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AUGUSTO, M. R. A. As relações com as interfaces no quadro minimalista gerativista: uma promissora aproximação com a Psicolingüística. In: MIRANDA, N.S.; NAME, M.C. (orgs.) Lingüística e Cognição. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005, p. 237-260. As relações com as interfaces no quadro minimalista gerativista: uma promissora aproximação com a Psicolingüística Marina R.A. Augusto * RESUMO: Este artigo defende que o modelo de língua adotado no Programa Minimalista favorece uma aproximação entre a teoria lingüística e teorias de processamento. As propriedades do sistema computacional devem ser conceptualmente motivadas, sendo que os sistemas de desempenho impõem condições que determinam a própria natureza interna desse sistema. Essa visão é incorporada não só na concepção do modelo de língua adotado, mas é também cogitada em termos da possível história evolutiva da Faculdade da Linguagem na espécie humana. Palavras-chave: Gerativismo; Minimalismo; Faculdade da Linguagem, Interfaces Introdução: o arcabouço gerativista Pode-se afirmar, grosso modo, que as ciências cognitivas têm como principal preocupação descrever e explicar as capacidades da mente humana. A evolução dos estudos cognitivos, no entanto, dificulta sua própria definição tendo em vista a multiplicidade de recortes feitos sobre os objetos de estudo e as opções teóricas que norteiam as várias vertentes ora assumidas pelo rol de disciplinas que * Departamento de Letras/LAPAL - PUC-Rio (Processo CNPq - RD 303611/2003-0). [email protected]/[email protected]

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AUGUSTO, M. R. A. As relações com as interfaces no quadro minimalista gerativista: uma promissora aproximação com a Psicolingüística. In: MIRANDA, N.S.; NAME, M.C. (orgs.) Lingüística e Cognição. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005, p. 237-260.

As relações com as interfaces no quadro minimalista gerativista:

uma promissora aproximação com a Psicolingüística

Marina R.A. Augusto*

RESUMO: Este artigo defende que o modelo de língua adotado no Programa Minimalista favorece uma aproximação entre a teoria lingüística e teorias de processamento. As propriedades do sistema computacional devem ser conceptualmente motivadas, sendo que os sistemas de desempenho impõem condições que determinam a própria natureza interna desse sistema. Essa visão é incorporada não só na concepção do modelo de língua adotado, mas é também cogitada em termos da possível história evolutiva da Faculdade da Linguagem na espécie humana.

Palavras-chave: Gerativismo; Minimalismo; Faculdade da Linguagem, Interfaces

Introdução: o arcabouço gerativista Pode-se afirmar, grosso modo, que as ciências cognitivas têm

como principal preocupação descrever e explicar as capacidades da mente humana. A evolução dos estudos cognitivos, no entanto, dificulta sua própria definição tendo em vista a multiplicidade de recortes feitos sobre os objetos de estudo e as opções teóricas que norteiam as várias vertentes ora assumidas pelo rol de disciplinas que

* Departamento de Letras/LAPAL - PUC-Rio (Processo CNPq - RD 303611/2003-0). [email protected]/[email protected]

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se interrogam sobre a cognição humana, como a psicologia, a lingüística, as neurociências, a filosofia ou a inteligência artificial. O traço comum que as identifica é a preocupação com a relação mente/cérebro.

O Gerativismo é uma das correntes lingüísticas cognitivistas. O arcabouço gerativista que começa a tomar corpo na segunda metade do século passado a partir das concepções de Chomsky (1957, 1965, 1981, 1995, 1999) desempenha, no seu primeiro momento, um papel crucial ao desafiar o domínio do paradigma behaviorista, fundando um formalismo cognitivista, conforme afirma Lycan (2003): 1

Some people say that the founding

document of twentieth-century cognitive science was Chomsky´s (1959) review of Skinner´s Verbal Behavior (...) By any measure, Chomsky was a leading figure in the victory of cognitivism over behaviorism in psychology. In philosophy too, Chomsky led the attack against Quine´s behaviorism regarding language and language learning. Moreover, Chomsky (1957, 1965) expressly computational view of language processing was a major inspiration for Functionalism in the philosophy of mind, as founded by Hilary Putnam and Jerry Fodor.

Thus, when Chomsky turned his attention specifically and explicitly to the mind-body problem, one might naturally have expected him to grant his endorsement to Functionalism, whether or not he were to say anything further. But if one had expected that, one would have been wrong.

(LYCAN, 2003, p. 11) A centralidade dada à sintaxe, nesse arcabouço, no entanto, tem

sido alvo de críticas. Argumenta-se que uma abordagem cognitiva seria limitada por um modelo que se fundamenta estritamente nas

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relações sintáticas, ignorando o sentido e as relações do sujeito com a língua. A incorporação dos mecanismos da semântica formal não o redime, uma vez que o significado não é visto como derivado da experiência humana em contextos sociais e culturais, mas resulta da projeção de elementos simbólicos formais, que se combinam, sobre o mundo. Na verdade, qualquer visada desse objeto tomando como privilegiado um determinado prisma pode parecer insatisfatório, pois uma abordagem cognitiva que vise explicar relações partindo de manipulações semânticas também não pode deixar de admitir a inter-relação entre o sentido e as construções sintáticas e as próprias limitações ao sentido que estas impõem.

