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FACULDADE MERIDIONAL - IMED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO - PPGD CURSO DE MESTRADO EM DIREITO AS DEMANDAS POR PUNIÇÃO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA: REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E DESLEGITIMAÇÃO DO SISTEMA PENAL RENATO DE LEMOS Passo Fundo, 2015

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FACULDADE MERIDIONAL - IMED

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO - PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

AS DEMANDAS POR PUNIÇÃO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA:

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E DESLEGITIMAÇÃO DO

SISTEMA PENAL

RENATO DE LEMOS

Passo Fundo, 2015

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COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL - IMED

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO - PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

AS DEMANDAS POR PUNIÇÃO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA:

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E DESLEGITIMAÇÃO DO

SISTEMA PENAL

RENATO DE LEMOS

Dissertação submetida ao Curso de

Mestrado em Direito do Complexo de

Ensino Superior Meridional – IMED,

como requisito parcial à obtenção do

Título de Mestre em Direito.

Orientadora: Professora Doutora Marília De Nardin Budó

Passo Fundo, 2015

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CIP – Catalogação na Publicação

L557d Lemos, Renato de

As demandas por punição na democracia brasileira : redução da maioridade penal e deslegitimização do sistema penal / Renato de Lemos. – 2015.

84 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade Meridional – IMED, Passo Fundo, 2015.

Orientador: Professora Doutora Marília de Nardin Budó.

1. Direito penal. 2. Pena (Direito). 3. Democracia. I. Budó, Marília de Nardin, orientadora. II. Título.

CDU: 343

Catalogação: Bibliotecária Angela Saadi Machado - CRB 10/1857

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Dedico este trabalho a todos os que, de alguma forma ou de outra,

incentivaram-me a buscar o conhecimento.

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AGRADECIMENTOS

Inicialmente, agradeço aos meus pais Raul e Lúcia, que desde cedo me

proporcionaram o caráter necessário para o enfrentamento da vida.

Agradeço a minha companheira Letícia, pelas horas que passei ausente, pesquisando e

escrevendo, a qual, ainda diante da “minha ausência espiritual”, incentivou-me a concluir o

curso de mestrado, dividindo, suportando e me ajudando a superar as angústias inerentes ao

ofício.

Agradeço aos meus familiares, de um modo geral, pela compreensão das minhas

ausências.

Ao professor Dr. Nereu José Giacomolli, que no início do ano de 2010, me

proporcionou o primeiro contato com o curso de mestrado em ciências criminais, ascendendo

em mim o espírito acadêmico.

Ao amigo Msc. José Carlos Kraemer Bortolotti, que no ano de 2011 fez a ousadia de

me convidar para lecionar no magistério superior.

Ao meu sócio de escritório, Norberto Azambuja Ilha Filho, pela compreensão das

minhas ausências e por ter “segurado a barra” enquanto eu me dedicava ao mestrado.

Aos meus colegas de escritório, que suportaram e entenderam o meu mau humor, em

especial nesses últimos dias de curso, me ajudando a superar o estresse emocional que uma

dissertação provoca.

À minha orientadora, Dra. Marilia De Nardin Budó, não só pelas magníficas

orientações e aulas que me proporcionou, mas por ter se tornado uma amiga, aconselhando-

me nos momentos difíceis do curso.

A todos os professores do PPGD IMED, os quais provocaram dentro de mim um novo

olhar para o mundo, mais reflexivo e, sobretudo, humano, em especial ao Coordenador Dr.

Márcio Ricardo Staffen, por ter acreditado no meu potencial.

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À colaboradora da IMED Morgana Rezer, que como nenhuma outra pessoa soube me

orientar e resolver, de maneira rápida, todos os percalços de ordem administrativa que

enfrentei junto ao PPGD/IMED.

Por fim, aos meus colegas do mestrado, que partilharam comigo seu conhecimento e

aos meus amigos em geral, que mesmo diante da minha ausência, jamais me esqueceram.

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Valeu a pena, ê ê

Sou pescador de ilusões (O RAPPA)

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RESUMO

A partir da ideia de “Democracia e Sustentabilidade” e, vinculada à linha de pesquisa

“Mecanismos de efetivação da democracia e sustentabilidade”, a presente dissertação trata das

demandas por punição na democracia brasileira representadas pelas propostas de emenda à

Constituição Federal que tenham por objetivo a redução da maioridade penal e a

deslegitimação do sistema penal. Para tanto, a pesquisa parte do marco teórico da

criminologia crítica para demonstrar as influências que as diversas agências de controle social

exercem na formação do estereótipo do “adolescente delinquente”, cujos discursos são

capitaneados pelos personagens do Congresso Nacional quando da produção legislativa

nessas demandas. O trabalho se divide em duas partes. Na primeira, identifica-se o marco

teórico da criminologia crítica, bem como do paradigma da proteção integral no direito da

criança e do adolescente. Na segunda parte é exposta a análise dos discursos parlamentares

contidos na tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 171 de 1993. A partir da

teoria fundamentada nos dados, que permitiu a análise da justificativa da proposta, dos

pareceres das comissões, bem como dos votos em separado, foi possível verificar que a

demanda pela redução da maioridade penal parte da representação do adolescente como um

“inimigo” que deve ser banido do convívio social, em contradição, portanto, a sua

representação como sujeito de direitos. No viés contido na proposta e contra argumentado nos

votos em separado, a solução para a redução dos atos infracionais violentos praticados por

Adolescentes encontrar-se-ia na redução da maioridade penal, ignorando-se as reais causas da

criminalização, que dificilmente são debatidas no Congresso. A insustentabilidade do sistema

carcerário e mesmo do sistema penal em geral, expostos claramente a partir das denúncias de

sua deslegitimação pela criminologia crítica, demonstra que esse tipo de proposta se

fundamenta em ilusões sobre as funções do direito penal. A sua instrumentalização para atuar

em uma área que proporciona graves violações de direitos conduz a democracia para

caminhos obscuros, afastando-a cada vez mais da ideia de sustentabilidade democrática.

Palavras-chave: Demandas por redução da maioridade penal. Representação da criança e do

adolescente.

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ABSTRACT

Starting from the idea of “Democracy and Sustainability” and, linked to the research

line “Effectiveness Mechanisms of the Sustainable Democracy” the present dissertation

addresses the demands for punition in Brazilian democracy, represented by the propositions of

amendments to the Federal Constituition that have as their focus the reduction of criminal

adulthood age and the delegitimization of the criminal system. For that, the study starts form

the theoretical mark of critical criminology in order to present the influences that the many

agencies of social control have on the formation of the “delinquent adolescent” stereotype,

whose speeches are leaded by National Congress agents when producing law on these

demands. The study is divided into two parts. In the first one the theoretical mark of critical

criminology is identified, as well as the paradigm of the total protection of children law. The

second part exposes the analysis of parliament speeches contained in the conduct of the

Constitutional Amendment Proposal n. 171/1993. Through the theory fundamented in the

data, which allowed the analysis of the justification of the proposition, the commissions’

opinions, as well as the separate votes, it was possible to verify that the demand for reduction

of criminal adulthood age parts from the representation of the adolescent seen as an enemy,

who has to be banned from social living, in a contradiction, therefore, to its representation as a

subject to rights. Following the ideas contained in the proposal and rebated in the separate

votes, the solution for the reduction of the violent acts committed by underage persons would

be encountered in the reduction of the criminal adulthood age, ignoring the real causes of

criminalization, those being hardly ever discussed by the Congress. The unsustainability of

the prison system and even of the criminal system in general, clearly exposed from the

denounces of its desligitimization by the critical criminology shows that this sort of proposal

is based upon illusions about the functions of criminal law. Its instrumentalization in order to

act in an area that causes serious violations of rights conducts democracy to obscure paths,

deviating it form the idea of democratic sustainability.

KEY WORDS: Reduction for criminal adulthood age demands – representation of children

and adolescent

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

1 DEMOCRACIA E PUNIÇÃO: A INVISIBILIDADE DA SELETIVIDADE PENAL

NAS DEMANDAS SOCIAIS POR ENCARCERAMENTO ............................................. 17

1.1 DO PARADIGMA ETIOLÓGICO AO PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL: A

INTERAÇÃO DAS AGÊNCIAS DE CONTROLE SOCIAL ................................................. 19

1.2 A GÊNESE SOBRE A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA LEGISLAÇÃO

BRASILEIRA ........................................................................................................................... 36

1.2.1 Concepções históricas sobre a criança e o adolescente no Brasil ....................... 36

1.2.2 O Código Criminal de 1830 ............................................................................... 38

1.2.3 Brasil República – o Código Penal de 1890 ....................................................... 40

1.2.4 A era Vargas ....................................................................................................... 42

1.2.5 O lançamento do embrião – Declaração dos Direitos da Criança pela ONU ..... 44

1.2.6 A eclosão do embrião – Doutrina da Proteção Integral (?) ................................ 47

2 A REPRESENTAÇÃO DO ADOLESCENTE NA PEC 171/1993 DA CÂMARA DOS

DEPUTADOS FEDERAIS .................................................................................................... 51

2.1 ANÁLISE DAS PROPOSTAS DE EMENDA CONSTITUCIONAL A PARTIR DE 1988

.................................................................................................................................................. 51

2.1.1 Representação do problema social enfrentado ................................................... 58

2.1.1.1 Maturidade precoce do adolescente contemporâneo ...................................... 58

2.1.1.2 Aumento da criminalidade juvenil .................................................................. 61

2.1.1.3 Demanda da sociedade amedrontada e injustiçada ......................................... 65

2.1.2.1 Impunidade dos adolescentes .......................................................................... 67

2.1.2.2 Falência de outros controles sociais ................................................................ 68

2.1.2.3 Ausência de políticas públicas e sociais .......................................................... 68

2.1.3 Soluções .............................................................................................................. 69

2.1.3.1 A redução da maioridade penal como solução ............................................... 70

2.1.3.2 Implementação de políticas públicas e sociais de inclusão do adolescente .... 71

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2.2 A REPRESENTAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA PEC 171/1993 ...... 73

2.2.1 Discurso da punição absoluta ............................................................................. 73

2.2.2 Discurso da punição garantista ........................................................................... 75

2.2.3 Discurso da proteção .......................................................................................... 76

2.2.4 Discurso do protagonismo emancipador ............................................................ 77

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 79

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 81

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INTRODUÇÃO

Em um Estado Democrático de Direito, a democracia pode ser representada e exercida

de várias formas, destacando-se a produção legislativa que visa a atender aos anseios da

sociedade em geral e proporcionando-lhe o bem-estar através da busca incessante da

concretização dos direitos fundamentais. Nesse viés, a democracia precisa atender aos anseios

das mais variadas demandas sociais, e sempre procurar por um ponto de equilíbrio que, de um

lado, contemple programas de concretização dos direitos fundamentais, e de outro, promova a

geração de receitas aptas a suportar o custo desses direitos. Assim, se a geração de receitas

pode significar uma concretização de demandas relacionadas aos direitos fundamentais, isso

não significa que ao Estado será conferida irrestrita autorização para tolerar práticas nocivas

ao meio ambiente, à economia ou às próprias pessoas. É necessário repensar os modelos

econômicos e sociais e encontrar o ponto de equilíbrio para o bem estar, quando então

poderemos afirmar que a democracia será sustentável.

Nesse contexto são inseridas, no nosso cotidiano, diversas normas permissivas ou

proibitivas de determinadas condutas, cujo discurso justificador seria o de garantir a

convivência harmônica entre os seres humanos. As normas do direito penal surgiriam com os

objetivos de proteger os bens jurídicos mais importantes para a sociedade e a prevenção do

crime. Porém, características como o aumento indiscriminado da população carcerária do

País, a seletividade do sistema penal e a impossibilidade de proteção de bens jurídicos através

da privação de liberdade conduzem a uma profunda reflexão em relação à real função do

direito penal na democracia.

Para atingir essa perspectiva, a análise crítica do direito penal remete necessariamente

a um estudo que ultrapassa o caráter dogmático da norma penal e se refugia em um campo

mais abrangente. Por essa razão, o marco teórico adotado no presente estudo será o da

criminologia crítica, que, além de constatar que o direito penal não cumpre com as suas

funções declaradas, revela ser ele um instrumento altamente seletivo, comandado por apenas

alguns “personagens sociais”, e voltado ao controle social orientado para a manutenção das

estruturas de classe, raça e gênero. Por isso, a criminologia crítica sustenta que o direito penal

é ilegítimo, ao passo que considera o crime como um fenômeno social praticado por todos,

mas que somente alguns são selecionados para serem fiscalizados e punidos, o que acaba

contribuindo com a reprodução das desigualdades sociais.

Contudo, apesar da comprovação de que o sistema penal e, especificamente, a prisão

produzem efeitos opostos aos declarados, é fato que muitos atores sociais exigem respostas

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penais mais enérgicas do Congresso Nacional. Por outro lado, também há outros atores que

consideram tal aposta absolutamente inapropriada, alcançados argumentos contrários às

demandas de criminalização. Em conjunto com essas forças, é possível visualizar as

perspectivas ideológicas carregadas pelos parlamentares e, ainda, a interação de várias

agências, formais e informais, de controle social.

Como exemplo da interação entre as agências de controle social e o Congresso

Nacional, foi escolhido como objeto de estudo, dentre as demandas por punição, a proposta de

redução da maioridade penal. Com frequência a mídia divulga o envolvimento de menores de

18 anos em fatos considerados típicos pela legislação penal brasileira, contribuindo com o

populismo penal e com o discurso de que a redução da maioridade penal conduziria a uma

redução da criminalidade. Além disso, as mesmas notícias provocam a organização dos

movimentos das vítimas, os quais clamam pela redução da maioridade penal. Em lado oposto

ao movimento das vítimas, encontram-se os movimentos sociais, que, na sua maioria,

propugnam pelo respeito aos direitos humanos, quer seja na sua concretização, quer seja na

sua manutenção, servindo como “contrapeso” aos movimentos criminalizantes.

Nessa delimitação do objeto de estudo às demandas pela redução da maioridade penal

em tramitação na Câmara dos Deputados, como expressão da democracia, pretende o presente

trabalho analisar as propostas, em especial a PEC 171 de 1993 e os documentos a ela

relacionados em sua tramitação, para responder ao seguinte questionamento: qual é a

representação do adolescente nas propostas de emenda à Constituição, as quais visam à

redução da maioridade penal?

A pesquisa se justifica porque pretende analisar se as propostas de redução da

maioridade penal estão em equilíbrio com a concretização dos direitos fundamentais das

crianças e dos adolescentes, procurando demonstrar, ao final, se nessas demandas o

Congresso Nacional está promovendo uma democracia sustentável: ou seja, criando normas

que visem a concretização dos direitos fundamentais, na busca incessante da inclusão de toda

a sociedade civil, ou está agindo em descompasso com essa proposta.

O trabalho seguirá o sistema francês, dividindo-se em duas partes, com duas

subdivisões cada parte. Na primeira subdivisão da primeira parte, abordar-se-á a ruptura

paradigmática da criminologia, ocorrida a partir da década de 1960, para situar o marco

teórico adotado. Na segunda subdivisão, estudar-se-á a gênese da criança e do adolescente no

cenário jurídico nacional, pra identificar como esses personagens foram e são representados

pelo Congresso Nacional.

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Na primeira subdivisão da segunda parte, apresenta-se os resultados de um estudo

quantitativo sobre as Propostas de Emenda à Constituição, as quais tiveram por objetivo

alterar o artigo 228 da Constituição Federal e reduzir a maioridade penal. Em um segundo

momento, mais ainda neste subcapítulo, são discutidos os resultados da análise qualitativa dos

documentos referentes à tramitação da PEC 171/1993, posto que é a PEC mais ativa e

recentemente votada na Câmara dos Deputados estando, atualmente, sob apreciação do

Senado Federal.

A pesquisa adotou o método denominado de “Teoria Fundamentada em Dados”

(CAPPI, 2015), em razão do volume de informações que foram analisadas, a qual, além de

permitir a classificação dos discursos em categorias, possibilitou a construção de uma

conclusão sobre a representação do adolescente pelo Congresso Nacional na PEC 171/1993.

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1 DEMOCRACIA E PUNIÇÃO: A INVISIBILIDADE DA SELETIVIDADE PENAL

NAS DEMANDAS SOCIAIS POR ENCARCERAMENTO

Com certa frequência a mídia divulga o envolvimento de menores de 18 anos na

prática de infrações penais, contribuindo com o populismo penal e com o discurso de que a

redução da maioridade penal conduziria a uma redução da criminalidade. Como meio de

informação, a mídia acaba se tornando uma ferramenta altamente eficaz de disseminação de

discursos populistas punitivistas, os quais, na sua grande maioria, estão despidos de conteúdo

científico e não abordam a questão de fundo da criminalidade. Além disso, a (des)informação

é transmitida de maneira deturpada e direcionada contra determinadas condutas e pessoas,

contribuindo para a formação popular dos estereótipos criminais juvenis, mas não só juvenis.

Entretanto, não é apenas a mídia que influencia a opinião das pessoas para a formação

dos estereótipos da criminalidade juvenil. A influência também é realizada de maneira

invisível por outras agências informais da sociedade, como a família, a escola e a religião,

através da introjeção e uniformização de pensamentos, os quais têm como escopo a

segregação de classes, incluindo os “alinhados” e excluindo os “desalinhados”.

Suscetível à influência das agências citadas, o senso comum acaba assumindo

inconscientemente os discursos segregacionistas, elegendo os “inimigos sociais” e exigindo

rígidas posturas do Congresso Nacional, como a criação de normas que protejam a sociedade

dos “socialmente desalinhados”. Os congressistas, na sua grande maioria com os olhos

voltados apenas para a reeleição do seu mandato político e sem nenhuma preocupação com a

resolução das demandas sociais, acabam cedendo às pressões externas exercidas por grupos

populistas penais em troca dos votos que esses movimentos trazem consigo. Nesse viés, Budó

(2013a, p. 66) enfatiza:

O papel do legislador [...] que seria o de buscar a melhora de vida da população

através de políticas sociais se mostra essencial. Porém, a lógica é outra, e o resultado

do processo legislativo é cada vez menos um fim, e cada vez mais um meio para

garantir votos. Em função disso, a preocupação do legislador é a de propor normas

que garantam as próximas eleições, transformando-se a política em um espetáculo.

Para agradar possíveis eleitores, necessária se faz a promulgação de leis que

satisfaçam as suas ansiedades, e nada melhor para atingir essa finalidade do que a

edição de leis de repressão penal.

Nesse cenário, é inegável reconhecer a influência exercida pelos “atores sociais” junto

ao Congresso Nacional na elaboração das normas penais, sendo que a análise dessa interação

exige a escolha de um referencial teórico que contemple como objeto de estudos os

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fenômenos sociais, razão pela qual, o marco ora adotado é o da criminologia crítica. Para dar

conta da complexidade desse tema, na primeira parte deste capítulo abordar-se-á os processos

de criminalização e o papel da agência política na construção social da criminalidade. Em um

segundo momento, apresenta-se o marco transformador sobre a criança e o adolescente

emergente na década de 1990 do século passado.

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1.1 DO PARADIGMA ETIOLÓGICO AO PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL: A

INTERAÇÃO DAS AGÊNCIAS DE CONTROLE SOCIAL

O Iluminismo se caracterizou na Europa racionalista do final do Século XVIII como

um movimento e um novo modo de pensar. Nas suas origens destacou-se a revolução

científica operada no final do século anterior que transformou as concepções que as pessoas

tinham sobre o homem, o mundo e a vida (DOTTI, 2005). Foi nesse período que surgiu o

Direito Penal liberal, cujos pensadores tinham suas ideias arraigadas no contratualismo

(BUDÓ, 2013a, p. 27).

A unidade teórica e metodológica que reuniu diferentes autores estudiosos do poder

punitivo e de suas limitações a partir do viés jusnaturalista consagrou-os como pertencentes à

chamada Escola Clássica. Partindo do método racional-dedutivo, esses autores trataram

principalmente do problema dos limites do poder de punir do Estado em contraponto à

liberdade dos indivíduos (ANDRADE, 2003, p. 47). Entretanto, em que pese o avanço do

pensamento para época, transferindo e estabelecendo limites ao poder de punir, é inegável

reconhecer a superficialidade com que a ciência penal era debatida, uma vez que se acreditava

que o castigo imposto ao delinquente seria capaz de provocar uma sensação dissuasória e

preventiva na comunidade (MOLINA, GOMES, 2010, p. 389).

Durante esse período os esforços do direito penal se dirigiam à objetivação do delito e,

amparados na matriz neokantiana, à construção da noção de livre arbítrio. Os teóricos da

Escola Clássica focavam o debate no crime, na violação, pautada na vontade livre e

consciente do indivíduo que descumpre a norma de maneira arbitrária, mesmo sendo um

signatário natural do contrato social. Nas palavras de Andrade (2003, p. 55-6):

[...] além de ser uma violação, o crime é, para o classicismo, uma violação

‘consciente e voluntária’ da norma penal e, pois, dos seus elementos constitutivos

conferem especial relevância à ‘vontade culpável’ – àquele elemento subjetivo que,

contemporaneamente, é denominado ‘culpabilidade’. É mister que o crime seja

animado por uma vontade culpável entendida mais como vontade de violar a norma

do que como voluntariedade do fato constitutivo do crime. Enfim, é necessário que a

vontade seja livre para que seja culpável. O livre arbítrio constitui, assim, o

sustentáculo do Direito Penal clássico.

Dessa forma, a única preocupação dessa escola era a de analisar a conduta para

verificar se ela violava alguma norma jurídica, cabendo ao Estado aplicar a pena quando

constatasse a ofensa, penas essas que deveriam ser proporcionais ao delito praticado,

vedando-se penas cruéis. Aliás, foi nesse período que a obra de Cesare Bonesana, também

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conhecido como Marquês de Beccaria, ficou consagrada como um grande avanço do direito

penal para a época, eis que estabelecia critérios de proporcionalidade na aplicação das penas

privativas de liberdade de acordo com a gravidade do delito praticado (BECCARIA, 1997).

