dos ―Dons Pe-

dros‖.

Na seção ―Entre e Vista‖,

falamos com uma de nossas ilus-

tres professoras, Prof. Dra. Mari-

lene Weinhardt, atual presidente

da ABRALIC - Associação Brasi-

leira de Literatura Comparada. A

2 8 15

4 12 16

6 14 20

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P Á G I N A 2

Cooperação UFPR - Croácia

A Croácia tem 4,5 milhões de ha-

bitantes e cerca de 700 mil deles vivem

em Zagreb, capital do país. Mais re-

centemente, em vista de sua história

milenar, foi parte do Império Áustro-

Húngaro, passou por breve período de

autonomia, depois integrou a Iugoslá-

via. Com o fim dos estados socialistas e

depois da pacificação dos conflitos ét-

nicos na região, a Croácia existe como

Estado nacional desde 1991. Para as

proporções do Brasil, é um país peque-

no, mas tem grande importância geo-

política e cultural na Europa Meridio-

nal e nos Bálcãs.

Com o Brasil, a Croácia mantém

boas relações comerciais. Nosso país

fornece cerca de 6% do total das impor-

B O C A D O I N F E R N O

AL

ÉM

- M

AR

Por Paulo Soethe

tações croatas de alimentos, por exem-

plo. Culturalmente, há presença de i-

migrantes croatas no Brasil (uma co-

munidade de ap roximadamente

25.000 pessoas, sobretudo em São

Paulo), e as relações históricas estão

descritas em detalhes em obra sobre

as relações croato-brasileiras, escritas

não casualmente pelo titular da cáte-

dra de Português na Universidade de

Zagreb, o professor Nikica Talan.

A Universidade de Zagreb tem

40.000 alunos, e abriga uma área de

Português dinâmica e em crescimento,

que nos últimos anos tem merecido

atenção na mídia na época do vestibu-

lar: ao lado de cursos tradicionais co-

mo Direito e Medicina, Português

Page 3: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 3 E D I Ç Ã O N º 2 2

A B R I L D E 2 0 1 0

(com um total de 30 vagas) tem a pro-

cura de 25 candidatos por vaga, para

um curso de 3 anos (um ―bachelor‖, no

modelo de Bologna) e possibilidade de

continuidade de estudos em um

―master‖ de dois anos (segundo esse

mesmo modelo).

Em abril e outubro de 2006, o

Programa de Pós-graduação em Letras

da UFPR tomou contato com a Univer-

sidade de Zagreb, inicialmente por in-

termédio do Professor Davor Dukic

(que esteve em Curitiba em 2007), e

desde então estabeleceu vínculos sóli-

dos com os colegas da área de Portu-

guês de lá. Em abril de 2006, as pri-

meiras atividades de ensino e missão

de trabalho em Zagreb (reuniões e um

curso intensivo de Introdução à litera-

tura brasileira) receberam apoio signi-

ficativo do Ministério das Relações

Exteriores em Brasília, com a destina-

ção e envio de material de divulgação

cultural em grande quantidade, para

doação a docentes e estudantes. Estava

em vista, por coincidência, a instalação

da Embaixada do Brasil em Zagreb,

que se deu em julho de 2006.

Em outubro de 2006, em nova

atividade de ensino (um curso sobre

Lavoura arcaica, de Raduan Nassar),

houve reunião com o Senhor Guilher-

me Paul, diplomata brasileiro da re-

cém-instalada Embaixada brasileira, e

longa conversa telefônica com o Em-

baixador Haroldo Valladão Filho. O

principal ponto foi a criação de um

Leitorado de Português e Literatura

Brasileira, com financiamento bilate-

ral. Em fevereiro de 2007 abriu-se o

processo de instalação do leitorado,

seleção e orientação do Leitor, pela

CAPES. O primeiro Leitor, que ainda

A Universidade Federal do Para-

ná mantém convênios com universida-

des brasileiras e também de vários paí-

ses do mundo, com projetos de inter-

câmbio, firmados entre as instituições

ou entre a diplomacia brasileira e a es-

trangeira.

Os alunos que desejam fazer in-

tercâmbio estudantil, seja dentro do

Brasil, seja em outros países, podem

procurar a UIMA—Unidade de Inter-

cambio e Mobilidade Acadêmica da

UFPR. Para saber mais sobre inter-

cambio visite o sitio http: //

www.intercambio.ufpr.br ou ligue para (41)

3360-5367. O endereço eletrônico é inter-

[email protected]

Serviço: Intercâmbio

se encontra em Zagreb, é o Prof. José

Luiz Foureaux de Souza Jr. (UFOP).

Em dezembro de 2007, formali-

zou-se acordo de cooperação entre a

UFPR e a Universidade de Zagreb, por

iniciativa do Programa de Pós-

graduação em Letras, apoiado pelo Se-

tor de Ciências Humanas. Durante o

ano de 2008, esteve na UFPR a Profª.

Majda Bojic, para estudo e pesquisa

em nível de doutorado, e para co-

ministrar disciplina no Programa. Ela

contou com auxílio da UFPR no pri-

meiro semestre, depois com bolsa do

governo croata, no segundo. No início

de 2009, a UFPR recebeu visita de

dirigentes da Faculdade de Filosofia da

Universidade de Zagreb, e há boas

perspectivas de intensificação das

ações de cooperação.

Page 4: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 4

B O C A D O I N F E R N O

AB

RIN

DO

A B

OC

A:

CE

LIN

Em casa de ferreiro quem

tem um olho é rei... ou ―Em busca de Nêmesis‖

c u l t u r a e i n t e r c u l t u r a l i d a d e ; p o -

r é m , e x i s t e o r e v e r s o d e s t a m e d a -

l h a , q u e c a r e c e d e t o d o e s t e b r i -

l h o t ã o h a b i l m e n t e d i v u l g a d o a o s

m e i o s d e c o m u n i c a ç ã o , e , q u e

p r e c i s a s e r r e v e l a d o à o p i n i ã o

p ú b l i c a . U m a d a s d i s t o r ç õ e s q u e

v e m o c o r r e n d o n o C e l i n , j á h á

m u i t o t e m p o , a q u a l n o s m o v e

n e s t a d e n ú n c i a , é q u e a l u n o s d a

g r a d u a ç ã o , d a s l i c e n c i a t u r a s d o

C u r s o d e L e t r a s d a U F P R , v ê m

s e n d o p r e t e r i d o s n o s e u d i r e i t o

d e e s t á g i o e m b e n e f í c i o d e p r o -

f e s s o r e s p r o f i s s i o n a i s ; n u m e r o -

s o s n o c o r p o d o c e n t e d a i n s t i t u i -

ç ã o , m u i t o s s e q u e r t ê m a g r a d u a -

ç ã o e m l e t r a s e m u i t o m e n o s

q u a l q u e r l i c e n c i a t u r a . P r á t i c a

c o m u m e m e s c o l a s p a r t i c u l a r e s

d e i d i o m a s , a c o n t r a t a ç ã o d e n ã o

g r a d u a d o s , c o m o m ã o - d e - o b r a , é

e x e c r á v e l e m u m a U n i v e r s i d a d e

P ú b l i c a , q u e f o r m a p r o f e s s o r e s

d e l í n g u a s .

O C e l i n e x i g e , p a r a o i n -

g r e s s o e m s e u s q u a d r o s , a c o n -

c l u s ã o d e u m c u r s o q u e r e c e b e

u m a p r e t e n s i o s a d e n o m i n a ç ã o

d e : ― F o r m a ç ã o d e P r o f e s s o r e s ‖ ,

c o m u m a c a r g a h o r á r i a d e p o u c a s

d e z e n a s d e h o r a s . U m a l i c e n c i a -

t u r a p l e n a t e m a d u r a ç ã o d e 4 , 5

a n o s e m n o s s a u n i v e r s i d a d e . O

r e f e r i d o c u r s o d e a d m i s s ã o , o u

m e l h o r , d e ― E x t e n s ã o U n i v e r s i t á -

r i a ‖ l e v a a c h a n c e l a d a U F P R e

f u n c i o n a c o m o u m e f i c i e n t e m e -

c a n i s m o p a r a d e s c a r t a r e s t u d a n -

t e s d e l e t r a s , p o s s í v e i s e s t a g i á -

O C u r s o d e L e t r a s d a U n i -

v e r s i d a d e F e d e r a l d o P a r a n á p o s -

s u i a t u a l m e n t e , a l é m d o P o r t u -

g u ê s , s e t e h a b i l i t a ç õ e s e m l í n -

g u a s e s t r a n g e i r a s , à s q u a i s p o d e -

m o s a c r e s c e n t a r g r e g o e l a t i m .