Assim sendo, a discordância reside no que constitui o foco central de investigação. A apreensão de tal objeto pode ser contemplada seja por concepções modularistas da mente, como o arcabouço gerativista defende, em que a língua é um sistema cognitivo específico que interage com os demais sistemas cognitivos, seja por concepções mais holísticas, como as adotadas no arcabouço da Lingüística Cognitiva de Lakoff (1987), Langacker (1987) e Talmy (1978), que, segundo Silva (1997), assume que: “As unidades e as estruturas da linguagem são estudadas, não como se fossem entidades autônomas, mas como manifestações de capacidades cognitivas gerais, da organização conceptual, de princípios de categorização, de mecanismos de processamento e da experiência cultural, social e individual.”

As implicações da revolução cognitiva e a formulação de teorias lingüísticas de caráter mais empirista, por um lado, e mais racionalistas e modularistas, de outro, é de vital importância para as questões psicolingüísticas, no domínio da compreensão, produção e aquisição da linguagem. Segundo Corrêa (2002), a Psicolingüística pode ser caracterizada:

(...) como o ramo das ciências cognitivas que tem como objeto de investigação os processos mentais subjacentes a diferentes formas de desempenho lingüístico e que visa a explicitar os procedimentos por meio dos quais esses

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processos se realizam, assim como identificar os fatores que neles atuam. No que diz respeito à aquisição da linguagem, uma teoria psicolingüística tem, como principal objetivo, prover um modelo procedimental que dê conta do modo como a criança extrai informação lingüisticamente relevante da fala a que está exposta de forma a identificar uma língua.

(CORRÊA, 2002, p. 114) Gostaria de apontar, nesse artigo, que o Programa Minimalista,

no arcabouço gerativista, desenvolvido a partir da década de 90, abre espaço para uma aproximação promissora com a Psicolingüística no que se refere às questões do processamento e da aquisição da linguagem.

A fim de apontar as concepções adotadas nesse modelo que facilitam essa aproximação, apresento na próxima seção uma caracterização do modelo de língua concebido e os mecanismos computacionais assumidos no Programa Minimalista, especificamente na versão de 1999. A seção seguinte enfoca a definição de noções cruciais para a aquisição da linguagem: GU (Gramática Universal), princípios e parâmetros, conceitos clássicos assumidos nesse paradigma. Especula-se, em seguida, sobre o caráter modular da mente, circunscrevendo as hipóteses recentemente assumidas em Hauser, Chomsky & Fitch (2002) em um paradigma lingüístico-cognitivo, em que a especificidade do componente lingüístico é relacionada à questão da evolução biológica. Por fim, faz-se a retomada dos principais pontos na conclusão.

1. O Programa Minimalista

No Programa Minimalista, a inter-relação entre os sistemas

cognitivos relacionados à linguagem ganha uma relevância determinadora da própria arquitetura do sistema lingüístico, isto é, das propriedades do sistema computacional da linguagem humana. Recentemente, Chomsky (in: Hauser, Chomsky & Fitch 2002) tem se

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referido ao sistema computacional em si como FLN (Faculty of Language in the narrow sense) e ao conjunto deste com os sistemas cognitivos com os quais FLN faz interface como FLB (Faculty of Language in the broad sense).

A premissa básica é de que uma língua L forneça informação de determinado tipo para os sistemas cognitivos com os quais faz interface. Esses sistemas cognitivos são: o sistema sensório-motor, ou articulatório-perceptual, e o sistema conceitual-intencional, ou sistemas de pensamento. Uma língua L provê informações a esses sistemas através de níveis de representação lingüística, que são níveis de interface entre L e os sistemas de desempenho. O nível de representação lingüística que faz interface com o sistema articulatório-perceptual é PF (do inglês Phonetic Form), isto é, a interface fonológica; e o que faz interface com o sistema conceitual-intencional é LF (do inglês Logical Form), ou seja, a interface semântica. A informação disponibilizada nos níveis de representação que fazem interface com os sistemas de desempenho deve ser interpretável, legível nesses níveis, ou seja, PF só interpreta traços fonológicos e LF só interpreta traços semânticos (e traços formais interpretáveis). Em suma, os sistemas de desempenho impõem restrições de legibilidade ao sistema computacional. Uma derivação sintática que contenha elementos não legíveis aos sistemas de interface não é autorizada, isto é, não converge.

EXTERNO/ AMBIENTAL

ECOLÓGICO

FÍSICO

CULTURAL

SOCIAL

INTERNO AO ORGANISMO MEMÓRIA DIGESTÃO

RESPIRAÇÃOCIRCULAÇÃO

FLN

FLB outros

FLB conceptual- intencional

FLB articulatório- perceptual

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Figura1: Esquema dos fatores relacionados à Faculdade da Linguagem (traduzido de Hauser, Chomsky & Fitch (2002)) A Faculdade da Linguagem no sentido estrito - FLN - incorpora

o sistema computacional que é responsável pela construção de objetos sintáticos a partir de um arranjo de itens disponibilizados em uma Numeração. Sobre os itens da Numeração atuam as operações Select, Merge, Agree/Move. Spell-Out é o momento da derivação em que se separa a informação relevante a ser enviada a cada uma das interfaces: a fonética e a semântica.

NUMERAÇÃO

SPELL-OUT

LF

PF

SELECT/MERGE/AGREE-MOVE

Figura 2: Sistema computacional

A Numeração é formada por itens lexicais e seus traços. A

operação Select seleciona um item da Numeração a ser introduzido na derivação. Uma vez que a Numeração pode ser constituída de vários elementos, Select deve se aplicar mais de uma vez e se faz necessária uma outra operação que combine os itens retirados da Numeração. Essa operação que concatena objetos sintáticos, formando um novo objeto de um determinado tipo é Merge. Tanto Select quanto Merge não apresentam custo operacional, uma vez que constituem operações indispensáveis para que se dê início a uma derivação sintática. Quanto a Agree/Move, sua atuação é deflagrada pela presença de traços denominados não-interpretáveis.