É necessário enfatizar, entretanto, que os objetivos humanizadores que inspiraram a

Revolução Francesa e serviram como pedra angular para estruturar uma nova lógica punitiva,

como preservar a liberdade e a igualdade, não foram preservados em seus termos iniciais após

a estruturação do novo sistema. A mudança nas estratégias punitivas não cumpriu sua função

declarada de preservar a liberdade geral, respeitando igualmente os indivíduos signatários do

contrato social, mas, ao contrário, reformulou o sistema penal de forma a resguardar os

interesses do novo Estado que então se estruturava (FLAUZINA, 2015).

Porém, uma vez consolidado o poder político pela burguesia, a dinâmica do processo

revolucionário foi interrompida, prevalecendo, a partir de então, o discurso conservador com a

intenção precípua de preservar a propriedade e os privilégios agregados. Pavarini (apud

ANDRADE, 2003, p. 244) coloca a questão da seguinte maneira:

Com a consolidação do domínio capitalista na Europa da Restauração, a

interpretação política da criminalidade que havia caracterizado a época da conquista

do poder por parte da nova classe burguesa, incluídas as contradições do

pensamento iluminista, sempre indeciso entre o momento crítico e as exigências de

racionalização, parece resolver-se definitivamente numa leitura apologética da

ordem social existente. A ambigüidade que caracterizava as primeiras formas de

conhecimento criminológico estava realmente ditada pela dupla exigência de criticar

as formas hostis de poder (o feudal) e ao mesmo tempo projetar as formas de um

novo poder (o burguês); mas, uma vez que o poder político foi definitivamente

conquistado, os interesses da classe hegemônica se limitaram a inventar a estratégia

para conservá-lo.

Entretanto, embora seja possível perceber o uso do direito penal como uma ferramenta

classista, protetora de bens jurídicos acessados por alguns membros da sociedade, não foi esse

fato que despertou o interesse dos pensadores da Escola Positiva, os quais estavam mais

preocupados com o caráter jusnaturalista adotado pela Escola Clássica.

O objeto de estudo da Escola Positiva centrava-se no questionamento do pensamento

clássico da igualdade entre as pessoas no que diz respeito a sua sensibilidade à intimidação

pelo castigo. Para essa escola, as pessoas que cometiam os delitos não seriam iguais aos

cidadãos comuns, deles diferenciando-se em características biológicas e psicológicas. Assim,

o objeto das pesquisas passou a ser o “homem criminoso”, com o objetivo de identificar os

sinais antropológicos da criminalidade (BARATTA, 2013). Mediante a observação de

indivíduos situados no universo dos cárceres e dos manicômios, características como altura,

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tamanho do crânio e do maxilar, textura do cabelo eram medidas para identificar o perfil do

criminoso (ANDRADE, 2003).

Conforme Budó (2013a, p. 28), o método empregado pela Escola Positiva é o

empírico-experimental, o qual, ao invés de justificar a liberdade do indivíduo a partir de uma

ordem natural universal, parte de um raciocínio indutivo, deslocando o foco de atenção para o

homem criminoso, buscando nele as causas do crime.

Para a Escola Positiva, as pessoas que cometiam delitos deveriam submeter-se a

tratamento, uma vez que o castigo, isoladamente, não seria capaz de modificar seus maus

hábitos de comportamento perante a sociedade. Porém, o grande equívoco da Escola Positiva

foi a de se basear em pesquisas empíricas, realizadas nas casas de detenção e nos manicômios

da época, o que provocou uma análise das características biopsicológicas dos indivíduos que

haviam sido previamente selecionados pelas agências de controle social.

Essa forma de estudar o fenômeno do crime partia do pressuposto de que o homem

delinquente estava determinado a praticar delitos. A conduta criminosa não era resultado de

escolha ou do exercício do livre arbítrio, como propunham os estudiosos da Escola Clássica,

mas consequência de causas naturais, sobre as quais a vontade do homem não interferia.

Como afirmava Ferri (apud ANDRADE, 2003, p. 66): “Todo crime, do mais leve ao mais

terrível, não é o fiat incondicionado da vontade humana, mas sim o resultante destas três

ordens de causas naturais”. Como afirma Baratta (2013, p. 39):

Se não é possível imputar o delito ao ato livre e não-condicionado de uma vontade,

contudo é possível referi-lo ao comportamento de um sujeito: isto explica a

necessidade de reação da sociedade em face de quem cometeu o delito. Mas a

afirmação da necessidade faz desaparecer todo caráter de retribuição jurídica ou de

retribuição ética da pena.8 Nesse contexto, o discurso clássico de proporcionalidade

da pena e de ênfase na liberdade individual caiu por terra. Em nome da defesa da

sociedade e do tratamento do delinqüente, a intervenção do Estado era considerada

positiva e útil. Assim, os teóricos não se preocupavam com os limites dessa

intervenção.

Nesse contexto, a noção de liberdade negativa, ou de existência de direitos subjetivos

em face do Estado, praticamente se esvaiu. Para defender a sociedade do homem diferente e

perigoso, a sociedade poderia submetê-lo a diversas restrições, independentemente de sua

aceitação. A pena passou a ser vista, assim, como um mecanismo de prevenção da prática de

delitos. A finalidade da pena já não era retribuir a prática de conduta contrária às normas, mas

tratar, modificar o comportamento criminoso, agir nas suas causas (FLAUZINA, 2015).

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Como os clássicos, os teóricos da Escola Positiva ignoravam os processos de

criminalização das condutas e pecavam por um erro fundamental: embora afirmassem o

contrário, não realizavam ciência. Anyar de Castro (2005, p. 71) descortina a Escola Positiva:

Por trás dela está também o modelo do consenso, embora o positivismo recuse

expressamente qualquer enquadramento sócio-político. Sua insistência numa suposta

neutralidade não pode enganar, porque, apesar de, como filosofia, centralizar toda a

autoridade e todo o poder na ciência, o positivismo como criminologia não

questionou a ordem dada, e saiu, código na mão, a perseguir o que desde então

passou a se chamar de delinquentes natos, loucos morais, personalidades criminosas,

desagregados sociais, inadaptados, etc. (as definições são tão variadas quanto as

próprias variantes do positivismo criminológico), fazendo assim tão pouca ciência

quanto a que criticava nos criminólogos anteriores a essa escola. Considerando

anormais ou desviados os assinalados por uma decisão política (a Lei), contradizia

os postulados de sua pretensão científica.

A deficiência da dogmática clássica/positivista só começou a ser demostrada na

década de década de 1930, quando a Escola de Chicago elaborou estudos sobre as relações

entre a organização social e o crime, ou seja, a desordem social como fator de produção da

delinquência, tendo acrescentado mais elementos identificadores de condutas criminosas à

teoria positivista então vigente. A Escola de Chicago estava parcialmente certa quando

relacionou a desordem social ao delito, pois, como adverte Larrauri (1999, p. 26), a desordem

social a que se referia a Escola de Chicago, não seria apenas aqueles indicadores dos níveis de

pobreza, mas também “[...] a mobilidade da população e da transitoriedade das relações

sociais e da presença de imigração”1.

Logo, o grande erro dessas teorias foi o de procurar no indivíduo infrator as causas que

o faziam delinquir, além de igualar as pessoas, como se todas fossem membros da sociedade

em igualdade de direitos, fato que acabou sendo desvelado pela teoria do labeling approach.

O labeling approach, ou a Teoria do Etiquetamento, é uma teoria criminológica

marcada pela ideia de que as noções de crime e criminoso são construídas socialmente a partir

da definição legal e das ações de instâncias oficiais de controle social a respeito do

comportamento de determinados indivíduos (BARATTA, 2013). Segundo esse entendimento,

a criminalidade não é uma propriedade inerente a um sujeito, mas uma “etiqueta” atribuída a

certos indivíduos que a sociedade entende como delinquentes. Em outras palavras,

o comportamento desviante é aquele rotulado como tal (BECKER, 2008).

Esse novo marco teórico rompeu com a velha criminologia, cuja base de estudo se

concentrava nas características físicas do criminoso e levava em consideração pesquisas

1 Tradução livre do espanhol: “movilidad de la población y la fugacidad de las relaciones sociales y la presencia

de la inmigración”

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empíricas realizadas nas casas de detenção e nos manicômios da época, o que provocou uma

análise das características biopsicológicas de indivíduos que já haviam caído na “engrenagem

judiciária e administrativa da justiça penal [...] indivíduos selecionados daquele complexo

sistema de filtros sucessivos que é o sistema penal” (BARATTA, 2013, p. 40).

Ou seja, as pesquisas realizadas nas casas de detenção e nos manicômios refletiam

apenas quem era selecionado pelo sistema penal e não quem efetivamente contrariava as

normas, em uma verdadeira profecia que se autorrealiza (BARATTA, 2013). Percebendo a

grande falácia propugnada pelo direito penal e inconformado com as respostas conferidas pela

criminologia tradicional, o labeling passou a ignorar o estudo das características biológicas e

psicológicas como predisposição à realização de crimes, em detrimento de uma análise

aprofundada do sistema penal como forma de compreender o status social de delinquente.

A partir dessa nova concepção, a teoria pauta-se fundamentalmente na análise da ação

de forças policiais, penitenciárias, órgãos do Poder Judiciário e outras instituições de controle

social, com o objetivo de entender como os rótulos estipulados pela sociedade e aplicados por

tais instituições refletem circunstâncias sociais e contribuem para a criação de um estigma de

“criminoso” para certos grupos sociais, alterando a própria percepção individual daqueles que

são rotulados como tal. Para o labeling, não se pode compreender a criminalidade se não se

estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, conforme leciona Baratta

(2013, p. 86):

[...] o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das

instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em

face da criminalidade. Sob esse ponto de vista, tem estudado o efeito estigmatizante

da atividade da polícia, dos órgãos de acusação publica e dos juízes.

O horizonte de pesquisa em que o labeling approach se situou é formado por duas

correntes de sociologia americanas. A primeira possui enfoque na psicologia social e da

sociolinguística inspirada em George H. Mead, e comumente indicada como “interacionismo

simbólico”. A segunda, a “etnometodologia”, inspirada pela sociologia fenomenológica de

Alfred Schutz, concorre para modelar o paradigma epistemológico característico das teorias

do labeling (BARATTA, 2013).

Segundo o interacionismo simbólico, a sociedade é constituída por uma infinidade de

interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um

significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-se através da

linguagem. Já a etnometodologia, a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer

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sobre o plano objetivo, mas o produto de uma construção social, obtida graças a um processo

de definição e de tipificação por parte dos indivíduos e de grupos diversos (BARATTA,

2013).

O labeling approach parte da premissa de uma análise sobre a reação que determinada

conduta humana provocaria na sociedade, para responder a questões como: “quem é definido

como desviante?”, “que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?”, “em que

condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?” e, por fim, “quem define

quem?” (BARATTA, 2013). Como observa Larrauri Pijoan (1999, p. 31) “De acordo com

esta perspectiva muitos atos criminalizados carecen de danosidade social e representam muito

bem a intenção dos grupos poderosos de defender os seus interesses materiais.”2.

Porém, em que pese a inegável contribuição do paradigma do labeling approach para

a criminologia crítica, não é ele capaz de explicar o fenômeno da criminalidade, uma vez que

as implicações desse paradigma são:

a) um sistema objetivo e objetivamente reconhecível de normas pré-constituídas; b)

a existência de duas classes distintas de comportamentos e de sujeitos: os

comportamentos e os sujeitos normais e os desviantes; c) a destinação técnico-

intervencionista da teoria, ou seja, aquela típica da criminologia positivista, de

utilizar a concorrência dos fatores do desvio para intervir sobre eles, modificando-

os. (BARATTA, 2013, p. 92).

Assim, o labeling apenas modifica a base de estudo sobre a conduta desviante, pois, se

antes a criminologia tradicional utilizava critérios etiológicos, agora o labeling utiliza critérios

objetivos para fins de controle e seletividade penal, como a reincidência por exemplo. Por isso

na década de setenta, inspirado pelo paradigma da reação social inaugurado pelo labeling

approach, surge a criminologia crítica, teoria assentada no deslocamento do enfoque teórico

do autor (ponto nevrálgico do labeling approach) para as condições objetivas, estruturais e

funcionais, que estão na origem dos fenômenos do desvio, assim como, no deslocamento do

interesse cognoscitivo das causas do desvio criminal para os mecanismos sociais e

institucionais através dos quais é construída a realidade social do desvio. Ou seja, para os

mecanismos através dos quais são criadas e aplicadas as definições de desvio e de

criminalidade e realizados os processos de criminalização (BARATTA, 2013).

Nesse contexto de crise do sistema penal e dos excessos cometidos, a criminologia

crítica propõe uma nova forma de interpretação do crime. A ruptura na reflexão criminológica

2 Tradução livre do original em Espanhol: “De acuerdo a esta perspectiva muchos actos criminalizados carecen

de danõsidad social y representan más bien el intento de los grupos poderosos de defender sus intereses

materiales y sus valores culturales”.

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tradicional é evidente, já que os pensamentos criminológicos clássicos não questionam os

processos de criminalização nem a eleição do perfil ou da conduta do criminoso.

Por isso, na criminologia crítica, uma nova forma de análise do fenômeno

criminológico passou a vigorar como um significado de “desviação” e uma qualidade

atribuída por processos de interação altamente seletivos e discriminatórios. O conceito de

“criminoso” é estabelecido por grupos sociais distintos que instituem os critérios utilizados

pelo sistema penal no exercício do controle social para definir o desviado como tal

(BECKER, 2008).

Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais uma qualidade

ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se

revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos,

mediante uma dupla seleção; em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos

penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais;

em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos

que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. A criminalidade é [...] um

“bem negativo” distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses

fixada no sistema socioeconômico e conforme a desigualdade social entre os

indivíduos. (BARATTA, 2013, p. 159)

Dessa forma, para a criminologia crítica o Direito Penal deslegitima-se à medida que

está a serviço de uma parcela social, que detém o poder político dominante. O Direito Penal

acentua os processos referidos, à medida que não funciona mais como ultima ratio. Este é um

recurso jurídico utilizado pelas “parcelas sociais detentoras de poder para assegurar a

sobrevivência do sistema capitalista” (QUINNEY, 1980, p. 245/246).

Assim, o direito penal ocorre de forma a segregar, sendo que os bens jurídicos

precisam ser revisitados e reconsiderados; há diferenças de tratamentos ainda que a lei

considere a condição de igualdade; e a seleção do perfil de criminoso ocorre de um grupo para

outro, em razão de processos de dominação que guardam estreita relação com o capital. Nesta

senda, cabe questionar até mesmo o que o Direito Penal busca legitimar, já que, segundo

Gauer (1999, p. 18) “a violência dos poderosos recebe uma crítica que se esgota no discurso

inócuo. A violência dos fracos, por outro lado, é punida concretamente”.

Zaffaroni e Pierangeli (1999, p. 77) verificam que o sistema penal tem uma função que

se esconde por detrás do discurso externo, de proteção social indistinta, em um pretenso

Direito Penal igualitário. Para os autores, o discurso penal atual:

[...] é extremamente seletivo no combate ao crime. Desde a elaboração de normas

proibitivas de condutas, até a punição judicial de criminosos, há uma perversa

seleção de agentes que irão sofrer a efetivação da sanção penal. O status quo que

impera no combate à criminalidade é alarmante. No intuito de manter calma a

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desinformada sociedade, direciona-se a punição a determinadas condutas (com doses

altíssimas de publicidade) e cria-se a ideia de que a criminalidade está controlada.

Falsa ilusão simbólica, porquanto a mais perversa e destruidora forma de

criminalidade, a de cunho econômico, está a proliferar-se, sem que os órgãos estatais

previnam e combatam tais formas de delito. A seletividade estrutural do sistema

penal – que só pode exercer seu poder regressivo legal em um número insignificante

das hipóteses de intervenção planificadas é a mais elementar demonstração da

falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal. Os

órgãos executivos têm “espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer

habitante, mas operam quando e contra quem decidem.

A criminologia crítica demonstrou que os filtros da seletividade penal não se

encontram apenas na legislação penal, uma vez que o processo de seleção criminal é

progressivo, invisível e exercido por diversas agências sociais, assim compreendidas por

Aniyar de Castro (2005, p. 53/55) como:

[...] o conjunto de sistemas normativos (religião, ética, costumes, usos, terapêuticas e

direito – este último entendido em todos os seus ramos, na medida em que exercem

esse controle reprodutor, mas especialmente no campo penal; em seus conteúdos

como em seus não-conteúdos) cujos portadores, através de processos seletivos

(estereotipia e criminalização) e estratégias de socialização (primária e secundária

ou substitutiva), estabelecem uma rede de contenções que garantem a fidelidade (ou,

no fracasso dela, a submissão) das massas aos valores do sistema de dominação; o

que, por motivos inerentes aos potenciais tipos de conduta dissonante, se faz sobre

destinatários sociais diferencialmente controlados segundo a classe que pertencem.

As agências de controle social são classificadas pela criminologia crítica em dois

grandes blocos: as formais e as informais. As agências formais de controle social são as

agências oficiais de repressão e combate ao crime, podendo pertencer ao Poder Legislativo

(elaboração das leis), ao Poder Judiciário (Ministério Público e Magistratura), e ao Poder

Executivo (policias civil, militar e federal e os órgãos de execução penal). As agências

informais são aquelas que precipuamente não deveriam ter por objetivo a função de controle

social, mas pelo contexto social em que são inseridas, acabam realizando-o de maneira

indireta e invisível, criando estereótipos das pessoas a serem rotuladas e fiscalizadas pelas

agências formais (ANIYAR, 2005).

Embora não estejam positivadas, as normas do controle informal repercutem

incisivamente no controle formal da criminalidade, pois a persecução penal se apresenta como

um processo de seleção progressiva, em que os critérios de seleção levam em conta questões

como origem, educação, posição sociocultural, formação escolar e profissional, etc. Toda a

vez que a pessoa não é integrada na sociedade surge a crise, incidindo, na espécie, a

integração sistêmica a que se refere Habermas. Para o autor “a partir de problemas de controle

não resolvidos surgem crises, por exemplo, que de novo produzem problemas consequentes

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que atuam, de modo especial, na consciência dos sujeitos agentes” (apud ALBRECHT, 2010,

p. 225). A mesma constatação é feita por Hess (apud ALBRECHT, 2010, p. 225/226):

A forma de controle social fundada em normas informais pode se servir, por um

lado, de meios psíquicos como zombaria, desprezo, perda de status, ofensa à honra

ou ruptura da relação social. Por outro lado, também se pode recorrer a meios

físicos, como a violência. Além disso, existem extensas possibilidades econômicas,

como a perda do lugar de trabalho e do rendimento, para tornar socialmente eficaz o

controle informal.

As regras sociais, portanto, servem apenas para criar uma falsa ilusão de bem estar

social, quando na verdade têm por objetivo manipular os indivíduos em detrimento de

interesses que a poucos aproveitam, em especial o econômico, impedindo-os de exercer a sua

livre consciência e selecionando os que se rebelam contra o sistema ou agem em desacordo

com a “cartilha social imposta”. Enfim, conforme destaca Miralles (1983, p. 38), as regras

sociais manipulam a consciência do indivíduo e o impedem de refletir sobre o real bem estar

comum:

[...] os contrastes de classe se ocultam no individuo por meio da manipulação da

consciência em todo o tipo de propaganda, que reforça o adestramento

unidimensional, impedindo, ao mesmo tempo, que o individuo forme seus próprios

juízos e apresente uma opinião independente e pessoal. A manipulação da

consciência consiste em negar ao individuo o conhecimento sobre a manipulação da

sua consciência. Priva-se, assim, o individuo de dispor de suas capacidades de

liberdade, por essa manipulação que lhe é dada por uma ilusão de liberdade

aparente. E mesmo que a sociedade mantenha os indivíduos desvinculados dela

mesma, incertos sobre sua própria condição, a não ser a necessidade de sua

vinculação predeterminada, produz-se a aparência de um funcionamento perfeito da

sociedade com o objetivo de alcançar um bem estar comum e de adesão de todos.3

O controle informal é exercido desde cedo nas nossas vidas. Na fase infantil,

poderíamos citar as inúmeras animações importadas de outros países (geralmente

economicamente dominantes e desenvolvidos) e reproduzidas diariamente na tela da maioria

dos lares das crianças brasileiras, onde em não raras às vezes é possível identificar um

personagem que desempenha o papel de “mocinho” e outro personagem que desempenha o

papel de “vilão”.

3 Tradução livre do Espanhol: “[...] los contrastes de clase se ocultan al individuo por medio de la manipulación

de a consciencia en todo o tipo de propaganda, que refuerza el adiestramiento unidimensional, impidiendo al

mismo tiempo que el individuo se forme sus propios juicios y presente una opinión independiente y personal. La

manipulación de la conciencia consiste en que se niega al individuo el conocimiento de la manipulación de su

conciencia, valga la redundancia. Se priva así al individuo de disponer de sus capacidades de libertad, por esta

manipulación que le da ilusión de una libertad aparente. Y mientras la sociedad mantenga a los individuos

desvinculados de sí mismos, inciertos sobre su propia situación, a no ser la necesidad de su vinculación

predeterminada, se produce la apariencia de un funcionamiento perfecto de la sociedad en el objetivo de alcanzar

un bienestar común, y de ahí la adhesión de todos”.

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Embora pareça exagero, o fato é que desde cedo as crianças são ensinadas que existem

papéis de “bons” e “maus” cidadãos, induzindo a um pensamento segregacionista, o qual com

o passar dos anos vai se tornando cada vez mais substancioso, sendo os personagens apenas

substituídos: os desenhos animados pelos estereótipos de cidadãos. Conforme destaca

Touraine (2006, p. 159):

O sujeito vive no mundo, mas não pertence ao mundo. É por isso que a ideia de

sujeito é uma arma tão poderosa contra o racismo. Se um grupo social ou nacional se

identifica com o bem absoluto, com um deus, com o futuro ou com o progresso, ele

deve inventar o contrário dele mesmo. A crença num deus induz a crença num diabo

ou em qualquer outro principio do mal. Foi assim que o Ocidente, que se

identificava com a razão, com o progresso e com as Luzes, inventou o Oriente, que,

segundo a clássica análise de E. Said, é o lugar das desrazão, voltado mais para o

passado que para o futuro, e mais para o particularismo que para o universalismo.

