BACHELARD_Gaston - Conceitos Fundamentais Do Racionalismo Aplicado (124-141)

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se perdem automaticamente todos os prindpios da neces- sidade. Dai que 0 p os it ivi sm o pu r o nao possa de modo nenhum justificar poder de deducao que actua no des envolviment o das teori as modernas ; nao pode aper- ceber-se dos v al ore s d e c oe re nc ia da fis ica contempora- nea. E, no entanto, em comparacao com 0 empirismo puro, 0 positivismo surge, pelo menos, como 0guardiao da hi er arquia d as l ei s. A rro ga -se ° direito de afastar as aproximacoes subtis, os pormenores, as variedades. Mas esta hierarquia das leis nao possui 0valor de organizacao das necessidades claramente compreendidas pelo racio- nalismo. De resto, ao basear-se em juizos de utilidade, o posit ivismo tende a de ge ne ra r em pragmat is mo, para essa poeira de receitas que e ° empirismo. 0 positivismo nada tern do que e necessario para decidir sobreas or- dens de abordagens, para sentir a estranha sensibilidade de racionalidade proporcionada pelas abordagens de se - gunda ordem, os conhecimentos mais precisos, mais dis- cutidos, maiscoerentes, que encontramos no exame atento das experiencias delicadas e que nos fazem com- preender que existe mais racionalidade no complexo do que no simples. Alias, umpasso mais alem do empirismo, que se absorve na narrativa dos seus exitos, e eis-nos perante esse amontoado de factos e decoisas que, estorvando 0 realismo, the da a ilusao da riqueza. Mostraremos em seguida ate que ponto e contrario a to do oespirito cien- tffico 0 postulado, tao facilmente admitido por certos filosofos, que assimila a realidade a urn p610 de irracio- nalidade. Quando t ivermos reconduzi do a act ivi dade filo- sofica do pensamento cientffico ao seu centro activo, tornar-se-a claro que 0 materialismo activo tern precisa- mente por funcao Jugular tudo 0 que poderia ser ouali- ficado de irracional nas suas materias enos seus objec- tos. A quimica, imbufda dos seus a priori racionais, ofe- rece-nos s ub st an ci as s em a ci de nt es , desembaraca todas as mat eri as da i rraci onali dade das origens. (Rationalisme, cap. I, 'PP'. 6-7.) dente que 0 comportamento revolucionario da ciencia contemporanea deve reagir profundamente sobre a estru tura do espi rit o. 0 espirito tern uma estrutura variavel, a partir do momentoem que 0 conhecimento tern uma historia. Com efeito, a historia humana, nas suas paixoes, nos seus preconceitos, em tudo 0 que depende das im- pulsoes imediatas, pode bern ser umeterno recomeco: mas ha pensamentos que nao recomecam: sao os pen- sa me nt os q ue f or am r ec ti fi ca dos , a la rga do s, c ompl et ado s. Nao retornam a sua area restrita ou vacilante. Ora, 0 espirito cientffico-e essencialmente uma rectificacao do s abe r, urn al argament o dos quadros do conhecimento. Julga 0 seu passado historico, condenando-o. A sua estru- tura e a consciencia dos se us erros historicos. Cientifica- ment e, cons idera-s e 0 verdadeiro como r ecti ficacao hi st o- rica de urn lo go erro, considera-se a experiencia c mo rectificacao de uma ilusao comum e inicial. Toda a vida i ntel ectual da ciencia se joga dialecticamente nesta dife- rencial do conhecimento, na fronteira do desconhecido. A propria essencia da reflexao e compreender que nao se t inha compreendi do, Os pens ament os nao-baconianos. n ao -e uc li di a no s, n ao- ca rt es ia nos e st ao c or npe nd ia dos I ll es - tas dialecti cas historicas a pr es en ta da s pe la r ec ti fi ca ca o de urn erro, pela extensao de urn sistema, pelo comple- men to de urn pensamento, {Nouvel Esprit, cap. VI, pp, 173-174.) C. Conceitos fundamentals do raclonallsmo apll eado 51 . Em suma, a ciencia instrui a razao, A razao t ern de obed ec er a ciencia, a c ie nc ia ma is e vo lu id a, a ciencia que esta em evolucao, A razao nao tern 0 direito de sobrestimar uma experiencia imediata; deve, pelo con- trario, harmonizar-se com a experiencia mais ricamente estruturada. 0 imediato d ev e, e m t od as a s c ir cu n st an c ia s, ceder 0 pas so ao construido. Destouohes repete com fre- quencia: se a aritmetica, em desenvolvimentos Iongin- quos, se revel ass e contraditoria, teria de se reformar a razao para eliminar a contradicao, e conservar-se-ia in- tacta a aritmetica. A aritmetica deu tantas provas de eficiencia, de exactidao, de coerencia, que e impensavel abandonar a sua organizacao, Perante uma contradicao subita ou, mais exactamente, p rante a necessidade su- bita de urn uso con raditorio da aritmetica, colocar-se-ia o problema de uma nao-aritmetica, de uma pan-aritme- t ic a, i st o e , de urn prol ongament o di alect ico das intuicoes do numero que permitisse englobar a doutrina classica e a doutrina nova. 1. Uma epistemologia historica 50 . Se pus ermos agora ° proble ma da novi dade ci en- tffica no plano genuinamente psicologico, torna-se evi- 1 24 12 5

