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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO ERNALDO FRANCISCO DOS SANTOS AS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS PUBLICADAS NA GAZETA DE NOTÍCIAS – 1892 a 1893 MARÍLIA 2009

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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

ERNALDO FRANCISCO DOS SANTOS

AS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS PUBLICADAS NA GAZETA DE NOTÍCIAS – 1892 a 1893

MARÍLIA 2009

UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

ERNALDO FRANCISCO DOS SANTOS

AS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS PUBLICADAS NA GAZETA DE NOTÍCIAS – 1892 a 1893

Dissertação apresentada à Universidade de Marília (UNIMAR), para obtenção do Título de Mestre em Comunicação, Área de concentração em Mídia e Cultura, Linha de Pesquisa: Produção e Recepção de mídia. Orientadora: Profª. Drª. Elêusis Mírian Camocardi.

MARÍLIA 2009

Universidade de Marília - UNIMAR

Reitor Dr. Márcio Mesquita Serva

Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação

Pró-reitora Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory

Programa de Pós-graduação em Comunicação

Área de concentração: Mídia e Cultura

Linha de Pesquisa: Produção e Recepção de Mídia

Orientadora: Profª.Drª. Elêusis Mírian Camocardi

UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA

NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

ERNALDO FRANCISCO DOS SANTOS

AS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS PUBLICADAS NA GAZETA DE NOTÍCIAS – 1892 a 1893

Data da Defesa:

Banca Examinadora

Profª. Drª. Elêusis Mírian Camocardi

Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________

Profª. Drª. Andréia Cristina Fregate Baraldi Labegalini

Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________

Profª. Drª. Heloísa Helou Doca

Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________

Dedico este trabalho a Juliano Ricardo Beffa,

exemplo de vida e amor.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Deus verdadeiro.

Aos meus pais, Antônio e Elza, pelo amor.

À minha orientadora, Profª. Drª. Elêusis Mírian Camocardi, pelas atitudes favoráveis

que permitiram o desenvolvimento deste trabalho.

Aos membros da banca de qualificação: Profª. Drª. Andreia Cristina Fregate Baraldi

Labegalini e Profª. Drª. Heloísa Helou Doca, pelas sugestões.

À Profª. Drª. Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira, pela orientação.

Deixo também meu profundo agradecimento a todo corpo docente do Programa de

Pós-graduação em Comunicação da UNIMAR.

À minha esposa, Marta Regina Beffa, companheira de sempre, pelo estímulo e

confiança.

Ao meu filho, Emílio José Beffa dos Santos, por facilitar a digitação.

À Maria Lúcia Beffa, Bibliotecária da Faculdade de Direito da USP, pelo

fornecimento de dados para a pesquisa.

Ao Ir. Francisco Jordão, pela presença e fé.

A alguém que com certeza estou esquecendo.

RESUMO

O presente estudo tem como proposta abordar algumas crônicas da série A Semana

de Machado de Assis, publicadas no intervalo de 1892-1893, no jornal Gazeta de

Notícias. O objetivo foi tomar as crônicas como uma unidade sincrônica a fim de

mostrar que, embora reflitam assuntos e acontecimentos políticos, elas não são

ditadas pelos acontecimentos do momento. A metodologia utilizada foi a de

levantamento, leitura e reflexões a partir de textos correlatos ao tema. O corpus da

pesquisa foi construído com a finalidade de sustentar a ideia de que o cronista tinha

algo a dizer que transcendia os limites de sua obrigação jornalística, de apenas

retratar os fatos da semana. Os resultados da pesquisa apontam para a estratégia

de o cronista valer-se do fato veiculado pelos jornais, mas, abruptamente, deslocá-lo

de seu contexto imediato, aproximando acontecimentos de esferas distintas, e

resultando, ao final, na arte de conversação com o leitor. Dessa forma, vamos

sustentar o argumento de que essa estratégia lhe permite acessar traços do

funcionamento da sociedade brasileira.