Os itens lexicais são conjuntos de traços que retratam tanto propriedades fonéticas e semânticas, como também propriedades gramaticais, representadas pelos denominados traços formais do tipo:

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gênero, número, pessoa, Caso, QU, etc. A interpretabilidade dos traços é determinada pelas condições de legibilidade. O Princípio da Interpretação Plena determina que as informações disponibilizadas nos níveis de interface sejam legíveis para os sistemas de interface, isto é, devem ser relevantes para os sistemas perceptuais e articulatórios (informação fonética) ou para os sistemas de pensamento (informação semântica). Logo, traços fonéticos e traços semânticos são relevantes para os níveis de interface, enquanto os traços formais são relevantes para as operações do sistema computacional. Os traços podem ser caracterizados como intrínsecos ou opcionais. Os traços intrínsecos são aqueles que aparecem armazenados na entrada lexical (ou são determinados por propriedades explicitamente listadas no léxico); os opcionais são adicionados no momento da seleção dos itens para compor a Numeração.

A imposição de interpretabilidade dos traços, advinda dos sistemas de interface, impõe ao sistema computacional o acionamento de uma operação responsável pela eliminação de traços não-interpretáveis. Traços de mesmo tipo podem ser associados a categorias que serão relacionadas no decorrer da derivação sintática. O pareamento entre traços interpretáveis e não-interpretáveis de mesmo tipo, relacionando diferentes categorias, expressa o mecanismo de concordância sintática presente nas línguas naturais. Esse processo de concordância – que se efetiva pela atuação da operação Agree - é justamente responsável pela eliminação de traços não-interpretáveis. Por exemplo, alguns traços formais podem ser interpretados na interface semântica. Na relação entre sujeito e verbo, admite-se que tanto o sujeito DP (Sintagma Determinante) quanto o verbo na sua flexão – isto é, em INFL – possam apresentar traços de pessoa e número. No entanto, essa informação não deve ser interpretada reiteradamente em LF. Traços de pessoa e número são semanticamente interpretáveis no DP, mas não em INFL. O conjunto de traços não-interpretáveis, isto é, a informação de pessoa e número em INFL, no nosso exemplo, deve ser, portanto, eliminado antes de LF, embora o reflexo morfológico da presença desses traços possa ser visível para PF. A presença de traços não-interpretáveis é, portanto, uma aparente imperfeição do sistema que capta, entretanto, um fato das línguas humanas: a relação de concordância sintática.

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O sistema computacional pode ser visto, portanto, como um sistema que opera sobre determinadas propriedades (denominadas traços) da gramática de uma língua que se encontram expressas (ou não) em seqüências fonológicas, às quais se associa determinada interpretação semântica e que desencadeiam o estabelecimento de determinadas relações sintáticas.

Em Chomsky (1999), essa idéia é implementada assumindo-se que os traços não-interpretáveis são traços sem valor especificado que devem ser valorados no decorrer da derivação sintática. Assim, o conjunto de traços não-interpretáveis, denominado sonda, procura um conjunto de traços simila2 – o alvo - para que Agree se estabeleça e os traços não-interpretáveis, uma vez valorados, sejam eliminados para LF, embora essa valoração possa produzir efeitos visíveis em PF. Concomitantemente à atuação de Agree, a operação Move, entendida na verdade como Copy + Merge, se efetiva se uma posição de especificador for disponibilizada para abrigar a categoria que entrou nessa relação de concordância.

Ao se adotar um modelo de valoração dos traços não-interpretáveis, abre-se espaço para a incorporação de uma visão de distribuição de traços nos moldes do pressuposto pela noção de inserção tardia defendida pela Morfologia Distribuída (Halle & Marantz, 1993, Harley e Noyer 1999). Para essa teoria, as categorias sintáticas se constituem de feixes de traços sem conteúdo fonológico. A inserção de Itens de Vocabulário, que seriam o conjunto de sinais fonológicos disponíveis em uma dada língua para a expressão de morfemas abstratos, se daria apenas após a sintaxe, por meio da qual se estabeleceria uma relação entre o fragmento fonológico e uma posição sintática determinada. Assumindo-se que há traços sem valores especificados, deve-se admitir que somente após a valoração desses traços, um determinado morfema abstrato pode ser postulado, ou seja, ao entrar na derivação, os traços não-interpretáveis são traços morfológicos não associados a nenhum traço fonológico, os quais só podem ser definidos após a atuação da operação Agree.

Desse modo, o esquema apresentado anteriormente pode ser concebido com a adição de um componente morfológico situado entre Spell-Out e PF.

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NUMERAÇÃO

SPELL-OUT

LF

PF

SELECT/MERGE/AGREE-MOVE

MORF.

Figura 3: Modelo de 1999 com a incorporação de um componente

morfológico flexional Um outro aspecto que é crucial apontar, em relação ao modelo

adotado a partir de 1998, diz respeito à incorporação da noção de fase. A derivação procede por sub-arranjos de itens lexicais disponibilizados na Numeração. Uma fase equivale a vP (domínio estrutural em que as relações temáticas se estabelecem) ou CP (nível proposicional). Assim, a derivação procede por blocos, que alimentam dinamicamente os níveis de interface, isto é, pode-se assumir que há múltiplas atuações de Spell-Out no decorrer da derivação sintática. Uma fase constitui um domínio impenetrável para as operações do sistema computacional deflagradas a partir do acesso ao próximo sub-arranjo disponibilizado em uma Numeração.