A p e n a s d u a s d e s t a s s ã o r e c e n t e s :

J a p o n ê s e P o l o n ê s ; e t o d a s a s s e -

t e o f e r e c e m a o p ç ã o d e l i c e n c i a -

t u r a p l e n a . S e c o n s i d e r a r m o s

t a m b é m o s b a c h a r e l a d o s , s ã o 5 4

p o s s i b i l i d a d e s f o r m a t i v a s , s e g u n -

d o o s n o s s o s i n t e r e s s e s e e s c o -

l h a s .

N ó s f o m o s a p r o v a d o s e m

c o n c u r s o v e s t i b u l a r o u t r a n s f e r i -

d o s p o r r e a p r o v e i t a m e n t o d e v a -

g a s . S o m o s q u a s e 1 0 0 0 a l u n o s d a

g r a d u a ç ã o . A o s e s t u d a n t e s d a s

l i c e n c i a t u r a s é f a c u l t a d o o e s t á -

g i o r e m u n e r a d o , p o d e n d o a t u a r

c o m o p r o f e s s o r a p r e n d i z d o C e n -

t r o d e L í n g u a s e I n t e r c u l t u r a l i -

d a d e - C e l i n , u m a e s c o l a - e s c o l a

d e l í n g u a s c r i a d a n o n o s s o C u r s o

d e L e t r a s p a r a e s t e f i m , q u e h o j e

a t e n d e m a j o r i t a r i a m e n t e à c o m u -

n i d a d e e x t e r n a p a g a n t e . C o m o

c e n t r o d e l í n g u a s e l e j á t e v e m a i s

d e 4 . 7 0 0 a l u n o s m a t r i c u l a d o s .

D e p o i s d e q u i n z e a n o s d a s u a

f u n d a ç ã o o a t u a l C e l i n é u m v u l -

t o s o e m p r e e n d i m e n t o n o s e t o r d e

e s c o l a s ; m a s , n ã o n o s e s q u e ç a -

m o s , é u m a i n s t i t u i ç ã o d a U F P R ,

q u e f u n c i o n a a t r a v é s d a F u n p a r ,

q u e é u m a f u n d a ç ã o .

O C e l i n t e m s i d o f r e q u e n t e -

m e n t e f e s t e j a d o c o m o u m c a s o d e

s u c e s s o , u m p ó l o d e d i f u s ã o d e

Page 5: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 5 E D I Ç Ã O N º 2 2

A B R I L D E 2 0 1 0

r i o s , e t a m b é m a r r e g i m e n t a r e

v a l i d a r a c o n t r a t a ç ã o d e p r o f i s -

s i o n a i s n ã o h a b i l i t a d o s ( n ã o g r a -

d u a d o s e m L e t r a s ) m e s m o p a r a

a s l í n g u a s d a s l i c e n c i a t u r a s d o

n o s s o C u r s o d e L e t r a s . T o d o s r e -

c e b e m u m ― C e r t i f i c a d o d e C a p a -

c i t a ç ã o ‖ c o m o t i m b r e d a U F P R .

I s t o é i n j u s t i f i c á v e l , n ã o é

é t i c o , n ã o é m o r a l . S e r á l í c i t o ?

I n e x p l i c a v e l m e n t e e s t a s e l e ç ã o

a r b i t r á r i a é f e i t a p e l o s n o s s o s

p r ó p r i o s p r o f e s s o r e s , e l e s s ã o c o -

o r d e n a d o r e s d a s r e s p e c t i v a s l í n -

g u a s n a i n s t i t u i ç ã o , s ã o e l e s p r ó -

p r i o s q u e a t e s t a m a n o s s a f a l t a

d e c a p a c i d a d e e e x p e r i ê n c i a p a r a

a t u a r n o C e l i n , a l é m d i s s o , d ã o -

n o s a d e s c u l p a d e s e m p r e f a l t a -

r e m v a g a s , o u q u e e s t e s d e p r o -

f i s s i o n a i s d e ― c a r r e i r a ‖ s ã o o s

m e l h o r e s p a r a a t u a r n a i n s t i t u i -

ç ã o . A l g u m a s l í n g u a s c h e g a m a

f u n c i o n a r n o C e l i n c o m o e s c o l i -

n h a s p a r t i c u l a r e s d e i d i o m a s ,

c o n t r a t a n d o o s ― m e l h o r e s p r o f e s -

s o r e s ‖ , c o n t r a r i a n d o a f i l o s o f i a

d o a m b i e n t e u n i v e r s i t á r i o n a s

q u a i s s e i n s e r e m , s e m t e r e m u m a

p o s t u r a d i d á t i c a e p e d a g ó g i c a d e

u m a e s c o l a d e a p l i c a ç ã o , i n t e n -

ç ã o p r i m o r d i a l d a i n s t i t u i ç ã o .

N ã o p o d e m o s e n t e n d e r a r a -

z ã o d i s t o . N ã o p o d e m o s s e q u e r

i m a g i n a r q u a l é a i n t e n c i o n a l i d a -

d e i m p l í c i t a n e s t a p r á t i c a , q u e

r e p u t a m o s , s e m d ú v i d a , i s e n t a d e

c o e r ê n c i a e d e l i s u r a a c a d ê m i c a .

O s a d m i t i d o s n o n a e s c o l a , q u e

n ã o s ã o e s t a g i á r i o s , g r a d u a d o s

e m L e t r a s o u n ã o , s ã o c o n t r a t a -

d o s a t r a v é s d a C e i l i n , u m a c o o -

p e r a t i v a ― f i l h a ‖ d o C e l i n , q u e l e -

g a l i z a i n d i s t i n t a m e n t e e s t a m ã o -

d e - o b r a .

É n o t ó r i a a a v i d e z p e l o s n ú -

m e r o s n a i n s t i t u i ç ã o , r e p r e s e n t a -

d a p e l o i n c h a ç o d a i n s t i t u i ç ã o e o

c o n s e q u e n t e a u m e n t o d e f a t u r a -

m e n t o . A t e n d e r à d e m a n d a n ã o

j u s t i f i c a a a r b i t r a r i e d a d e . É p r e -

c i s o a t e n d e r a d e m a n d a ? I s t o a -

c o n t e c e e m p r o v e i t o d e q u e m ?

S e m d ú v i d a n ã o é d o s a l u n o s d o

C u r s o d e L e t r a s d a U n i v e r s i d a d e

F e d e r a l d o P a r a n á . M u i t o s t a m -

b é m s ã o o s n o s s o s c o l e g a s , c o m a

l i c e n c i a t u r a e m l í n g u a s d a g r a d u -

a ç ã o d a U F P R q u e , n ã o t i v e r a m e

n ã o t ê m o p o r t u n i d a d e n o C e l i n ,

q u e j á e x i s t e h á q u i n z e a n o s ,

t e m p o m a i s q u e s u f i c i e n t e p a r a

f o r m a r e m a n t e r u m c o r p o d o c e n -

t e g r a d u a d o , b a s e p a r a f o r m a ç ã o

d o s a l u n o s e s t a g i á r i o s d a s n o s s a s

l i c e n c i a t u r a s . L e m b r a m o s t a m -

b é m q u e t o d a s a s l i c e n c i a t u r a s , à

e x c e ç ã o d o s c u r s o s d e j a p o n ê s e

p o l o n ê s , j á f u n c i o n a m e m n o s s a

u n i v e r s i d a d e h á m u i t a s d é c a d a s ,

j á c h e g a r a m à m a t u r i d a d e , f o r -

m a r a m m i l h a r e s d e p r o f e s s o r e s

n a q u e l e q u e é u m d o s m e l h o r e s

c u r s o s d e L e t r a s d o p a í s .

O C e l i n é , n ã o e s q u e ç a m o s ,

p a r t e d e u m a U n i v e r s i d a d e P ú b l i -

c a , q u e n ã o p o d e s e r o b j e t o d e

u m a a ç ã o v e n a l e m d e t r i m e n t o d e

s e u s p r ó p r i o s a l u n o s , p r o f i s s i o -

n a i s p o r e l a g r a d u a d o s e d a c o -

m u n i d a d e q u e b u s c a o a p r e n d i z a -

d o d e l í n g u a s . O s t e n t a n d o o

n o m e d a U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d o

P a r a n á , r e c e b e n d o s e u a v a l e

f u n c i o n a n d o n o â m b i t o d e u m a

f u n d a ç ã o , o C e l i n p r e c i s a m u d a r

u r g e n t e m e n t e e p r e s t a r c o n t a s à

s o c i e d a d e . E m u m p a í s o n d e é

t r a d i ç ã o a a p r o p r i a ç ã o d o p ú b l i -

c o p e l o p r i v a d o , p r e t e r i r e s t u -

d a n t e s d e l e t r a s o u j o v e n s p r o -

f e s s o r e s g r a d u a d o s é r o u b a r e s -

p e r a n ç a s .