Palavras-chave: Crônica jornalística. Machado de Assis. Leitor. Conversação.

Sociedade brasileira.

ABSTRACT

This study is proposed as address some of the series chronicles the Week of

Machado de Assis, published in the period 1892-1893, in the newspaper Gazeta de

Notícias. The objective was to take the chronicles as a synchronous unit to show

that, while reflecting issues and political events, they are not necessarily dictated by

the events of the moment. The methodology used was the researching, reading and

the reflecting on texts related to the subject. The body of the research has been built

with the purpose of supporting the idea that the columnist had to say something that

transcends the limits of his journalistic duty, only to portray the events of the week.

The results of our research point to a strategy to assert the fact is run by

newspapers, but, suddenly, move it from its immediate context, bringing events of

different levels, and resulting in the end, the art of conversation with the reader.

Thus, we argue, finally, the argument that this strategy allows him to access,

particular features of the dynamics of the functioning of the Brazilian society.

Keywords: Chronicle newspaper. Machado de Assis. Reader. Conversation.

Society.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

CAPÍTULO 1 - PERFIL DO SURGIMENTO DA IMPRENSA NO BRASIL ............... 19

1.1 Aspectos do Limiar da Imprensa no Brasil .......................................................... 19

1.2 A Crônica: Um Perfil ............................................................................................ 23

1.3 A Crônica: Gênero Jornalístico ............................................................................ 26

1.4 Aspectos da Atividade Jornalística de Machado de Assis ................................... 31

CAPÍTULO 2 - MACHADO DE ASSIS: O CRONISTA ............................................. 40

2.1 Aspectos do Cronista Machado de Assis ............................................................ 40

2.2 Aspectos do Cronista da Série “Bons Dias” ........................................................ 49

2.3 Aspectos do Cronista da Série “A Semana” ........................................................ 52

CAPÍTULO 3 – CRÔNICAS ...................................................................................... 60

3.1 Crônica de 24 de Abril de 1892 ........................................................................... 60

3.2 Crônica de 29 de Maio de 1892 .......................................................................... 77

3.3 Crônica de 29 de Janeiro de 1893 ...................................................................... 83

3.4 Crônica de 12 de Março de 1893 ........................................................................ 90

3.5 Crônica de 11 de Junho de 1893 ........................................................................ 94

3.6 Crônica de 26 de Novembro de 1893 .................................................................. 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 106

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 109

ANEXO A – GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 24 DE ABRIL DE 1892 ......................... 115

ANEXO B – GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 29 DE MAIO DE 1892 .......................... 116

ANEXO C – GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 29 DE JANEIRO DE 1893 .................... 117

ANEXO D – CRÔNICA DE 12 DE MARÇO ............................................................ 118

ANEXO E - GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 11 DE JUNHO DE 1893 ........................ 120

ANEXO F - GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 26 DE NOVEMBRO DE 1893 ................ 121

9

INTRODUÇÃO

Apresentar uma pesquisa sobre a crônica de Machado de Assis é uma tarefa

sempre espinhosa. Por um lado, por causa da grande quantidade de estudos sobre

o autor e, por outro, paradoxalmente, porque os estudos críticos que se aprofundam

em interesse pelas crônicas jornalísticas escritas por Machado de Assis são

relativamente poucos (GRANJA, 2006).

O certo é que a imagem e a própria produção literária de Machado de Assis

foi sempre marcada pela disputa sobre a divisão da herança machadiana. É curioso

notar, neste sentido, que o combate se deu, a princípio, entre os próprios

contemporâneos do escritor de Memórias póstumas de Brás Cubas. Em 1881, esta

obra foi alvo de questionamentos: “O que é Brás Cubas, em última análise?

Romance? Dissertação moral? Desafio humorístico?” (MAGALHÃES JÚNIOR, 1981,

p. 11).