O quadro que se tem no Programa Minimalista é, portanto, o da atuação de um sistema computacional responsável pela derivação das expressões lingüísticas, de caráter eminentemente derivacional. Os sistemas de desempenho são concebidos como externos à Faculdade da Linguagem (no sentido estrito). No entanto, o sistema computacional é tomado como uma resposta ótima às imposições advindas destes sistemas. Assim, as condições impostas pelas interfaces podem determinar de maneira crucial a natureza interna do sistema computacional, ou induzir imperfeições que devem ser satisfeitas de uma maneira ótima. A presença de traços não-interpretáveis constitui um exemplo de imperfeição. Estes não podem ser lidos pelos sistemas de desempenho, devendo ser eliminados durante o processo de derivação sintática, o que é alcançado pela

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atuação da operação de concordância Agree. Esse sistema de concordância permite a valoração dos traços não-interpretáveis, os quais são eliminados por Spell-Out na transferência da estrutura para o nível de representação LF, a interface semântica, e associados a um morfema abstrato, por outro lado, na componente morfológica, a fim de poderem ser convertidos em informação fonético-fonológica, para o nível de representação PF, que faz interface com o sistema articulatório–perceptual.

Essa concepção do modelo permite distinguir processos distintos: (i) processos pré-sintáticos são os relacionados à formação da Numeração que depende da constituição do léxico e a própria caracterização dos traços como intrínsecos ou opcionais e interpretáveis (ou não), isto é, são processos dependentes da identificação dos traços relevantes de cada língua e sua incorporação ao léxico dessa língua; (ii) processos sintáticos são aqueles que envolvem as operações do sistema computacional em si, que operam uniformemente para todas as línguas, e (iii) processos pós-sintáticos são os relacionados ao componente morfológico, isto é, à questão da associação de Itens de Vocabulário a determinados morfemas abstratos, entendidos como o conjunto de certos traços valorados.

Poder distinguir entre esses processos parece ser bastante interessante frente a questões de processamento que apontam para dissociações entre aspectos semânticos, fonológicos e morfológicos (ver por exemplo, van Berkum (1997) e referências). Substituições nesses níveis se refletem também nos lapsos de fala espontânea e os chamados fenômenos de slips of the tongue. A Neurociência Cognitiva também tem apontado para a relevância de estabelecer dissociações entre os vários fenômenos (Friederici, 2001). Outro aspecto que contribui para a aproximação com teorias de processamento diz respeito à incorporação da noção de fase, que pode ter alguma equivalência com a noção de memória de trabalho ou janelas do processador lingüístico (ver Weinberg, 1999; Fodor, 1998). Modelos de processamento, como o de Levelt (1989), por exemplo, incorporam a noção de um formulador sintático, cuja caracterização se mostra bastante próxima do assumido no modelo de língua adotado pelo Programa Minimalista (ver Corrêa, 2002; Corrêa, neste volume; Rodrigues, neste volume).

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2. Noções cruciais para a aquisição da linguagem: GU, princípios

e parâmetros A fim de focalizar as implicações que a caracterização da

Faculdade da Linguagem no modelo adotado pelo Programa Minimalista traz para a aquisição da linguagem é imprescindível remeter aos conceitos de GU (Gramática Universal), princípios e parâmetros.

O problema lógico da aquisição da linguagem, ou pobreza de estímulo, consistiu em um norteador das preocupações assumidas pelos gerativistas. O fato de crianças dominarem uma língua natural com surpreendente rapidez, apesar da ausência de evidência negativa, da freqüência com que sentenças incompletas ou interrompidas são usadas pelos adultos, somado ao fato de que o input a que a criança está efetivamente exposta é finito, mas um falante nativo de uma dada língua pode potencialmente produzir uma gama infinita de sentenças que pertencem à língua levaram os gerativistas a assumir a noção de GU (Gramática Universal). Isto é, a informação que se faz necessária e não está disponibilizada no input lingüístico recebido pela criança é atribuída a princípios lingüísticos inatos. Assume-se, assim, que a espécie humana é dotada de uma Faculdade da Linguagem, cujo estado inicial é definido como a GU, caracterizada como o locus das propriedades invariantes que caracterizam as línguas naturais. Cabe a uma teoria da aquisição explicitar de que modo a criança usa a experiência lingüística para atingir um estado do conhecimento lingüístico identificado como uma gramática específica de dada língua (língua-I). A fim de alcançar essa meta, a teoria gerativista defende, conforme aponta Kato (2001, p. 101) que “o estado inicial já deve restringir o que é invariante nas línguas naturais e, ainda, restringir as opções abertas para serem definidas pela experiência, isto é, pela variação lingüística que a criança vai encontrar. Os Princípios formulam as propriedades invariantes das línguas e os Parâmetros, as opções abertas”.

Ao longo do desenvolvimento da teoria gerativista, o conceito de parâmetros tem sido depurado. Em um primeiro momento, os parâmetros foram relacionados aos princípios da gramática.

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Posteriormente, os parâmetros foram associados a propriedades do léxico, mais especificamente às categorias funcionais. Sobre a evolução da noção de parâmetros, ver Kato (2002), que conclui o seguinte:

Apesar dos constantes questionamentos e reformulações na teoria como um todo e nas concepções sobre Parâmetro em particular, os ganhos empíricos da teoria a partir da introdução do conceito de Parâmetro são inquestionáveis. A sintaxe enveredou por pesquisas diacrônicas, por estudos comparativos e por projetos de aquisição, mostrando que, enquanto a arquitetura da gramática é invariante em seus aspectos abstratos, a diversidade morfo-fonológica, que faz o estofo da língua, apresenta uma incrível riqueza aparente, desvendada a cada dia pela teoria como uma função de um número limitado e previsível de Parâmetros.