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se perdem automaticamente todos os prindpios da neces-sidade. Dai que 0 positivismo puro nao possa de modo

nenhum justificar 0 poder de deducao que actua no

desenvolvimento das teorias modernas; nao pode aper-

ceber-se dos valores de coerencia da fisica contempora-nea. E, no entanto, em comparacao com 0 empirismo

puro, 0 positivismo surge, pelo menos, como 0guardiao

da hierarquia das leis. Arroga-se ° direito de afastar as

aproximacoes subtis, os pormenores, as variedades. Mas

esta hierarquia das leis nao possui 0valor de organizacaodas necessidades claramente compreendidas pelo racio-nalismo. De resto, ao basear-se em juizos de utilidade,

o positivismo tende a degenerar em pragmatismo, para

essa poeira de receitas que e ° empirismo. 0 positivismo

nada tern do que e necessario para decidir sobreas or-

dens de abordagens, para sentir a estranha sensibilidadede racionalidade proporcionada pelas abordagens de se -

gunda ordem, os conhecimentos mais precisos, mais dis-

cutidos, maiscoerentes, que encontramos no exame

atento das experiencias delicadas e que nos fazem com-

preender que existe mais racionalidade no complexo do

que no simples.

Alias, umpasso mais alem do empirismo, que se

absorve na narrativa dos seus exitos, e eis-nos perante

esse amontoado de factos e decoisas que, estorvando 0

realismo, the da a ilusao da riqueza. Mostraremos em

seguida ate que ponto e contrario a todo oespirito cien-

tffico 0 postulado, tao facilmente admitido por certos

filosofos, que assimila a realidade a urn p610 de irracio-nalidade. Quando tivermos reconduzido a actividade filo-sofica do pensamento cientffico ao seu centro activo,

tornar-se-a claro que 0 materialismo activo tern precisa-mente por funcao Jugular tudo 0 que poderia ser ouali-ficado de irracional nas suas materias enos seus objec-tos. A quimica, imbufda dos seus a priori racionais, ofe-rece-nos substancias sem acidentes, desembaraca todas

as materias da irracionalidade das origens. (Rationalisme,cap. I, 'PP' . 6-7.)

dente que 0 comportamento revolucionario da cienciacontemporanea deve reagir profundamente sobre a estru-

tura do espirito. 0 espirito tern uma estrutura variavel,

a partir do momentoem que 0 conhecimento tern uma

historia. Com efeito, a historia humana, nas suas paixoes,

nos seus preconceitos, em tudo 0 que depende das im-

pulsoes imediatas, pode bern ser umeterno recomeco:mas ha pensamentos que nao recomecam: sao os pen-

samentos que foram rectificados, alargados, completados.

Nao retornam a sua area restrita ou vacilante. Ora, 0

espirito cientffico-e essencialmente uma rectificacao do

saber, urn alargamento dos quadros do conhecimento.

Julga 0 seu passado historico, condenando-o. A sua estru-

tura e a consciencia dos seus erros historicos. Cientifica-mente, considera-se 0 verdadeiro como rectificacao histo-

rica de urn longo erro, considera-se a experiencia como

rectificacao de uma ilusao comum e inicial. Toda a vida

intelectual da ciencia se joga dialecticamente nesta dife-

rencial do conhecimento, na fronteira do desconhecido.

A propria essencia da reflexao e compreender que naose tinha compreendido, Os pensamentos nao-baconianos.

nao-euclidianos, nao-cartesianos estao cornpendiados Illes-

tas dialecticas historicas apresentadas pela rectificacao

de urn erro, pela extensao de urn sistema, pelo comple-

men to de urn pensamento, {Nouvel Esprit, cap. VI, pp,173-174.)

C. Conce i tos fundamentals do raclonallsmo aplleado

51 . Em suma, a ciencia instrui a razao, A razao tern

de obedecer a ciencia, a ciencia mais evoluida, a ciencia

que esta em evolucao, A razao nao tern 0 direito de

sobrestimar uma experiencia imediata; deve, pelo con-

trario, harmonizar-se com a experiencia mais ricamenteestruturada. 0 imediato deve, em todas as circunstancias,

ceder 0 pas so ao construido. Destouohes repete com fre-

quencia: se a aritmetica, em desenvolvimentos Iongin-

quos, se revelasse contraditoria, teria de se reformar a

razao para eliminar a contradicao, e conservar-se-ia in-

tacta a aritmetica. A aritmetica deu tantas provas de

eficiencia, de exactidao, de coerencia, que e impensavel

abandonar a sua organizacao, Perante uma contradicao

subita ou, mais exactamente, perante a necessidade su-

bita de urn uso contraditorio da aritmetica, colocar-se-ia

o problema de uma nao-aritmetica, de uma pan-aritme-

tica, isto e , de urn prolongamento dialectico das intuicoesdo numero que permitisse englobar a doutrina classica

e a doutrina nova.

1. Uma epistemologia historica

50 . Se pusermos agora ° problema da novidade cien-

tffica no plano genuinamente psicologico, torna-se evi-

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Nao hesitamos em levar ao extremo a nossa tese

para a tornar bem nitida. Esta extensao da aritmetica

nao esta ainda feita. Ao supo-la como posslvel, queremos

apenas afirmar que a aritmetica nao e, tal como a geome-

tria, uma promocao natural de uma razao imutavel, A

aritmetica nao se baseia na razao. E a doutrina da razao

que se baseia na aritmetica elementar. Antes de saber

contar, desconhecia-se. praticamente 0que era a razao.

o espirito, de uma maneira geral, tem de se submeter

as condicoes do saber. Tern de se mobilizar em tomo.de

articulacoes que correspondem as dialecticas do saber.

o que seria uma funcao sem oportunidades de funcionar?

o que seria uma razao sem oportunidades de raciocinar?