Similarmente, Sílvio Romero (apud MONTELLO, 1961) tecia rigorosas críticas

ao estilo de Machado de Assis. Conforme dizia, o estilo de Machado de Assis era

plácido e igual, uniforme e compassado, um estilo que revelava alguém que sofria

de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem. Tais considerações

receberiam réplicas em quatro artigos publicados pelo Jornal do Comércio, cuja

assinatura levava o pseudônimo de Labieno:

Foi no começo de 1898 que saíram a lume, nas colunas do Jornal do Comércio, os quatro artigos de contestação ao livro de Sílvio Romero sobre Machado de Assis, assinalados com o pseudônimo de Labieno [...] Quem era o escritor que se escondia debaixo daquele pseudônimo, não foi fácil descobrir-se. O próprio Machado de Assis levou algum tempo entre conjeturas, até vir a saber que não era propriamente um escritor de coisas literárias que Labieno ocultava, e sim a figura de um antigo político do Império [...]. O Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira [...] E o gesto espontâneo do antigo Ministro do Império, defendendo Machado de Assis das agressões de Sílvio Romero? [...] Com efeito, dezoito anos antes da publicação de seu livro sobre Machado de Assis, Sílvio Romero publicara [...] Ensaios de Crítica Parlamentar. Um desses ensaios, talvez o mais contundente, era a análise da figura de Lafayette. (MONTELLO, 1961, p. 317).

Facioli (1982, p. 9) recuperou duas posições críticas de cronistas, proferidas

após o sepultamento do escritor de Várias Histórias. Na primeira, falava-se que o

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enterro fora a consagração definitiva de sua glória; na segunda, o enfoque era outro:

salientava-se o fato de que Machado se sentiria amesquinhado com esse

exibicionismo porque, mais que nenhum outro artista no Brasil, amou a simplicidade

e o silêncio. A partir daí, torna-se visível que o embate em torno de Machado de

Assis estava apenas na gestação.

Segundo Cândido (2004, p. 15), os críticos que estudaram Machado de Assis

nunca deixaram de inventariar e realçar as causas eventuais de tormento social e

individual: a cor escura, a origem humilde, a carreira difícil, as humilhações, a

doença nervosa. A mudança só veio após os estudos renovadores de Jean-Michel

Massa (apud CÂNDIDO, 2004). Machado de Assis será visto também pela ótica de

estudiosos-pesquisadores: de um lado, Alfredo Pujol, em 1917, o qual representou o

advento da pesquisa biográfica de Machado de Assis; de outro, Lúcia Miguel

Pereira, em 1936 (CÂNDIDO, 2004).

Coutinho e Sousa (1940), em um pioneiro estudo sobre a filosofia de

Machado de Assis, consideram que há no escritor uma preocupação insistente em

ridicularizar os sistemas filosóficos, de satirizar a cega confiança dos autores nas

próprias filosofias, e de modo geral, a confiança na ciência e na razão humana.

Nesta referência, Nunes (1982) caracterizou o humorismo, enquanto visão

compreensiva do mundo, como a base do pensamento ficcional de Machado. Para o

crítico, a ficção, enquanto modo de pensamento, é capaz de absorver filosofias e de

recondicioná-las a uma intenção diferente da que possuem nos discursos de origem.

É, portanto, um pensamento que ri da filosofia.

Nunes (1982) usa o conto Teoria do Medalhão de Machado, no suposto

diálogo entre pai e filho, como ilustração do pensamento ficcional machadiano cuja

particularidade é rir da filosofia:

Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: ou os negócios miúdos ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos... não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria do medalhão acabado; mas, se puderes adota a metafísica; é mais fácil e mais atraente... - Nenhuma imaginação? - Nenhuma; antes, no papel e na língua, alguma, na realidade nada [...] foge a tudo que possa cheirar a reflexão. (NUNES, 1982, p. 129).

Vê-se, dessa forma, que o humorismo, enquanto visão compreensiva da

realidade, visa a filosofia ou outras ciências. Porém, Nunes (1982) considera

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também que o humorista em ato é um praticante lúdico do espírito cético, porque a

razão cética, modalizada ludicamente dentro da compreensão humorística do

mundo, é o foco mais incisivo do pensamento ficcional de Machado de Assis.