[...] A eliminação dessa dupla perigosa - Deus e diabo, puro e impuro – torna

impossível todo o racismo, que sempre supõe que todo o sentido está de um lado e

que de outro lado encarna o contrassenso.

Na fase seguinte da linha da vida os jovens e adolescentes continuam sendo

bombardeados ideologicamente com conceitos sobre o “bom” e o “mau” cidadão. Nesta fase,

no entanto, os personagens usados para a propagação das ideologias mudam e agora os

principais responsáveis aparecem como heróis indestrutíveis e capazes de resolver todos os

problemas que se apresentam, livrando a sociedade do mal praticado geralmente por

personagens que representam homicidas, assaltantes, traficantes e outros inimigos oficiais do

Estado.

Além de reproduzir a imagem da segregação entre os estereótipos, o cinema consegue

ir mais longe e quando o tema dos principais cartazes não envolvem as tramas policiais,

envolvem as lutas contra o terrorismo, geralmente rotulando como terroristas os personagens

típicos do oriente médio e os como “salvadores do mundo”, os países capitalistas, em especial

quando localizados na porção geográfica inferior da América do Norte.

Alguns outros diretores cinematográficos reforçam os estereótipos, mas agora mudam

o objeto de enfoque dos cidadãos para os sistemas econômicos, apresentando um personagem

financeiramente bem-sucedido, que vive em uma economia capitalista com todo o conforto e

o luxo que o dinheiro pode promover. Em contrapartida, nas poucas vezes em que usam o

sistema socialista como tema de inspiração, reproduzem imagens de miséria, sofrimento e

humilhação.

A indústria cinematográfica, com raríssimas exceções, é direcionada e completamente

parcial com os fatos, aproveitando a ausência de filtro Estatal e extrapolando os limites

moralmente toleráveis. E nas poucas vezes que os raros “filtros morais Estatais” funcionam,

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acabam sendo alvos de ataques pela imprensa que os classificam como condutas de “censura”

e “ditadura”, em uma confusão proposital que é feita desses adjetivos com a “regulação da

mídia”.

Também é durante essas fases da linha da vida (infância e adolescência), que outra

imponente agência de controle informal lanças invisivelmente seus tentáculos – a escola.

Nesta perspectiva de controle social, a escola acaba desempenhando um importante papel,

pois é a responsável pela reprodução ideológica dos discursos dos sistemas penais, que

domesticam o indivíduo para a vida em sociedade. Para Albrecht (2010, p. 228):

[...] a escola assume uma posição estratégica muito significativa, que se situa entre

as instâncias da Justiça penal, da Polícia de adolescentes, do Departamento juvenil e

do Conselho educativo. Neste caso, o poder de definição escolar se funda em

inúmeros rituais e rotinas ensaiadas que disponibilizam esquemas de interpretação e

tipificação próprios da escola, como expressão e um mundo normativo subjacente. A

pressão de conformidade proveniente da escola é, nesta extensão, de significado

amplamente relevante para a produção social do comportamento desviante, inclusive

de seu elevado grau de seletividade.

Dessa forma, além de a escola desempenhar um papel de domesticação e conformismo

nos indivíduos, ensina-lhes e exige-lhes reproduções ideológicas4, as quais permitem a

manutenção do controle social por forças invisíveis da sociedade, subtraindo dos neófitos a

consciência crítica que se espera para o desenvolvimento de uma sociedade livre e justa. A

ideologia é a de que a ordem social é estar educado para servir. Segundo Baratta (2013, p.

171):

A complementariedade das funções exercida pelo sistema escolar e pelo penal

responde à exigência de reproduzir e de assegurar as relações sociais existentes, isto

é, de conservar a realidade social. Esta realidade se manifesta com uma desigual

distribuição dos recursos e dos benefícios, correspondentemente a uma estratificação

em cujo fundo a sociedade capitalista desenvolve zonas consistentes de

subdesenvolvimento e de marginalização.

O outro grande papel desenvolvido pela escola é a criação dos estereótipos de bons

alunos. No decorrer da nossa infância e adolescência, varias vezes ouvimos discursos como:

“é preciso estudar para ser alguém”; “é preciso estudar para ganhar dinheiro”; “é preciso

estudar para ter um bom emprego”. O estudo de fato é deveras importante. No entanto os

4 Podemos citar como exemplo a disciplina de educação moral e cívica (EMOCI), implantada no Brasil pelo

Regime Militar nas décadas de 1970 e 1980, que tinha por objetivo difundir valores morais e cívicos aos alunos.

Além da disciplina de EMOCI, podemos citar a disciplina de organização social e politica brasileira (OSPB),

igualmente implantada pelo Regime Militar, no mesmo período, que tinha por objetivo apesentar aos jovens as

instituições da sociedade brasileira e a organização do Estado.

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discursos citados são exemplos de como a escola desempenha um papel fundamental na

verticalização da sociedade e insere, desde cedo, os estigmas seletivos nas pessoas.

Na verdade as frases citadas nada mais são dos que os espelhos da sociedade vertical

em que vivemos, onde os bons salários e os altos cargos, geralmente são preenchidos por

aqueles que têm acesso a uma sólida formação acadêmica. O problema, no entanto, não está

atrelado ao estudo como instrumento de satisfação das necessidades econômicas. O problema

é que nem todos os cidadãos possuem condições de frequentar boas escolas e ter o mesmo

nível de formação acadêmica e competir em iguais condições no mercado de trabalho.

Assim, em uma sociedade eminentemente capitalista, ter recursos financeiros significa

acessar elevados níveis de instrução e informação, que refletirão em possibilidades

ocupacionais, ascensão profissional e financeira (ANYAR DE CASTRO, 2005). Ou seja, os

ricos continuarão ricos e os pobres continuarão pobres, pois em um estado capitalista, a

ausência de uma boa colocação social repercutirá nas diversas instâncias pessoais e familiares

do indivíduo. Inicialmente a deficiência escolar repercutirá na colocação profissional, pois o

acesso a empregos com elevados salários é reservado para pessoas com sólida formação

escolar, como nível superior cursado em faculdades tradicionais e muitas vezes internacionais.

Ao contrário dos “mega-empregos”, os “subempregos”5 estão reservados para as

pessoas com baixa formação escolar, o que impacta diretamente no orçamento da família, que

muitas vezes não é suficiente para liquidar as despesas ordinárias de manutenção. Assim, se o

salário é insuficiente para a manutenção familiar, não sobram opções para o restante da

família, em especial os filhos menores e em idade escolar que se veem obrigados a trabalhar

desde cedo para prover as suas necessidades, deixando de lado a escola e reproduzindo a

mesma trajetória dos seus antecessores em um círculo vicioso e infindável.

A situação ainda consegue ser pior, quando os cidadãos sequer têm acesso aos

“subempregos”. Aqui o caos impera e o desespero pela satisfação das necessidades básicas,

como a alimentação, provoca legítimas ações de sobrevivência dos indivíduos, consistentes,

muitas vezes, na prática de pequenos furtos. Outras vezes esses indivíduos procuram conforto

nas drogas, sejam lícitas ou ilícitas, na tentativa de esquecer os problemas e minimizar o

sofrimento. Em ambas as situações citadas, o estereótipo se ajusta a uma conduta socialmente

desviante, atraindo a incidência do controle social formal, aqui representado pela ação da

polícia.

5 A classificação proposta atende apenas ao critério maior e menor salário.

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Nesse sentido Baratta (2013, p. 172) adverte que a escola desenvolve um

extraordinário papel de controle social, na medida em que refletirá na colocação social do

indivíduo, sendo que quanto mais baixa a sua colocação social, maiores serão as

probabilidades de serem selecionados pelo sistema penal e tornarem-se marginalizados pelo

sistema.

Como prova dessa profecia que se autoconcretiza, citamos as estatísticas da população

carcerária do Estado do Rio Grande do Sul, confeccionada pelo Ministério da Justiça –

INFOPEN – no ano de 2013, onde é possível constatar que dos 28.743 presos, 1.081 são

analfabetos; 1.738 são alfabetizados e 17.668 possuem ensino fundamental incompleto, ou

seja, 71,27% da população carcerária possui no máximo o ensino fundamental incompleto

(BRASIL, 2013).

Ainda segundo os dados coletados da mesma tabela, no mesmo período o Rio Grande

do Sul contava com apenas 234 apenados com ensino superior incompleto; 101 com ensino

superior completo; e nenhum com formação acima do superior completo, ou seja, apenas

1,16% da população carcerária possuía, pelo menos, curso superior incompleto (BRASIL,

2013).

Entretanto, não é apenas a escola a responsável pelo incentivo à criminalização. Outra

grande, e talvez a principal agência de controle social informal é a mídia, que possui o poder

de definir que enquadramentos da realidade serão de fato conhecidos pelo público. A seleção

das notícias que deverão ser publicadas é capaz de uniformizar critérios, anular

individualidades e induzir comportamentos (ANIYAR, 2005, p. 199), como o

recrudescimento penal.

O interesse do positivismo liberalista, que dominou a mídia na América Latina,

proporcionou, e continua proporcionando um racismo étnico e social, criando uma sensação

de universalidade de determinados fatos sociais e retirando do homem a sua capacidade de se

autodeterminar-se de acordo com referido fato social.

Sem os meios de comunicação de massa, a experiência direta da realidade social

permitiria que a população se desse conta da falácia dos discursos justificadores; não

seria, assim, possível induzir os medos no sentido desejado, nem reproduzir os fatos

conflitivos interessantes de serem reproduzidos em cada conjuntura, ou seja, no

momento em que não são favoráveis ao poder das agencias do sistema penal

(ZAFFARONI, 2012, p. 128).

Lamentavelmente, é a estagnação do pensamento humano através dos paradigmas

previamente criados pela mídia e com um caráter altamente ideologizante, cujos objetivos de

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informar invariavelmente são confundidos com objetivos espúrios, como o lucro com a venda

das notícias.

Os meios criam uma sensação de universalidade, de um mundo sem lutas e

expropriam do homem sua capacidade de intervir nos processos sociais, interpretá-

los, [...] o meio despersonaliza a ação do emissor, dos conteúdos ideológicos da

mensagem, e apresenta em seu lugar um pseudo-ator, um ator imaginário chamado

opinião pública, que lhe permite contrabandear a opinião de classe do emissor e

oferecê-la como a opinião das grandes maiorias (ANIYAR DE CASTRO, 2005, p.

200).

Além disso, o objetivo de lucro almejado por boa parte dos meios de comunicação

conduz à conclusão de que as notícias a serem veiculadas precisam ser vendáveis e para isso

deverão corresponder ao interesse do destinatário. Aniyar de Castro (2005), amparada em

pesquisas, refere que os destinatários das informações têm preferências por determinados

assuntos, como aqueles relacionados ao sexo, esporte e crime, sugerindo ser essa a regra de

ouro do jornalismo expressada pela seguinte formula: S+E+C = V, onde “S” significa sexo,

“E” significa esporte, “C” significa crime e “V” significa venda (ANIYAR DE CASTRO,

2005, p. 207).

Dessa forma, ao promover a divulgação de informações secundárias e até mesmo

inúteis ao nosso cotidiano, os meios de comunicação de massa acabam, propositalmente,

deixando de lado as informações realmente importantes, como informações políticas e

econômicas. Entretanto, o maior problema que se constata com a divulgação irresponsável da

informação, diz respeito à influência que ela pode vir a exercer sobre o pensamento dos

destinatários, em razão, sobretudo dos enquadramentos operados na realidade e então

difundidos. Segundo Aniyar (2005, p. 205):

Uma tendência epistemológica atualmente em voga, também no âmbito

criminológico, anuncia que nunca apreendemos o fenômeno social como ele é. Ao

percebê-lo e filtrá-lo por nossos processos sensoriais, interpretativos, emocionais e

classificatórios, estamos construindo uma realidade subjetiva e personalizada. A

realidade é algo construído socialmente: de um constructo social de primeiro grau se

passaria a outro de segundo grau, e assim, sucessivamente, estaríamos transmitindo

e recebendo, e transmitindo de novo, realidades cumulativamente construídas,

mediatizadas e reformuladas.

Isso significa que muito diferente de pensar as mensagens transmitidas pelos meios de

comunicação como automaticamente adotadas pelos receptores, trata-se de compreender o

quanto as seleções operadas, os enquadramentos realizados, bem como as escolhas de fontes

de notícias auxiliam na construção de uma determinada percepção da criminalidade. A

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difusão dos estereótipos dos criminosos como pertencentes às classes sociais mais vulneráveis

da população; a ideia de criminalidade vinculada a crimes contra o patrimônio, ligado à vida e

também ao tráfico de drogas; a percepção social da vítima de crime como sendo a mulher

branca de classe média: todos esses estereótipos reforçam a ação seletiva do sistema penal,

legitimando-o (BUDÓ, 2013a).

Além dessa construção cotidiana da realidade, ao publicar diariamente notícias que

versem sobre a criminalidade, eis que altamente vendáveis, os meios de comunicação acabam

criando a ilusão de insegurança no destinatário, conduzindo ao apoio à criação de novos tipos

penais e maior rigidez das leis penais, como o aumento de penas.

Uma das características fundamentais das notícias sobre crimes é que elas seguem uma

rotinização extrema e se baseiam, sobretudo, nas fontes policiais. Em razão disso, é frequente

que uma importante legitimação simbólica da atuação do próprio sistema penal seja realizada

através dos meios de comunicação (BUDÓ, 2013a). Nesse sentido, Zaffaroni (2012, p. 127)

observa que os meios de comunicação “são hoje elementos indispensáveis para o exercício de

poder de todo o sistema penal”. Como salienta Anyiar (2005, p. 209-210), “o sentimento de

insegurança é socialmente construído e, por isso, é seletivo”.

Logo, embora não estejam positivadas, as normas do controle informal repercutem de

maneira incisiva no controle formal da criminalidade, pois a persecução penal se apresenta

como um processo de seleção progressiva, em que os critérios de seleção levam em conta

questões como origem, educação, posição sociocultural, formação escolar e profissional, etc.

As regras sociais, portanto, servem apenas para criar uma ilusão de bem-estar social,

quando na verdade têm por objetivo manipular os indivíduos em detrimento de interesses que

a poucos aproveitam, em especial o econômico, impedindo-os de exercer a sua livre

consciência e selecionando os que se rebelam contra o sistema ou agem em desacordo com a

“cartilha social imposta”. Enfim, conforme destaca Miralles (1983, p. 38):

[...] os contrastes de classe se ocultam no indivíduo por meio da manipulação da

consciência em todo o tipo de propaganda, que reforça o adestramento

unidimensional, impedindo, ao mesmo tempo, que o individuo forme seus próprios

juízos e apresente uma opinião independente e pessoal. A manipulação da

consciência consiste em negar ao individuo o conhecimento sobre a manipulação da

sua consciência. Priva-se, assim, o individuo de dispor de suas capacidades de

liberdade, por essa manipulação que lhe é dada por uma ilusão de liberdade

aparente. E mesmo que a sociedade mantenha os indivíduos desvinculados dela

mesma, incertos sobre sua própria condição, a não ser a necessidade de sua

vinculação predeterminada, produz-se a aparência de um funcionamento perfeito da

sociedade com o objetivo de alcançar um bem estar comum e de adesão de todos.6

6 Tradução livre do Espanhol: “[...] los contrates de classe se ocultam al individuo por medio de la manipulación

de a consciência em todo o tipo de propaganda, que refuerza el adiestramento unidimensional, impidiendo al

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Assim, a realidade socialmente construída pelas agências informais margeia a atuação

das agências formais de controle social, dentre as quais a polícia, que se mostra como a

principal agência de controle ao ter o poder de decidir aqueles que deverão ser fiscalizados e

aqueles que ficarão imunes. Os critérios de eleição geralmente usados pela polícia são aqueles

informados pelas agências informais. Por exemplo, a mídia reproduz a ideia de que o tráfico

de drogas ocorre principalmente nas grandes favelas do Rio de Janeiro. Diante dessas

informações, os comandos policiais se legitimam ao atuarem em pontos estratégicos de

combate ao tráfico de drogas, com ações de repressão voltadas à fiscalização dos cidadãos que

residem naquele local, deixando de agir em outras áreas da cidade, muitas vezes nobres, onde

o tráfico de drogas também é praticado.

Além disso, as policiais elegem como prioridade a repressão aos chamados “crimes de

rua”, como o tráfico, o roubo, o homicídio, o estupro, deixando de fiscalizar ações delituosas

relacionadas a sonegação de impostos, fraudes em licitações, crimes ambientais, corrupção de

agentes públicos, as quais, na maioria das vezes, provocam um resultado muito mais

prejudicial para a sociedade, na medida em que esses delitos representam o esvaziamento dos

cofres públicos , que por sua vez, representa a ausência de investimentos em saúde, educação,

habitação, etc.

Encerrada a fase investigatória pela polícia, o inquérito é remetido ao Ministério

Público, que promove o segundo filtro seletivo da criminalidade, elegendo aqueles que serão

denunciados e aqueles que deverão ser agraciados pelo pedido de arquivamento do inquérito.

Nessa fase, novamente agem os estereótipos da criminalidade impostos pelas agências

informais.

Decidindo denunciar o indiciado, entra em ação a agência judicial do sistema penal, a

qual, segundo Budó (2013a, p. 45):

[...] é caracterizada por um importante grau de discricionariedade, tendo em vista

que a norma penal é abstrata, aberta e repleta de lacunas, as quais são preenchidas

através dessa atividade. Para tanto, os julgadores se servem de um second code, um

código social que regula a aplicação das normas abstratas, e determinam a

distribuição desigual das definições criminais na realidade social. [...]

mismo tiempo que el individuo se forme sus propios juicios y presente una opinión independiente y personal. La

manipulación de la conciencia consiste en que se niega al individuo el conocimiento de la manipulacion de su

conciencia, valga la redundância. Se priva asíal individuo de disponer de sus capacidades de libertad, por esta

manipulación que le da ilusión de una libertad aparente. Y mientras la socieda mantenga a los indivíduos

desvinculados de si mismos, inciertos sobre su própria situación, a no ser la necessidade de su vinculación

predeterminada, se produce la apariencia de un funcionamento perfecto de la sociedade en el objetivo de

alcanzar um bienestar común, y de ahí la adhesión de todos”.

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A abstração das normas penais permite que elas sejam interpretadas ao sabor do

julgador e de acordo com as características do acusado. Além do subjetivismo que permeia

essa etapa jurídica, o fator econômico também deve ser levado em consideração, pois

proporciona ao acusado a contratação de prestigiadas bancas de advocacia, cujos profissionais

esgotam a discussão da causa em instância ordinária e extraordinária, caminho esse

inacessível para a grande maioria dos “advogados comuns”, que representam a maior

“clientela” da justiça penal.

As agências de controle informal da sociedade influenciam, ainda, na atuação dos

personagens do cenário político nacional, conforme será visto nos capítulos posteriores, os

quais muitas vezes acabam cedendo ao interesse da notícia, com vistas, única e

exclusivamente, aos fins eleitoreiros.

Outras agências de controle social informal poderiam ser citadas na presente pesquisa

como fonte de construção de discursos criminalizantes e segregacionistas, como a religião, o

trabalho e outros, optando-se por manter a análise nas agências que tenham maior atuação na

formação da criminalização de condutas.

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1.2 A GÊNESE SOBRE A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA LEGISLAÇÃO

BRASILEIRA

Vivemos um momento sem igual no plano normativo do direito infanto-juvenil, seja

ele no âmbito constitucional, através dos artigos 227 e 228, seja ele no âmbito da legislação

federal, através da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), onde as crianças e os

adolescentes ultrapassam a esfera de meros objetos de proteção e passam à condição de

sujeitos de direitos, beneficiários e destinatários imediatos da doutrina da proteção integral.

Entretanto, embora a inegável evolução normativa sobre a concepção da criança e do

adolescente no estado de direito, ainda podemos observar, em especial nas periferias de quase

todas as cidades brasileiras, situações que demonstram que a realidade destoa das normas

protecionistas, cujas consequências das omissões estatais, não raras as vezes, tentam ser

resolvidas ou escondidas com políticas criminais mais enérgicas, como é o caso da PEC

171/93, a qual visa reduzir a maioridade penal dos adolescentes para alguns crimes.

Por isso, compreender a relação existente entre a omissão do Estado na concretização

dos direitos das crianças e dos adolescentes e as políticas criminais rígidas, é uma tarefa

impossível sem que se conheçam as bases de construção do pensamento sobre esses sujeitos.

1.2.1 Concepções históricas sobre a criança e o adolescente no Brasil

O estudo sobre a criança e o adolescente limitar-se-á a exploração das legislações

existentes no Brasil, desde o período imperial até o ano de 1990, quando foi promulgado o

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90). A escolha desse período é justificada

no fato de até meados do século XIX, a referência sobre a criança e o adolescente não serem

vistas em documentos oficiais no Brasil, sendo que as primeiras remissões a esses sujeitos

apareceram a partir da delinquência juvenil (BUDÓ, 2013b). Antes disso, a criança era tratada

pelo Direito como um objeto, tal qual um animal, que possuía donos, sendo esses os seus

responsáveis (SARAIVA, 2005, p. 25). Por isso, Méndez (2000) enumera que, do ponto de

vista do Direito, é possível dividir a história do Direito Juvenil em três etapas: “de caráter

penal indiferenciado; de caráter tutelar; e, de caráter penal juvenil”.

Ensina o autor que a primeira etapa, do caráter penal indiferenciado, ocorrida entre o

século XIX e a primeira década do século XX, é caracterizada por considerar os menores de

idade da mesma forma como se adultos fossem, fixando normas de privação de liberdade por

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um pouco menos de tempo do que os adultos. Além disso, essa etapa foi permeada pela

promiscuidade, pois tanto adultos como crianças eram recolhidas no mesmo ambiente físico.