(KATO, 2002, p. 335) A partir do Programa Minimalista, essa concepção é reforçada.

Chomsky (1998) assume que a noção de traços não é só relevante para a derivação das expressões lingüísticas (III e IV), mas também para a especificação da língua (I e II), propondo o seguinte quadro: 3

(I) Select [F] from the universal feature set

F (II) Select LEX, assembling features from

[F] (III) Select LA from LEX (IV) Map LA to EXP, with no recourse to

[F] for narrow syntax

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Figura 4: Traços na especificação da língua e na derivação de expressões

A parametrização é, portanto, concebida como decorrente do

conjunto de traços selecionados pelas gramáticas particulares e a maneira como esses traços se associam a itens lexicais, sem se deixar de levar em conta que a interpretabilidade desses traços é determinada pelas condições de legibilidade. Nesse sentido, as categorias funcionais e sua expressão morfológica podem ser vistas como o local privilegiado para refletir as implicações sintáticas da presença de determinados traços na língua.

Tomando-se o arcabouço minimalista, conforme exposto na seção anterior, pode-se afirmar, então, que adquirir uma língua demanda, entre outros aspectos, determinar o tipo de traços presentes na língua de exposição, seu caráter intrínseco ou opcional, assim como decidir sobre a interpretabilidade ou não desses traços em relação às categorias envolvidas, com conseqüente acionamento de operações do sistema computacional, que estabelecem relações de concordância entre itens da língua, que podem (ou não) deflagrar movimento de categorias. Além disso, deve-se assumir que no processo de aquisição da língua a criança deve formar os respectivos paradigmas morfológicos pertinentes. Essa caracterização remete claramente a aspectos pré-sintáticos, sintáticos propriamente ditos e pós-sintáticos, conforme exposição anterior.

Passemos a uma caracterização das questões envolvidas nesses aspectos. A apreensão do léxico, por exemplo, passa necessariamente pela identificação dos traços fonéticos, semânticos e formais (gramaticais). Em termos da operacionalização do sistema computacional, a seleção de itens lexicais e de seus respectivos traços para a formação da Numeração constitui um aspecto pré-sintático (a apreensão do léxico pode, no entanto, ser mediada pela sintaxe, ver mais abaixo). No entanto, deve-se salientar que a percepção da relevância da presença de certos traços (responsáveis pela variação paramétrica em última instância) e da sua associação a determinadas categorias pode não ocorrer, muito possivelmente, instantaneamente, isto é, durante o processo de aquisição, a especificação dos itens lexicais e de seus respectivos traços pode não refletir adequadamente

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as relações presentes na língua de exposição da criança, 4 ou seja, aspectos que podemos denominar pré-sintáticos impõem demandas consideráveis no processo de aquisição.

Outro aspecto a considerar diz respeito à ausência de morfemas ou usos errôneos, característicos da fala infantil, que podem ser alocados, segundo essa concepção de modelo de língua, como um fator pós-sintático, no sentido de que um certo valor de um traço (um morfema abstrato) aciona a associação de determinado Item de Vocabulário, o que ocorre depois que todas as operações efetivamente sintáticas tenham sido deflagradas, ou seja, essa ausência morfológica não pode ser tomada como evidência da não atuação da operação de concordância Agree. Enfim, há também que se levar em conta que se demanda da criança a formação de paradigmas morfológicos pertinentes para a língua de exposição.

As operações efetivamente sintáticas são deflagradas pela presença de itens lexicais associados a traços formais com certas características, isto é, a formação da Numeração determina o tipo de operações a serem acionadas. A variação lingüística fica, assim, caracterizada nesse modelo e em relação à aquisição da linguagem, prevê-se que somente uma adequada especificação dos itens funcionais e lexicais da língua e os traços envolvidos é que garantirão que o sistema computacional seja acionado em condições idênticas àquelas em atuação em derivações equivalentes do adulto.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a caracterização do que é efetivamente sintático sofre uma drástica revisão. A Faculdade da Linguagem no sentido estrito incorpora o sistema computacional em si, cuja principal característica é a recursividade, alcançada pela atuação da operação Merge. Essa operação toma dois elementos, combinando-os para formar um objeto sintático mais complexo. Esse objeto, por sua vez, pode ser combinado com outro elemento e assim iterativamente. Logo, recursividade parece poder ser derivada da própria atuação da operação Merge. Também é derivada a noção de c-comando que espelha a assimetria instaurada na atuação de Merge, uma vez que um dos elementos impõe restrições ao tipo de elementos que possam ser com ele combinados para formar o objeto sintático mais complexo. 5 A noção de c-comando, ao espelhar uma relação assimétrica, tem sido tomada como relevante para responder a uma

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outra imposição advinda da interface fonólogica – a imposição temporal de ordenação entre constituintes.6 As demais operações presentes no sistema computacional, Agree e Move, conforme já discutido, são acionadas pela presença de determinados traços associados aos itens lexicais.

Em um momento anterior ao início da derivação sintática em si, há a seleção dos itens lexicais e seus respectivos traços para a formação da Numeração, o que depende crucialmente da formação de um léxico. Ao final da derivação sintática propriamente dita, há a associação de morfemas a conjuntos de traços com determinados valores, o que também depende da formação de paradigmas morfológicos e sua incorporação ao léxico.