Sobre o legado machadiano, o avanço dos estudiosos virá por meio de uma

estratégia da crítica literária, a de dar como foco especial a posição do narrador, no

grau de importância que esta assumiu na especificidade da ficção machadiana.

Neste sentido, Facioli (1982, p. 40), ao se voltar ao narrador, observa que o narrador

machadiano pôs em cena uma pluralidade de vozes discordantes, com pontos de

vista antagônicos, sem que nenhuma hierarquia de valores fizesse prevalecer

apenas um deles. O próprio narrador é contestado continuamente em sua versão

dos fatos narrados, sendo desmistificado pelos outros ou por seu próprio discurso.

Schwarz (1982), por meio da perspectiva sociológica, trouxe importância ao

estudo machadiano ao eleger o termo “volubilidade” a fim de fundamentar a

estratégia do narrador cuja especificidade é a de estar a todo momento se

desidentificando da posição que ocupava na frase anterior, no parágrafo anterior, no

capítulo anterior.

Brayner (1982) afirma que a estratégia do narrador estaria, para além do

volúvel, na própria mudança de um discurso ao outro, como elo condutor em que

subsiste toda uma sistemática de retórica aberta. Estaria em o narrador utilizar-se de

um discurso proferido por um personagem vindo de fora dos hábitos e costumes

reinantes para forçar, com a nova perspectiva do recém-chegado, o paradoxal oculto

nas significações cristalizadas e arbitrárias.

Outro aspecto reconhecido como formador do texto de Machado de Assis é o

caráter híbrido da escrita, apresentado sobretudo na imprensa do século XIX. A

imprensa, nesse período, está dividida entre o gênero literário e o factual da matéria

jornalística. Neste espaço, Machado transita com seu ar sentencioso, zombeteiro e

irônico. Não mantém fronteiras entre o ensaio, a crônica e o conto, não acentuando

em definitivo nenhum desses gêneros.

O que há de fundamental a acrescentar é o fato de que o debate em torno do

legado machadiano continua bem vivo nos dias atuais. Vários autores têm procurado

delimitar, confirmar, esclarecer ou acrescentar novidade ao lugar ocupado pelo perfil

de textos e ideias que nos deixou Machado de Assis. Atualmente, o múltiplo olhar

pode ser constatado, de um lado, a partir do pensamento de Gledson (2006),

segundo o qual há possibilidade de buscar fatos importantes acerca das intenções

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de Machado. Por outro, Baptista (2003) ao ressaltar que o paradigma do pé atrás

domina a atualidade dos estudos machadianos, não tanto pelo número de trabalhos

que a eles se filiam, mas pelo corpo de problemas que o caracterizam e que, pelo

menos por agora, aparecem incontornáveis para qualquer leitura crítica da obra de

Machado. Tal paradigma possui sua vertente intencionalista, que, conforme Baptista

(2003, p. 399),

[...] promove uma leitura que assume como seu objetivo essencial definir ou delimitar com rigor e de uma vez por todas a intenção do autor, isto é, e convém esclarecer, a intenção de Machado de Assis ao recorrer a autores ficcionais. Em segundo lugar, a leitura opera na pressuposição [...] de que Machado instala autores supostos ou para fazer de cada um deles seu porta-voz, ou para atacar o ponto de vista que representam [...] a intenção de Machado se determina e, mais ainda, só pode ser determinada colocando o autor suposto sob suspeição, lendo contra a narrativa, lendo contra o narrador.

Baptista (2003) assegura que Machado aceitou serenamente o risco de todo o

seu trabalho romanesco cobrir com um manto de ambiguidade o conjunto de suas

posições, de suas ideias, de suas intenções. Dessa forma, não há por que buscar a

intenção do autor.