Page 6: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 6

B O C A D O I N F E R N O

―Trágico, deprimente, elegíaco y

levemente mórbido con algunos espas-

módicos brotes épicos. Es posible tam-

bién señalar el espíritu aventurero por

la elección y exaltación defiguras he-

roicas, arquetipos revolucionarios,

etc. [...]”

Roque Vallejos

Em uma literatura criada à mar-

gem de guerras e conflitos é difícil ima-

ginar algo que não tenha um tom trági-

co, deprimente e, às vezes, mórbido.

Da mesma forma me parece impossível

conceber a criação literária neste ambi-

ente sem pitadas épicas e bélicas, o que

dá base para uma das partes mais im-

portantes e representativas do Roman-

ticismo Paraguayo, o militante, que

traz atrelado a si o sentimental, com a

questão do auto-sacrifício pela pátria,

a sobreposição do sentimento à razão

na maioria das situações em que se tem

que escolher entre si mesmo e a pátria,

o que, na verdade, é uma única opção

porque, neste período, o individuo não

era nada além da sua própria pátria

e por ela vive e morre, se lhe parece

necessário.

A literatura paraguaia desde os

seus primórdios tem uma construção

singular, porque cresce em um ambien-

te onde os elementos externos — literá-

rios e culturais — não conseguem se

fazer acessíveis pelo isolamento criado

Um breve olhar à também breve Literatura Romântica Paraguaya

LIT

ER

AT

UR

A

Por Julio Cezar Marques

na ocasião da Ditadura, quando as

fronteiras estavam impenetravelmente

fechadas sob o comando do Dr. José

Gaspar Rodríguez de Francia y Velasco,

ou O Supremo, ou o Karai Guazu,

quem por vinte e seis anos, no período

compreendido entre 1814 e 1840, proi-

biu a saída e a entrada de pessoas do/

no país sem sua prévia autorização e

proibiu ainda a atuação da imprensa,

não só do Paraguai, mas também a

entrada de periódicos estrangeiros

que não fossem para ele mesmo. Co-

nhecer os limites da censura neste mo-

mento é fundamental para compreen-

der o desenvolvimento cultural e soci-

al do país e para perceber o porque da

sua atual estrutura nas diversas esferas

passíveis de análises. A exaltação da

pátria e a entrega pessoal por sua liber-

dade, congregam em um significativo

patriotismo que impulsiona tanto a li-

teratura e como todo o povo paraguaio.

O desenvolvimento dessa literatura ba-

seada, sobretudo em elementos nacio-

nais no Paraguai se contrapõe à litera-

tura argentina do mesmo período, que

recebeu muitas influências estrangei-

ras, as quais se misturaram com as

nacionais quase se sobressaindo a e-

las, gerando um bloqueio na criação

nacionalista, por assim dizer, culmi-

nando em uma literatura com claras

intenções, frustradas, de ser européia.

É importante citar alguns dados que

considero significativos na justificativa

da pouca produção literária desse

Page 7: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 7 E D I Ç Ã O N º 2 2

Por Teurra Vailatti

A B R I L D E 2 0 1 0

período.

Por ocasião da Guerra da Tríplice

Aliança, 75% da população foi perdido

no processo bélico; de um inicial de

1.300.000 paraguaios vivos no princi-

pio da guerra, apenas 300.000 conse-

guiram sobreviver, sendo estes, em

sua grande maioria, crianças e mulhe-

res, diminuindo o círculo de poetas,

e possíveis aspirantes, que já não era

grande. Literariamente este foi um pe-

ríodo de pouca expressão quantitativa,

mas de grande valor qualitativo, tem-se

aí uns poucos poetas e quase nada de

publicações, mas essa produção res-

ponde plenamente à pergunta: O que

necessitava expressar internamente a

literatura paraguaia naquele momento?

O que produziram esses poetas regis-

tra o momento dos conflitos bélicos,

sociais e pessoais da forma necessária,

sem demasias nem limitações criativas.

Literatura para quem?

A literatura tem uma íntima rela-

ção com a sociedade. Por se tratar de

um processo artístico, ela absorve e

expressa o contexto social em que é

produzida, e assim, estabelece uma li-

gação entre a realidade social e o pro-

cesso de artístico de criação (ou recria-

ção) desta realidade.

Desta maneira, esta ligação vem

da expressão individual do autor que

retrata sua percepção da realidade e a

coloca à luz, de forma a aprofundar re-

flexões ligando-as à arte através do

trabalho com a linguagem e procedi-

mentos estéticos, que são componentes

que fazem o autor se apropriar do

mundo, e criar sua própria realidade.

Porém, por se tratar de um pro-

cesso de criação individual, como a li-

teratura pode retratar a realidade cole-

tiva e não ser somente uma percepção

pessoal?

O autor, como indivíduo, compar-

tilha das mesmas características da so-

ciedade em que vive, pois sua consci-

ência individual não é pura, ela é arbi­

trária no sentido de que é construída

através da escolha e da identificação

pessoal com elementos que compõem

esta sociedade.

Assim, toda literatura está inti-

mamente ligada à sociedade através

desta relação que o autor, como indiví-

duo, estabelece com seu meio. Por isso,

se ele entender sua obra como um ins-

trumento crítico, como um veículo de

idéias, valores e opiniões, ela terá

grande importância para sua própria

sociedade.

Concluindo, é preciso entender a

literatura não como uma atividade au-

tônoma, mas sim como um processo

que está relacionado às condições ma-

teriais de sua produção. Não se trata de

negar a existência da criatividade ou

da ficcionalidade, mas sim considerá-

las parte da dinâmica social, e nesta

perspectiva, ter a literatura como parte

de um todo, feita para todos.

Page 8: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 8

B O C A D O I N F E R N O

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PR e o contrato eu fiz um curso de especializa-

ção em literatura brasileira que houve aqui. Aí,

em 1977 eu comecei o Mestrado na USP. A gen-

te não conseguia ter licença para estudar, por-

que éramos professores novos e não havia um

número significativo de professores na casa.

Então, seria como dizer ―acabou de chegar e já

está querendo sair‖. Então, eu viajava todo final

de semana para São Paulo, assistia às aulas e

voltava para cá. Terminei o Mestrado em 1982.

Aí eu decidi que ia fazer o Doutorado quando

eu pudesse ter licença de fato, porque eu preci-

sava ter mais tempo para estudar. Além do quê,

não se dava licença para o doutorado sem que a

pessoa ―estivesse na vez‖. Por isso eu precisei

esperar bastante tempo para começar o Douto-

rado.

Quando comecei o Doutorado, a carreira era

muito diferente. Ter grau de doutor era quase

um ―coroamento‖. Não exatamente, mas quase

um ―final de carreira‖. Foi em 1989 que conse-

gui um afastamento para fazer Doutorado.

Quando retornei do Doutorado, abriu um con-

curso para Professor Titular, em 1995.

Mas nesse período entre o fim do Mes-

trado e o cargo de titular a senhora per-

manecia no mesmo cargo? Como era is-

so?

Nessa época, havia o plano de carreira. Entra-

vamos como auxiliar, depois assistente, adjunto

e associado, este último ainda não havia na é-

poca. Já o professor titular tem outro caráter. É

uma nova carreira, um novo cargo. Para ele, é

necessário ter uma nova tese, novo trabalho,

etc. É um outro estágio da profissão.

Dentro da sua pesquisa houve muita di-

ferença entre os objetos de estudo do

Mestrado e do Doutorado?

Sim, houve diferença. A minha primeira elei-

ção de pesquisa foi o Suplemento Literário d‘O

Estado de São Paulo. Isso foi uma espécie de

―tentativa de sair da província‖. Foi um cumprir

um ritual de leitura que eu não havia cumprido

por outras formas. Então, com o contato com

esse material, tive oportunidade de ler os críti-

cos que estavam escrevendo no suplemento li-

terário e sobre o que eles estavam escrevendo,

porque aí eu precisava ir atrás dos títulos dos

quais eles tratavam no suplemento. Então, foi

Para começar, gostaria que a senhora fa-

lasse um pouco sobre a sua formação e

sua carreira, desde o princípio até agora

ou adiante, se for o caso.

Esta história é longa... Desde a minha formação

até a minha carreira...

Eu sei que começa aqui mesmo na UFPR,

nao?