Em suma, para que a GU - o estado inicial da Faculdade da Linguagem - identificada como essa capacidade de operacionalização de um sistema computacional, possa efetivamente ser posta em ação e um estado estável seja alcançado, isto é, uma língua-I, faz-se necessária a aquisição de um léxico sobre o qual esse sistema opere. Segundo Corrêa, Name & Ferrari-Neto (2004), no entanto, a própria operacionalização do sistema computacional pode ser instrumental para a identificação e categorização dos elementos do léxico:

Uma vez que a fala a que a criança tem acesso corresponde ao resultado da expressão de informação fonológica e semântica nas interfaces em função das propriedades gramaticais dos traços formais do léxico, considera-se que o modelo de língua, assim concebido, permite que se entenda bootstrapping como a identificação, por parte da criança, de informação de interface que, dada uma capacidade cognitiva básica de estabelecimento de padrões recorrentes, promove a inicialização do sistema computacional lingüístico universal assumido. Este, uma vez posto em operação, torna-se instrumental à categorização dos elementos do léxico delimitados nos dados da fala, e à

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identificação das propriedades dos traços lexicais que caracterizam a língua em questão.

(CORRÊA, NAME & FERRARI-NETO, 2004, p. 126)

Fazer a identificação dos traços que caracterizam a língua e

incorporá-los ao léxico eqüivale a fixar os parâmetros da língua em questão. O Programa Minimalista toma, portanto, a variação paramétrica como estando restrita a características do léxico, mais especificamente às propriedades morfológicas (Chomsky 1999, 2001).

Por fim, pode-se argumentar que a distinção entre aspectos sintáticos, pré-sintáticos e pós-sintáticos permite defender que o sistema computacional opera uniformemente, estando disponível para a criança desde o início do desenvolvimento lingüístico; as limitações podendo estar restritas a questões de ordem pré ou pós-sintáticas, intimamente relacionadas aos parâmetros particulares de cada língua e sua manifestação morfológica, conforme discussão aqui empreendida.

Em relação aos princípios da GU, também se verifica que estes ganham uma nova concepção no Programa Minimalista. Enquanto no modelo de GB (do inglês, Government and Binding – versão anterior ao Minimalismo, também conhecido como Modelo P&P - Princípios & Parâmetros), fazia-se referência a uma série de princípios bastante específicos, tais como: Princípio da Projeção, Princípios de Ligação, Princípio de Subjacência, Princípio das Categorias Vazias, 7 pode-se, no Programa Minimalista, identificar os princípios da GU, segundo duas categorias: princípios relativos ao mecanismo de derivação sintática, os chamados Princípios de Economia e as Condições de Localidade, e aqueles relativos aos níveis de representação que fazem interface com os sistemas de desempenho - o Princípio de Interpretabilidade Plena ou Condições de Interface (Bare Output Conditions) e a Condição de Inclusividade. Estes últimos são responsáveis por estabelecer “the relation of language to other faculties of the mind/brain”. 8 (Chomsky, 1995:27), enquanto os primeiros restringem a aplicação das operações do sistema computacional que, em última instância, são deflagradas por imposições advindas das interfaces. A teoria gerativista tem se pautado sobre a “hypothesis that UG is a simple and elegant theory,

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with fundamental principles that have an intuitive character and broad generality.” (Chomsky, 1995:29). Essa busca por generalidade tem sido uma meta no Programa Minimalista, que parece estar alcançando um considerável êxito nesse sentido.

Para finalizar, a caracterização da GU - mais restrita e enxuta -, dos princípios, de caráter mais geral, e dos parâmetros, definidos sobre propriedades do léxico, nesse modelo, contribuem significativamente para a aproximação entre a teoria lingüística e teorias psicolingüísticas, no que concerne à investigação sobre a aquisição da linguagem.

3. Questões evolutivas sobre a linguagem

Foi apontado que teorias lingüísticas apresentam concepções

distintas em relação ao modo como se contempla a linguagem na sua relação com a mente/cérebro: concepções modularistas da mente defendem que a linguagem é um sistema cognitivo específico que interage com os demais sistemas cognitivos, enquanto concepções mais holísticas assumem que a linguagem deve ser estudada como manifestação de capacidades cognitivas gerais.

A concepção modularista atribui uma especificidade à linguagem que tem se traduzido, no arcabouço gerativista, na concepção de Faculdade da Linguagem e Gramática Universal. Essa especialização impõe uma séria questão para a história da evolução da espécie humana, no sentido de se determinar como essa característica foi adquirida.

Uma hipótese acerca da evolução da linguagem assume que esta é uma adaptação ao contexto social, caracterizada por certas propriedades universais e possibilitada e, ao mesmo tempo, restringida por evoluções na estrutura do cérebro. Nesse sentido, pressões comunicativas estariam na base de tal evolução. Isso, no entanto, traz dificuldades para concepções modularistas da linguagem. Como pressões comunicativas poderiam influenciar um módulo especificamente lingüístico, sendo este pré-requisito para a geração de expressões lingüísticas?