O segundo momento, do caráter tutelar da norma, surge a partir do início do século

XX e tem origem nos Estados Unidos, irradiando-se por todo o mundo. Essa etapa surge com

a profunda indignação moral decorrente da situação de promiscuidade do alojamento de

maiores e menores nas mesmas instituições (MÉNDEZ, 2000).

A terceira e última etapa foi inaugurada com o advento da Convenção das Nações

Unidas de Direitos da Criança, a qual estabeleceu processos de responsabilidade juvenil,

caracterizada por conceitos como separação, participação e reponsabilidade:

O conceito de separação refere-se aqui à clara e necessária distinção, para começar

no plano normativo, dos problemas de natureza social daqueles conflitos com as leis

penais. O conceito, de participação [...] refere-se ao direito da criança formar uma

opinião e expressá-la livremente em forma progressiva, de acordo com seu grau de

maturidade. Porém o caráter progressivo do conceito de participação contém e exige

o conceito de reponsabilidade, que a partir de determinado momento de maturidade

se converte não somente em responsabilidade social, mas ao contrário, além disso e

progressivamente, numa responsabilidade de tipo especificamente penal [...].

(MÉNDEZ, 2000).

É na terceira etapa que surge o modelo instituído pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente, o qual demonstra que é possível e necessário superar tanto a visão pseudo

progressista e falsamente compassiva, de um paternalismo ingênuo de caráter tutelar quanto a

visão retrógrada de um retribucionismo hipócrita de mero caráter penal repressivo. O modelo

da responsabilidade penal dos adolescentes é o modelo da justiça e das garantias. (MÉNDEZ,

2000).

Gomes da Costa (1991) ressalta que a nova ordem constitucional estabelecida pelo

artigo 227, cuja concepção é decorrente da Convenção das Nações Unidas de Direito da

Criança, promoveu uma completa metamorfose no Direito da Criança no País, introduzindo

um novo paradigma, elevando o até então menor à condição de cidadão, fazendo-se sujeito de

direitos.

Este reconhecimento pelo ordenamento jurídico nacional da criança e do adolescente

como sujeito de direitos resulta de uma longa e penosa caminhada de lutas e conquistas.

Resulta do irreversível processo de construção de direitos humanos conquistados e afirmado

pela humanidade (SARAIVA, 2005), daí resultando que não há como ignorar os caminhos

percorridos para compreender a gênese sobre a criança e o adolescente, apropriando-se dessas

informações para melhor compreensão do que ora será debatido.

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1.2.2 O Código Criminal de 1830

Decorridos oito anos após Proclamação da Independência do Brasil, entra em vigor o

primeiro Código Penal brasileiro, que estabelecia a imputabilidade penal aos 14 anos de

idade7 (BRASIL, 1830). O limite biológico, entretanto, não abrangia as crianças escravas, “as

quais sequer eram consideradas seres humanos e contra quem imperavam os castigos

privados” (BUDÓ, 2013b). Além disso, no artigo 13 do Código Penal, encontrava-se a

possibilidade de punição penal aos menores de 14 anos, desde que se provasse que os mesmos

obraram com discernimento na prática do crime. Nesses casos, a pena restringia-se a idade de

17 anos. Segundo Liberati (2002, p. 28):

[...] Pelo Código Criminal do Império, os menores de 14 anos estavam isentos da

imputabilidade pelos atos considerados criminosos por eles praticados. Os infratores

que tinham menos de 14 anos e que apresentassem discernimento sobre o ato

cometido eram recolhidos às Casas de Correção, até que completassem 17 anos.

Entre 14 e 17 anos, estariam os menores sujeitos à pena de cumplicidade (2/3 do que

cabia ao adulto infrator) e os maiores de 17 e menores de 21 anos gozavam de

atenuante da menoridade.

Embora a adoção da idade mínima de 14 anos para a imputabilidade penal tenha sido

objeto de críticas por juristas da época, como Tobias Barreto (BUDÓ, 2013b), é importante

apropriar-se dos valores da época, pois em 1840 foi procedida a emancipação de Dom Pedro

II, que aos 14 anos de idade passou a governar o Brasil, sendo considerado adulto e, por isso,

apto ao casamento, que se consumou aos dezessete anos (SARAIVA, 2005, p. 29).

Enquanto no Brasil vigorava o Código Penal de 1830 e travava-se a luta abolicionista

da escravatura, nos Estados Unidos, em 1857, ganhava notoriedade e apoio o movimento

feminista, que germinou o direito dos menores, pois dentre os objetivos do movimento

encontrava-se a licença maternidade (NEGRÃO, 2015).

No Brasil, o marco protecionista das crianças e adolescentes surge com a Lei do

Ventre Livre, promulgada no ano de 1871 (SARAIVA, 2005, p. 30). Embora a Lei do Ventre

Livre seja exaltada nos bancos escolares de formação fundamental como um mecanismo que

coibiu a escravidão, é preciso analisá-la com olhos críticos em vista da pseudo-libertação que

se fez dos filhos dos escravos. Conforme ressalta Saraiva (2005): “A Lei do Ventre Livre [...]

em verdade era uma legislação perversa, cujo teor costuma ser ignorado nas escolas [...]”.

As críticas que se constroem em relação à Lei do Ventre Livre residem justamente na

falsa percepção de que o Brasil Império extinguiu a escravidão em relação aos filhos dos

7 Art. 10. Tambem não se julgarão criminosos: 1º Os menores de quatorze annos.

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escravos. A leitura da Lei revela realidade diversa da difundida pela história, pois estabelecia

que os filhos de escravas ficassem em poder e sob autoridade dos senhores de suas mães, os

quais teriam a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos. Quando a criança

atingia essa idade, o senhor da sua mãe podia optar entre receber do Estado a indenização

equivalente a 600$000, ou então, utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos. Em

sendo paga a indenização, o menor passaria para a guarda do Estado, que receberia o menor e

daria o destino em conformidade com a própria Lei (BRASIL, 1871).

O destino dos menores, a que se refere a Lei do Ventre Livre, está regulado pelo artigo

2º dessa, o qual estabelecia que uma vez paga a indenização, o governo poderia entregar a

criança a associações por ele autorizadas, as quais teriam o direito de explorar a sua mão-de-

obra até que atingissem a idade de 21 anos, ou então, poderiam alugar esses serviços

(BRASIL, 1871). Em outras palavras, a Lei do Ventre Livre estabeleceu que os filhos de

escravos tornar-se-iam livres somente a partir dos 21 anos de idade, permanecendo nesse

período submetidos a trabalhos forçados.

Nesse sentido, oportunas as considerações de Marcílio (1998, p. 139), que destaca que

“a assistência social no Brasil veio inicialmente marcada pela caridade privada”, que não só

acolhia os filhos de escravos, mas também, os filhos de famílias pobres, que os doavam aos

orfanatos porque não tinham condições de criá-los.

Foi nesse período que “o civilismo cristão vem acompanhado da medicina social e do

racionalismo das leis para justificar a reclusão e a disciplina do trabalho como formas de

adaptação à vida em sociedade” (LONGO, apud BUDÓ, 2013b). O ensino difundido às

crianças assistidas pela Santa Casa de Misericórdia limitava-se “[...] ao aprendizado das

atividades domésticas e educação familiar, esta fundamentada no binômio: autoridade –

obediência” (JESUS, 2006, p. 36). Ao atingir a idade entre 13 e 18 anos os menores deveriam

“receber um salário das famílias que lhes permitisse trabalhar” e aos meninos que fossem

devolvidos por mau comportamento, havia três opções: transferidos ao arsenal da guerra, ou

escola de aprendizes de marinheiros, ou oficinas do Estado. Enquanto as meninas “[...] tinham

como destino o recolhimento das órfãs, onde permaneciam até saírem casadas”. (BENEDITO,

2005, p. 53).

O que se percebe neste período é que tanto os filhos de escravos, assim como os filhos

desterrados de suas famílias em razão da pobreza e depositados nas “Rodas de Expostos”,

eram submetidos a hierarquias com alto poder de controle individual, que os ensinava a

obedecer e respeitar a autoridade, no intuito único de domesticá-los para o trabalho.

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1.2.3 Brasil República – o Código Penal de 1890

No final do século XIX, um ano após o Brasil Proclamar a Republica, entra em vigor o

Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. Neste Código, a imputabilidade penal manteve-

se fixada em 14 anos, no entanto, se ficasse comprovado que a criança tivesse obrado com

discernimento, a imputabilidade poderia ser reduzida para até nove anos de idade.

Nessa nova etapa normativa, nada mudou em relação à situação da criança no cenário

jurídico nacional. Porém, no apagar das luzes do século XIX (1896), aconteceu um episódio

de maus tratos à uma determinada criança moradora da cidade de Nova Iorque, o qual se

tornou, assim como o movimento feminista, outro marco no reconhecimento dos direitos das

crianças e adolescentes. O caso foi chamado de “Marie Anne” (SARAIVA, 2005).

Segundo relatos, a menina de nove anos de idade sofria intensos maus tratos dos seus

pais, fato que se tornou público na cidade. Entretanto, como a criança era considerada um

objeto, sob o ponto de vista do ordenamento civil, os pais entendiam que poderiam educá-la

da maneira que bem entendessem, pois se julgavam donos dos seus filhos. Porém, como os

castigos físicos impostos à pequena Marie Anne extrapolavam os limites toleráveis para a

época, tornando-se, de certa forma, insuportável aquela situação, os pais acabaram sendo

denunciados aos Tribunais Americanos (SARAIVA, 2005).

Além das agressões sofridas pela criança, outra coisa que causa surpresa nesse

lamentável episódio, foi o fato de a denúncia ter sido feita pela Sociedade Protetora dos

Animais de Nova Iorque (SARAIVA 2005). Ou seja, naquela época, a norma já conferia

proteção aos animais, mas ainda tratava as crianças como meros objetos desprovidos de

qualquer proteção, o que resultou em uma reflexão sobre a necessidade de lhe conferir a

condição de objeto de proteção do Estado.

Esse fato motivou os protetores dos animais, ou seja, os que haviam feito a denúncia

do caso Marie Anne, a fundar a primeira associação de proteção à infância, a chamada “Save

the Children of World”. Mais tarde, em 1899, o Estado Americano de Illinois, instala o

Primeiro Tribunal de Menores do mundo (SARAIVA, 2005), influenciando outros países a

fazerem os mesmo.

Porém, o que efetivamente marcou a afirmação dos direitos do menor foi a realização

do Congresso Internacional de Menores, em Paris, no período de 29 de junho a 01 de julho de

1911 e a Declaração de Gênova de Direitos da Criança, que foi adotada pela Liga das Nações

em 1924 (MÉNDEZ, 1998).

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Méndez (1998) destaca a importância do Congresso Internacional de Menores, não só

pela envergadura intelectual dos que dele participaram, os quais influenciaram diretamente a

criação dos juízos de menores por toda a Europa e América Latina, como especialmente

porque restaram assentados os princípios do novo direito dos menores.

A influência do Congresso Internacional de Menores, cujas bases estavam assentadas

na criminologia positivista, refletiu no Brasil, quando em 1923 foi instituído o primeiro

Tribunal de Menores (Juiz de Menores), através do Decreto Federal nº 16.273. Porém, em que

pese o inegável avanço na criação de uma justiça especializada em infância e juventude, não

podemos ignorar a advertência de Saraiva (2005, p. 35): “Se não mais se confundiam adultos

com crianças, desta nova concepção resulta um outro mal: a consequente criminalização da

pobreza”.

A constatação é reforçada pelo fato de o 7período em que foi realizado o Congresso

Internacional de Menores, coincidir com o marco teórico da criminologia positivista, cuja

visão sobre o crime era etiológica e determinista. Segundo destaca Budó (2013b, p. 56-8):

[...] Em termos ideológicos, a criminologia positivista dá origem à ideia da defesa

social e então, a partir desse momento, o agir sobre a chamada infância “desvalida”

passou a ser compreendido como uma forma de evitar a transformação – dada por

garantida – da criança abandonada na criança delinquente. [...] No contexto dessa

matriz teórica, empregada claramente na prática da institucionalização de crianças,

acaba se legitimando a ideia de que a pobreza gera criminalidade, e um novo tipo de

infância e adolescência é então criado: o da menoridade. [...]

A criminalização da pobreza fica evidente quando, em 1927, é promulgado no Brasil o

primeiro Código de Menores, popularmente conhecido como “Código Mello Mattos”, em

uma alusão ao primeiro Juiz de Menores da América Latina (PROMENINO, 2015). No artigo

primeiro do Código de Menores é possível identificar a seguinte interlocução: “Art. 1º O

menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de

idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção

contidas neste Codigo” (BRASIL, 1927).

A confusão conceitual operada pelo artigo 1º do Código de Menores, não distinguia

menores abandonados de menores delinquentes, recaindo na lógica perversa do binômio

carência/delinquência (SARAIVA, 2005). Na análise dessa normativa, identifica-se o caráter

etiológico formador da criminalidade, pois se a criança fosse desafortunada, era submetida às

medidas de assistência e proteção, ou seja, aquelas aplicadas às crianças em conflito com a

lei. Dessa forma, acabavam caindo nas engrenagens judiciais (ZAFFARONI, 2012) apenas os

desvalidos, segundo constatação de Budó (2013b, p. 59)

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[...] É evidente na história uma diferenciação essencial para compreender o status da

infância nesse período: o foco desse sistema assistencial, assim como o do

repressivo sempre foi voltado para os mesmos grupos sociais, aqueles das classes

sociais baixas e os negros. Como observa Rizzini, na análise da literatura histórica,

em diferentes fontes consultadas a respeito da criança, o que mais aparece é a

preocupação com os estratos empobrecidos da população, seja em razão de sua

orfandade, abandono, ou exposição, seja em função da libertinagem, vício ou

delinquência. [...]

Sob o ponto de vista do senso comum, a benemerência do Estado no acolhimento dos

menores abandonados ecoava como atos de humanidade. No entanto, sob o ponto de vista da

criminologia crítica, embora a criança abandonada pudesse representar um risco para si,

representava um risco muito maior para a sociedade, em razão dos pequenos delitos que viria

a cometer para sobreviver.

1.2.4 A era Vargas

O assistencialismo disciplinador e controlador aos menores continuou na era Vargas8,

sendo sancionado em 1940, o novo Código Penal, com substanciais mudanças em relação à

inimputabilidade dos menores, que passou a ser de 18 anos de idade. O Código ainda

estabeleceu uma atenuante para os que cometessem crimes entre a faixa etária abrangida dos

18 aos 21 anos.

Em 1942, foi criado o Serviço de Assistência ao Menor – SAM, embrião da Fundação

Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM) e das Fundações Estaduais de Bem Estar do

Menor (FEBENs), que entrariam em vigor no ano de 1964, com o golpe militar, depois que o

SAM recebeu diversas críticas em relação às péssimas condições que submetia os menores

(BUDÓ, 2013b).

O SAM era um órgão vinculado ao Ministério da Justiça e funcionava como um

equivalente do sistema penitenciário para a população menor de idade. Sua orientação, a

exemplo das demais casas existentes, era correcional-repressiva. Porém, o sistema previa

atendimento diferente para o adolescente autor de ato infracional e para o menor carente e

abandonado. Enquanto os adolescentes em conflito com a lei cumpriam medidas em

internatos e casas de correção, os menores carentes e abandonados eram internados em

patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos (PROMENINO, 2015).

A base do sistema, como afirma Budó (2013b, p. 65) era a internação para o

disciplinamento e, citando Veronese, pondera que: “[...] a internação significaria, sob esta

8 Período compreendido entre os anos de 1930 e 1945.

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ótica, a exposição máxima ao trabalho disciplinado, do qual resultaria a recomposição da

identidade da criança abandonada e infratora, dentro dos padrões convencionais de interação”.

Além do SAM, algumas entidades federais de atenção à criança e ao adolescente,

ligadas à figura da primeira dama, foram criadas. Dentre elas pode-se citar a LBA – Legião

Brasileira de Assistência, agência nacional de assistência social criada pela primeira dama

Darcy Vargas; Casa do Pequeno Jornaleiro, programa de apoio a jovens de baixa renda

baseado no trabalho informal e no apoio assistencial e sócio educativo; Casa do Pequeno

Lavrador, programa de assistência e aprendizagem rural para crianças e adolescentes filhos de

camponeses; Casa do Pequeno trabalhador, programa de capacitação e encaminhamento ao

trabalho de crianças e adolescentes urbanos de baixa renda; e, Casa das Meninas, programa de

apoio assistencial e sócio educativo a adolescentes do sexo feminino com problemas de

conduta (PROMENINO, 2015).

Em comum, todas elas capacitavam o menor para o trabalho braçal, doutrinando-os

com a educação da obediência e da subserviência, para se enquadrar nos “padrões sociais” da

época, conforme nota Veronese (apud BUDÓ, 2013b): “[...] a internação significaria, sob esta

ótica, a exposição máxima ao trabalho disciplinado, do qual resultaria a recomposição da

identidade da criança abandonada e infratora, dentro dos padrões convencionais de interação”.

Além da (in)assistência ao menor, o SAM era responsável pela confecção de pesquisas

e relatórios sobre as causas do abandono e da delinquência infantil (BUDÓ, 2013b, p. 64). O

problema dessas pesquisas e relatórios, é que partiam de premissas totalmente equivocadas,

ou seja, o objeto de pesquisas era o próprio menor interno ou recluso. Assim as pesquisas do

SAM se mostravam como uma profecia que se auto realiza, na medida em que quase todos os

menores possuíam o mesmo perfil social: família de baixa renda, negros, filhos de mãe

solteira, etc., conforme enfatiza RIZZINI (apud BUDÓ, 2013b):

A produção discursiva de todo o período da forte presença do Estado no

internamento de menores é fascinante, pelo grau de certeza científica com que as

famílias populares e seus filhos eram rotulados de incapazes, insensíveis, e uma

infinidade de rótulos [...].

Como em 1940 a maioridade penal foi elevada para os 18 anos de idade, logo em

seguida, em 1943, o Governo sancionou o Decreto-Lei nº 6.026, o qual dispõe sobre as

medidas aplicáveis aos maiores de 14 anos e menores de 18 pela prática de fatos considerados

infrações penais. No Decreto-Lei o menor é classificado em duas categorias: perigoso ou não

perigoso.

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Além de rotular o menor como perigoso ou não perigoso, o Decreto-Lei conseguiu

construir algo pior: nos casos em que era rotulado como não perigoso, deixava ao encargo do

Juiz decidir quando a internação em estabelecimento de reeducação ou profissional deveria

cessar.

Nos casos de menores perigosos, a decisão era mais subjetiva ainda, pois além de

dever ser declarada pelo Juiz, a cessação da internação dependia de parecer favorável do

diretor ou do órgão administrativo onde o menor estivesse internado, bem como, parecer do

Ministério Público. Em ambos os casos, contundia em evidencia o tratamento repressivo que

os menores eram submetidos, sejam eles pela pratica de ato infracional, seja pelo fato de

serem desvalidos.

1.2.5 O lançamento do embrião – Declaração dos Direitos da Criança pela ONU

No ano de 1959, a Assembleia das Nações Unidas promoveu a Declaração dos

Direitos da Criança, em seguida ratificada pelo Brasil, constituindo-se em um novo episódio

fundamental no ordenamento internacional na afirmação dos direitos da criança, servindo

como embrião de uma nova concepção jurídica sobre a infância, que irá evoluir no final da

década de 80 para a formulação da Doutrina da Proteção Integral (SARAIVA, 2005, p. 44-5).

O primeiro e segundo princípios da Declaração deixam claro que a criança deve ser um

sujeito de direitos e merece proteção:

Princípio 1

A criança gozará todos os direitos enunciados nesta Declaração. Todas as crianças,

absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção

ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou

de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra

condição, quer sua ou de sua família.

Princípio 2

A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e

facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento

físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de

liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em

conta sobretudo, os melhores interesses da criança (ONU, 1959).

Nesse contexto de final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, estabelece-se

uma importante fase de afirmação dos Direitos Humanos. Nos Estados Unidos, os negros

obtêm importantes avanços, sob o comando de Martin Luther King, sendo emblemático o

episódio de acesso à Universidade em condições igualitárias com os brancos, como o famoso

caso do Alabama (GOMES, 2015).

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Em 1962, sob influência da turbulência mundial gerada pelas incessantes lutas pelos

direitos humanos, o Brasil deu um pequeno passo, editando o Estatuto da Mulher Casada (Lei

nº 4.121/62), que dentre outros, alcançava uma condição de dignidade à mulher frente ao

tratamento desfavorável que a legislação lhe colocava, impondo a ela, até aquele instante,

uma condição submissa ao marido.

Se, por um lado, o Brasil avançava pequenos passos em relação a algumas demandas

dos Direitos Humanos, por outro, retroagia a passos largos nas demandas relacionadas ao

menor, como a criação da Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM), em

1964, mesmo após o País ter ratificado a Declaração dos Direitos da Criança da ONU, de

1959.

Se antes do golpe militar o problema do menor abandonado ou delinquente era tratado

de maneira puramente assistencialista, banindo-o da convivência em sociedade, agora o

Estado estava interessado em “pesquisar métodos, testar soluções, estudar técnicas que

conduzam à elaboração científica dos princípios que devem presidir toda ação que vise à

reintegração desses menores à sociedade” (BRASIL, 1976, p. 36). Ao descrever os objetivos

da FUNABEM, Budó (2013b, p. 68), cita que “um de seus objetivos declarados era o de

substituir a mentalidade repressiva e meramente assistencialista pela certeza científica”.

No projeto militar para os menores, não se encontravam elementos que se

correlacionassem com as propostas previstas na Declaração dos Direitos da Criança da ONU

de 1959, fato que é comprovado com a edição da Lei nº 6.697/1979 (Código de Menores), a

qual não se dirigia ao conjunto da população infanto-juvenil brasileira, mas somente àquelas

em situação irregular, quais sejam, os menores em conflito com a lei e os menores em estado

de necessidade, esses assim classificados pela manifesta incapacidade dos pais para mantê-

los, o que legitimaria, na visão militar, a sua colocação na condição de objeto potencial de

intervenção do sistema de Justiça (SARAIVA, 2005, p. 47). A leitura conjunta dos artigos 1º e

2º do Estatuto não deixa margem à interpretação diversa (BRASIL, 1979):

Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até

dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; Art. 2º Para os

efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de

condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que

eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b)

manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de

maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em

perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário

aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV -

privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou

responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar

ou comunitária; VI - autor de infração penal.