Sim, eu fiz a graduação aqui mesmo na UFPR,

no tempo em que a estrutura da Universidade

era outra. A divisão era em Faculdades e não Se-

tores, como é hoje. Fiz o curso de Letras, habili-

tação dupla em Português e Francês, era uma

licenciatura. Durante esse período já dava aulas,

naquela época não havia muita gente formada,

então a gente dava aula no que se chamava na

época de professor suplementarista no Estado,

que é esse contrato anual. Não havia concurso no

Estado. E enquanto eu estava fazendo o curso

aqui, eu dava aula na minha cidade, Lapa. Eu

viajava todo dia para cá. Assistia às aulas de ma-

nhã e à tarde e à noite eu dava aulas lá. Terminei

a faculdade. Não existia nem um curso de especi-

alização naquele momento aqui, quanto mais

mestrado e doutorado. E eu sabia que queria

continuar, fazer alguma coisa mais e sabia que

era na área de literatura. Pensava então em pro-

curar faculdades estaduais, naquela época existi-

am particulares também, mas poucas. Pensava

em dar aulas em uma faculdade estadual, de for-

ma que eu tivesse condições de continuar, mas

continuei dando aulas no colégio na Lapa, onde

eu já estava desde o primeiro ano.

Em 1974, logo que terminei o curso, fui convida-

da para participar do processo, que não era con-

curso, semelhante ao que é hoje aquele para

(professor) substituto em Literatura Brasileira.

Eu fui aprovada nesta seleção, mas demorava

muito para sair o contrato. Eu continuei a dar

aulas na Lapa até que, em julho de 1075, saiu o

meu contrato que, naquela época, se chamava

auxiliar de ensino.

Mas (o auxiliar de ensino) fazia a mesma

coisa que um professor, não é?

Sim! Dava aulas e trabalhava em pesquisa. Na

verdade um pouco na pesquisa dos outros pro-

fessores que já estavam na casa.

Bom, nesse intervalo entre a seleção para a UF-

Page 9: Boca do Inferno número 22

uma ―entrada no universo não mais restrito do

universo local‖. Não vamos esquecer que a USP

era tida como o ―top‖ na área de Letras, mais es-

pecificamente de Literatura Brasileira. Não ne-

cessariamente de Letras porque em Lingüística

não era exatamente o caso. Então, o ‗ir fazer

mestrado em São Paulo e trabalhar com o suple-

mento literário d‘O Estado de São Paulo‘ signifi-

cou tomar contato com ―o restante do mundo‖.

Fiquei durante vários anos trabalhando nessa

pesquisa, foi um trabalho longo e acabou sendo

publicado depois que ganhei um prêmio do Ins-

tituto Nacional do Livro, que era a publicação do

trabalho. Então ele foi publicado, embora tenha

ficado como uma espécie de publicação clandes-

tina, porque era uma época de final de governo.

Saiu a publicação, mas como era do INL não era

colocada à venda, mas sim para distribuição em

bibliotecas. Houve uma tiragem de oitocentos

exemplares e eu não sei se foram de fato envia-

dos às bibliotecas ou para onde foi. As pessoas

que eu sei que têm esse trabalho são aquelas pa-

ra quem eu dei um exemplar.

Depois eu voltei para o que era o meu ponto de

partida de gosto pela literatura, que era a ficção

histórica. No projeto que fiz para o Doutorado,

definido um ano após o início da especialização,

em 1990, tratei da ficção histórica de Paraná,

Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Desde en-

tão, trabalho com esta ficção e outros recortes

entre produção literária e produção histórica,

especialmente a produção literária que dialoga

de perto com a História.

Uma pesquisa, aliás, interessantíssima...

Tanto eu acho que estou nela há vários anos e

continuo nela. Mas não é só o que existe para se

fazer em Literatura. A questão é que precisamos

nos conformar com os nossos limites. Nós não

conseguimos acompanhar a produção literária e

a produção teórica e crítica numa gama muito

ampla. Nós precisamos fazer recortes. E o recor-

te que eu resolvi fazer foi este.

No último semestre (de 2009) a senhora

ofertou disciplina que tratava da ficção de

Machado de Assis. Alguma consideração

especial, além é claro da „canonização‟ já

existente no país?

Veja, eu faço este trabalho com ficção histórica

dentro da ficção brasileira. Eu, como leitora de

P Á G I N A 9 E D I Ç Ã O N º 2 2

poesia não posso dizer que sou uma leitora profis-

sional. Eu leio, sim, e até trabalho em algumas dis-

ciplinas quando é preciso trabalhar com este pano-

rama, mas não é realmente a que eu me dedico.

Agora, para se trabalhar com a ficção histórica con-

temporânea, não se pode isolá-la da produção an-

terior, isto é, tenho que trabalhar com a história da

ficção no Brasil. E, na História da Ficção no Brasil,

eu destaco pelo menos três pontos fulcrais: José de

Alencar, Machado de Assis e Guimarães Rosa.

Fechou?

Não, não fechou. Acho que nunca se pode dizer

―fechou‖. Na verdade é um ―abre por aí‖. Eu não

posso me considerar uma professora razoável de

Literatura Brasileira sem ter lido o canônico e mais

alguns textos. Até mesmo para reconhecer por que

o canônico é canônico ou para reclamar por que ‗o

outro‘ não está no cânone. Afinal, podemos recla-

mar disso. E também para discutir a questão do

canônico. Então, precisamos necessariamente ter

uma pluralidade de leituras. Eu contemplei agora,

em especial, Machado e Guimarães Rosa, porque

por circunstâncias deste curso, da distribuição de

aulas e dos diferentes momentos, eu acabei traba-

lhando com disciplinas que tinham como objeto

estes dois autores. E acho que não se pode passar

por um curso de Letras sem ter lido minimamente

esses autores. Então periodicamente eu ofereço

disciplinas que trabalham com eles (autores).

Sobre as publicações, o primeiro livro foi

aquele que a senhora citou, das

“misteriosas oitocentas cópias desapareci-

das”...

Como você deve saber, faz parte do trabalho acadê-

mico publicar artigos em periódicos, revistas, capí-

tulos de livros. Isso faz parte das obrigações da car-

reira, afinal de contas (professores) somos pagos

para dar aulas e ser pesquisadores e a forma de

mostrarmos que estamos produzindo nas pesqui-

sas é publicando. Meu primeiro livro foi este de

que falei, que tem caráter documental, um levanta-

mento do suplemento literário d‘O Estado de São

Paulo desde 1956 até 1967, que é o período de du-

ração da primeira Direção do suplemento, do Pro-

fessor Décio de Almeida Prado. Depois disso, mi-

nha produção se encaminhou para a vertente da

ficção histórica. Publiquei um recorte do trabalho

que, originalmente foi o trabalho do Doutorado,

num concurso e este recebeu um prêmio e foi pu-

blicado, mas nesta forma de recorte. Publiquei

A B R I L D E 2 0 1 0

Page 10: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 1 0

B O C A D O I N F E R N O

também um estudo sobre as ficcionalizações sobre

o Contestado. E a produção mais recente é toda de

artigos, publicados em revistas especializadas da

área, eventualmente sobre um romance específico,

eventualmente reflexão a respeito de conjuntos,

estes sempre dentro da ficção histórica brasileira.

E sobre a ABRALIC? Como foi o processo

até a sua ascensão como presidente?

Eu sou associada da Associação Brasileira de Lite-

ratura Comparada desde sua fundação, há vinte e

cinco anos atrás, no Rio Grande do Sul, que desde

então não tem um caráter muito específico, muito

fechado de professores de Literatura Comparada.

Ela é uma associação que reúne professores de Li-

teratura de diferentes nacionalidades e de Teoria

da Literatura, isto é, as pessoas no país que refle-

tem sobre o fenômeno literário de forma sistemáti-

ca, profissional e acadêmica. Em alguns momentos

estive mais próxima da Associação quando da par-

ticipação em congressos, em outros não. Então não

é uma coisa que eu diga que esteve sempre no meu

horizonte.

Em 2009, haveria o Congresso Internacional e é

nele em que há a renovação da Diretoria. Nessa

época, algumas pessoas do cenário nacional dentro

da associação entraram em contato comigo comen-

tando da importância de fazer com que a diretoria

circulasse, porque é uma diretoria itinerante, e pa-

ra que saísse dos centros em que costumeiramente

esteve: Rio Grande do Sul, onde ela surgiu, o eixo

Rio-São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis e Sal-

vador. Então havia a intenção de tirar um pouco

desses lugares. Nos perguntaram se nós tínhamos

interesse em organizar aqui uma diretoria. Em

princípio, você sabe que é natural do ser humano

fugir um pouco do trabalho, né? Eu cheguei a apre-

sentar para o grupo de professores de estudos lite-

rários da Pós-Graduação. Nós consideramos as

vantagens, as desvantagens, discutimos um pouco

e achamos que não íamos encarar essa. Porque é

um trabalho estafante, a gente precisa abrir mão

do trabalho da pesquisa – da docência não pode-

mos deixar, claro – ou diminuir muito o trabalho

para conseguir dar conta, como o resto das ativida-

des administrativas que precisam ser realizadas

dentro da Universidade.