Turner (1996) questiona: “how could language have evolved as a more or less discrete module given that the first proto-linguistic

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utterances would have had little or no adaptive value in the absence of other proto-speakers?” (apud Richardson (1998)). Segundo Richardson, para Turner, certa concessão à tradição chomskyana é necessária, e o enigma pode ser resolvido:

viewing the mind as literary before it is linguistic. If humans had already developed a viable means of communication based on projecting elementary grammatical constructions from basic spatial stories, the "backbone" of language was already in place, and any chance mutation that carried with it enhanced linguistic abilities would have been selected for in an environment that rewarded successful communication (p. 145). That Turner chooses to make this argument at all represents a concession to the Chomskyan tradition, implying that the evidence for some innate discrete linguistic ability is now compelling enough to demand a "both and" approach to whether language is modular or continuous with general cognition.

(RICHARDSON, 1998)

Recentemente, Hauser, Chomsky & Fitch (2002) propuseram a

investigação de uma hipótese acerca da evolução da linguagem em que à noção de adaptação se soma a de exaptação (casos em que a característica de um organismo é cooptada para um uso para o qual não foi modificada (adaptada)).

A concepção da Faculdade da Linguagem com a distinção FLN e FLB (ver figura 1) permite hipotetizar que a característica de recursividade presente em FLN possa ser o único componente essencialmente específico da Faculdade da Linguagem na espécie humana e, portanto, possibilita levantar uma série de questões acerca desse mecanismo e como ele teria evoluído na espécie humana independentemente de questões acerca da comunicação, que envolvem

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FLB e a relação entre as computações lingüísticas e as interfaces sensório-motora e conceitual-intencional. Os autores afirmam:

It is possible, as we discuss below, that key computational capacities evolved for reasons other than communication but, after they proved to have utility in communication, were altered because of constraints imposed at both the periphery (e.g., what we can hear and say or see and sign, the rapidity with which the auditory cortex can process rapid temporal and spectral changes) and more central levels (e.g., conceptual and cognitive structures, pragmatics, memory limitations). (HAUSER, CHOMSKY & FITCH, 2002:1569-

1570) Nesse artigo, os autores apontam uma série de estudos

comparativos em que aspectos da cognição e da linguagem são avaliados em outras espécies, argumentando que os resultados apontam para o fato de que FLB pode ser tomada como sendo compartilhada com outras espécies, enquanto FLN parece ser específica para a espécie humana. Os estudos citados investigam a característica da recursividade, tanto no domínio da discriminação numérica quanto em relação à capacidade de aprendizagem de dependências hierárquicas de longa-distância, cujos resultados apontam para uma flagrante superioridade das crianças em relação a outros primatas, o que evidencia diferenças relevantes entre os animais e os humanos no que concerne a FLN.

No entanto, se recursividade, característica definidora da especificidade do módulo lingüístico, pode ser tomada como tendo evoluído para dar conta de outras questões como navegação ou quantificação numérica, só posteriormente tendo sido cooptada para o uso comunicativo, pode-se aventar a hipótese de que outras espécies possam apresentar essa característica, embora em um domínio não-comunicativo. A pergunta passaria a ser, então, por que os humanos teriam aproveitado esse poder recursivo para criar um sistema de

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comunicação do tipo open-ended. A seguir algumas especulações dos autores:

One possibility, consistent with current thinking in the cognitive sciences, is that recursion in animals represents a modular system designed for a particular function (e.g., navigation) and impenetrable with respect to other systems. During evolution, the modular and highly domain-specific system of recursion may have become penetrable and domain-general. This opened the way for humans, perhaps uniquely, to apply the power of recursion to other problems. This change from domain-specific to domain-general may have been guided by particular selective pressures, unique to our evolutionary past, or as a consequence (by-product) of other kinds of neural reorganization.

(HAUSER, CHOMSKY & FITCH, 2002, p. 1578)

Nesse sentido, a especificidade atribuída à Faculdade da

Linguagem seria reavaliada em termos de uma capacidade cognitiva mais geral, que pode ter sido direcionada para a atividade lingüística por se mostrar adequada às imposições advindas dos sistemas externos – as interfaces – colocadas em uso para a comunicação.

A relevância dada à interação entre o sistema computacional em si – o módulo especificamente lingüístico - e domínios mais gerais é contemplada tanto na concepção atual da Faculdade da Linguagem, no arcabouço minimalista, como também em relação a questões evolutivas. O fato é que o sistema lingüístico é fortemente enxugado em termos de suas propriedades especializadas, passando a ser visto como uma resposta às imposições advindas das interfaces. É esse aspecto, particularmente, que favorece a aproximação com a Psicolingüística.

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Conclusão

Este artigo apontou que a arquitetura do sistema computacional conforme concebida no Programa Minimalista leva a uma concepção de modelo de língua que favorece uma aproximação entre a teoria lingüística e a psicolingüística, uma vez que motivam-se conceptualmente as propriedades internas do sistema computacional a partir de imposições advindas dos sistemas de interface com o desempenho.

O modelo de língua, segundo Chomsky (1999), toma um léxico, caracterizado por propriedades semânticas, fonológicas e gramaticais, que alimenta um sistema computacional, dotado de operações justificadas por demandas dos sistemas cognitivos com os quais o sistema computacional faz interface: o sistema articulatório-perceptual (informação fonética) e os sistemas de pensamento (informação semântica).

A adição de um componente morfológico permite a caracterização do sistema computacional em si como envolvendo processos pré-sintáticos – momento em que se daria a seleção de itens lexicais -, as operações efetivamente sintáticas, e as operações pós-sintáticas, relacionadas ao componente morfológico, no qual se efetiva a associação de morfemas flexionais, próprios para cada língua, ao output da derivação sintática a ser encaminhado ao sistema articulatório-perceptual.