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O rótulo atribuído ao “menor-problema” é evidente, posto que pela ideologia

estabelecida pelo Código de Menores, todas aquelas crianças e adolescentes que não se

encaixavam no “padrão social estabelecido” pelo sistema, ou seja, famílias que de alguma

forma apresentassem “patologias sociais”, eram havidos como “inimigos” a serem “anulados”

pelo Estado. Se em relação aos maiores de idade a patologia social era tratada através do

direito penal, em relação às crianças e adolescentes, o remédio era o Código de Menores.

Existindo a situação de irregularidade, que poderia ser derivada de conduta delituosa

praticada pelo menor, ou então, quando esse era vítima de maus-tratos, ou até mesmo vítima

de abandono social (nos casos em que privado das suas necessidades básicas), o Estado estava

autorizado a agir.

Em relação à primeira e à segunda hipóteses – menor autor de fato criminoso e menor

vítima de maus tratos – embora pudesse haver certa divergência quanto à atuação estatal em

retirar o menor do convívio familiar e colocá-lo em internatos, certo é que na terceira hipótese

– privação de necessidades básicas – jamais poder-se-ia admitir que o Estado retirasse da

família a tutela daquele menor, mas sim, fornecesse estrutura para suprir aquela necessidade.

Porém, historicamente, sob o ponto de vista econômico, a resolução dos problemas

sociais é menos dispendiosa quando se criminaliza condutas, ao invés de tratar as causas da

desigualdade que geram as criminalizações, segundo a constatação de Zaffaroni (2012, p. 12):

Como em qualquer emergência, à medida em que a situação vai se tornando

insustentável, começa a operar-se a evasão mediante mecanismos negadores que, em

nosso caso, aparentam conservar a antiga segurança da resposta, embora

reconheçam-se problemas que costumam ser deixados de lado, através de uma

delimitação discursiva que evita confrontar a crise.

A percepção de que o Código de Menores foi promulgado para “anular” os

“desalinhados sociais”, sem se preocupar com a resolução do problema na origem –

desigualdade social – é comprovada pelo fato de que 80% da população infanto-juvenil

recolhida ao sistema da FEBEM, por todo o Brasil e durante a vigência do Código de

Menores, era formada por menores que não haviam cometido qualquer fato definido como

crime pela legislação penal brasileira (SARAIVA. 2005, p. 51). Conforme MÉNDEZ (apud

SARAIVA, 2005, p. 51), na maior parte das vezes prendia-se a vítima, sem sequer lhe

oportunizar as garantias processuais de defesa.

Outro episódio fático que fortalece a tese de encarceramento da pobreza, é sintetizada

na diligência judicial realizada junto ao Juizado Especial da Infância e da Juventude da

Comarca de Porto Alegre, logo em seguida a promulgação do Estatuto da Criança e do

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Adolescente, em 1990, pelo Juiz titular da Vara Marcel Hoppe, onde esse encontrou mais de

vinte e cinco mil processos em tramitação no Juizado, sendo que após uma triagem, esse

número foi reduzido para pouco mais de três mil ações. (SARAIVA, 2005, p. 51).

Os dados são reveladores quanto ao tratamento dispensado aos menores em situação

de abandono moral e material, optando-se por bani-los da vida em sociedade, ao invés de criar

políticas públicas que atendessem as demandas sociais para erradicação da exclusão e da

pobreza.

1.2.6 A eclosão do embrião – Doutrina da Proteção Integral (?)

Passados 20 anos desde a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, a ONU fez um

balanço mundial sobre os avanços alcançados na efetivação daqueles direitos enunciados e

percebeu que em razão da baixa aderência dos países signatários, era necessária a criação de

uma normativa internacional com força cogente, apta a dar efetividade aos direitos

preconizados naquela Assembleia, o que ocorreu dez anos mais tarde, em 1989, quando foi

promulgado o resultado do trabalho de um grupo de estudos da Comissão de Direito Humanos

da ONU (MÉNDEZ, 2006).

Percebendo que o desenvolvimento da personalidade da criança deveria passar pela

convivência familiar, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão, e que ela deveria

estar plenamente preparada para uma vida independente na sociedade, devendo para isso ser

educada de acordo com os ideais de dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e

solidariedade, a Assembleia teve como objetivos promover o progresso social e a elevação do

nível de vida com mais liberdade, através da adoção de políticas fundadas no reconhecimento

da dignidade humana e da igualdade de todos, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça,

cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra natureza, seja de origem nacional ou

social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição (ONU, 1989).

A discussão estabelecida no grupo de estudos da Comissão de Direito Humanos da

ONU acabou repercutindo aqui no Brasil, quando então, em 1988, foi promulgada a nova

Constituição Federal, que trouxe em seu artigo 2279 e 228 a seguinte redação:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao

adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

9 Redação original de 1988, antes da emenda constitucional nº 64, de 2010.

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liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às

normas da legislação especial. (BRASIL, 1988).

Esse corpo de legislação internacional e, a partir de 1988, constitucional, modifica

totalmente a velha doutrina da situação irregular, inaugurando um novo marco na história dos

direitos humanos das crianças e adolescentes denominada de “Doutrina da Proteção Integral”,

a qual tem presente, nas palavras de Aquino e Linhares (2015, sp.): “[...] o “Cuidado” como

base dos Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente. Essa afirmação se manifesta

pelo direito à vida, à saúde, à educação, à dignidade, ao respeito, dentre outros. [...]”.

Essa nova ordem normativa trouxe a criança e o adolescente para uma condição de

sujeito de direito, de protagonista de sua própria história, titular de direitos e obrigações

próprios de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, dando um novo contorno

ao funcionamento da Justiça Juvenil, abandonando o conceito de menor, como subcategoria

de cidadania. (SARAIVA, 2005, p. 57).

Em 1990, o Brasil promulga a Lei nº 8.069/90, criando o Estatuto da Criança e do

Adolescente, figurando como o primeiro País latino-americano a adotar a doutrina da proteção

integral. Entretanto, como observa Budó (2013b, p. 80):

Isso não significou [...] que não se esteja enfrentando, nas duas últimas décadas

sérias dificuldades em sua implementação. [...] Para efetivar toda a programação

trazida pelo Estatuto, a adoção do paradigma da proteção integral exige várias

mudanças a serem proporcionadas, seja no conceito e no rol das principais

instituições públicas destinadas à infância, seja na produção de uma “revolução na

linguagem, o que constitui um relevante sinal de transformação no plano normativo:

fala-se e escreve-se sempre menos sobre ‘menores’, e sempre mais de ‘infância’, de

crianças, de adolescentes e seus direitos.

Como dito no início deste subcapítulo, ainda é possível observar, em especial nas

periferias de quase todas as cidades brasileiras, situações que demonstram que a realidade

destoa das normas protecionistas instituídas pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente, o que está relacionado não só a questões estruturais, como observa Méndez,

citado por Budó (2013a), mas em especial e talvez a mais tormentosa de todas seja o

problema de interpretação na representação da criança e do adolescente em relação as

políticas públicas relacionadas a eles, as quais podem ser resumidas a três:

[...] repressivos – não ultrapassaram a situação irregular; protetivos e democráticos,

que defendem a responsabilização dos adolescentes e primam pelas políticas de

universalização das políticas sociais, mais a que programas assistencialistas

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pontuais, sempre atravessada pela participação política da sociedade mas também

das próprias crianças e adolescentes; e uma posição, que assume teoricamente os

postulados da proteção integral, mas não arca com todas as suas consequências,

especialmente a de abrir mão dos conceitos de vulnerabilidade e situação de risco,

de maneira a acabar com a discricionariedade para lidar com a infância. Trata-se do

paradigma da ambiguidade (BUDÓ, 2013a).

Em levantamento realizado entre os meses de abril a agosto de 2009, pelo Conselho

Nacional de Justiça, sobre a “Justiça Infanto juvenil” no Brasil, dentre outros, foram

investigados o perfil dos processos que chegam às Varas da Infância e Juventude, tendo como

objetivo traçar um panorama das demandas da infância e da adolescência (CNJ, 2012). A

pesquisa concluiu que no ano de 2008, 34.454 crianças e adolescentes haviam sido vítima de

delitos, como maus tratos, abandono, abuso sexual, negligência, tráfico sexual, prostituição

infantil, falta de acesso à educação, falta de acesso ao sistema de saúde. No mesmo ano,

143.549 adolescentes foram acusados pela prática de atos infracionais. A pesquisa do CNJ

não se propôs a investigar as possíveis causas desses números. Porém, eles revelam que a

prioridade do Estado é a apuração do ato infracional, ao invés da adoção de políticas públicas

que erradiquem os problemas sociais que levam à criminalização, conforme observa Budó

(2013b, p. 80), ao citar Baratta: “Contudo, a implementação das políticas sociais básicas vem

conflitando com o sistema econômico hegemônico na atualidade, de modo que os níveis

assistencial e correcional dessa legislação parecem ser encarados como prioridade”.

Embora o ECA tenha assento no princípio de que todas as crianças e adolescentes,

sem distinção, desfrutem dos mesmos direitos e sujeitem-se a obrigações compatíveis com a

peculiar condição de desenvolvimento que desfrutam, é fato que a realidade demonstra uma

condição bem diferente, justamente porque a proteção integral prevista pela norma é

timidamente contemplada pelos orçamentos dos Estados Brasileiros.

Apenas 34.454 processos de crianças que haviam sido vítimas de delitos foram

registrados nas Varas dos Juizados da Infância e Juventude, ao passo que no ano de 2002 o

contingente nacional, refere que há aproximadamente 100.000 crianças de sete a 18 anos

vivendo nas ruas do país e cerca de um milhão de crianças e adolescentes vivem

institucionalizados, ou seja, distantes do convívio familiar por diferentes motivos e

submetidos, frequentemente, às diversas formas de violência e privação (ABREU, 2002).

Além de o Estado não se preocupar com a erradicação dos problemas sociais

relacionados a criança e ao adolescente, ainda permite que vigore a doutrina da situação

irregular, pois se analisarmos os gráficos de criminalização disponibilizados pela Fundação de

Atendimento Sócio Educativo do Estado do Rio Grande do Sul (FASE, 2015), relacionados

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aos dados existentes em 01 de junho de 2015, perceberemos que dos 1.195 adolescentes que

cumprem medidas socioeducativas na instituição, 796 encontram-se na faixa escolar que

abrange a 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries do ensino fundamental.

Se considerarmos as diretrizes e bases da educação nacional, sejam elas no modelo

antigo (exigindo a pré-escola e mais 8 anos para a conclusão do ensino fundamental) ou no

modelo atual (extinguindo a pré-escola, mas exigindo 9 anos para a conclusão do ensino

fundamental), ambos com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade, temos que

os adolescentes deveriam possuir 11, 12, 13 e 14 anos idade, quando estivessem cursando a

5ª, a 6ª, a 7ª e a 8ª séries do ensino fundamental, respectivamente.

No entanto, se analisamos outro gráfico disponibilizado no site da Fundação, o que

está relacionado à idade dos adolescentes que praticaram atos infracionais, constatamos que

os adolescentes com 12, 13 e 14 anos de idade10, representam apenas 62 delitos, de um total

de 1.183 delitos informados.

Confrontando-se os dados, é fácil perceber que mais da metade dos adolescentes que

cumprem medida socioeducativa no Estado do Rio Grande do Sul, possuem um déficit de

escolaridade muito grande. Ou seja, se considerarmos que os adolescentes tenham sido

matriculados na idade prevista e não tenham reprovado em nenhum ano escolar e, com a

idade de 11, 12, 13 e 14 anos, tenham acessado a 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries do ensino fundamental,

teríamos o resultado lógico de apenas 62 delitos praticados por esse perfil. No entanto, os

dados revelam que 796 adolescentes que cumprem medida socioeducativa frequentam a 5ª, a

6ª, a 7ª e a 8ª séries do ensino fundamental, o que comprova o déficit escolar (FASE, 2015).

Nesse cenário, a deficiência escolar acaba se tornando uma marca seletiva no indivíduo.

Os dados revelam que a doutrina da proteção integral não está sendo contemplada pelo

Governo, bem como, que a doutrina da situação irregular ainda está presente no âmbito dos

Juizados da Infância e Juventude.

10 As crianças de 11 anos de idade não foram computadas, uma vez que elas são inimputáveis sob o ponto de

vista legal e, por isso, não fazem parte das estatísticas de criminalização.

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2 A REPRESENTAÇÃO DO ADOLESCENTE NA PEC 171/1993 DA CÂMARA DOS

DEPUTADOS FEDERAIS

O objetivo deste capítulo é analisar quantitativamente todas as propostas de emenda à

Constituição Federal, propostas a partir de 1988 pela Câmara dos Deputados, e que tenham

por objetivo a redução da maioridade penal. A partir da análise dessas propostas, a pesquisa

será qualitativa e delimitada na PEC nº 171/1993, a qual é a única com votação concluída e

remetida para apreciação do Senado Federal. No segundo tópico, a partir da análise, serão

classificados os discursos dos parlamentares, para identificar como o adolescente é

representado pelo Congresso Nacional.

2.1 ANÁLISE DAS PROPOSTAS DE EMENDA CONSTITUCIONAL A PARTIR DE 1988

O presente tópico tem por objetivo identificar a representação do adolescente pela

Câmara dos Deputados Federais do Brasil nas demandas por redução da maioridade penal.

Por isso, a opção de pesquisa aqui adotada é empírica, através do método “teoria

fundamentada de dados” (TFD) uma vez que analisará as propostas de emenda à Constituição,

oferecidas a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, as quais tiveram por

objetivo as referidas demandas.

A pesquisa ocorreu no sítio da Câmara dos Deputados11, onde foi selecionada a opção

“pesquisa avançada”, disponível no campo “proposições”, abrindo-se uma nova janela. Na

nova janela foi marcada a opção “PEC – Proposta de Emenda à Constituição”; o campo

“assunto” foi preenchido com o vocábulo “imputabilidade penal”. O resultado da busca

encontrou 28 ocorrências, sendo elas:

Número

da PEC

Ano da

proposição

Deputado Federal Partido de filiação do Deputado

14 1989 Telmo Kirst PDS/RS

95 1992 Valdemar Costa Neto PL/SP

98 1992 Solon Borges dos Reis PTB/SP

171 1993 Benedito Domingos PP/DF

91 1995 Aracely de Paula PFL/MG

531 1997 Feu Rosa PSDB/ES

68 1999 Luiz Antonio Fleury PTB/SP

150 1999 Marçal Filho PMDB/MS

321 2001 Alberto Fraga PMDB/DF

377 2001 Jorge Tadeu Mudalen PMDB/SP

63 2003 André Luiz PMDB/RJ

11 http://www2.camara.leg.br/

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79 2003 Wladimir Costa PMDB/PA

302 2004 Almir Moura PL/RJ

309 2004 José Roberto Arruda PFL/DF

327 2004 Amauri Gasques PL/SP

48 2007 Rogerio Lisboa PFL/RJ

73 2007 Alfredo Domingos PSDB/PR

79 2007 Fernando Fabino DEM/BA

85 2007 Onyx Lorenzoni DEM/RS

87 2007 Rodrigo de Castro PSDB/MG

125 2007 Fernando de Fabinho DEM/BA

399 2009 Paulo Roberto Pereira PTB/RS

228 2010 Keiko Ota PSB/SP

57 2011 André Moura PSC/SE

273 2013 Onyx Lorenzoni DEM/RS

279 2013 Sandes Junior PP/GO

302 2013 Jorginho Mello PR/SC

382 2014 Akira Otsubo PMDB/MS

QUADRO 1 – PROPOSTAS DE EMENDA CONSTITUCIONAL PARA A REDUÇÃO DA MAIORIDADE

PENAL NA CÂMARA DOS DEPUTADOS.

Fonte: Website da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br).

A sigla dos partidos políticos a que pertencem ou pertenciam os deputados autores das

proposições foram mantidas de acordo com o resultado obtido na consulta. A referida ressalva

é necessária porque alguns partidos foram extintos ou então deram origem a outros.

Identificadas todas as proposições com o critério de busca informado, e tendo em vista

o grande número de ocorrências encontradas, o que demandaria vários meses de análise e uma

extensa carga de informações, cuja classificação e agrupamento seriam impossíveis de se

concretizarem no prazo conferido para a realização desta pesquisa, optou-se por delimitar o

objeto de análise em relação às propostas cuja tramitação já havia sido concluída na Câmara

dos Deputados Federais. Como resultado, obteve-se apenas uma ocorrência, a PEC 171/1993,

a qual foi aprovada em primeiro e segundo turnos de votação e, em 21 de agosto de 2015,

remetida para apreciação pelo Senado Federal (BRASIL, 1993).

Originariamente a proposta de emenda à Constituição nº 171/1993, foi proposto pelo

então Deputado Federal Benedito Domingos, na época filiado ao Partido Progressista do

Distrito Federal (PP/DF), e tinha por objetivo modificar o artigo 228 da Constituição Federal,

para possibilitar atribuir responsabilidade criminal ao jovem maior de dezesseis anos em

qualquer tipo de delito. Segundo a proposta a redação do artigo 228 da Constituição Federal,

deveria passar a ter a seguinte redação: “Art. 228 - São penalmente inimputáveis os menores

de dezesseis anos, sujeitos às normas da legislação especial.”

Desde a sua propositura, ocorrida em 19 de agosto de 1993, a PEC recebeu 37

apensamentos, os quais podem ser classificados a partir dos objetivos identificados abaixo, no

Quadro 2:

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Número

PEC

Objetivo Geral da PEC Especificidades

37/1995 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

91/1995 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

301/1996 Reduzir a maioridade penal para 16 anos =

386/1996 Reduzir a maioridade penal apenas para

alguns crimes

Redução para 16 anos apenas para crimes contra a

pessoa e contra o patrimônio e os definidos em lei

como hediondos, observado o que determina o art.

5º, LVIII, da Constituição Federal

426/1996 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

531/1997 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

68/1999 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

133/1999 Reduzir a maioridade penal para 16 anos =

150/1999 Reduzir a maioridade penal para 16 anos =

167/1999 Reduzir a maioridade penal para 16 anos =

169/1999 Reduzir a maioridade penal para 14 anos =

633/1999 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos,

estando ou não o adolescente emancipado

260/2000 Reduzir a maioridade penal para 17 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

321/2001 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

Estabelece que a maioridade penal será fixada em

lei, devendo ser observados os aspectos

psicossociais do agente, aferido em laudo emitido

por junta de saúde que avaliará a capacidade de se

autodeterminar e de discernimento do fato

delituoso

377/2001 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

582/2002 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

64/2003 Reduzir a maioridade penal para 16 anos A lei disporá sobre casos excepcionais de

imputabilidade para menores de dezoito anos e

maiores de dezesseis anos

179/2003 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

242/2004 Reduzir a maioridade penal para 14 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

272/2004 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

302/2004 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

São penalmente inimputáveis os menores de

dezoitos anos, salvo parecer em contrário de junta

médico jurídica, na forma da Lei, ratificado pelo

juízo competente, no caso do infrator ser maior de

16 anos

345/2004 Reduzir a maioridade penal para 12 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

489/2005 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

Submissão a prévia avaliação psicológica, podendo

o juiz concluir pela imputabilidade, se julgar que o

seu grau de maturidade justifica a aplicação da

pena.

48/2007 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

73/2007 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

A autoridade judiciária decidirá sobre a

imputabilidade penal do menor de dezoito anos,

avaliada sua capacidade de entender o caráter

delituoso do fato e de autodeterminar-se conforme

esse entendimento através de laudo médico e

psicológico

85/2007 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

Redução para 16 anos apenas para os crimes

dolosos contra a vida e desde que autorizado por

exame psicossocial a ser decidido por junta

designada pelo juiz

87/2007

Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

Redução sem idade mínima fixada, mas aplicada

apenas para crimes dolosos contra a vida,

inafiançável e insuscetível de graça ou anistia ou

imprescritível, a partir de decisão do juiz acerca da

imputabilidade penal do menor

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125/2007 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

A imputabilidade penal do adolescente será

determinada por decisão judicial, proferida em

cada caso com fundamento nos fatores

psicossociais e culturais do agente, e nas

circunstâncias em que foi praticada a infração

penal. As crianças são penalmente inimputáveis

399/2009

Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

Redução para 14 anos apenas para os crimes

praticados com violência ou grave ameaça à

integridade física da pessoa, desde que autorizado

pelo juiz a partir do exame psicossocial

57/2011 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

A imputabilidade penal do maior de 16 anos será

determinada por intermédio de perícia e decisão

judicial, proferida em cada caso com fundamento

nos fatores psicossociais e culturais do agente

223/2012 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

228/2012 Reduzir a maioridade penal apenas para

alguns crimes

Reduzir para 16 anos e apenas para crimes

cometidos com violência ou grave ameaça, crimes

hediondos e crimes contra a vida, devendo a pena

ser cumprida inicialmente em centros de

ressocialização para cumprimento de medidas

socioeducativas até o agente completar vinte e um

anos de idade, a partir de quando o indivíduo será

transferido para unidade prisional comum

273/2013 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

O exame aplicar-se-ia apenas para os menores

entre 16 e 18 anos que praticassem crimes

hediondos ou assemelhados a hediondos, sendo o

exame decidido por equipe multidisciplinar,

devendo o menor que tiver reconhecida a sua

imputabilidade cumprir a pena em instituição

adequada à sua condição e, após os 18 anos, em

estabelecimento prisional comum

279/2013 Reduzir a maioridade penal para 16 anos Reduzir a maioridade penal a todos os delitos

332/2013 Não reduzir a maioridade penal Determinar que, com 18 anos, a medida

socioeducativa seja extinta e que o maior de 18

anos continue a responder, nos termos da lei penal,

em unidade prisional exclusiva para abrigar

internos oriundos do sistema socioeducativo

382/2014 Reduzir a maioridade penal apenas para

alguns crimes

Sem idade mínima fixada e apenas para os crimes

hediondos

438/2014 Reduzir a maioridade penal a partir de exame

psicossocial a ser decidido pelo juiz

Sem idade mínima fixada e atribuindo à lei

complementar a regulamentação do exame,

denominado de incidente de relativização da

inimputabilidade penal

QUADRO 2 – PROPOSTAS DE EMENDA CONSTITUCIONAL APENSADAS PEC 171/1993.