Entretanto, Gledson (2006) reforça a noção da intenção ao afirmar, no caso

de D.Casmurro, que o adultério é central:

[...] ninguém, podemos dizer com segurança, provará o caso contra ou a favor de Capitu, nunca. Mas suspeito que isso fosse completamente sem importância para Machado [...] Machado, seja nos contos, romances ou nas crônicas, está bem menos interessado em “fatos” [...] do que em atitudes e convenções. É nesse nível, creio, que temos de admitir que é possível ler o romance de uma maneira mais ou menos correta, e que essa maior ou menor correção faz parte das intenções de Machado. (GLEDSON, 2006, p. 289).

Baptista (2003) parece tomar como referência um postulado do filósofo

americano, Richard Rorty (1993), a quem faz referência na obra Autobibliografias.

Sua afinidade com o filósofo americano é visível à medida que insiste em lançar

dúvidas à busca das intenções sobre a obra de Machado: “Dedicarei os primeiros

passos desta seção final a lançar dúvidas sobre a ausência de dúvidas sobre a

intenção de Dom Casmurro”. (BAPTISTA, 2003, 431).

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Rorty (1993) foi pioneiro em atacar os que acreditam que uma interpretação

verdadeira possa revelar a intenção de um texto. Considera:

Para nós, pragmatistas, a noção de que há algo sobre o que um determinado texto realmente é, algo que a aplicação rigorosa de um método irá revelar, é tão errada quanto a ideia aristotélica de que há algo que uma substância é realmente, intrinsecamente, em contraposição ao que ela é apenas aparentemente, acidentalmente ou relacionalmente. A ideia de que um comentador descobriu o que um texto realmente faz – por exemplo, que ele realmente desmistifica um construto ideológico [...] é, para nós, pragmatistas, só mais ocultismo. (RORTY, 1993, p. 121).

Rorty (1993) salienta que a busca de um significado específico depende de

estruturas de referência ou sistemas de relações nos quais o texto pode ser

colocado. Para qualquer texto determinado, vários contextos poderiam ser

colocados. Assim, ao tomar como referência a persistência na intenção de Machado

e D.Casmurro teremos um significado. Ao tomar como referência o D.Casmurro

como um gênero, como uma ação do livro na ficção machadiana, conforme declara

Baptista (2003), teremos um outro significado.

De acordo com Rorty (1993), ler Eco ou ler Derrida, muitas vezes nos alerta

para algo importante sobre um texto, porém, cada uma dessas leituras

suplementares apenas nos dá mais um contexto onde situar o texto.

Rorty (1993) procura abandonar o princípio fundacionalista que está na raiz

da tradição epistemológica ocidental, cujo representante é Umberto Eco. Enquanto

este valoriza a intenção da obra, aquele recusa a noção de que um texto tenha uma

intenção e que a interpretação legítima envolve a tentativa de esclarecer de alguma

forma essa particularidade.

De igual modo, Baptista (2003) ataca os seguidores do intencionalismo, e,

entre eles, encontra-se Gledson. Conforme Baptista (2003) Gledson procura revelar

a intenção de Machado e acredita que o pode fazer ao postular uma “leitura melhor”,

que não se deixe enganar, portadora da necessidade de descobrir a verdade que

espera um careful reader para ser revelada.

De fato, segundo Gledson (2006), o texto de Machado de Assis requer um

leitor atento e perspicaz, cujo comportamento se traduz no distanciamento do

narrador. Acredita ser possível descobrir fatos importantes acerca das intenções de

Machado.

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Gledson (2006) valoriza o estudo sobre a intenção. Considera que se

desprezássemos, por exemplo, o contexto em que se insere Dom Casmurro e o

texto machadiano, ele concordaria com as palavras de Baptista (2003) porque:

Existe um sentido em que Machado de fato aceitou o risco de que a ambiguidade presente em sua obra – ela traiu ou não, afinal? – desse margem para seus leitores escolherem seu próprio caminho dentro do romance. Mas isso não é o mesmo que não ter intenção nenhuma ou de – passivamente? – aceitar a ambiguidade. Pelo contrário, como tentei explicar, cada leitor fará escolhas, algumas corretas, outras erradas [...] O ponto crucial é que essas decisões, individualmente ou tecidas até constituírem uma visão de romance, são mais – ou menos – corretas, na medida em que correspondem às intenções de Machado. (GLEDSON, 2006, p. 297).