Veja, um chefe de Departamento ou um Coordena-

dor de Curso diminui sempre as suas atividades e

além do que, sacrifica também outros aspectos da

vida que não o profissional porque tem as exigên-

cias do tempo, das ocupações do trabalho. Então

num primeiro momento pensamos ―Não, vamos

deixar, de repente aparece outro grupo aí...‖ Pas-

sados alguns meses o assunto esfriou e nós estáva-

mos nos considerando meio liberados. Passado

esse tempo, recebi e-mails, telefonemas e contatos

de pessoas de fora voltando a insistir na importân-

cia de nós procurarmos aqui constituir uma dire-

toria e ver como é que iríamos nos postular nesse

encargo. Voltamos a discutir, todos nós bastante

preocupados em o que significava organizarmos

aqui este evento em termos de quantidade de tra-

balho e de como conseguiríamos faze-lo acontecer

aqui. Pesou para nós o argumento de que estamos

dentro de uma universidade federal, num curso de

Letras que tem graduação e pós graduação em

dois níveis (Mestrado e Doutorado) e estávamos

maduros para marcarmos algumas posições e que

nós, no Paraná, somos muito tímidos em apresen-

tar o nosso trabalho. Todo mundo conhece aquelas

piadinhas do Paraná... ―Num balde de caranguejos

não precisa por tampa porque não saímos de den-

tro e se um for sair o outro caranguejinho do fun-

do puxa pra dentro de volta pelo pé...‖ Então, tal-

vez precisássemos efetivamente de, além de traba-

lharmos nas pesquisas, além de procurarmos pu-

blicações, nós precisávamos assumir algumas po-

sições diante do cenário nacional. Foi assim que

acabamos constituindo esse grupo de trabalho

(mais que uma diretoria de associação, este é um

grupo de trabalho) e no Congresso Internacional

de 2009, apresentamos nossa candidatura . E es-

tamos trabalhando desde então. Excepcionalmen-

te esta gestão ficou para três anos (as outras eram

de dois anos), porque havia o interesse de desen-

contrar do Encontro Nacional da ANPOLL, que é a

Associação Nacional de Pós-Graduação em Lin-

güística e Letras, que acontecia sempre nos anos

pares e no mesmo mês que a nossa. E as pessoas

tinham não só a dificuldade pessoal de ir como

também de conseguir recursos das universidades e

das agencias de fomento.

Atualmente a ABRALIC fica nos anos ímpares e a

ANPOLL nos anos pares. E nos anos pares a A-

BRALIC faz também o que se chamava de Encon-

tro Regional, mas que não tem mais esse caráter

regional apenas, chamado agora de ―Encontro Pe-

queno‖ justamente por não ter o caráter do Encon-

tro Internacional.

Page 11: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 1 1 E D I Ç Ã O N º 2 2

A B R I L D E 2 0 1 0

E como está o andamento do próximo en-

contro?

Será no final de abril, de 27 a 29. Nós fizemos o

projeto, apresentamos para as agências de fomen-

to, como CNPq, CAPES e Fundação Araucária. Em

alguns já temos o resultado, em outros temos algu-

mas exigências a satisfazer, especialmente com a

Fundação Araucária, como a documentação que

uma associação como a nossa não tem condições

de fornecer... Mas a programação do encontro (as

mesas, os convites, está tudo feito). Nós temos al-

guns convidados internacionais. As conferências de

abertura e de encerramento serão com professores

estrangeiros. Temos mais dois professores estran-

geiros participando das mesas.

O encontro será fundamentalmente composto por

duas conferências, mesas redondas sobre temas

específicos – quatro delas em torno de temas aca-

dêmicos e duas ‗técnicas‘, estas últimas sobre o

funcionamento da ABRALIC. Introduzimos uma

novidade, que não existia na ABRALIC: serão mi-

nistrados dois cursos pequenos, com quatro horas

e meia, com especialistas em Literatura Compara-

da. São cursos efetivamente voltados para a Litera-

tura Comparada e têm em vista o público discente

mesmo – alunos de graduação e de pós-graduação.

A dificuldade com a qual nos deparamos, mas não

esperávamos, é o problema do espaço. Gostaría-

mos que o Encontro fosse realizado no Complexo

da Reitoria, sede do Setor de Humanas, Letras e

Artes. No entanto, não conseguimos agenda para o

teatro da Reitoria e não temos nenhum outro audi-

tório suficientemente grande aqui perto. Em nome

disso, tivemos que limitar o número de participan-

tes para duzentas e cinqüenta pessoas. Apesar da

limitação já existente do teatro da Reitoria, ainda

sim não seria tão drástica como está. Alguns dos

anfiteatros estão em condições precárias e temos as

dificuldades estruturais do prédio.

E esta tem sido a maior dificuldade: encontrar um

espaço fora do Complexo da Reitoria, que fosse

próximo, para darmos mais conforto aos convida-

dos e participantes e para que nossos alunos não

sejam deslocados e não precisem passar por um

processo mais complicado de transporte.

Talvez seja interessante acrescentar que a decisão

que tivemos foi de fazer o evento nas dependências

do Hotel Alta Reggia, a trezentos metros da Reito-

ria. O hotel vai ceder espaço para realização do e-

vento.

Então ficou impossível realizar na Reitoria?

Pois é, não conseguimos. Talvez os cursos sejam rea-

lizados aqui. Depende muito da questão política. Nós

queremos muito fazer aqui, porque nós trabalhamos

na UFPR e é aqui que nós encontramos afinal a nos-

sa identidade, o nosso centro de trabalho é aqui. Es-

sa foi uma solução de forma a não haver um desloca-

mento. O hotel vai nos ceder um espaço, sem custos.

Então os convidados ficam acomodados lá. Esta foi a

solução ―menos pior‖ encontrada. A menos dificulto-

sa.

Não sei se seria interessante para a senhora

falar sobre isso: o fim das suas atividades na

graduação.

Fim das suas atividades na graduação é uma coisa

que as pessoas querem saber, né? Por enquanto não

parei, ainda. Penso em continuar... Olha, a questão é

a seguinte: é claro que é sempre tentador se pensar

em não precisar mais assistir reuniões, não precisar

mais fazer ―isso‖ nem fazer ―aquele outro‖, mas você

precisa construir o que você vai fazer. A minha opção

pelo trabalho como pesquisadora e como professora

eu considero que ainda não está vencida, no sentido

de ―é isso que eu gosto de fazer‖, ―é isso para que eu

me preparei‖

É isso que te faz bem, diríamos.

Eu espero que pelo menos não faça mal. Mas isso

significa alguns custos, no sentido de ―tem que fazer,

participar‖, tem que fazer algumas atividades. Den-

tro disso tem um conjunto de atividades que eu pen-

saria ―é muito melhor que eu não precisasse fazer‖.

Mas aí não tem escolha: ou se faz tudo ou não se faz

nada. E a gente também não pode entrar nesse de

ficar dizendo ―não me incomodem muito porque eu

vou me aposentar!‖. Eu procuro não entrar nessa

porque ela não é saudável pra mim e não é saudável

para o Departamento, não é saudável para ninguém.

Por enquanto estou procurando manter as atividades

num ritmo normal, não excessivo, mas normal.

Não está tão normal justamente por causa da

ABRALIC e tal...

É, não está tão normal por isso, mas não temos afi-

nal só um emprego, nós temos um trabalho. Aí não

dá pra escolher muito ―o que é mais gostosinho‖ de

fazer e deixar pra lá os outros, faz parte da carreira.

Page 12: Boca do Inferno número 22

B O C A D O I N F E R N O

A sensação claustrofóbica é aterrori-

zante dentro de um elevador. O que

pode amedrontar mais do que uma

pequena caixa de ferro — quando não

de madeira! — puxada de baixo a cima

por correntes? A caixa é sempre, na

verdade, minúscula. O ranger da ma-

deira, os baques assustadores que a-

quilo dá quando começa ou termina

uma viagem, o hesitar da porta antes

de abrir quando o elevador chega no

destino — que parecem horas para a-

queles que anseiam por sair dali; nada

disso ajuda o claustrófobo a se sentir à

vontade.