A pedagogia da razao deve, pois, aproveitar todas as

oportunidades de raciocinar. Deve procurar a variedade

dos raciocfnios ou, melhor dizendo, as variacoes do ra-

ciocinio. Ora, as variacoes do raciocinio sao actualmente

numerosas nas ciencias geometricas e ffsicas: e sao todas

solidarias de uma dialectica dos principios da razao, de

uma actividade da filosofia do nao. A razao, uma vez

mais, tern de obedecer a ciencia, A geometria, a ftsica,

a aritmetica sao ciencias: a doutrina tradicional de uma

razao absoluta e imutavel nao passa de uma filosofia.

E uma filosofia ultrapassada.(Philosophie, cap. VI, pp.144-145.)

reccao de urn erro subjectivo. Mas nao e muito facil

destruir os erros um a urn. Eles estao coordenados. 0 es-

pirito cientifico so pode constituir-se destruindo 0espi-

rito nao cientffico. 0 cientista adere muitas vezes a uma

pedagogia fraccionada, quando, na verdade, 0espirito

cientifico deveria visar uma reforma subjectiva total.

Todo 0progresso autentico no pensamento cientffico ne-

cessita de uma conversao. Os rprogressos do pensamento

cientifico con temporaneo deterrninaram transformacoes

nos proprios principios do conhecimento.

Para 0 filosofo que, por profissao, descobre em si

verdades primeiras, 0 objecto, considerado em bloco,

confirma facilmente principios gerais. Por isso, as per-

turbacoes, as flutuacoes, as variacoes rpreocUipam pouco

o filosofo. au as despreza como pormenores inuteis, ou

as colige para se corrvencer da irracionalidade funda-

mental do dado. Em ambos os casos, 0 filosofo esta

pronto a desenvolver, a proposito da ciencia, uma filo-

sofia clara, rapida, facil, mas que continua a ser uma

filosofia de filosofo. Basta, entao, uma unica verdadepara sair da duvida, da ignorancia, do irracionalismo; e

suficiente para iluminar uma alma. A sua evidencia re-

flecte-se em reflexos sem fim. Esta evidencia e uma luz

unica: nao tern especies, nao tern variedades. 0 espirito

vive umaunica evidencia. Nao tenta criar outras eviden-

cias. A identidade do espirito no eu penso e de tal ma-

neira dara que a ciencia dessa consciencia clara e irne-

diatamente a consciencia de uma ciencia, a certeza de

Iundar uma filosofia do saber. A consciencia cia identi-

dade do espirito nos seus diversos conhecimentos cons-

titui, em si, a garantia de um rnetodo permanente, funda-

mental, definitivo. Perante urn tal sucesso, como apontara necessidade de modificar 0espirito e de ir em busca

de conhecimentos novos? Para 0 filosofo, as metodolo-

gias, por muito diversas e moveis que sejam nas diferen-

tes ciencias, baseiam-se, apesar disso, num metodo inicial,

num metcdo geral que deve informar todo 0 saber, que

deve tratar da mesma maneira todos os objectos. Assim,

uma tese como a nossa, que considera 0 conhecimento

como umaevolucao do espirito, ,que aceita variacoes res-

peitantes a unidade e a perenidade do eu penso, pertur-bam necessariamente 0 fillosofo.

E, nao obstante, e a uma tal conclusao que teremos

de chegar se quisermos definir a filosofia do conheci-mento cientifico como uma filosofia aberta, como a cons-

ciencia de urn espirito que se constroi no trabalho sabre

52. Como e possivel, entao, nao ver que uma fila-

sofia que pretende ser verdadeiramente adequada ao pen-

samento cientitfiico, em evolucao constante, deve consi-

derar a reaccao dos conhecimentos cientfficos sobre a

estrutura espiritual? E e por isso que nos defrontamos,

desde 0 inicio das nossas reflexoes sobre 0 papel de umafilosofia das ciencias, com um problema que nos parece

mal equacionado quer pelos sabios quer pelos filosofos.

E 0 problema da estrutura e da evolucao do espirito.

Aqui, uma vez mais, a mesma oposicao: 0 sabio ere

partir de um espirito sem estrutura, sem conhecimentos;

o filosofo baseia-se, a maior parte das vezes, num espf-

rito constituido, provido de todas as categorias indispen-saveis para compreender 0 real. ,

Para 0 sabio, 0 conhecimento emerge da ignorancia,

tal como a luz emerge das trevas. 0 sabio nao ve que a

ignorancla e uma teia de erros positives, tenazes, soli-

darios, Ele nao se apercebe de que as trevas do espiritotern uma estrutura e que, nessas condicoes, toda a expe-

riencia objectiva correcta deve sempre determinar a cor-

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2. A nociio de objectividade

a) Objecto cientifico e objecto imediato

53. Na nossa opiniao, e preciso aceitar 0 postuladoseguinte para a epistemologia: 0 objecto nao pode serdesignado como urn «objective» imediato; por outras

palavras, urn movimento para 0 objecto nao e inicial-mente objectivo. :£ necessario aceitar, pois, uma verda-deira ruptura entre 0 conhecimento sensivel e 0 conheci-mento cientffico. Cremos, com efeito, ter demonstrado,no decurso das nossas criticas, que as tendencias nor-mais do conhecimento sensfvel, intensamente animadasde pragmatismo e de realismo imediatos, determinavamapenas uma falsa partida, uma falsa direccao, Em parti-cular, a adesao imediata a urn objecto concreto, apreen-dido como urn bern, utilizado como, urn valor,compro-mete demasiado intensamente 0 ser sensivel; e a satis-fa~iio intima; nao e a evidencia racional. Como Baldwin