Fonte: Website da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br).

Antes de ser aprovada, a proposta ainda passou pela relatoria de seis Deputados

Federais, tendo sofrido, durante o seu trâmite, cinco arquivamentos, sendo o último no dia 01

de janeiro de 2015, em razão do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados,

pela mudança da legislatura. No entanto, a proposta foi desarquivada no dia 06 de fevereiro de

2015 e doravante passou a tramitar rapidamente, culminando com o parecer do relator da

Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), a apresentação dos votos em separado

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na sequência, e a votação, pela CCJC no dia 31 de março. Nessa votação, foi vencedor o

parecer do Deputado Marcos Rogério (PDT-RO), pela admissibilidade da proposta.

No voto, o Deputado Relator destacou que a PEC não afrontava a Convenção Sobre os

Direitos da Criança, da Assembleia Geral das Organizações Unidas; que não infringia o Pacto

de San José da Costa Rica, assim como as cláusulas pétreas constitucionais, concluindo que a

aprovação da proposta serviria como instrumento que contribuiria com a redução da

criminalidade.

Depois de aprovado o parecer da CCJC, em 09 de junho de 2015 o Deputado Laerte

Bessa, já na condição de Relator da PEC 171/1993, apresentou parecer favorável à aprovação

da PEC 171/1993, bem como das seguintes PEC’s apensadas: PEC 426/1996, PEC 37/1995,

PEC 91/1995, PEC 301/1996, PEC 531/1997, PEC 68/1999, PEC 133/1999, PEC 150/1999,

PEC 167/1999, PEC 633/1999, PEC 377/2001, PEC 582/2002, PEC 64/2003, PEC 179/2003,

PEC 272/2004, PEC 48/2007, PEC 223/2012, e PEC 279/2013, na forma do parecer

substitutivo.

A primeira votação sobre o mérito da PEC 171/1993 ocorreu no dia 30 de junho de

2015 e adentrou na madrugada do dia 01 de julho. O texto submetido à aprovação tratava-se

de uma proposta modificada, proveniente dos debates nas Comissões. Assim, a proposta

votada inicialmente pelo plenário da Câmara foi a de autoria do Deputado Jutahy Junior, cujo

parecer foi aprovado em 17 de junho de 2015 pela Comissão Especial.

A emenda que foi votada modificaria o artigo 228 da Constituição Federal, para

reduzir a maioridade penal, tornando imputáveis os maiores de 16 anos nos casos dos crimes

de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, crimes hediondos,

homicídio doloso, lesão corporal grave, lesão corporal seguida de morte e roubo com causa de

aumento de pena, além de estabelecer que nesses casos as penas deveriam ser cumpridas em

estabelecimentos penais diversos daqueles ocupados pelos maiores de dezoito anos e pelos

menores inimputáveis, conforme a redação constante na emenda:

Art. 1º. O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às

normas da legislação especial, ressalvados os maiores de dezesseis anos nos casos

de: I – crimes previstos no art. 5º, inciso XLIII; II – homicídio doloso; III – lesão

corporal grave; IV – lesão corporal seguida de morte; V – roubo com causa de

aumento de pena. Parágrafo único. Os maiores de dezesseis e menores de dezoito

anos cumprirão a pena em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e

dos menores inimputáveis. (NR)” Art. 2º A União, os Estados e o Distrito Federal

criarão os estabelecimentos a que se refere o art. 1º desta Emenda à Constituição.

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Na primeira votação, a emenda foi rejeitada pelo Plenário da Câmara dos Deputados,

uma vez que para a aprovação era exigido o número mínimo de 308 votos favoráveis, ao

passo que 303 foram favoráveis, 184 foram contrários e 3 se abstiveram da votação.12

Proclamado o resultado durante a madrugada do dia 01 de julho de 2015, o Presidente

da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, referiu que a votação da PEC 171/1993 ainda não

estaria encerrada, pois o que havia sido rejeitado pelo Plenário era a emenda proposta pela

Comissão Especial. Segundo Eduardo Cunha:

[...] Eu sou obrigado a votar a PEC original para concluir a votação ou o que os

partidos apresentarem. No curso da votação, poderão ser apresentadas

várias emendas aglutinativas. A votação ainda está muito longe de acabar, foi uma

etapa dela [...].13

No decorrer do dia 01 de julho de 2015, ou seja, hora depois de o Plenário da Câmara

ter rejeitado o substitutivo da PEC 171/1993, os Deputados Federais apresentaram 11

emendas aglutinativas a ela, quase todas favoráveis à redução da maioridade penal, com

exceção da emenda do Deputado Sibá Machado, que apenas aumentava o prazo de internação

de adolescentes em conflito com lei, desde que condenados em crimes dolosos contra a vida

ou por crimes contra a liberdade sexual. Os parlamentares que apresentaram as emendas

aglutinativas foram:

Número da emenda Deputado Federal Partido de filiação do Deputado

07/2015 Daniel Vilela PMDB/GO

08/2015 Sibá Machado PT/AC

09/2015 Rogério Rosso PSD/DF

10/2015 Onyx Lorenzoni DEM/RS

11/2015 Carlos Marun PMDB/MS

12/2015 Carlos Henrique Gaguim PMDB/TO

13/2015 Rogério Rosso PSD/DF

14/2015 Rogério Rosso PSD/DF

15/2015 Rogério Rosso PSD/DF

16/2015 Rogério Rosso PSD/DF

17/2015 Onyx Lorenzoni DEM/RS

QUADRO 3 – EMENDAS AGLUTINATIVAS DA PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL

171/1993.

Fonte: Website da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br).

12 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/491397-CAMARA-REJEITA-PEC-QUE-

REDUZ-MAIORIDADE-PENAL-PARA-CRIMES-HEDIONDOS.html 13 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/491397-CAMARA-REJEITA-PEC-QUE-

REDUZ-MAIORIDADE-PENAL-PARA-CRIMES-HEDIONDOS.html

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Das 11 emendas aglutinativas propostas, a de número 16/2015, do Deputado Rogério

Rosso, foi colocada em pauta para votação, na sessão ocorrida no próprio dia 01 de julho de

2015. Segundo a proposta, o artigo 228 da Constituição Federal deveria vigorar com a

seguinte redação:

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da

legislação especial, ressalvados os maiores de 16 anos, observando-se o

cumprimento da pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos e dos

menores inimputáveis, em casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão

corporal seguida de morte.14

A emenda aglutinativa, proposta pelo Deputado Rogério Rosso, pouco diferia daquela

apresentada pela Comissão Especial, pois ao passo que mantinha a imputabilidade penal para

os crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte, afastava a

imputabilidade em relação aos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas

afins, terrorismo, roubo qualificado e lesão corporal grave, os quais haviam sido

contemplados pela emenda anteriormente rejeitada.

Nessa nova votação15, o plenário da Câmara dos Deputados acabou aprovando a

emenda. Foram 323 votos a favor e 155 contrários na votação em primeiro turno16 e 320 votos

favoráveis e 152 votos contrários17, na votação do segundo turno, essa ocorrida entre os dias

18 e 19 de agosto de 2015, quando então a PEC foi remetida para apreciação do Senado

Federal.

Concluída a análise preliminar sobre os trâmites percorridos entre a data da

propositura da PEC 171/1993 até a data da sua conclusão, a pesquisa selecionou algumas

etapas de onde puderam ser extraídos elementos que permitissem ao pesquisador identificar

categorias para tratar sobre as representações políticas a respeito do problema enfrentado, de

suas causas, e da solução para tal.

As etapas selecionadas pela pesquisa correspondem à justificativa da proposição,

apresentada pelo Deputado Benedito Domingos, no ano de 1993, e aos pareceres e votos

14http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1356032&filename=EMA+16/2015

+%3D%3E+PEC+171/1993 15 A inclusão em pauta do novo tema logo após o Plenário da Câmara ter rejeitado proposta semelhante, assim

como a maneira como ocorreu a votação (com as portas do Plenário fechadas ao público), despertou críticas da

comunidade jurídica, conforme pode ser lido no artigo “Democracia às escuras”, publicado no site Empório do

Direito: http://emporiododireito.com.br/democracia-as-escuras-por-fausto-santos-de-morais-e-jose-paulo-

schneider-dos-santos/ 16 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/491507-CAMARA-APROVA-EM-1-

TURNO-REDUCAO-DA-MAIORIDADE-PENAL-EM-CRIMES-HEDIONDOS.html 17 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/494248-CAMARA-APROVA-

EM-2-TURNO-REDUCAO-DA-MAIORIDADE-PENAL-EM-CRIMES-GRAVES.html

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emitidos pela CCJC, a partir do dia 09 de junho de 2015, quando houve a apresentação do

relatório da Comissão Especial, de autoria do Deputado Laerte Bessa.

Os votos proferidos no Plenário da Câmara dos Deputados, quando ocorreu a votação

da PEC 171/1993, não foram selecionados para análise na presente pesquisa, pois embora a

leitura que se fez sobre os mesmos ter demonstrado que possuam conteúdos e discussões

interessantes, sob o ponto de vista técnico, as justificativas neles contidas são inferiores

àquelas extraídas dos votos e pareceres da CCJC, o que pode ser explicado pelo fato de os

parlamentares possuírem regimentalmente apenas cinco minutos para justificar a sua posição

no Plenário.18

Ao analisar as justificativas dos projetos de lei sobre o aumento do prazo de

internação, Budó (2013) observa que há uma recorrência na estrutura dessas propostas. Em

geral, elas iniciam com a apresentação do problema social enfrentado pelo Deputado através

da proposta. Em seguida, expõe qual é a causa do problema, para, enfim chegar à proposição

e à explicação da maneira como ela representa a solução para o problema.

O caso da PEC 171/1993 não é exceção a essa regra. Em razão disso, as categorias de

análise dos votos serão induzidas a partir dessas macrocategorias que levarão à resposta do

problema: quais são as representações sociais sobre o adolescente autor de ato infracional, o

ato infracional e a resposta estatal, compartilhadas pelos deputados federais nos votos das

comissões na tramitação da PEC 171/1993.

2.1.1 Representação do problema social enfrentado

Nesta categoria foram identificadas afirmações, tanto na justificativa apresentada

quando da propositura da PEC, como também nos discursos que a sucederam, que permitiram

formar outras três subclassificações para o problema: maturidade precoce do adolescente

contemporâneo; aumento da criminalidade juvenil e insegurança social.

2.1.1.1 Maturidade precoce do adolescente contemporâneo

Como justificativa inicial para a propositura da PEC 171/1993, o Deputado Federal

Benedito Domingos referiu que a idade biológica para a inimputabilidade adotada pelo

ordenamento jurídico brasileiro, levava em consideração a capacidade para entendimento do

18 Artigo 174, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados Federais.

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ato delituoso, sendo ajustado que menores de dezoito anos não teriam capacidade para

compreender o caráter ilícito das suas condutas, pouco importando o seu desenvolvimento

mental.

O deputado sustentou que a idade cronológica adotada não correspondia à idade

mental e, por isso, quando da edição do Código Penal de 1940, o jovem possuía

desenvolvimento mental inferior aos jovens de 1993 (data da propositura da PEC) da mesma

idade.19

Vinte e dois anos se passaram desde a elaboração daquela justificação. Contudo,

muitos dos argumentos apresentados nas comissões tiveram características semelhantes

àquela apresentada pelo Deputado autor da PEC. Um exemplo é o discurso do Deputado

Laerte Bessa, que na relatoria da proposta concluiu que a imputabilidade penal “leva em

consideração os níveis de desenvolvimento biológico e de normalidade psíquica”. Para o

deputado, a manutenção da imputabilidade penal aos 18 anos deverá ser revista, face ao

amadurecimento do jovem em razão da facilidade da informação, da liberdade sexual e dos

estímulos precoces de desenvolvimento. Ainda segundo ele, o amadurecimento precoce dos

jovens estaria comprovado pelas estatísticas de criminalização entre adolescentes de 14 aos 18

anos de idade. Segundo o seu relatório:

[...] Quanto à nova idade para a maioridade penal, consideramos que a fixação em

16 anos é um marco razoável. Com razão, estudos de criminologia identificam uma

curva de criminalidade juvenil quase homogênea, inclusive detectando uma faixa

etária na qual se atinge um ápice e após se observa decréscimo da criminalidade.

Sabe-se que até os 14 anos a criminalidade é relativamente baixa, tendo uma subida

acentuada dos 14 aos 18 anos. A curva da criminalidade se estabiliza dos 18 aos 23

ou 24 anos, sofrendo decréscimo significativo a partir dos 24 anos. [...] Como

pudemos constatar do resumo das justificativas da PEC nº 171, de 1993, e das

demais proposições a ela apensadas, há um entendimento confirmado por psiquiatras

forenses, operadores do Direito e pela sociedade em geral de que o adolescente de

16 anos e 17 anos dos dias de hoje é mais capaz de entender o caráter ilícito de um

ato do que o mesmo adolescente da década de 1940, notadamente em razão da

facilidade da informação, da liberação sexual e dos estímulos cada vez mais

precoces ao desenvolvimento das pessoas. [...]

Critério diverso para a fixação da imputabilidade penal é encontrado no voto do

Deputado Jutahy Junior, para quem a maioridade penal não deveria ser reduzida

automaticamente quando o adolescente completasse 16 anos de idade, mas somente nos casos

em que o mesmo praticasse crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,

terrorismo, crimes hediondos, homicídio doloso, lesão corporal grave, lesão corporal seguida

de morte e roubo qualificado, sendo que nesses casos deveria ser instaurado, a pedido do

19 http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD27OUT1993.pdf#page=10, acesso em 12/10/2015.

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Ministério Público, um “incidente de desconsideração de inimputabilidade”. No voto, o

deputado deixa de descrever o que seria o “incidente de desconsideração da

inimputabilidade”; se o mesmo seria realizado através de exames psicossociais; ou então, a

quem caberia realizar o referido exame.

No terceiro e último voto favorável a redução da maioridade penal, do Deputado João

Rodrigues, não há nenhuma menção em relação a maturidade precoce do adolescente como

fator a justificar a redução da maioridade penal. O deputado parte de outras justificativas que

não estão abrangidas nesse tópico da pesquisa.

Em relação aos oito votos contrários a redução da maioridade, de autoria dos

Deputados Sérgio Vidigal, Erika Kokay, Weverton Rocha, Alesandro Molon, Darcisio

Perondi, Margarida Salomão, Maria do Rosário e Arnoldo Jordy, não há nenhuma referência

sobre a maturidade precoce do adolescente contemporâneo. Ao contrário, para esses

parlamentares, o fato de os adolescentes estarem envolvidos em delitos, não possui relação

alguma com a sua idade, mas com o contexto social em que estão inseridos, o que acaba

influenciando na sua formação psicossocial, conforme ficou consignado no voto do Deputado

Alessandro Molon:

[...] Para a psicologia comportamental, a adolescência é uma fase muito complexa na

vida de todos: momento de descobertas do corpo e dos próprios valores, de

questionamentos e insatisfações, de incompreensão para consigo mesmo e de receios

quanto às expectativas alheias. É também a fase em que o indivíduo tenta desapegar-

se do passado (em que rejeita a infância ou ser confundido com ela), sem saber ao

certo sobre sua condição futura e onde deseja chegar.

É, portanto, momento de amadurecimento e de consolidação dos desejos e de

tentativas de construções vindouras em sua vida. O adolescente passa por

desequilíbrios e instabilidades constantes, muito embora imprescindíveis para a

formação de seu caráter.

Por ser a adolescência marcada por oscilações na autovaloração individual, é

também o período em que ocorrem grandes dificuldades de relacionamento, dada a

insegurança do adolescente quanto à própria imagem, levando-o à extrema timidez

ou à prática de ações exageradas, conduzindo, não raro, segundo o psicanalista

alemão Erik Erikson, à formação de uma identidade conflitiva.

O desenvolvimento da personalidade do adolescente sofre influências externas

constantes, em que, por um jogo de identificação ou contraposição, reúne os signos

que recebe das interrelações travadas e constrói o mundo simbólico e cognitivo no

qual deseja ver-se inserido ou excluído.

Por esta razão, a ausência de políticas públicas e de outras medidas de caráter

familiar, social e comunitário influencia, de modo negativo, sua plena formação, já

que as privações sofridas dificultam o desenvolvimento de seu raciocínio e da

consciência quanto à realidade que o circunda e que dele dependerá no futuro.

Retarda-se o seu completo amadurecimento, abrindo espaço para que outras

significações, geralmente reprováveis pelo corpo social, tenham primazia na sua

identidade, fazendo o adolescente assumir como legítimos comportamentos

rechaçados pela sociedade – sociedade na qual não se vê inserido. [...]

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Portanto, dos documentos analisados (justificativa, relatório e votos) pela pesquisa, a

justificativa da PEC 171/1993 e o relatório do Deputado Laerte Bessa são expressos ao

relacionarem a maturidade precoce do adolescente contemporâneo como fator para reduzir a

maioridade penal; um dos votos entende que maturidade do adolescente deveria ser

comprovada mediante a instauração de um “incidente de inimputabilidade penal”, cabível

apenas em determinados crimes; um voto não faz alusão alguma sobre a maturidade do

adolescente; e, os outros oito votos, esses contrários a redução da maioridade penal, entendem

que o envolvimento de adolescentes em delitos não está relacionado a questão da idade ou

desenvolvimento mental.

2.1.1.2 Aumento da criminalidade juvenil

Nessa etapa da pesquisa, procurou-se identificar expressões que relacionassem a

redução da maioridade penal ao aumento da criminalidade juvenil. A análise da justificativa

apresentada pelo Deputado Benedito Domingos, no ano de 1993, demonstrou essa relação,

pois o Deputado sustentou que “o noticiário da imprensa diariamente publica que a maioria

dos crimes de assalto, de roubo, de estupro, de assassinato e de latrocínio são praticados por

menores de dezoito anos, quase sempre, aliciados por adultos”, indo além e sustentando que

se a lei continuar como está, “continuaremos com a possibilidade crescente de ver os moços

com seu caráter marcado negativamente, sem serem interrompidos para uma possível

correção, educação e resgate”, fato que refletiria em um:

[...] aumento considerável da criminalidade por parte dos menores de dezoito anos

de idade [...] e que, carentes de institutos adequados ao seu recolhimento para

reeducação ou correção de comportamento, após curto afastamento do meio social,

em estabelecimento reformatórios voltam inevitavelmente, às práticas criminosas

[...]20

Fontes de informação semelhantes, também foram citados no relatório do Deputado

Laerte Bessa, o qual embora reconheça no início do seu voto que nos últimos anos o Estado

foi omisso na adoção de políticas públicas e sociais para as crianças e adolescentes,

considerou que a ausência da adoção dessas políticas conduziu a um aumento da

criminalidade, a justificar a redução da maioridade penal. Segundo o seu voto:

20 http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD27OUT1993.pdf#page=10, acesso em 12/10/2015.

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[...] Começamos com a afirmação muito divulgada pela mídia de que apenas 1% dos

homicídios no Brasil são praticados por adolescentes. Em reportagem publicada na

Revista Veja, em 09/04/2015, o jornalista Leandro Narloch esclareceu que esse dado

não existe e que possivelmente teria sido extraído de uma pesquisa da Secretaria de

Segurança Pública do Estado de São Paulo datada do ano de 2004. Essa pesquisa,

porém, teria cometido um erro crasso, ao comparar o número de homicídios

praticados por adolescentes com o total de homicídios, e não com o total de

homicídios devidamente esclarecidos. [...] Consideramos ainda relevante alertar para

o real significado dos dados apresentados pelo Senhor Cláudio Augusto Vieira da

Silva, Coordenador-Executivo do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

– SINASE, em audiência realizada por esta Comissão no dia 27/05/2015. Naquela

oportunidade, foi afirmado que, entre os anos de 2007 e 2012, houve um aumento do

número de adolescentes em medidas socioeducativas de internação provisória e de

semiliberdade de 16.509 para 20.532. Porém, o próprio Senhor Cláudio Augusto

alegou que o aumento de internações deveu-se ao acréscimo do número de vagas do

Sistema SINASE, e não em razão do incremento do número de crimes praticados

por adolescentes. Essa afirmação nos fez refletir acerca do déficit de vagas que ainda

existe no sistema SINASE e o quanto essa falta de vagas pode esconder a real

dimensão da participação de adolescentes em atividades criminosas. [...] Em

conclusão, consideramos que o número de adolescentes internados no Sistema

SINASE não pode ser utilizado como referência para avaliar a real dimensão da

criminalidade juvenil no Brasil, exatamente porque não existem dados oficiais

acerca do déficit de vagas nesse Sistema ou do quantitativo dos registros das

delegacias e varas da infância e da juventude em todo o País que nos forneçam uma

fotografia maior do grave problema da criminalidade juvenil. Nesse ponto, nos

parecem mais realistas os dados trazidos pela Senhora Berenice Maria Gianella,

Presidente da Fundação CASA de São Paulo, em audiência pública realizada no dia

27/05/2015, os quais comparam o número de adolescentes apreendidos no Estado de

São Paulo, mês a mês, no ano de 2013, com o número de adultos presos por

flagrante delito ou por mandado judicial no mesmo período. A porcentagem de

adolescentes apreendidos representou uma média de 13% do total de adultos presos

e um total de 21.156 adolescentes apreendidos no ano de 2013 no Estado de São

Paulo. Ou seja, em uma única Unidade da Federação, foram apreendidos quase o

mesmo número de adolescentes que se encontram efetivamente internados no

Sistema SINASE em todo o Brasil, o que demonstra que o número de menores em

conflito com a lei é muito maior do que os parcos dados governamentais indicam e,

obviamente, muito maior do que aquela fantasiosa estatística de 1% acima referida.