Como se vê, em nossa breve exposição, a importância atribuída ora aos

romances ora aos contos de Machado de Assis pode até ser, em alguns aspectos,

conflitantes. Porém, é reveladora da extensão de estudos que se voltam a pensar o

mérito dos textos machadianos. É longa a lista das principais questões levantadas

por diversos estudiosos machadianos, entre elas, a volubilidade do narrador –

Schwarz (1982); a ligação entre literatura e história – Gledson (2006); o olhar de uns

e outros personagens, de acordo com a sua posição social – Bosi (1999), entre

outros.

Quanto à produção cronística de Machado de Assis, Granja (2006) sugere

que ela foi relegadas a uma posição secundária em vista da importância atribuída

ao estudo sobre os romances e contos. As crônicas possuem o mérito de serem

surpreendentes, pelo desvelamento do homem e do escritor, pelo compromisso que

implicam com o cotidiano da vida social. Entretanto, em face do esforço dedicado

aos romances de Machado de Assis, os estudos das crônicas machadianas são

relativamente recentes e poucos

Granja (2006), ao traçar um breve panorama sobre os acontecimentos mais

importantes em relação aos estudos das crônicas machadianas, afirma não ser difícil

imaginarmos alguns motivos pelos quais o interesse por esses textos ser

relativamente tardio. Como explica,

Lê-los é uma tarefa que impõe dificuldades. Uma delas, que, cremos, vem antes mesmo das dificuldades de apreensão do sentido de muitos comentários, é valorizar literariamente esses textos aparentemente tão ‘descartáveis’, escritos “ao correr da pena” para

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serem lidos “ao correr dos olhos”, como escrevera José de Alencar, em meados da década de 1850, referindo-se à atividade do folhetinista [...]. O próprio Machado não tinha certeza de que esses textos tivessem ‘valor’ suficiente para que fossem reunidos em livro. Talvez isso se devesse à preocupação do escritor em relação a uma das facetas da crônica, a história miúda da política e do cotidiano, que fazia com que os textos “envelhecessem” rapidamente. (GRANJA, 2006, p. 388).

A partir da década de 1980 o estudo das crônicas de Machado será

valorizado pela crítica literária. Conforme Granja (2006), o divisor de águas é a

publicação da obra Machado de Assis: ficção de história, de John Gledson, em

1986. Um livro corajoso que vai despertar o interesse pelas crônicas de Machado e,

a partir desse marco, vários estudos, teses de doutorado e dissertações de

mestrado foram surgindo.

É importante salientar que Granja (2006) não deixa de manifestar importância

ao estudo pioneiro de Gustavo Corção1, o qual, em 1958, apresentava as

características da estratégia do cronista, como a de saltar de uma coisa para outra;

transportar-se do abstrato para o concreto, passar do atual para o clássico, sempre

num movimento constante.

Nesta esteira, Sônia Brayner escreveria artigo muito substancioso, mostrando a crônica (e o conto) como um lugar privilegiado para o “laboratório ficcional” do escritor [...]. Por fim, podemos dizer que os trabalhos de Marlyse Meyer sobre a história do folhetim e a chegada do gênero ao Brasil são também referências importantes para todos os estudos sobre Imprensa e Literatura no século XIX. (GRANJA, 2006, p. 392).

A fim de mostrar a importância que o estudo das crônicas machadianas vem

recebendo nos dias atuais, Granja (2006) cita a dissertação de mestrado de Dílson

da Cruz Júnior, apresentada em 2002, cujo foco se volta às crônicas publicadas

entre abril de 1892 e dezembro de 1893. Mostra, igualmente, a Série Literatura da

Coleção Documentos do Instituto de Estudos Avançados da USP, apresentada, em

2004, por Alfredo Bosi (apud GRANJA, 2006) sob o nome de “O teatro político nas

crônicas de Machado de Assis”. E oferece também uma conclusão sobre os estudos

das crônicas machadianas que estão surgindo nos nossos dias:

1 Gustavo Corção: (1896 – 1978). Publicou “Machado de Assis cronista” no Diário de Notícias em 28 de setembro e 5 de outubro de 1958 (GRANJA, 2006).