afirma numa f6rmula de admiravel densidade: «E a esti-mulaciio, nao a resposta, que permanece 0 factor de con-trolo na construcao dos objectos dos sentidos.» Mesmosob a forma aparentemente geral, mesmo quando 0 serrepleto e farto ere ter chegado a hora de pensar gratui-tamente, e ainda sob a forma de estimulaciio que elecoloca a primeira objectividade. Esta necessidade de sen-tir 0 objecto, este apetite pelos objectos, esta curiosidadeindeterminada nao correspondem ainda - seja a que ti-tulo for - a urn estado de espirito cientffico, Se umapaisagem e urn estado de alma romantico, urn pedacode Duro e urn estado de alma avaro, uma luz urn estado

de alma extatico, Urn espirito pre-cientffico, quando setenta embaraca-lo com objeccoes sobre0seu realismoinicial, sobre a sua pretensao em apreender, logo a pri-

meira, 0 seu objecto, desenvolve sempre a psicologiadessa estimulaciio, que eo verdadeiro valor da conviccao,sem nunca atingir sistematicamente a psicologia do con-trolo objective. Com efeito, como Baldwin sugere, talcontrolo resulta, antes de mais, de uma resistencia. Porcontrolo entende-se em geral the checking, limiting, regu-lation o f the constructive processes ", Mas, antes do im-

pedimento' e da censura que correspondem curiosamenteao coneeitoingles de check ., explicitaremos a lIl09aode[racasso, implicada igualmente na mesma palavra. :£ por-que ha fracasso que ha refreamento da estimulacao,Sem este reves, a estimulacao seria valorpuro. Seriaembriaguez; e, em virtude do enorme sucesso subjectivoque e urna embriaguez, ela seria 0 mais irrectificavel doserros objectivos. Assim, para nos, ohomem que tivessea impressao de que nunca se engana, estaria sempreenganado. (Formation, cap. XII, p. 239).

54. Basta falarrnos num objecto para parecermos

objec.tivos. Mas, pela nossa primeira prefetencia, e maiso objecto que nos escolhe do que nos 0 escolhemos aele, e aquilo que consideramos os nossos pensamentosfundamentais sobre 0mundo sao, muitas vezes, confiden-cias sobre a juventude do nosso espirito, Por vezes, fica-mos deslurnbrados perante urn objecto eleito; acumula-mos as hipoteses e os sonhos; formamos assim convic-90es que possuem a aparencia de urn saber. Mas a fonteinicial e impura: a evidencia primaria nao e uma verdadefundamental. A objectividade cientifica s6 e possivel de-pois de termos rompido com 0 objecto imediato, determos recusado a se~u9ao da primeira escolha, de ter-

mos parado e contradito os pensamentos que nascem daprimeira observacao, Toda a objectividade, devidamenteverificada, desmente 0 primeiro contacto com 0 objecto.Tem de comecar IpOrcriticar tudo: a sensacao, 0sensocomum, ate a pratica mais constante e a propria etimo-logia, pois 0verbo, que e feito para cantar e seduzirraramente vai ao encontro do pensamento. Em vez de s~deslumbrar, 0 pensamento objectivo deve ironizar. Semesta vigilancia desconfiada, nunca alcancaremos uma ati-tude verdadeiramente objectiva. Se se trata de examinarhomens, iguais, irmaos, a simpatia e a base do metodo,Mas, perante 0mundo inerte que nao vive a nossa vidaque nao sofirede nenhum dos nossos males e que nenhu~

o desconhecido, buscando no real aquilo que contradizconhecimentos vanteriores. :£ necessario, antes de mais,tomar consciencia do facto de que a experiencia novadiz niio e experiencia antiga, sem 0 que, obviamente, naose trataria de uma experiencia nova. Mas, este nao, nuncae definitivo para urn espirito que sabe dialectizar os seusprincipios, constituir em si mesmo novas especies deevidencia, enriquecer 0 seu corpo de explicacao sem con-ceder nenhum privilegio aquilo que seria urn corpo deexplicacao natural capaz de tudo explicar. (Philo sophieAvant-Propos, pip. 8-10.)

• Em ingl8s no original. (N. do T.)

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rna das nossas alegrias pode exaltar, devemos cessartodas as expansoes, devemos controlar a nossa pessoa.Os eixos da poesia e da ciencia sao, antes de mais, inver-sos. Tudo 0 que a filosofia pode esperar e tornar a poesiae a ciencia complementares, uni-las como dois contrariesbern ajustados. g necessario, pois, opor ao espirito poe-tico expansivo 0espirito cientffico taeiturno, para 0qual

a antipatia previa constitui uma sa precaucao, (Psycha-nalyse, cap. I, !pp. 9-10.)

acredita no sabio que the assegura que 0 orvalho sai dasplantas» 1. Ambas as aflrmacoes sao igualmente falsas;ambas trazem a marca de urn empirismo sem organiza-

c;ao de leis. 0 facto de 0 orvalho cair do ceu ou sair dasplantas nao suscitaria mais que uma problematica muitoreduzida. 0 fen6meno do orvalho e racionalizado pelalei fundamental da higrometria, que liga a tensao dovapor a temperatura. Baseados na racionalizacao de umatal lei, pode-se, sem contestacao possivel, resolver 0 pro-blema do orvalho.