Nada como os espelhos. É sempre tão

bom abrir a porta do elevador e ter a

sensação de que a parede não é o seu

fim; como se além daquele espaço pal-

pável tivesse um espaço muito maior

que — sem tentar encontrar uma ex-

plicação plausível — está, paradoxal-

mente, habitado por um você que não

parece estar tão amedrontado e passa

uma aura tranquilizadora.

Mas o elevador daquele prédio era di-

ferente; nele não se via nada de tran-

quilização. Sempre que entrava na-

quele cubículo, que se esperava que

fosse bem menor do que parecia, ele

tinha a sensação de se ter voltado ao

caos da cidade, dos carros, das pessoas

lá fora. A expectativa de tranquilidade

que ele buscava para assim que che-

gasse em casa era destruída pelos

espelhos que não só compunham a pa-

rede do fundo do elevador, oposta à

porta, mas também as duas paredes

laterais. Assim que entrava naquela

caixa, vários outros ele entravam jun-

to, refletidos infinitamente ao seu la-

do. Ele via as pessoas, via seus contor-

nos, mas não conseguia ver seus ros-

tos, que estavam sempre escondidos

por trás daquele rosto que, sempre

com olhos inseguros e curiosos, olha-

vam-lhe avidamente nos olhos. Estar

naquele elevador era-lhe sempre uma

tortura; ele não via a hora em que a

jornada acabasse e ele pudesse se ver

livre.

Naquele dia, em especial, ele até cogi-

tou subir pelas escadas, mas estava

cansado, queria acabar logo com aqui-

lo, queria logo chegar a serenidade do

lugar que, absolutamente, é seu. Assim

que atravessou o corredor da entra-

da, depois de ter cumprimentado o seu

Alceu, ele apertou o botão de chamar o

elevador e balbuciou uma melodia.

Cantava uma música de tom alegre,

porque sabia que o porteiro psicanali-

sava cada um de seus movimentos e sa-

bia que todo mundo ficaria sabendo se

o fofoqueiro do prédio descobrisse que

ele estava ali, na verdade, tremendo de

medo, querendo por tudo não entrar

naquela caixa de tortura.

Entrou no elevador e tentou não focar

no que via; assim que a porta se fechou

e ele tinha certeza de que o porteiro

não mais o via, ele cerrou os olhos com

força. Pensou nos tempos de criança,

naquela tarde ensolarada em que toda

aquela turma de colegas de classe joga-

vam bola depois da aula; pensou no

quanto doeu aquela canelada que certa

vez deu na trave e no quanto o barulho

das correntes se assemelhava com o

som que reverberou no oco da trave e

no quanto odiou aquele monte de cri-

anças rindo e de nenhum modo se com-

padecendo de sua dor. O balançar do

chão o deixava desequilibrado, como se

sentia quando estava dentro de um

ônibus, fez o que pôde para enganar a

si mesmo e fingir que aquele monte de

pessoas em seu redor eram passagei-

ros do mesmo ônibus e que não eram

infinitos — mesmo sendo muito nu-

SU

B-R

EA

LID

AD

E

P Á G I N A 1 2

Por Willian Pinheiro

Page 13: Boca do Inferno número 22

A B R I L D E 2 0 1 0

merosos, capazes de lotar por completo

o ônibus, elas são aquele número de

pessoas e não passa disso. Foi pensar

nisso que o fez não perder a sanidade

ali dentro.

Conseguiu sair de lá são e salvo. Saiu

balbuciando aquela mesma música —

só que desta vez sem o sorriso forçado.

O corredor do terceiro andar estava va-

zio; ele não teve a curiosidade de ver se

havia alguém, nunca; ele apenas saía

do elevador e seguia em linha reta à

porta de seu apartamento.

Dentro de seu apartamento, por todos

os cantos, havia letras coloridas de di-

ferentes cores, tamanhos e materiais;

grudadas nas paredes, no teto, por so-

bre os móveis, coladas às lâmpadas;

do tamanho de moedas, no formato de

sapatos, com meio metro de compri-

mento. Aquele era um lugar não muito

grande; lá havia poucos móveis, justa-

mente por não caber muita coisa; para

poder chegar onde queria lá dentro ele

precisava se esgueirar por entre todo

aquele lixo entulhado. Mas era ali que

P Á G I N A 1 3 E D I Ç Ã O N º 2 2

ele se sentia à vontade. Naquele lugar

onde mal cabia ele, onde ele podia pôr

as coisinhas que lhe agradavam — e,

devido à sua filosofia, agradavam-lhe

por completo: ele não precisava de

muito pra se sentir satisfeito.

No canto, onde era o que se podia se

considerar uma sala de estar, ele se

sentou no chão, onde não cabia um so-

fá, empurrando aquele monte de letras

para longe de si. Acendeu um cigarro,

pegou o controle remoto e ligou a tele-

visão; sobre sua cabeça, a janela semi-

aberta, pela qual jamais poderia ele

nem ver a cidade lá embaixo, engolia

a fumaça de seu cigarro e guspia pra

dentro da sala todos os barulhos lá de

fora. Em meio ao barulho das buzinas, dos

incessantes motores, do grito inquietante

da sirene da ambulância que se aproximava

de longe, ele tentava ouvir a televisão.

Ali mesmo, no chão, enquanto via o te-

lejornal, ele dormiu. No seu rosto, um

sorriso; ele sonhava com as luzes da

cidade: dirigindo seu carro, ele via os

prédios que completavam o horizonte.

Ilustração: Luana do Valle

[sub-realidade.blogspot.com]

Page 14: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 1 4

ri-sonho

B O C A D O I N F E R N O

Por Helder Santana

AR

TE

& M

AN

HA

Ele não sabia rir. Não sei, não sabe,

não sabia. Parecia ter nascido sem sa-

ber. Talvez fosse algum trauma de in-

fância, medo de palhaço, vergonha de

sua dentadura torta e amarelada. Tal-

vez sufocamento nos tempos de útero,

carência de oxigenação de algum en-

dereço cerebral. Na verdade não sabia

de onde vinha, ou mesmo se vinha de

algum lugar. Sabia que não sabia.

Simplesmente não conseguia rir.

Decerto não aprendera, não fora esti-

mulado a isso. Sua família, é preciso

dizer, não era muito dada a risos; a

gargalhada era espécime raro e o sor-

riso um máximo denominador co-

mum. E, não raro, mesmo os sorrisos

que vinham daquela família, costuma-

vam se apresentar em bocas fechadas,

fachadas. Esboços de riso. Disfarces.

Talvez faltasse algum gene hilariante

naquela constelação familiar.

Tinham aqueles amigos que não se

conformavam com sua ausência de

riso. Não concebiam uma existência

que nunca experimentasse rir. Então

tentavam de tudo. Casualidades, mi-

rabolâncias, piadas boas, piadas ruins,

sustos, saltos e sobressaltos, truques,

tiques e traques, tudo para lhe assaltar

um milagroso riso desprevenido. Cla-

ro que sempre tinha aquele que tenta-

va lhe aplicar as famigeradas cosqui-

nhas. As cosquinhas! Será que tinha

coisa mais incompreensível para ele

do que as cosquinhas? Ele entendia

menos as cosquinhas do que o próprio

riso. Aqueles apertos inconvenientes,

intrometidos e dolorosos naqueles

lugares de sempre... só poderia ser

piada de mal gosto mesmo. Como al-

guém que se ofende com o sexo antes

de descobri-lo prazer.

Por vezes, seu humor era facilmente

confundido com ironia. E sua ironia,

ahhh!, adorava aquele campo fértil de

expressões comedidas.

Alguns garantiam que, estando ele

alegre, ficava com cara de paisagem.

Mas parecia mesmo era compensar o

riso com tiques próprios de corpo. Al-

guns diziam que seu riso era toda vez

que seu nariz se mexia. Outros jura-

vam que ria era rebolando, chacoa-

lhando todo o quadro do quadril. Co-

mo se o riso, desorientado, quisesse

sair pelo buraquinho do cu. Talvez

como um cachorro que sorri pelo ra-

bo, entre abanos e abraços. O riso de-

ve ser mesmo isso: alguma coisa que

não mais se comporta e escapa. Certa-

mente em parentesco com o choro.

há quem diga que o gene do riso se en-

contre no bairro das expressões, ali no

hemisfério tropical do córtex sensorioso,

sendo o Riso a esquina da rua Harmoni-

a com a travessa do Ridículo. era co-

mum alguém usar o Ridículo para che-

gar à Harmonia passando pelo Riso.

numa dada geração da família, os mo-

radores da travessa do Ridículo devem

ter ridicularizado aquela rua tão–tão

harmoniosa. quem vivia na Harmonia se

ofendeu e passou a não mais visitar o

Ridículo, inutilizando a esquina do Riso.

faz carinho que eu gosto mais!

será que consigo rir de tanto chorar?