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Uma vez que comparecem a esse escrito aqueles que abriram caminho aos mais recentes estudos a respeito da crônica de Machado de Assis, podemos seguir em frente e dizer que, atualmente, há dois tipos de interesse por esses textos: estudos sobre as próprias crônicas e estudos de interesse variado que usam essas crônicas como fonte de informação, matéria, testemunho, entre outros. Nenhum tipo é melhor que o outro, posto que as crônicas podem e devem ser estudadas por sua composição literária, pela riqueza de informações que podem nos trazer, ou pelas duas coisas juntas. (GRANJA, 2006, p. 393).

Isto posto, encontramos ocasião para apresentar o objeto desta dissertação, a

saber, analisar criticamente crônicas da série A Semana (Machado de Assis),

publicadas, no intervalo de 1892-1893, no jornal Gazeta de Notícias. Analisamos tais

crônicas como uma unidade sincrônica. Partimos do pressuposto de que, embora

reflitam temas e assuntos políticos, elas não são necessariamente ditadas pelos

acontecimentos do momento.

Outrossim, seguimos por meio de um recorte temático, o qual nos permitiu

construir um enredo entre elas. Tal enredo nos assegurou, por sua vez, depreender

o sentido que Machado de Assis nos deixa entrever em seus textos: um sentido que

nos conduz à percepção da crônica como gênero que pode ajudar-nos a pensar a

realidade brasileira ao pôr em cena a singularidade de uma experiência. Não se trata

da significação da crônica, mas do sentido com que ela se abre às significações

possíveis.

O foco da pesquisa está na análise de seis crônicas: a de 24 de abril de

1892; a de 29 de maio de 1892; a de 29 de janeiro de 1893; a de 12 de março de

1893; a de 11 de junho de 1893 e a de 26 de novembro de 1893. A partir delas,

estabelecemos duas hipóteses centrais para a nossa pesquisa, intimamente

relacionadas. A primeira busca comprovar o papel do cronista como o construtor de

uma estratégia de conversação, na qual prevalece a interrupção, como meio que lhe

permite acessar resíduos do cotidiano até então despercebidos pelo jornal e talvez

pelo próprio leitor.

A segunda hipótese parte do pressuposto de que o cotidiano apreendido pelo

cronista esteja além das fronteiras do jornal. Esteja, talvez, nos ajuntamentos da rua,

alheio à ordem, aos regimentos, não regido por um princípio racional, mas

caracterizador de traços do comportamento do homem brasileiro.

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Tomamos a edição crítica A Semana2 (1892-1893), por uma questão prática,

visto que as crônicas machadianas, no recorte temporal que escolhemos, receberam

a já mencionada edição crítica nos estudos de Gledson (1996; 2006), e,

simultaneamente, porque o seu trabalho constitui-se num marco no que se refere ao

estudo da produção cronística de Machado de Assis (GRANJA, 2006).

A pesquisa tem, portanto, entre seus objetivos, o de apontar, em algumas

crônicas machadianas que visitam o período de 1892 a 1893, a estratégia do

cronista como a de recolher as notícias dispersas e atribuir-lhes significação; o de

mostrar o cronista Machado intérprete das mutações vigentes e apresentar a ânsia

do cronista para manter um notável compromisso com o leitor apesar de lutar para

se livrar da obrigatoriedade de apenas fazer um retrato da semana.