Urn outro historiador, muito zeloso do pensamentocientifico, e vitima, tal como Renan, de urn equivoco.Taine, ao escrever em 1861, ao seu amigo de Suckau,pretende po-lo ao corrente dos exitos da ciencia nosultimos meses: «Neste momento~estuda-se intensamentea luz; temos as experiencias de izeau, que provam queela avanca mais depressa na agua do que no ar, e as deBeoquerel filho, que \provam que todos os corpos saofosforescentes» ICorrespondance, t. II, p. 214). A luz

«avanca mais depressa na agua do que no ar». Deveriater dito 0 contrario, Simples lapso, dirao. Sem duvida,Mas 0 fisico fica tao chocado com urn tal lapso comoficaria urn historiador a quem dissessem que 0 golpe deEstado de Napoleao precedeu a Revolucao de quarenta eoito. Mais precisamente, Taine limita-se a dar a experien-cia de Fizeau apenas 0valor de urn [acto constatado.Se tivesse apreciado estaexperiencia a partir da pro-blematica que a tornava interessante, e provavel que naotivesse cometido 0 mesmo erro. A experiencia de Fizeaue mais do que urn resultado, e uma conclusao. Constituiurn valor epistemol6gico racional. Considera-se justa-

mente como uma experiencia crucial que decide em favorda teoria das ondulacoes luminosas contra a teoria daemissao, 0 problema voltara, sem duvida, a ser postocom a Relatividade, e uma problematica mais vasta exi-gira novos comentarios. Mas, ha urn seculo, a expe-riencia exigia ja urn longo comentario, uma valorizacao,porque representava urn valor epistemol6gico eminente.Era mais do que urn facto hist6rico, mais do que urnfacto que resulta de uma constatacao, Resolvia urn pro-blema .. IRationalisme, cap. III, pp. 52-53.}

b) A nD,iio de «[acto cientijico»

55. A duvida universal pullverizaria Irremediavel-mente 0 dado- numa acumulacao de factos heter6clitos.Nao corresponde a nenhuma instancia real da investi-gac;ao cientifica. A investigacao cientifica reclama, emvez da parada da duvida universal, a constituicao de umaproblerndtica. Toma como ponto de partida real urn pro-

blema, mesmo que esse problema esteja mal posto. 0 eucientffico e entao programa de experiencias, ao passoque 0 nao-eu cientifico e ja problemdtica constituida. Emfisica moderna, nunca se trabalha sobre 0desconhecidototal. A [ortiori, contra todas as teses que afirmam urnirracional fundamental, nunea se trabalha na base doincognoscivel,

Por outras palavras, urn problema cientifico poe-sea partir de uma correlacao de leis. Na falta de urn proto-colo preliminar de leis, urn [acto limitado a uma cons-tatacao arrisca-se a ser mal compreendido. Ou, maisexactamente, afirmado dogmaticamente por urn empi-

rismo que se compromete na sua pr6pria constatacao,urn [acto enfeuda-se a tipos de compreensao sem relacaoconi a ciencia actual. Dai certos erros que a cidade cien-tifica nao tern dificuldade em julgar. Quem compreendeu,por exemplo, a teoria cientffica do ponto de orvalho ternconsciencia de que ela apresenta uma prova definitivaque vern encerrar uma antiga controversia. A tecnica deurn higr6metro como os de Daniell ou de Regnault - paracitar apenas aparelhos conhecidos em meados do seculoXIX - da uma garantia de objectividade que nao e facilde obter atraves de uma simples observacao «natural».Depois de termos recebido esta lic;ao de objectividade, ja

nao e possfvel cometer0

erro de Renan, que ere poderrectificar 0 senso comum nestes termos: «Ao povo pare-ce-lhe que 0 orvalho cai do ceu, e e com dificuldade que 1 Renan, L'Avenir de la science, p. 20.

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c) Uma «revolucao coperniciana da objectividade»

56. Nestas condicoes, urn mundo que ja possul umaseguranca objectiva apresenta-se-nos como uma sendade problemas bern definidos. Tal situacao foi muito berndefinida por varias notas de Georges Bouligand, em queo sabio matematico apresenta com toda a clareza dese-

javel a dialectica da slntese global (estado actual dosconhecimentos matematicos) e dos problemas postos deuma forma clara em funcao dessa mesma sintese global.No dominie do conhecimento cientifico do real, a situa-~ao nao e certamente tao nftida como a que GeorgesBouligand caracterizou relativamente ao progresso dasciencias matematicas. Mas coloca, nao obstante, a mes-rna dialectica, Com efeito, se quisessemos descrever aactividade do pensamento cientifico no estilo ja celebredo existencialismo, teriamos de dizer que 0 pensamentocientifico esta sistematicamente «em situacao» de objecti-vacao precisa, de uma abjectivacao que se expoe como

uma escala de precisiio. E aqui, mais uma vez, vemos aenorme superioridade de instrucao metafisica do objectocientifioo sobre 0objecto da experiencia conwm, paise pela accao energica da objectivacao cada vez maisprecisa que entram em jogo as funcoes importantes daracionalizacao do objecto. Em lugar do dualismo de ex-clusao do sujeito e do objecto, em lugar da separacaodas substancias metafisicas cartesianas, vemos em accaoa dialectica de umacoplamento entre os conhecimentosobjectives e os conhecimentos racionais.