Page 15: Boca do Inferno número 22

A B R I L D E 2 0 1 0

P Á G I N A 1 5

Às vezes, ele tentava rir e se concen-

trava nisso. Virava exercício, escola,

propósito. Criava métodos. Geralmen-

te, quando tentava rir, assoprava. Era

mesmo um desajeitado no riso. Então

tentava cenicamente, ensaiava atenta-

mente as cenas. Chegou a elaborar o

que chamava de riso em apuros. E por

vezes enganava até os mais apurados.

Aprendeu mesmo a simular os mais

diversos risos, cada um vestido de u-

ma ocasião. Risos circunstanciais, o-

portunistas. Providenciais, convenien-

tes. O problema é que riso disfarçado,

quando detectado, acaba mais chate-

ando do que contagiando. Começou a

se convencer que era melhor se vestir

de silêncio em vez do riso forçar. Ficar

falando é que não poderia: já tinha

aprendido que riso costuma vir em

lugar de pausa.

Mas ele não era infeliz, não. Ao con-

trário, e no tocante oscilatório da roda

-vida, considerava-se pessoa dita F E

L I Z. Conseguia misturar humor com

naturalidade e fazia, da seriedade, sua

eterna máscara cômica.

Um dia começou a perceber que esta-

va ficando cego.

E quando a cegueira pousou-lhe por

completo, finalmente descobriu:

Ria pelos olhos.

ri-SOS

shhh: não tá vendo que eu tô rindo?

mas ele não pára de falar sério!

Por Aguinaldo Roberto Moreira

* Dedicado aos colegas “japas” e ao Edson, que é carteiro.

E r a s e u d i a d e d e s c a n s o ,

p e g o u s u a b i c i c l e t a , s a i u , f o i p e s c a r

C o n h e c e r a t o d o s o s c a m i n h o s

q u e n ã o s a b e r i a v o l t a r

números sem Casas

casas sem Ruas

ruas sem Cidade

cidade sem Pessoas

pessoas sem Rostos

rostos sem Vozes

vozes sem Palavras

palavras sem Sentido

e o Silêncio Insuportável

de Todos os Templos

A Memória nunca deu

um dia de folga

a o c a r t e i r o d e H i r o x i m a .

Page 16: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 1 6

B O C A D O I N F E R N O

Tic Tac A

RT

E &

MA

NH

A

Por Daiane Pereira Rodrigues

Tic tac. Os cachorros ladram ao longe, a ga-

roa embala o sonho de alguém. O apito do

guarda noturno ecoa. Tic tac. Deitada na

cama ela sonha com aquele mundo real-

maravilhoso das crônicas de viagem. Ela

esteve lá, descobrindo as maravilhas de um

novo mundo. Lembranças, impressões e

sensações voltando à mente. Tic tac. Mes-

mo continente e realidades tão distintas.

Não foi com Sevilla que ela comparou toda

uma cidade, foi com a Curitiba dos farois da

XV. Tic tac. Havia dormido mal durante

toda a viagem. O motorista a sacudiu ―você

tem que descer aqui‖. Ambiente escuro, pe-

numbra e pó, madeira velha e uma música

em língua estranha ao fundo. Tic tac - mal-

dito relógio que não deixa dormir. Aqui não

se come, mas estou com fome – pensou na-

quela manhã. Hoje em dia já diria che

vare‘a. Tic tac. Podia levantar agora e aque-

cer o leite, com essa chuvinha não há reló-

gio que resista. Tentou comprar duas empa-

nadas naquela manhã, su. Nunca soube se o

podia chamar assim: Grande Senhor. Leu

num livro de Roa Bastos. Queria ter dito

―rohaihu, che karai guasu‖

mas mal conseguia dizer ―eu

te amo‖, não sabia o que sen-

tia. Tic tac. Agora ainda é

meia-noite na cidade de José

Assunção Flores e ela tem

saudade, ela quer ouvir aque-

las canções que embalaram

seu amor impossível. Não,

não gosta de falar de amor,

prefere ouvir as canções da

sua aventura no exterior, da

sua relação passageira pela

hispano-américa. Echar de

menos, extrañar, não sabia ao

certo o que era em castelha-

no. Era simplesmente a vontade de dizer

―che raku eterei nderehe‖ e de sentir-se ple-

na. Tic tac, talvez não seja o relógio que não

a deixe dormir. Quer olhar a bahia de As-

sunção más allá de la Chacarita, sentir o

cheiro do verde e o ruido dos pássaros, ver

os índios na rua vendendo seu artesanato

colorido, ao lado dos vendedores de cds pi-

ratas. Agora não tem a bahia, tem o Jardim

Botânico, o Museu espanhol meio truncado,

insegurança, medo. Não entendia aquela

prosódia guarani da velha banguela. Pelo

menos o banheiro era limpo, e a cozinha?

Será que era? Tic tac. Ainda ouve os cães.

Havia muito ovo nas empanadas que devi-

am ser de frango. Quase deu a quantia erra-

da de dinheiro por esses pastéis de ovo, não

se habituara ao cambio, talvez nunca apren-

desse a cambiar, sempre mudando de um

país a outro. Tic tac, a moto do guarda passa

cuidadosamente, mas ela não se sente pro-

tegida. Protegida ela se sentia nos braços do

seu karai gua-Curitiba, seu Oscar Nieme-

yer . Ontem ela quis ir ao museu. Mas de

repente sentiu que não era ali onde queria

estar, era no Hotel del Lago em San Bernar-

dino, era na velha casinha de Casaccia que

agora era um hotelito em Areguá, cenário

daquele romance que gostou tanto. Leu na

cidade de Espinoza, pode percorrer os mes-

mos caminhos que Ramón Fleitas. Talvez

também estivesse sob o efeito de alguma

babosa, veneno cruel, fofoca infundada,

conservadorismos que a prendiam num mu-

ro de medo e incertezas. Antiga e nova aris-

Page 17: Boca do Inferno número 22

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P Á G I N A 1 7

tocracias do país, isso disseram os professo-

res. Tanto ficou por conhecer dessas cida-

des... Tic tac. Já não ouve os latidos, mas o

relógio a atormenta, quer se concentrar no

barulho da chuva para dormir. É inútil. Tic

tac. Haverá aberto o balcão dos seus olhos

de gata? Se recusa a pensar que foi só um

amor de verão, nem era verão... Tic tac, já

passam das 2h. O apito está tão distante a-

gora, em alguns minutos estará mais alto de

novo, toda noite é a mesma coisa. Todo dia

tem sido a mesma coisa. ―Estoy aburrida‖

diria, esta vida tekorei não a deixa feliz. Pre-

cisa de ação, só funciona fazendo mil coisas

ao mesmo tempo. Um paraguaio talvez dis-

sesse ―che kueraima‖ para esse sentimento

de chateação. Nunca pensou que a melhor

tradução fora ―estou chateada‖ – nós fica-

mos chateadas quando estamos tristes com

alguma coisa, pensava. Está ansiosa. A pon-

to de só perceber o tic tac do relógio e os

ruidos noturnos. Lembra o que seus amigos

diziam: ―como tiembras, mi vida. Tenés que

ir a un médico‖, ―lo que admiro en vos es tu

capacidad de autorreflexión‖, ―no se puede

hablar de algo si uno no lo tiene aclarado‖,

―mentime na, decime na que me amás, por

favor‖. Ela dizia, mas nunca soube se estava

mentindo. Tanta coisa em tão pouco tempo.

Tic tac, ela pode sair e ver o céu, mas com

essa chuva não poderá ver a lua. A essa hora

deve fazer uns 24°C do outro lado da fron-

teira, em plena madrugada, ela estaria ven-

do a lua cheia, sentindo o perfume dos jas-

mins. Esse sempre será o cheiro de Assun-

ção para ela, e também aquele cheiro de uri-

na, de fossa, das esquinas imundas aos arre-

dores de casa. Uma vez choveu forte por lá.

Tic tac. De repente a luz apagou, os vidros

quebraram, árvores e postes cairam. Tic tac.

Nunca sentiu tanto medo. Tic. Nunca se di-

vertiu tanto. Tac. A vida realmente não

precisa ser perfeita, pensa esquecendo o re-

lógio. Molhou os pés na água do lixo naque-

la noite em que ganhou o apodo de musa

das cerejeiras. Cerejeiras? Por que cerejas?