[...] Gostaríamos de acrescentar um último dado alarmante que nos ajuda a entender

a real dimensão do problema da delinquência juvenil no Brasil. Em reportagem do

Portal G11 , veiculada em 31/05/2015, o número de menores apreendidos em

flagrante no Distrito Federal pela prática de atos infracionais análogos a crimes

subiu de 1.821, no primeiro quadrimestre de 2014, para 2.923, no primeiro

quadrimestre deste ano, o que representa um aumento de 60,5%. Ainda, dos 355

homicídios esclarecidos de 1o /01/2015 a 15/05/2015 no DF, 139 tinham menores de

18 anos como autores, o que equivale a 39% dos homicídios esclarecidos pela

Polícia Civil do Distrito Federal. Esses dados foram fornecidos pela própria Polícia

Civil. [...] Notícia veiculada no Caderno Cotidiano do jornal Folha de São Paulo, em

13/04/2015, confirma a escalada da criminalidade no Brasil, tanto entre adultos,

quanto entre adolescentes. Segundo essa reportagem, entre 2008 e 2013, a

quantidade de adolescentes brasileiros em unidades socioeducativas cresceu 38%,

enquanto o número de adultos encarcerados aumentou 41% no mesmo período. [...]

Nos outros dois votos favoráveis a redução da maioridade penal, não são citados

índices estatísticos da criminalização, apenas referências genéricas de que a PEC atenderia

aos anseios da população por mais segurança.

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Por outro lado, nos votos contrários à redução da maioridade penal, ficou clara a

preocupação dos deputados em relação aos citados índices da criminalização dos

adolescentes, pois segundo eles, a ideia do aumento da criminalidade não corresponde com a

realidade, pois estaria diretamente relacionada aos noticiários policiais, os quais não

representam os índices de criminalização, conforme destacou a Deputada Maria do Rosário:

[...] As noticias veiculadas são justamente aquelas de ações que causam maior

repulsa social e talvez por isso a imprensa se movimente tanto quando há a

participação de adolescentes em determinados crimes. No entanto, de acordo com

levantamento do Programa Justiça ao Jovem vinculado ao Departamento de

Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Conselho Nacional de

Justiça, o Brasil possuía, entre julho de 2010 e outubro de 2011, 17.502 internos,

distribuídos pelos 320 estabelecimentos de execução de medida socioeducativa

existentes no país. Num país de mais de 20 milhões de adolescentes podemos sem

medo afirmar que a maioria dos adolescentes brasileiros jamais cometeu um ato

infracional! [...] O que estamos a afirmar é que a percepção da violência que gera o

clamor pela redução parte de premissas falsas. [...] É preciso que recorramos aos

dados, e analisemos as experiências internacionais que demonstram que nos 54

países que reduziram a maioridade penal não se registrou redução da violência. [...]

E, segundo o parecer do Deputado Weverton Rocha:

[...] Ao contrário do que pode parecer, o jovem, em geral, é mais vítima do que

algoz no país, conforme mostra o mapa da violência de 2012. Temos 13 homicídios

para cada 100 mil crianças. Somo o 4º País no ranking mundial onde mais se

morrem pessoas de 1 a 19 anos. As taxas de homicídio nessa faixa etária cresceram

346% entre 1980 e 2010, uma média de 24 homicídios/dia. Crimes esses cometidos,

em sua esmagadora maioria, por maiores de dezoito anos. [...].

O que desperta a atenção nos votos favoráveis à redução da maioridade penal e que

indicam o aumento da criminalidade juvenil como fator justificante para a medida repressiva,

é a falta de objetividade nas referências que os parlamentares fazem em relação aos supostos

números da criminalização. Ou seja, são na grande maioria desprovidas de elementos técnicos

e científicos e amparadas em pesquisas de opinião pública, as quais geralmente são elaboradas

logo em seguida a prática de um crime grave por um adolescente, cujo fato é amplamente

divulgado pela mídia, provocando a comoção social e a imediata exigência de respostas

penais mais severas.

As justificativas ainda permitiram identificar a influência que a mídia exerce sobre a

posição do parlamentar, pois em todos os documentos analisados, ela foi direta ou

indiretamente citada como fonte, tanto nos votos contrários quanto nos pareceres favoráveis à

redução da maioridade penal. O uso dessa fonte ocupa diferentes posições: por vezes, para

sustentar o argumento de que há um aumento da criminalidade violenta praticada por

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adolescentes. O trecho abaixo, do parecer do Deputado Laerte Bessa, da CCJC, indica esse

uso:

[...] Gostaríamos de acrescentar um último dado alarmante que nos ajuda a entender

a real dimensão do problema da delinquência juvenil no Brasil. Em reportagem do

Portal G11, veiculada em 31/05/2015, o número de menores apreendidos em

flagrante no Distrito Federal pela prática de atos infracionais análogos a crimes

subiu de 1.821, no primeiro quadrimestre de 2014, para 2.923, no primeiro

quadrimestre deste ano, o que representa um aumento de 60,5%. Ainda, dos 355

homicídios esclarecidos de 1º/01/2015 a 15/05/2015 no DF, 139 tinham menores de

18 anos como autores, o que equivale a 39% dos homicídios esclarecidos pela

Polícia Civil do Distrito Federal. Esses dados foram fornecidos pela própria Polícia

Civil. [...] Notícia veiculada no Caderno Cotidiano do jornal Folha de São Paulo, em

13/04/2015, confirma a escalada da criminalidade no Brasil, tanto entre adultos,

quanto entre adolescentes. Segundo essa reportagem, entre 2008 e 2013, a

quantidade de adolescentes brasileiros em unidades socioeducativas cresceu 38%,

enquanto o número de adultos encarcerados aumentou 41% no mesmo período. [...]

Inobstante as fontes citadas pelo parlamentar serem altamente duvidosas, pois

desprovidas do rigorismo científico, inerentes a esse tipo de pesquisa, o parlamentar ainda

repudia dados oficiais sobre a criminalidade, indicando que:

[...] Nobres colegas, finalizamos esse tópico com a constatação de que as estatísticas

governamentais sobre a questão da criminalidade juvenil no Brasil são

extremamente deficientes e não nos permite concluir qual a real porcentagem dos

crimes no Brasil são praticados por menores de idade. [...]

Outro uso comum nos votos favoráveis é a de transcrição de matérias opinativas que

auxiliem na argumentação, mesmo que somente como recurso de invocação de uma

autoridade popular entre grupos sociais de alta renda. É o caso do colunista da Revista Veja,

Reinaldo de Azevedo, também citado no relatório do Deputado Laerte Bessa, conforme o

trecho abaixo:

[...] Finalizamos essa parte do parecer com as palavras do jornalista Reinaldo de

Azevedo, que, em 15/04/2015 no site da Revista Veja na internet, assim se

pronunciou: ‘O povão sabe onde lhe aperta o calo. E não se trata de populismo

penal, não. Trata-se apenas de pôr bandido na cadeia. Nem tudo o que conta com o

apoio de uma maioria é populista. Às vezes, é apenas matéria de justiça.’[...]

Apesar de a citação da coluna não trazer nada de realmente informativo, ela aparece

como forma de representação da vontade popular, inclusive com um linguajar popularesco

que invoca a adesão daqueles que seriam os mais prejudicados pelos atos infracionais

praticados por adolescentes.

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Já os votos contrários à redução mencionam os meios de comunicação não como fonte

de dados, mas sim como uma forma de estabelecer críticas à abordagem sensacionalista por

eles realizados quando de crimes graves praticados por adolescentes, conforme podemos ver

no voto acima citado da Deputada Maria do Rosário.

Essa crítica à difusão do medo e à legitimação midiática de políticas criminais

repressivas é uma constante nos estudos do campo criminologia crítica (BUDÓ, 2013;

ANIYAR DE CASTRO, 2005; ANDI, 2006), a partir dos quais é possível encontrar pesquisas

empíricas demonstrando essa realidade. Contudo, essas constatações realizadas no campo

científico lamentavelmente não são utilizadas pelos autores desse discurso crítico da mídia, o

que enfraquece as teses defendidas, se comparadas com o populismo penal.

2.1.1.3 Demanda da sociedade amedrontada e injustiçada

A terceira análise dos votos da CCJC levou em consideração a categoria “sociedade

amedrontada”, na qual se identificaram os discursos que fizeram remições à insegurança

social de modo geral. No relatório da PEC, do Deputado Laerte Bessa, já foi possível

constatar referências ao “clamor da sociedade brasileira” por “justa punição dos

adolescentes”:

[...] Pesquisa recente do Datafolha indicou que 87% dos entrevistados eram

favoráveis à redução da maioridade penal para 16 anos, 11% se disseram contrários

e 1% não tinha opinião a respeito. Desses 11% contrários à redução, a pesquisa

revelou que 25% pertenciam à classe dos mais ricos, com renda familiar mensal

superior a 10 salários mínimos. Em nossa opinião, essa pesquisa captou com

exatidão o sentimento da população brasileira, notadamente a parcela da população

menos favorecida economicamente e que sofre com mais intensidade a insegurança

que predomina em nossa comunidade. Vítimas mais vulneráveis do total descaso do

Estado brasileiro e da falta de políticas públicas nas áreas sociais, a população que

mora nos bairros mais periféricos das grandes cidades brasileiras não aguentam mais

sofrer com o problema da delinquência juvenil, e para eles não funciona o discurso

ideológico de que o encarceramento não é a solução para esses menores, os quais

devem ser, antes, educados. [...]

No voto do Deputado Jutahy Junior também se encontraram trechos que relacionam a

redução da maioridade penal como uma demanda da sociedade, inclusive em expressões

explicitas como: “[...] essa é, sem sombra de dúvida, a demanda da sociedade”. Vejamos o

contexto em que a expressão foi usada pelo parlamentar: “[...] A PEC é positiva, na medida

em que vem tentar responder a uma demanda da sociedade por mais segurança. [...]”

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Já nos votos contrários à redução da maioridade penal, os deputados não ignoram os

anseios da sociedade em relação ao recrudescimento penal juvenil. No entanto, referem que a

sociedade incorre em equívoco ao pensar que a aprovação da proposta impactará positiva e

diretamente nos índices da criminalidade. Para esses deputados, o debate deveria ocorrer em

relação às causas de envolvimento de adolescente nos crimes. Nesse sentido, o voto do

Deputado Weverton Rocha:

[...] A discussão da maioridade penal tem tomado força perante a sociedade porque

se acredita que problemas como a violência e a impunidade seriam solucionados

com a redução da imputabilidade penal para dezesseis anos. Há muito tem se

discutido os efeitos desta alteração. Em verdade, porém, a preocupação deveria estar

voltada ao combate das causas da ocorrência de crimes envolvendo menores de

dezoito anos. Reduzir a maioridade penal para dezesseis anos em nada irá contribuir

para a diminuição da violência em nosso País. [...] esta visão de que no Brasil o

menor de dezoito anos não paga pelos seus delitos não é verdadeira. O Estatuto da

criança e do adolescente – ECA é um dos mais severos do mundo se comparado

com de outros países, até mesmo em desenvolvimento. Ele prevê, inclusive, a

responsabilização penal para crianças a partir dos doze anos de idade, o que implica

dizer que a partir dessa idade é possível a submissão do menor ao sistema de justiça

juvenil estabelecido pela legislação especial, conforme a parte final do art. 228 da

Constituição Federal. [...]

Em todos os outros votos contrários, também é possível vislumbrar elementos que

demonstram a preocupação dos parlamentares com as demandas da sociedade pela redução da

criminalidade juvenil, as quais, segundo eles, deveriam ser avaliadas com cautela, pois o

clamor seria por menos violência e mais segurança, pois para a Deputada Erika Kokay, a

redução da maioridade penal somente agravaria a situação da violência:

[...] E mais: temos que ter a responsabilidade de interpretar corretamente o

sentimento emanado das ruas. Afinal, o que se percebe é que o povo clama por

menos violência como um fim em si mesmo e por mais segurança. É preciso deixar

bastante claro, contudo, que a proposta de redução da maioridade penal, defendida e

estimulada pela espetacularização da violência realizada diariamente pela mídia, em

nada contribuirá para, num passe de mágica, alcançar esse objetivo. Pelo contrário,

provavelmente gerará o efeito oposto, ocasionando um aumento da violência. [...]

Como pode ser visto, ao passo que os parlamentares favoráveis à redução da

maioridade penal usam o medo que a sociedade possui em relação a violência para legitimar

os seus discursos populistas, os parlamentares contrários à redução, destacam a importância

de se promover debates técnicos e que possam efetivamente contribuir com a redução da

violência, criticando o discurso do populismo penal, ante a ineficácia da fórmula “política

criminal rígida = redução da criminalidade”.

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2.1.2 Causas do problema

Nesta segunda macrocategoria foram analisadas as afirmações sobre as causas do

problema da criminalidade juvenil. A partir da análise, foi possível construir três

subcategorias: impunidade dos adolescentes; falência de outros controles sociais; e, a ausência

de políticas públicas e sociais.

2.1.2.1 Impunidade dos adolescentes

O relatório do Deputado Laerte Bessa aponta como uma das causa do problema a

impunidade dos adolescentes, pois o parlamentar considera insuficientes as penalidades

previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o que, na sua visão, geraria o aumento da

criminalidade juvenil:

[...] Não obstante, esta Casa de Representantes do Povo não pode ficar inerte ao

legítimo clamor da sociedade brasileira, que exige a justa punição dos adolescentes

que praticam crimes graves e restam impunes, segundo as normas atualmente em

vigor.

[...]

É certo, porém, que, a partir dos 12 anos de idade, no Brasil, já ocorre a

responsabilização penal especial, segundo as medidas socioeducativas previstas no

ECA, com penalidades excessivamente brandas, conforme ainda teremos

oportunidade de ressaltar.

[...]

Enfim, não se pode mais permitir que indivíduos de 16 ou de 17 anos de idade,

possuidores de plena capacidade de entendimento e volição, tenham salvo conduto

para prática de toda a sorte de barbáries.

[...]

Nesse ponto, quero deixar claro o meu posicionamento pessoal em relação à nítida

insuficiência do ECA para impor a pena criminal adequada, necessária e

proporcional aos adolescentes entre 16 e 17 anos de idade. [...]

A impunidade juvenil também é destacada nos votos dos parlamentares Jutahy Junior

e João Rodrigues:

[...] A existência de uma demanda pela redução da maioridade penal visa a atacar

um problema premente, já criado e em situação de risco: o cometimento de crimes

graves por jovens entre 16 e 18 anos que contam, intencionalmente, com a

inimputabilidade para fazê-lo. A PEC visa a enfrentar esse problema. [...]

[...] A mudança deve ser feita de forma a coibir as condutas criminosas e

responsabilizar seus agentes. O modelo atual de punição, previsto no Estatuto da

Criança e do Adolescente, que é extremamente protetivo, já está claro que não

funciona. [...]

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Nos votos contrários a redução da maioridade penal, os parlamentares atribuem a

outros fatores a delinquência juvenil e consideram que as punições previstas no Estatuto da

Criança e do Adolescente são suficientes como medida de correção ao jovem em conflito com

a lei, sendo que em alguns votos ainda é destacado o fato de a reincidência dos adolescentes

que cumpriram medidas socioeducativas, ser menor em relação ao sistema prisional brasileiro.

Assim, para esses deputados, o ECA seria mais eficiente no combate ao crime do que o

sistema prisional brasileiro.

2.1.2.2 Falência de outros controles sociais

Em relação a esta subcategoria, apenas o relatório do Deputado Laerte Bessa fez

remissões a falência de outras formas de controle social, diversas do direito penal, como

instrumento que contribuiu para o aumento da criminalidade juvenil, conforme trecho que

segue:

Em última análise, o Estado tem o dever de adotar as políticas públicas necessárias

para propiciar o convívio harmônico no seio da sociedade, cabendo ao Direito Penal

ser acionado quando todos os controles sociais falham, sendo, por isso, um direito de

exceção, isto é, quando os outros controles sociais entram em colapso, busca-se a

força repressora das ferramentas penais para se manter a ordem social.

2.1.2.3 Ausência de políticas públicas e sociais

Neste tópico, todos os parlamentares, sejam eles favoráveis ou contrários à redução da

maioridade penal, concordaram que o Estado falhou em políticas públicas e sociais. A

diferença entre eles reside no fato de que, enquanto para os favoráveis à redução, o direito

penal deveria ser aplicado como última fonte de controle social, ainda que as ditas políticas

públicas e sociais sejam omissas, ao passo que os parlamentares contrários a redução,

justificam seus votos no sentido de que seria necessário implementar e corrigir as políticas

públicas e sociais, sem alterar a idade de inimputabilidade penal, a qual traria consequências

maléficas aos adolescente e por consequência à sociedade, pois não contribuiria com a

redução da criminalidade.

Os parlamentares contrários à redução sustentam, ainda, que antes de se discutir a

punição dos adolescentes, deveriam discutir medidas para efetivação dos direitos previstos no

Estatuto da Criança e do Adolescente.

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2.1.3 Soluções

Nesta última categoria, foram analisadas as afirmações sobre as soluções do problema

da criminalidade juvenil. A partir da análise, foi possível construir duas subcategorias:

redução da maioridade penal; e, a implementação de políticas públicas e sociais de inclusão

do adolescente.

Em todos os votos analisados da CCJC, sejam eles contrários sejam eles favoráveis à

redução da maioridade penal, apareceram trechos que permitiram identificar a preocupação

dos parlamentares em relação as medidas que o Estado deve adotar para reduzir a

criminalidade. Naqueles casos em que o parecer foi favorável a redução, os deputados

concluíram que a solução seria reduzir a idade da imputabilidade penal, como é o caso do

voto emitido pelo Deputado Relator Laerte Bessa:

[...] Em última análise, o Estado tem o dever de adotar as políticas públicas

necessárias para propiciar o convívio harmônico no seio da sociedade, cabendo ao

Direito Penal ser acionado quando todos os controles sociais falham, sendo, por isso,

um direito de exceção, isto é, quando os outros controles sociais entram em colapso,

busca-se a força repressora das ferramentas penais para se manter a ordem social.

[...]

Expressões semelhantes também podem ser visualizadas no voto do Deputado Jutahy

Junior, que igualmente votou a favor da redução da maioridade penal. Segundo pode ser lido

no voto do Deputado:

[...] A PEC é positiva, na medida em que vem tentar responder a uma demanda da

sociedade por mais segurança. Aqui, cumpre rebater desde já os argumentos de que

essa demanda é localizada e passageira. Não é. [...] A existência de uma demanda

pela redução da maioridade penal visa a atacar um problema premente, já criado e

em situação de risco: o cometimento de crimes graves por jovens entre 16 e 18 anos

que contam, intencionalmente, com a inimputabilidade para fazê-lo. A PEC visa a

enfrentar esse problema. [...].

De outro giro, nos pareceres contrários a redução da maioridade penal, também ficou

destacada a preocupação dos parlamentares em relação as ações que deverão ser promovidas

pelo Estado para reduzir a criminalidade. Entretanto, se para os parlamentares favoráveis à

redução da maioridade penal a solução seria aprovar a proposta e aumentar a rigidez da lei

penal em relação aos adolescentes, para os parlamentares contrários, a solução para a redução

da criminalidade passaria por reformas estruturais do sistema social. É que o que se depreende

do voto do Deputado Sérgio Vidigal:

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[...] Há um sentimento quase que generalizado no seio da população de que os

problemas relacionados à violência serão resolvidos pela responsabilização penal

dos infratores, por meio de leis punitivas e exemplares e de que somente o Direito

Penal fornece resposta adequada à prevenção e à solução dos desvios sociais. [...]

Nesse contexto, o Parlamento, ao discutir a redução da maioridade penal, dever agir

racionalmente e com a sobriedade necessária para, não só avaliar se as medidas

preventivas foram efetivamente cumpridas conforme determina a legislação

específica, como também se foram aplicadas possíveis estratégias para prevenção do

delito na adolescência. É necessário também avaliar se as políticas públicas

aplicadas são realmente eficazes e se a ação das instituições que operam as leis no

Brasil está adequada ou se precisam ser reformuladas. Além disso, é evidente que

punir é a solução mais imediatista que educar, ainda que seja na educação que se

obtêm os resultados mais eficazes. Estudos criminológicos e sociológicos

demonstram que a adoção de medidas punitivas não gera a redução dos índices de

violência. Muito pelo contrário, o que se observa é que são as políticas e ações de

natureza social que desempenham um papel importante na redução das taxas de

criminalidade, pois é a desigualdade social significativa no Brasil, via de regra, que

gera adolescentes infratores, já que muitos desses são pobres, alijados de inserção

social e submetidos ao tráfico de drogas e a todas as mazelas sociais. [...]

As referências sobre políticas públicas de inclusão social, tais como acesso a saúde,

educação, cultura, esporte, qualificação profissional, ou de combate as drogas como

mecanismo de redução da criminalidade juvenil, também aparecem em todos os discursos

contrários a redução da maioridade penal dos Deputados Erika Kokay, Weverton Rocha,

Alessandro Molon, Darcísio Perondi, Margarida Salomão, Maria do Rosário e Arnoldo Jordy.