No trabalho da precisao cientffica podemos aprenderos elementos de urna revolucao coperniciana da objectivi-

dade. Nao eo objecto que designa a precisao, eo metodo.Compreenderemos esta subtileza metafisiea se nOSrepor-tarmos a qualquer medida primitiva. Diz-se,por exemplo,que 0 nome de carat vern do nome de urna arvore afri-cana (Kuara), cujas sementes, depois de secas, apresen-tam mais ou menos 0 mesmo peso. Os indigenas, COD-

fiando nesta regularidade, servem-se desses graos parapesar 0 ouro. Assim, para urn primeiro uso, servimo-nos,com toda a ingenuidade, de urna regularidade---naturalpara determinar uma precisao tecnica, e isto numa me-dida de materia preciosa. Sera necessario inverter a pers-pectiva para fundar 0racionalismo da medida.

:£evidente que urn objecto pode determinar varies

tipos de objectivacao, varias perspectivas de precisao,podendo pertencer a problematicas diferentes. 0 estudo

de uma molecula quimica pode desenvolver-se na pers-pectiva da quirnica e na perspeotiva da espectografia.

Seja como for, urn objecto cientffico s6 e instrutor emrelacao a uma construcao Ipreliminar a rectifioar,a umaconstrucao a consolidar.

Encontramo-nos sempre perante 0 mesmo paradoxo:

o racionalismo e uma filosofia que continua; nunca everdadeiramenteuma filosofia que comeca.

Nestas condicoes, toda a experiencia sobre a reali-dade ja informada pela ciencia e, simultaneamente, umaexperiencla sobre 0pensamento cientifico. E e esta expe-riencia duplicada do racionalismo aplicado que e a ade-quada para coniirmar discursivamente uma existencia,ao mesmo tempo nq objecto e no sujeito. A existenciado sujeito racionalista nao poderia ser provada pelo pro-cesso unitario. Ela adquire a sua seguranca no seu poderdialectico. :£ eminentemente dialectica e discursiva por-que e obrigada a agir fora de si e em si, assumindo uma

substancia e uma existencia. E se quisermos, a partirdaqui, fazer ontologia, tera de ser ontologia de umdevir psiquico que provoca uma ontogenia de pensa-mentos.

Nao e possfvel, portanto, deixar de ver que oobjectodesignado e 0 objecto instrutor correspondem a duasinstancias de objectivacao radicalmente diferentes. Reme-tern, urn e outro, para niveis de iexistencia subjectivavalorizados de forma muito diversa. A maior parte dasdiscussoes filos6ficas sobre «a realidade do mundo sen-sfvel» fazem-se a prop6sito de objectos tornados comoexemplos, pretextos ou ocasioes -logo, ao nivel da ins-

t3.Jnda de objectivacao do objeoto designado. Mas0

objecto sirrrplesmente designado nao e propriamente umborn sinal odereuniao iPara dots espiritos que pretendemaproiundar 0conhecimento domundo sensfvel. Por exem-plo, nada ha Idemais 'i'l1lCoociHavelo que as altitudesfilo-

soficas perante urn objecto familiar, segundo se consi-

dere esse objecto na sua ambiencia de familiaridade ouria sua Individualidade necessariamente original. E seraainda uma coisa inteiramente diferente se quiSeI1IIliOSs-tudarum fen6meno enraizado num objecto, numa mate-ria, urn cristal, uma luz. Imediatamente se nos apresentaa necessidade do ,programa de experienoias e 'aobrigacao,

para dois espfritos que se pretendam instruir mutua-mente, de se colocarem numa mesma dinha de aprofun-damento. Ja nao se trata entao de desilgnac;aoimediata e

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intuit iva, mas Ide uma designacao progressiva e discur-siva atravessada por dnumeras rectificacoes.

'Para esquematizar a rivalidade do racionalismo e doempirismo nesta apreensao dos objectos, poder-se-ia evo-

car este curto dialogo:o empirista costuma dizer a um racionalista: «Ja sei

o que vai dizer.» A isto, 0 racionalista de~e responder;

«Nesse caso relativamente ao tema em discussiio, estaa ser tao racionalista como eu.» Mas 0 outro continua:«Mas voce racionalista, nao adivinha aquilo que voudizer.»- «Sem duvida (responde 0racionalista), rna's adi-vinho que 0 que vai dizer esta fora do tema que estamos

a discutir.»Vemos assim que, do ponto de vista do conhecimento

cientifico, 0 objecto designado pelo conhecimento ~o-mum nao possui nenlhuma virtude de engate. Locahzaurn nome num vocabulario, mats do que uma coisa numuniverso. 0 objecto designado pelo termo isto, mesmoapontado a declo, e quase sempre designado numa lin-

guagem, num mundo da denominacao, Perante urnobjecto que me e designado pelo seu nome usual, n~ncasei se e 0 nome ou a coisa que ganham forma na minhamente, ou ainda essa mistura de coisa e de nome, in-forme, monstruosa, na qual nem a experiencia nem alinguagem sao dadas na sua accao maior, no seu trabalhode interpsicologia efectiva. (Rationalisme, cap. III, pp.

54-55.)

sente, deixam as coisas 0 seu passado de coisas reco-nhecidas. 0 objecto reconhecido e nomeado oculta-Ihes 0objecto-a-conhecer. Se fizermos a urn existencialista uma

objeccao a esse passadismo da sua teoria do conheci-mento, ele vira-se inflexivelmente para urn futuro deconhecimentos e comeca a desenvolver, perante todo equalquer objecto da vida comum, a singularidade da suaatitude de sujeito aberto a todo 0 conhecimento. Passado sempre conhecido ao nunca conhecido com 0 maiordesembaraco, Nao considera verdadeiramente urn exis-tencialismo do conhecimento progressivo.