Não gostava muito de cerejas. Continua a

chuva. Tic tac. o capítulo que sempre lhe

pareceu a descrição perfeita da cidade vem à

mente. Tic tac. ―no había casi tránsito‖. Tic

tac. ―Ardían las piedras de las calles y las

paredes de los edificios‖ Tic. ―Un viento

norte caliente se encajonaba en las calles y

azotaba el rostro de los pocos trauseúntes

con sus mil lenguas de fuego‖ tac. A cidade

de fato está um forno, nunca se sentiu tão

personagem como neste instante, é mais um

transeunte sofrendo com as línguas de fogo

daquele vento. ―Parece que estou sob um

secador de cabelo‖ diz rindo de si mesma

enquanto sente falta do clima curitibano. O

que estava pensando sobre o clima? Chove

há dias, nem parece verão, mas é tão gosto-

so dormir com chuva, e poder estar tranqui-

la, sem excessos. Um clima perfeito. Sempre

pensou assim. Mas agora, tic tac, tic tac, tic

tac, conta as horas para voltar ao calor e ar-

der naquele laranjal tic tac tic tac tic... O re-

lógio vai sumindo no horizonte do lago Ypa-

carai... Ela já não controla seus sonhos.

Page 18: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 1 8

B O C A D O I N F E R N O

AR

TE

&

M

AN

HA

Andando pela casa de manhã ce-

do, me chamou a atenção um pássa-

ro de porcelana em cima da estante.

Sabia que não era algo novo não só

por uma vaga força das minhas remi-

niscências, que reconheciam a peculi-

aridade do objeto como também

pelo seu péssimo aspecto.

Quando eu tinha vinte, tinha pa-

vor de coisas velhas, de pessoas ve-

lhas. Tanto umas como as outras tra-

tavam de envelhecer muito rápido,

buscando o fim como algo natural. Eu

não queria uma vida normal aos vinte.

Queria viajar, conhecer muitas coisas

e lugares e jamais envelhecer mental-

mente. A vida pra mim era o elixir da

alma. Viver me dava forças pra viver.

Mesmo que isso não fosse sempre pos-

to em prática. Não queria que filhos

estragassem tudo, meu corpo, minha

juventude e meu humor. Nunca gostei

de crianças, mesmo quando ainda era

uma. Gostava mesmo do diferente.

Um dia vi um cachorro lindo na TV e

decidi que queria ter um. Ele era ma-

ravilhoso, uma graça. Olhos de coita-

dinho, patas curtas, desengonçado e

de orelhas tortas, achei fantástico. Co-

mecei a pensar em quais coisas eu de-

veria fazer para que um dia tivesse um

bicho daquele. Vi que deveria ter u-

ma casa. Um bom espaço para o ca-

chorro caminhar, pular, brincar, fazer

besteiras e cocozinho. Tinha que ter

grama para que quando eu chegasse

me jogasse com ele nela. Mas aos vin-

te eu morava de aluguel e não ganhava

muito bem. Não tinha feito ainda nada

do que eu queria. Então no dia se-

guinte comecei a estudar. Estudava

oito horas por dia. Fiz isso por três

anos com intenções de entrar em al-

gum banco ou coisa assim. Eu ia to-

dos os dias na biblioteca pública. Era

bem limpa e completa. Eu almoçava

sempre alguma coisa na rua e voltava

para lá até a hora de trabalhar. Um

dia eu estava voltando pra casa e um

homem me parou umas duas quadras

depois da avenida. Falou que estava

precisando de dinheiro pra alguma

coisa da qual não me lembro. Mas na-

quela hora eu não sabia que não era

nada disso e ele queria possuir meu

corpo naquela noite. Ele me derrubou

no chão quando eu me distraí. Não

sabia o que fazer. Ele me apertou forte

no chão com o peso do seu corpo e or-

denou que eu não gritasse. Eu não

gritei. Ele separou as minhas pernas e

me possuiu violentamente no chão, eu

mordia seu ombro com força numa

junção embaraçosa de dor e prazer e

ele terminou o que queria fazer. Le-

vantou-se sentindo seu ombro san-

grar e viu meus dentes ainda serrados

vermelhos de seu sangue. Por fim,

ele me deu um soco no nariz com toda

força e eu desmaiei sem ter tempo de

pedir seu telefone.

Passaram-se dois meses e eu en-

trei num banco estadual. Trabalhei

duro e criei meu filho até seus vinte

sob meu lar. Um confortável lar que

ao invés de um cachorro havia dois

gatos. Sempre trabalhei demais e eu e

meu filho nunca conversávamos

muito. Ele saía sempre e eu dormia

sempre. Num dia das mães, ele não

saiu. Eu não dormi. Fizemos sexo a

noite toda como eu nunca havia visto

antes. Ele explodia de prazer várias

vezes e foi violento como o pai. Eu sa-

bia que tinha um filho saudável. Ao

final, ao ver o meu êxtase de prazer,

permaneceu deitado sobre mim por

alguns minutos em silêncio. Levantou

Page 19: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 1 9 E D I Ç Ã O N º 2 2

A B R I L D E 2 0 1 0

Cúmulo nulo Por Luiz Seman

Esta que embota e perde

Faz o fogo que arde

Ser arte que, em parte

Se anula e cede.

Ao ouvi-la e tê-la

Absurda e muda

De lugar em fuga

Por não ser, vê-la.

Por estar no escuro

Se volta ao cúmulo

Do infinito nulo

De seu buraco negro.

Já foi tão bela

Ora nem pode,

Sem querer explode,

É difícil lê-la.

Vá, cínica excreção

Ter seu sucesso sujo

Enquanto eu me encontro

Em teu sinistro chão.

Por Vinícius da Cruz dos Santos

-se, tirou um pacote pardo da mo-

chila e deixou sobre a penteadei-

ra. Me olhou mais alguns instan-

tes até deixar soltar uma lágrima.

Depois, saiu. Não entendo por que

os homens são tão complicados e

frágeis. Abri o pacote e vi aquele

pássaro horroroso dentro dele.

era verde e pintado à mão. Eu

pensei ser um presente, de péssi-

mo gosto. Ouvi um barulho gran-

de na sala e me vesti. Pensei ser

alguma coisa que o gato derruba-

ra. Encontrei inerte no chão da

sala o corpo do meu filho imerso

numa poça de sangue, manchando

o assoalho com o fluído do seu

caráter. Os homens realmente

são complicados e frágeis.

(25/11/2009)

Page 20: Boca do Inferno número 22

P Á G I N A 2 0 E D I Ç Ã O N º 2 2

Expediente

A menina de uniforme Por Mylle Silva

Tão igual a qualquer uma,

estava sentada na escadaria de

uma velha casa, uma menina

de uniforme. Mala nas costas,

rabo de cavalo , l ivro velho na

m ã o . B r o c h u r a d o b r a d a a o

meio, l ia a página, v irava da

par para a ímpar num misto de

t é d i o e i n t e r e s s e . V i v i a a

espera divert ida, o bom l ivro

na s i tuação ruim. Fino era,

provável ser infant o -juveni l .

Calça azul e camis eta branca,

tantas outras passam mas só

ela s entou -se para ler . Já sa-

bia ler , grande era, devia saber

sonhar também. Livro amassa-

do, páginas amareladas, talvez

meladas de café por alguém.

Num mundo qualquer , talvez

um amor platônico, infant i l

e proibido. Talvez correndo

atrás de um coelho e dando de

c a r a c o m u m c h a p e l e i r o

maluco.

A v ida longe da sombra fresca

era um mistér io , mal se sabia

andar fora dal i . Enquanto l ia ,

tão igual era única e bela como

uma fruta nova, como um l ivro

que se dá sem vergonha. Era

ela s im, fora do seu corpo,

inteira.

O conteúdo expresso nos textos publicados não corresponde necessariamente à

opinião do Jornal e/ou do Centro Acadêmico de Letras-UFPR

Responsável José Olivir de Freitas Junior

Edição e Diagramação

José Olivir de Freitas Junior

Imagens e Ilustrações Arquivo CAL

Luana do Valle http://images.google.com.br

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Conselho Editorial

Centro Acadêmico de Letras

Artigos/Entrevistas Aguinaldo Roberto Moreira José Olivir de Freitas Junior Julio Cezar Marques da Silva

Professor Paulo Soethe Teurra Vailatti

Textos Aguinaldo Roberto Moreira Daiane Pereira Rodrigues

Helder Santana Luiz Seman Mylle Silva

Vinícius da Cruz dos Santos Willian Pinheiro

Agradecimento

Alzira Isabel Steckel André de Medeiros Biora Araújo Professora Marilene Weinhardt

Silmara Regina Lenz

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