O problema lógico da aquisição da linguagem levou os gerativistas a lançarem mão da noção de Gramática Universal – GU – entendida como o conjunto de princípios lingüísticos inatos, aos quais se associou a noção de parâmetros, responsável por definir a gama de possibilidades da diversidade lingüística, restringindo, assim, as opções a serem definidas pela criança no contato com o input lingüístico. A definição do número de princípios ou parâmetros efetivamente necessários nunca conseguiu ser equacionada no modelo de Princípios & Parâmetros. O Minimalismo, no entanto, promove uma reavaliação considerável dessas noções, em busca de uma teoria mais elegante e simples, enxugando-se, assim, consideravelmente a caracterização da GU, atribuindo-se um caráter mais geral aos princípios admitidos e assumindo que a fixação de parâmetros se

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restringe à questão dos traços flexionais não-interpretáveis e sua manifestação morfológica.

A relevância dada à inter-relação entre os sistemas cognitivos relacionados à linguagem e as propriedades do sistema computacional vem sendo também contemplada em relação a questões evolutivas. A principal característica do sistema computacional – a recursividade - que permite, a partir de um número limitado de elementos gerar potencialmente um conjunto infinito de expressões, não é exclusiva do domínio lingüístico, sendo compartilhada com outros domínios cognitivos. Nesse sentido, a evolução desse recurso pode ter se dado por razões diversas da comunicação, mas uma vez que tenha se mostrado relevante nesse domínio, adquiriram-se particularidades que teriam sido impostas pelos sistemas de desempenho colocados em uso na comunicação.

Enfim, o Minimalismo tem enfatizado a relevância de se considerar as demandas dos sistemas de desempenho na caracterização do próprio sistema computacional, tornando promissora uma possível articulação entre modelo de língua e sistemas de desempenho. Abstract: This paper assumes that the architecture of the computational system of the human language - CHL – in Minimalism favors its incorporation by Psycholinguistic theories of parsing and language acquisition. The features presented by such system are conceptually motivated and assumed to be a kind of optimal solution to attend the constraints imposed by the interfaces. That is assumed not only for the computational system per se but also considered in the history of natural selection in human evolution.

Keywords: Generativism; Minimalism; Language Faculty; Interfaces Notas

1 Chomsky, no entanto, tende a rejeitar essa associação. Em entrevista concedida a Günther

Grewendorf (1994), a relação é aventada:

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Question: It has been claimed by representatives of the generative paradigm that linguistics can be ascribed a foundational role among the cognitive sciences. Don't you think that this claim is a bit overstated? Chomsky: I'm not familiar with such claims, but I see no merit to them. As far as I understand these matters, the language faculty seems to have quite different properties from other cognitive systems, and thus plays no foundational role (whatever exactly that might mean).

2 Esse mecanismo não se aplica ao traço de Caso, cuja valoração se dá como reflexo da relação de concordância que se estabelece entre os traços de número e pessoa do elemento a receber Caso e outros elementos que determinarão o valor do Caso: nominativo, acusativo, oblíquo, genitivo, etc.

3 F significa traços (do inglês, features); LEX, léxico; LA, arranjo lexical (lexical array) e EXP, expressões lingüísticas.

4 Embora se defenda que a aquisição da linguagem parte de um estado inicial e alcança um estado final, estável, deve-se admitir que a formação do léxico mental é um processo contínuo, sendo que equívocos em relação ao conjunto de traços associados a determinado item lexical podem ocorrer, mesmo em etapas posteriores à da aquisição infantil (atribuições equivocadas de gênero a palavras adquiridas na fase adulta ocorrem – como, por exemplo, em relação a o/a libido).

5 Tomando a exemplificação oferecida em Chomsky (1995:35): α c-commands β if α does not dominate β and every γ that dominates α dominates β. Thus,

in (15) [(i) a seguir] B c-commands C, F, G; C c-commands B, D, E; D c-commands E and conversely; F c-commands G and conversely.

(i)

B C

A

D E F G 6 Kayne (1994) propõe o Axioma de Correspondência Linear (LCA, sigla do inglês) em que

se toma o conceito de c-comando para derivar a ordenação entre os constituintes. 7 O Princípio de Projeção (que determinava a construção da Estrutura-D, em P&P) é

abandonado. Pure Merge, responsável por combinar elementos segundo restrições temáticas, é adotado. O Princípio de Subjacência e o Princípio das Categorias Vazias são questionados como primitivos nesse modelo também. A intenção é derivar as restrições de movimento a partir da própria mecânica do sistema computacional (Nunes & Uriagereka (2000) é um exemplo de implementação dessa idéia). Os Princípios de Ligação também são deslocados da sintaxe propriamente dita para a interface conceitual-intencional.

8 As definições para os princípios são fornecidas a seguir: Princípio de Interpretabilidade Plena Os objetos sintáticos que alcançam as interfaces devem se constituir de “elements that have

a uniform, language-independent interpretation at the interface (...) providing appropriate instructions to the performance systems.” (Chomsky 1995:194)

Bare Output Conditions Conditions imposed by the systems that make use of the information provided by CHL,(...)

the information provided by L has to be accommodated to the human apparatus.” (Chosmky, 1995:221)

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Condição de Inclusividade “any structure formed by the computation (in particular, π and λ) is constituted of elements

already present in the lexical items selected for N; no new objects are added in the course of computation apart from rearrangements of lexical properties (in particular, no indices, bar levels in the sense of X-bar theory, etc.; see note 7). Let us assume that this condition holds (virtually) of the computation from N to LF (N → λ); standard theories take it to be radically false for the computation to PF.” (Chomsky 1995:228)

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