A posicao do objecto cientffico, do objecto actual-mente mstrutor,e muito mais complexa, muito maiscomprometida. Reclama uma solidariedade entre metodoe experlencia. ~ necessario, pois, conhecer 0 metoda paraconhecer, para captar 0projecto a oonhecer, isto e, noreino do conhecimento metodologicamente valorizado 0

objecto susceptfvel de transformar 0metodo de conhe-cer. Mas voltaremos a esta discursividade metaffsica.

Basta-nos, por agora, ter sugerido ao leitor a ideia ne-cessaria de uma problematica antecedente a toda a expe-riencia que se pretende instrutiva, uma problematica quese fundamenta, antes de se precisar, numa duvida espe-cffica, numa duvida especijicoda pelo objecto a conhecer.Nao acreditamos, uma vezmais, na eficacia da duvida ems~, da duvida que nao se aplica a urn objecto. (Rationa-lisme, cap. III, p. 56.)

3. A n(Jfao de «problemdtica»

5'7. Tudo se esclarece se inserirmos0

objecto deconhecimento numa problematica, se 0 assinalarmosnum processo discursivo de instrucao, como urn ele-mente situado entre raaionalismo docente e raciona-lismo discente. Acrescente-se que se trata agora de urnobjecto interessante, de urn objecto em <telaC;aoao qualainda nao se completoa 0 processo de objectivacao, deurn objecto que nao se limita a remeter, pura e simples-mente, para urn passado de conhecimento incrustadonum nome. A prop6sito, nao sera por uma ironia de urntipo de fil6sofo que muitos existencialismos permanecemnominalismos? Julgando por-se 'a margem das filosofiasdo conhecimento, as doutrinas existencialistas limitam-se,em muitos casos, as doutrinas do reconhecimento. Emuitas vezes, pretendendo viver a sua experiencia pre-

4. A nOfao de «metoda cientifico»

a) «Cortesia doespirito cientifico»?

58. Nao ha duvida de que ja passou 0 tempo de urnDiscurso do Metodo. Ja Goethe, no fim da vida, escrevia:«Descartes fez e refez varias vezes 0 seu Discurso do Me-todo. No entanto, tal como 0 possufmos hoje, nao nospode prestar qualquer ajuda.s Nao serei tao severo comaGoethe. Mas as regras gerais do metodo cartesiano saodoravante regras 6bvias. Representam, por assim dizer,a cortesia do espfrito cientffico: sao, para urn Congressocomo 0 nosso, os habttos evidentes do homem de boasociedade. Seria urn cientista aquele que aceitasse a ver-

dade de uma coisa antes de esta se Ihe ter apresentadocomo tal em toda a sua evidencia? Bncontrariaeudlenclanum Congresso de sabios aquele que nao ordenasse os

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cultura cientifica geral. A especializacao faz passar a

acto uma potencia largamente acumulada,

E quanta coerencia nao encontra ~ma vid~ de sabio

numa profunda especialidadel Descobrimos entao a fen?-

menologia da obstinacao racionalista, a fenomenolog~a

da experiencia minuciosa, numa palavra, a fenomenologiada coragem da inteligencia,

Para servir uma especializacao, 0 espirito abre-seinteiramente os olhares dirigem-se para 0 vasto mundo.

E que leitu;a imensa, que avidez de informa9?es naoreclama uma especializacao modernal Pode afIrm~r-se

que se escreveram, em meio seoulo, mais Uvros. e artrgos

sobre 0 electrao do que, ao longo de todas as idades, se

escreveu sobre a Lua.

B vede onde se manifesta a fecundidade real da cul-

tura a viva actualidade da cultural A comparacao do

mov'imento da Lua e do rnovimento da queda dos corposfoi, sem diivida, a causa, quando as medidas se tornar~m

suficientemente precisas, das grandes sinteses newt~n~a-

nas. .Mas, aotualmente, 0electrao, essa lua dos prodlgI~

sos mundos minuscules, empenha-nos numa problema-

tica rnais vasta, 0 estudo da mecanica do electrao solicl-

ta-nos pensamentos cada vez mai,_s~erais, cada v:z rnais

englobantes. Bern breve a mecamca 'cia Lua nao sera

para nos mais do que uma anecanioa classica, a mecanica

de urn electrao preguicoso, urn elect~ao :nonstruosame:r;tte

entorpecido, 'E os sabios abandona-lo-ao aos devaneios

dos poetas, que reencontrarao assim uma das suas espe-

cialidadesl

:.;:preciso, pois, ignorar totalmente a psicolo&ia. do

especialista, do trabalhador arrebatado .pela .espediahzar

!;ao, para 0 descrever como urn h~rpeJ?1 de vistas cur!as

empenhado num impasse. Em _ciencia, as pe:cep!;oes

exactas sao garantias de percepcoes amplas. (Ibid.)

c) «Ao mudar de metodos, a ciencia torna-se cadave z mais metodica»

tos outros casos, se seguirem os coloquios de maternatica

ou aprofundarem os debates sobre 0 determinismo.

Estamos aqui em presenca dos mais evidentes con-

flitos de metodos. Chego mesmo a perguntar-me se nao

existira actualmente uma certa oposicao entre os esforcos

para alicercaj- a ciencia e os esforcos para a erigir. Naodevemos, e certo, tornar-nos vitimas das nossas proprias

rnetaforas. No fim de contas: alicercar, projectar, erigirnao passam de imagens. No que concerne ao ediftcio da

ciencia, e possivel erigi-Io sem 0 alicercar. E tambem

possfvel, infelizmentef , alicercar sem erigir. Se as minhas

solenes funcoes de presidente do Congresso nao me pri-

vassem do prazer das polemicas vivas e amigaveis, pode-

ria dar exemplos. Vas proprios os haveis de encontrar.