2.1.3.1 A redução da maioridade penal como solução

O presente tópico da pesquisa encontrou apenas duas ocorrências, ambas nos votos

favoráveis a redução da maioridade penal, os quais creem que o direito penal é um

mecanismo eficaz para o combate da criminalidade. O excerto do voto que será citado, do

Deputado Laerte Bessa, talvez seja aquele que com maior fidedignidade se incorpora ao

conceito de categoria que foi criado na pesquisa, pois é indubitável para o parlamentar que o

Direito Penal deve ser usado para manter a pacificação social. Segundo o voto:

[...] O homem, por ser um ser social e político, tem a necessidade de se organizar em

grupos estruturados com a finalidade de obter a segurança e a paz social. Para tanto,

os indivíduos abrem mão da chamada violência privada ou justiça pelas próprias

mãos, atribuindo ao Estado o direito de punir. Com isso, busca-se a estabilidade

social, já que é dever do poder estatal aplicar políticas públicas necessárias para a

manutenção da ordem. Nesse contexto, cabe ao Direito Penal o controle social

visando à preservação da paz pública, por meio da proteção da ordem existente na

coletividade. O poder cogente das normas penais dirige-se a todos os integrantes,

entretanto, nem todos praticam fatos delituosos. Ao contrário, somente uma minoria

adota o caminho da criminalidade. Em última análise, o Estado tem o dever de

adotar as políticas públicas necessárias para propiciar o convívio harmônico no seio

da sociedade, cabendo ao Direito Penal ser acionado quando todos os controles

sociais falham, sendo, por isso, um direito de exceção, isto é, quando os outros

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controles sociais entram em colapso, busca-se a força repressora das ferramentas

penais para se manter a ordem social. [...].

Entretanto, no outro voto favorável a redução da maioridade penal, do Deputado

Jutahy Júnior, não é possível vislumbrar a expressão “direito penal”, o que não significa que o

parlamentar discorde da premissa de que o direito penal é eficaz para o combate da

criminalidade, uma vez que na sua justificativa podem ser encontrados elementos que

permitam concluir ser ele adepto a ideia. Nesse sentido:

[...] A PEC é positiva, na medida em que vem tentar responder a uma demanda da

sociedade por mais segurança. [...] A existência de uma demanda pela redução da

maioridade penal visa a atacar um problema premente, já criado e em situação de

risco: o cometimento de crimes graves por jovens entre 16 e 18 anos que contam,

intencionalmente, com a inimputabilidade para fazê-lo. A PEC visa a enfrentar esse

problema. [...]

Nos votos contrários a redução da maioridade penal, os elementos encontrados

rejeitam o direito penal como mecanismo eficaz de combate a criminalidade. Para esses

parlamentares, a solução para a redução da criminalidade juvenil passaria obrigatoriamente

por uma reforma estrutural da sociedade, promovendo-se a inclusão social dos jovens como

maneira de prevenção de delitos.

2.1.3.2 Implementação de políticas públicas e sociais de inclusão do adolescente

A última análise dos discursos levou em consideração a concretização de políticas

públicas e sociais como solução para a delinquência juvenil. Embora a ausência dessas

políticas seja reconhecida pelos deputados que votaram favoráveis à aprovação da PEC

171/1993, eles entendem que ainda assim seria possível aplicar uma politica criminal mais

rígida aos adolescentes, na medida em que a aplicação da lei penal seria uma resposta

imediata ao ato delituoso, ao passo que as políticas públicas serviriam como instrumento de

prevenção de crimes a médio e longo prazo.

No voto do Deputado Laerte Bessa é possível vislumbrar a importância que o

parlamentar confere às políticas públicas e sociais como instrumento de diminuição da

violência. No entanto, também é possível vislumbrar o objetivo do deputado na resolução

imediata da criminalidade através de uma politica criminal rígida:

[...] Com esses argumentos, não queremos negar que a solução para o grave

problema da violência em nosso País passa principalmente pela ampliação e

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efetividade dos programas sociais educacionais, culturais e de pleno emprego.

Concordamos com os nobres Deputados que clamam por um aumento das verbas

orçamentárias a serem destinadas e efetivamente aplicadas nas áreas sociais da

educação, da saúde, do esporte e da cultura, que atuam de modo tão eficiente na

prevenção do crime. Não obstante, esta Casa de Representantes do Povo não pode

ficar inerte ao legítimo clamor da sociedade brasileira, que exige a justa punição dos

adolescentes que praticam crimes graves e restam impunes, segundo as normas

atualmente em vigor. Conforme se observa, devido à falência da sociedade

brasileira, causada pela má adoção de políticas sociais adequadas, inclusive nos

últimos 13 anos da administração federal a cargo do Partido dos Trabalhadores, são

crescentes os casos em que a população brasileira adota a via da justiça pelas

próprias mãos, a exemplo dos linchamentos públicos. Encontramo-nos em um

momento crítico, no qual não há alternativa a não ser adotar uma Política Criminal

rígida, ainda que sob a ótica excepcional da aplicação do Direito Penal como última

instância, para reestabelecer a ordem social e evitar a falência total da sociedade.

Pesquisas recentes apontam para essa necessidade e é com o espírito democrático e

legítimo que a Câmara dos Deputados vem dar a competente resposta à sociedade

brasileira. [...].

Ao passo que para o Deputado Laerte Bessa a redução da criminalidade só seria

concretizada com a redução da maioridade penal, a despeito de reconhecer a falência na

aplicação de políticas públicas e sociais, foi o Deputado Jutahy Júnior quem referiu que essas

medidas somente seriam capazes de reduzir a criminalidade a médio e longo prazos, cabendo,

por consequência imediata, o recrudescimento penal em relação aos adolescentes. Segundo o

Deputado:

[...] Já a questão da reeducação dos menores infratores, e sua reabilitação, situam-se

na esfera da realização de políticas públicas de longo prazo, que englobam,

inclusive, a implementação efetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa

questão é uma política preventiva, que levaria anos para produzir efeitos e contra a

qual não se levanta, que se saiba, uma só voz no Parlamento, nem, provavelmente,

na sociedade. [...]

Por outro lado, todos os votos contrários a redução da maioridade penal consideram

que a solução para a criminalidade juvenil deveria passar pela concretização de políticas

públicas e sociais, conforme relatado no voto da deputada Erika Kokay:

[...] Reduzir a maioridade penal, portanto, é buscar remediar as consequências do

problema (de forma equivocada, ressalte-se), sem se preocupar verdadeiramente

com as suas causas! A preocupação a que devemos nos ater diz respeito à

acessibilidade desses jovens às políticas públicas. E, nesse particular, não há como

negar que o Brasil, nos últimos anos, obteve conquistas significativas na garantia de

direitos básicos, mas também não há como desconhecer que ainda é preciso avançar

muito para que esses direitos sejam plenamente efetivados. É nesse caminho que

devemos prosseguir.[...]

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2.2 A REPRESENTAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA PEC 171/1993

A análise das categorias discursivas permitiu agrupar as conclusões exaradas pelos

parlamentares em quatro blocos: discurso da punição absoluta, discurso da punição garantista,

discurso da proteção e discurso do protagonismo emancipador. Inobstante essa nova

classificação ter sido criada a partir da análise dos discursos da PEC 171/1993, as expressões

usadas foram inspiradas na obra de Cappi (2014), que realizou pesquisa semelhante à

presente, mas mais abrangente, pois considerou todas as propostas de emenda à Constituição

oferecidas entre os anos de 1993 a 2000, em ambas as casas legislativas (Câmara dos

Deputados Federais e Senado Federal).

Embora cada voto proferido na CCJC seja único, as categorias foram elaboradas a

partir dos trechos selecionados e classificados como linhas gerais que permitissem identificar

uma síntese de maior densidade teórica das posições expressadas no conjunto do material

analisado.

2.2.1 Discurso da punição absoluta

O discurso da punição absoluta, característico dos parlamentares favoráveis a redução

da maioridade penal, está diretamente relacionado a teoria mista da pena, que unifica a teoria

retributiva e a teoria da prevenção. Nery (2011, p. 78) enfatiza que: “A teoria retributiva

considera que a pena se esgota na ideia de pura retribuição, [...] ou seja, responde ao mal

constitutivo do delito com outro mal que se impõe ao autor do delito”. A teoria esgota o seu

sentido no mal que se faz sofrer o delinquente como compensação ou expiação do mal pelo

crime que ele cometeu.

A teoria da prevenção parte da premissa de que a pena é um mecanismo eficaz para

evitar futuros delitos, além de reconhecer que a pena se traduz num mal para quem a sofre.

Ela está fundamentada em outras subteorias: a prevenção geral e a prevenção especial. A

prevenção geral está direcionada à generalidade dos cidadãos, esperando que a ameaça de

uma pena, e sua imposição e execução, por um lado, sirva para intimidar aos delinquentes

potenciais, e, por outro lado, sirva para robustecer a consciência jurídica dos cidadãos e sua

confiança e fé no Direito (NERY, 2011).

A teoria da prevenção especial está direcionada ao delinquente castigado com uma

pena. Tem por denominador comum a ideia de que a pena é um instrumento de atuação

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preventiva sobre a pessoa do delinquente, com o fim de evitar que no futuro ele cometa novos

crimes. Deste modo, deve-se falar de uma finalidade de prevenção da reincidência. Essa teoria

não busca retribuir o fato passado, senão justificar a pena com o fim de prevenir novos delitos

do autor (NERY, 2011).

Ambas as teorias que compõem a teoria mista da pena, possuem suas raízes

ideológicas no período do direito penal clássico e do direito penal positivista, quando não

fazia parte do objeto de estudo dos teóricos da época os acontecimentos sociais que definiam

as razões pelas quais as condutas eram criminalizadas.

A desconsideração sobre as instâncias de controle social e a consequente ausência de

estudo entre a sua relação com as causas de criminalização, pode ser percebida nos discursos

dos parlamentares favoráveis a redução da maioridade penal, os quais partem de premissas

oferecidas, na grande maioria, pela mídia, as quais tratam sobre questões relacionadas a

insegurança e acabam provocando grande impacto na opinião pública. Nesse sentido Cappi

assevera que (2014, p. 21):

Este discurso oferece uma leitura que parte de uma percepção dramatizada da

delinquência juvenil, entendida como contribuição expressiva para o panorama de

insegurança generalizada e do medo que afetam a sociedade como um todo. Há uma

referência recorrente à mídia e aos fatos que encontram ampla cobertura, com forte

impacto na opinião pública. Esta é entendida como fonte de expressão da demanda

“por uma solução”, a qual assumiria a forma de medidas punitivas duras, incluindo a

redução da maioridade penal.

Nesses discursos é ignorada a complexidade do problema da criminalização, posto que

a solução encontrada é simplesmente reduzir a maioridade penal, ignorando-se todo o

contexto histórico, étnico e social que a sociedade vivencia. As políticas públicas de

encarceramento são sugeridas partindo-se da equivocada premissa de que todos são iguais em

direitos e condições perante a lei, incorrendo no erro já apontado em 1960 pela criminológica

da reação social. Aliás, para esses parlamentares o discurso acadêmico é subestimado (Cappi,

2014).

A proposição do Deputado André Moura é uma prova sobre a ausência de

cientificismo com que o tema é abordado, pois o parlamentar encaminhou requerimento para

ouvir em audiência pública na PEC 171/1993, os apresentadores de televisão Marcelo

Resende, da TV Record; José Luiz Datena, da TV Bandeirantes; Raquel Sheherazade, do

SBT; e Caco Barcelos, da Rede Globo, cujos programas estão diretamente relacionados a

ocorrências criminais que não raras as vezes são comentadas com discursos populistas penais,

como por exemplo, o infeliz comentário que a apresentadora Raquel Sheherazade fez em

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relação à campanha que ela mesmo denominou de “adote um bandido”, a qual provocou a

repulsa de vários órgãos representantes de classe, tal qual a maneira como ela menosprezou o

adolescente envolvido em ato infracional e acorrentado nu a um poste de iluminação pública.

Além disso, para esses parlamentares, mesmo quando alguns constataram que o

Estado falhou em contemplar as crianças e adolescentes com políticas públicas de inclusão

social, ainda assim, defendem a redução da maioridade penal, posto que na sua visão, esses

sujeitos são vistos como “jovens delinquentes”, pertencentes a uma classe perigosa e

responsável pelo aumento da insegurança. Como destaca Cappi (2014, p. 21):

[...] esse discurso parece se afastar da perspectiva garantista que marcou a ascensão

do direito penal moderno – incluindo a proteção dos direitos individuais – tanto no

que diz respeito às modalidades processuais, quanto ao conteúdo da sanção

proposta. A evocação condescendente de modalidades de punição extralegais sugere

ue elas existem em grande escala na sociedade brasileira e que, no limite, chegam a

constituir formas aceitáveis de resposta às transgressões dos jovens.

Ou seja, embora os parlamentares saibam que os recursos financeiros usados em

programas sociais de inclusão sejam poucos, ou às vezes inexistentes, a solução por eles

encontrada é a redução da maioridade penal.

2.2.2 Discurso da punição garantista

Este discurso apoia a redução da maioridade penal, numa perspectiva de redução

gradual, ou condicional, da utilização das “medidas sócio educativas” em proveito do direito

penal. A partir da leitura de insegurança que atribui um papel significativo à delinquência

juvenil, o foco é posto na necessidade de punir os jovens infratores como os adultos, dada a

ineficácia das medidas previstas pela lei atual.

A referência à imprensa e aos fatos sujeitos a extensa cobertura da mídia é feita com

tons menos dramáticos do que no discurso anterior. A leitura da realidade social leva em

conta a complexidade dos problemas e propõe, além da redução da maioridade penal, uma

série de medidas complementares, como políticas de assistência aos jovens ou, ainda, políticas

de prevenção. São mencionados os perigos associados aos jovens infratores, embora se

reconheçam mecanismos sociais que colaboram para vulnerabilidade desta categoria.

Para os parlamentares que adotam esse discurso, a redução da maioridade penal estaria

justificada no fato de as medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente serem

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ineficazes para prevenir o ato infracional, conforme tivemos a oportunidade de visualizar no

tópico precedente, nos votos dos Deputados Laerte Bessa, Jutahy Junior e João Rodrigues.

Também é possível identificar o embasamento teórico no caráter retributivo e

preventivo da pena, pois segundo os votos dos parlamentares, a redução a criminalidade

juvenil somente seria possível com políticas criminais mais enérgicas, em especial porque

aquelas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente não estariam surtindo o efeito

esperado em relação a redução da criminalização juvenil.

2.2.3 Discurso da proteção

Este terceiro discurso têm representação nos votos contrários a redução da maioridade

penal, cujos parlamentares sustentam a legitimidade do sistema de justiça juvenil estabelecido

pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Para eles a delinquência juvenil está relacionada a

processos históricos de exclusão social e a insuficiência de políticas púbicas aptas a contornar

essa realidade, conforme destaca Cappi (2014, p. 22):

A defesa da manutenção da maioridade penal se fundamenta também na adoção de

políticas de prevenção ou de assistência frente aos problemas de insegurança. Os

“jovens (criminosos)” são assim percebidos de forma menos hostil e também

considerados vítimas de diversos mecanismos sociais que determinam sua

fragilidade. São enxergados como sujeitos de direitos – formalmente estabelecidos

pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que devem ser

garantidos concretamente, inclusive pelo fato de os adolescentes serem “pessoas em

fase de desenvolvimento”.

Além disso, sustentam os parlamentares que a doutrina da proteção integral,

contemplada pelo ECA, visa a proteger o adolescente e conflito com a lei, recomendando que

a ele se dispensem ações educativas e de tratamento. Enfatizam, ainda, que a redução da

maioridade penal apenas agravaria o problema da criminalidade juvenil, pois permitiria que os

adolescentes fossem aliciados cada vez mais cedo para o crime.

Outrossim, a redução da maioridade penal impactaria em outros campos do Direito,

pois poderia permitir que o adolescente de 16 anos viesse a consumir livremente bebidas

alcóolicas, viesse a dirigir veiculo automotor sem a devida responsabilidade que se exige para

o desempenho desse oficio, poderia impactar na exploração sexual dos jovens, os quais são

protegidas pela Lei até atingirem a maioridade penal.

Todos esses discursos trazem em comum a representação do adolescente como um ser

em desenvolvimento e que merece proteção integral do Estado. Nesses discursos também são

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refutadas informações sensacionalistas ou redutoras dos meios de comunicação e da opinião

pública, e quase sempre são compostos de passagens cientificas, como a transcrição de

pareceres de autores especializados no estudo da formação da personalidade da criança e do

adolescente, bem como, citam números de criminalização e depoimentos de profissionais que

labutam nas casas destinadas a internação dos adolescentes, entretanto, conforme destaca

Cappi (2014, p, 22):

A abordagem punitiva não está ausente deste discurso, especialmente no que diz

respeito a sua função dissuasiva. Por um lado, encontra-se a valorização do aspecto

aflitivo das medidas socioeducativas, considerado semelhante ao das respostas da

justiça criminal. Por outro lado, afirma-se a ideia de maior punição para os adultos

que têm a custódia dos jovens infratores. Novamente, a ideia de responsabilização

está presente: da sociedade, pela garantia de direitos aos jovens; do adolescente, em

relação à sua conduta; da família, que é encarregada da educação do jovem.

Pode-se afirmar que embora esse sistema reconheça as fragilidades sociais como

causas da criminalização, bem como, que outros métodos poderiam ser usados para evitar o

ingresso do adolescente em atos contrários a lei penal, compreende como correto a aplicação

de penas restritivas de liberdade aos adolescentes em conflito com a lei, deixando transparecer

a concordância com “respostas punitivas de caráter aflitivo legalmente regulamentadas”

(CAPPI, 2014, p. 22).

2.2.4 Discurso do protagonismo emancipador

Este último discurso, embora represente apenas um dos votos da CCJC, é contra a

redução da maioridade penal e se apoia em uma dimensão estrutural do problema da

criminalização juvenil. A referência à mídia é eminentemente crítica, pois retratam

informações que não refletem a dimensão do problema e quase sempre promovem discursos

típicos do populacionismo penal.

Nestes discursos, afirma-se a “necessidade de um exame aprofundado das diferentes

manifestações da violência na sociedade com o intuito de engajar transformações radicais no

plano político que possam reduzir as desigualdades e minimizar as dinâmicas de exclusão”

(CAPPI, 2014, p. 23).

Embora esse discurso se aproxime do anterior, quando reconhece que a criança e o

adolescente são pessoas em desenvolvimento e, portanto, sujeitos de direitos, dele difere em

relação a representação do adolescente em conflito com a lei, pois considera que eles serão o

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futuro da nação, devendo ser tratados como um semelhante. Por isso, a visão sobre a pena

privativa de liberdade é merecedora de crítica, conforme destaca Cappi (2014, p. 23):

[...] há uma leitura abertamente crítica da perspectiva punitiva, não só em relação às

condições concretas da implementação da privação de liberdade, mas também no

que diz respeito a sua filosofia geral, reprovando enfaticamente seus aspectos

aflitivo e retributivo.

Para essa doutrina, a educação é entendida como uma alternativa à punição, não

apenas como abordagem complementar. Além disso, valorizam-se as propostas educativas

que se afastam nitidamente de posturas autoritárias e paternalistas. Prioriza-se a construção da

autonomia do jovem, a ser construída gradativamente pela intervenção socioeducativa e a ser

conduzida em meio aberto.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia de democracia sustentável pode ser representada como o equilíbrio entre a

concretização dos direitos fundamentais e administração do seu custo pelo Estado,

legitimando-se, nessa perspectiva, apenas as ações que estejam voltadas ao desenvolvimento

humano sob o ponto de vista da concretização dos direitos fundamentais como mecanismo de

inclusão e bem-estar social. Nesse contexto, as normas elaboradas pelas casas legislativas

somente seriam legítimas se promovessem a inclusão social e o bem-estar social.

A partir do marco teórico da criminologia crítica, pode-se constatar o destoante e

ilegítimo discurso promovido pelo direito penal, o qual, longe de cumprir com as suas funções

declaradas, revela ser um instrumento altamente seletivo e reprodutor das desigualdades

sociais, indo de encontro às aspirações almejadas pela democracia sustentável. A criminologia

crítica também revelou o caráter ideologizante das agências de controle social, as quais

acabam interagindo de maneira direta ou indireta com a produção legislativa penal, quando da

criação dos estereótipos a serem criminalizados.

A interação entre as agências de controle social pode ser comprovada pela pesquisa

empírica realizada na PEC 171/1993, pois em várias passagens dos discursos parlamentares,

foi possível visualizar remissões ao índice de criminalização divulgado pela mídia, bem

como, as respostas que a sociedade exige em razão desses índices, as quais invariavelmente

estão baseadas em teorias que comprovadamente naufragaram, como é o caso da teoria da

retribuição da pena e a da prevenção geral e especial, bases de sustentação do discurso

favorável a redução da maioridade penal. Também foi possível observar que esses discursos

punitivistas ignoram as críticas que são feitas ao sistema penal e, embora reconheçam que o

problema da criminalização juvenil possua relação com a exclusão social, entendem que a

redução da maioridade penal seria a solução, como se, “em um passe de mágica”, isso

acabasse com a exclusão social.

Dessa maneira, a criança e, em especial o adolescente, não são representados pelo

Congresso Nacional como sujeitos de direitos, mesmo estando positivada no Estatuto da

Criança e do Adolescente e nas normas Constitucionais essa condição. A pesquisa empírica

revelou que mesmo nos discursos contrários à redução da maioridade penal, salvo raríssimas

exceções, o adolescente não é representado como sujeito de direitos.

A análise dos discursos parlamentares permitiu concluir por uma maciça adesão

daqueles que são favoráveis à redução da maioridade penal ao discurso da punição absoluta e

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da punição garantista, ao passo que os congressistas contrários à redução, basearam suas

assertivas no discurso da proteção, admitindo a punição do adolescente, desde que amparadas

nas regras do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por fim, pouquíssimos discursos

contemplaram o que foi classificado pela pesquisa como discurso do protagonismo

emancipador, onde a criminalização juvenil é tratada como um problema estrutural do

sistema, primando pela construção da autonomia do jovem de maneira gradual pela

intervenção socioeducativa e a ser conduzida em meio aberto.

Como pode ser visto, mesmo com as convenções internacionais sobre os direitos da

criança e do adolescente, mesmo diante da vigência dos artigos 227 e 228 da Constituição

Federal, regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente desde o ano de 1990 que

estabelecem a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, ainda assim, a aplicação

prática dessas normas é muito tímida no cenário politico nacional, que ao invés de atacar o

problema da concretização dos direitos fundamentais através de políticas de inclusão, opta por

encarcerar os jovens e escondê-los da sociedade, em verdadeiro descompasso as aspirações do

Estado Democrático de Direito.

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