Mas, na qualidade de homens de ciencia, sabeis melhor

do que ninguem que a ciencia nao se destroi, que ne-

nhuma crise interna pode deter 0 seu progresso, que 0

seu poder de integracao permite-lhe aproveitar aquilo

que a contradiz. Vma modificacao nas bases da ciencia

produz uma expansao no seu cimo. Quanto mais se es-cava a ciencia, mais ela se eleva.

Podernos, assim, estar seguros de que a multi plica-

cao dos metodos, seja qual for 0 nfvel a que esses me-

todos operern, nao podera prejudicar a unidade da cien-

cia. Explicitando melhor, eempregando urn conceito

epistemologico de M. Bouligand, pode-ss afirmar que a

sintese global da ciencia esta tanto mais assegurada

quanto mais longe possivel essa sintese global irradiar

a sua problematlca. : e perfeitamente possivel assinalar

urn metodo que se desgasta, urn metodo que, em contra-

dicao com a ·etimologia dapalavra, nao anda. Mas a

condenacao de urn metodo equivale de imediato, na cien-cia moderna, a proposicao de urn rnetodo novo, de urn

metodo jovem, de urn metodo de jovens. Encontrarao

muitos testemunhos disso no presente Congresso. Nao

existe interregno no desenvolvimento dos rnetodo-, cientf-

ficos modernos. Ao mudar de metodos, a ciencia cada vez

se torna mais rnetodica, Estamos em estado de raciona-Iismo permanente. (Ibid.)

60 . Mas existe uma outra razao que acentua 0 valor

dos metodos multiples, outra razao que, apesar do movi-

men to dos seus metodos, da a ciencia moderna uma

feliz estabilidade. :.;:0 facto de que toda a crise profunda

no metodo e imediatamente uma consciencia da reorga-

nizacao do metodo. Encontrarao provasdisso, entre mui-

5. A nociio de aplicacao

61. C . . . ) 0 espirito cientifico pode extraviar-se se-guindo duas tendencias contrarias: a atraccao do si~-gulare a atraccao do universal. Ao nivel da conceptuali-

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zacao, definiremos estas duas tendencias como caracte-risticas de urn conhecimento em compreensao e de urnconhecimento em extensao. Mas, se a compreensao e aextensao sao, uma e outra, motivos de ruptura episte-mologica, onde se encontram as fontes do rnovimentoespiritual? Qual a correccao que permitira ao pensa-mento cientifico encontrar uma saida?

Seria necessario criar aqui uma palavra nova, entrecompreensao e extensao, para designar essa actividadedo pensamento ernpirico inventivo. Seria necessario queessa palavra pudesse receber umaacepcao dinamica par-ticular. Com efeito, segundo 0nosso ponto de vista, ariqueza de urn conceito cientffico mede-se pelo seu poderde deformacao. Tal riqueza nao pode ligar-se a urn feno-meno isolado que seria reconhecido como cada vez maisrico em caracteristicas, cada vez mais rico em com-preensao. Tal riqueza tambem nao pode ligar-se a umacoleccao que reuniria os fenomenos mais heter6clitos,que se estenderia, de uma maneira contingente, a casos

novos. 0 matiz intermediario sera. realizado se 0 enrique-cimento em extensao se tornar necessdrio, e tao coorde-nado quanto a riqueza em compreensao. Para englobarprovas experimentais novas, sera entao necessario defor-mar os conceitos primitivos, estudar as condicoes deaplicaciio de um conceito no proprio significado do con-ceito. ~ nesta ultima necessidade que reside, quanto anos, 0 caracter dominante do novo racionalismo, corres-pondendo a uma estreita uniao da experiencia e da razao.A divisao classica que separava a teoria da sua aplicacaoignorava a necessidade de incorporar (as condicoes deaplicacao na propria essencia da teoria.

Como a aplicacao esta subrnetida a aproximacoessucessivas, pode afirmar-se que 0 conceito cientffico quecorresponde a urn fenomeno particular e 0 agrupamentodas aproximacoes sucessivas bern ordenadas. A concep-tualizacao cientffica necessita de uma serie de conceitosem vias de aperfeicoamento para receber 0 dinamismoque temos em vista, para formar urn eixo de pensamen-tos inventivos.

Esta conceptualizacao totaliza e actualiza 'a hist6riado conceito.Para alem da hist6ria, impulsionada pelahist6ria, ela suscita experiencias para de.formar uma fasehistorica do conceito. Na experiencia, ela procura oca-

sloes para complicar0

conceito, para0

aplicar nao obs-tante a reslstencta do conceito, para realizar as condicoesde aplicacao que a realidade nao reunia. ~ entao que

nos apercebemos de que a ciencia realiza os seus objec-tos, sem ,nu~ca os considerar totalmente acabados. 4 - fe-nomen<?tec?~caalarga a fenomenologia. Urn conceito tor-na-seClentlfIco na medida em que se torna tecnico, em

q1!e se faz acompanhar de uma tecnica de realizacao.~e.-sebern, portanto, que 0problema do pensamento cien-

tffico ~oderno ~! l;lmavez mais, urn problema filosofica-me,nt~mtermed~ano. Como nos tempos de Abelardo, nospropnos gostartamos de nos fixar numa posicao media,entre os positivtstas e o~forrnalistas, entre os partidariosdos factos e os partldarios dos SI'gnOS.Expomo-nos poisde todos os lados, a crftica. (For1'tUltion cap HI' pp'60-6i.) , ' . " ' .

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