Dessa forma, a dissertação está estruturada em três capítulos. No primeiro

procuramos traçar um perfil do surgimento do jornalismo brasileiro e a consequente

percepção de Machado sobre o jornal. Sob o título O perfil do surgimento da

imprensa no Brasil, o capítulo apresenta aspectos da imprensa no Brasil e a

valorização da crônica como gênero jornalístico. Para embasamento teórico, foram

utilizados, entre outros, os estudos de Lage (1986); Pereira (1989); Marques de Melo

(1994); Silva (2006); Granja (2006), Baptista (2003); Gledson (2006); Facioli (1982) e

Cândido (1992), além de textos de pesquisas consultados online.

No segundo capítulo, sob o título Machado de Assis cronista, apresentamos

aspectos da crônica machadiana na interface entre literatura e jornal. Observamos

que o cronista, a princípio, ocupa-se em retratar a versão real dos fatos da semana,

mas, a seguir, sobretudo a série A Semana, foi responsável por imprimir à crônica

um recurso estilístico capaz de permitir que o texto se abra às significações

possíveis.

Além disso, a ênfase é dada ao papel do cronista em relação ao cotidiano de

sua época. Somente após identificar e compreender a prática do cronista no espaço

do jornal tornar-se-á possível situar o lugar das crônicas selecionadas. Para a

redação deste capítulo, a pesquisa baseou-se em textos de Gledson (1996; 2006);

Facioli (1982); Granja (2006); Cruz Júnior (2002); Cândido (2004); Marques de Melo

(1994); Blanchot (2001; 2007), dentre outros. Tais autores ajudam-nos a reconstruir

as relações da crônica de Machado de Assis com os fatos da semana.

No terceiro capítulo, as leituras das crônicas selecionadas apontaram a

estratégia do cronista, como a de constituir-se como mediador entre os

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acontecimentos da semana e os traços do comportamento do homem brasileiro, e,

sobretudo, a de estabelecer uma espécie de jogo entre a linguagem jornalística e a

ficção.

Sem pretender esgotar a temática, esperamos, enfim, que esta pesquisa

possa contribuir para os novos estudos sobre a crônica jornalística de Machado.

Apesar de ser um terreno escorregadio e pouco conhecido conforme observação de

Granja (2006), consideramos o desenvolvimento desta dissertação uma proposta a

ser ampliada por pesquisadores da literatura e do jornalismo.

19

CAPÍTULO 1 - PERFIL DO SURGIMENTO DA IMPRENSA NO BRASIL

Este capítulo apresenta um perfil da imprensa no Brasil. A imprensa sempre foi

um foco de debates. Suas formas iniciais eram marcadas ora por publicações

clandestinas, que circulavam à margem da censura, ora por publicações oficiais.

1.1 Aspectos do Limiar da Imprensa no Brasil

Lage (1986) enumera três fases do caminhar da imprensa no Brasil. A

primeira era marcada por uma atividade política virulenta, com ataques pesados

contra adversários. A fase que vai da Corte ao Império é identificada como a

segunda fase. Terá a presença dos literatos e, ao mesmo tempo, será importante

para a consolidação de jornais duráveis, como os cariocas Jornal do Comércio

(1827); Gazeta de Notícias (1874) e o paulista O Estado de São Paulo (1875). A

terceira fase tem como ponto de partida a República Velha e vai até o Estado Novo.

É marcada pelo período em que o jornalista passaria a se distanciar do literato para

formar uma categoria própria.

Cândido (1964) elabora três ramos de jornalismo de 1808 a 1836, quais

sejam, o jornalismo de ensaio, o de artigo e o de panfleto. O Correio Brasiliense

(1808-1822) representa o perfil do jornalismo de ensaio, na figura do jornalista

Hipólito da Costa. Ensaio porque traçou no Correio diretrizes para a compreensão

do Brasil.

Para Cândido (1964), o jornalista mostrava preocupação com a liberdade

política e a liberdade de expressão, pois o despotismo lhe parecia a raiz dos males

sociais. Nos primeiros anos do seu jornal procurava argumentar dentro da própria

estrutura política vigente, mostrando que a monarquia portuguesa não era despótica,

isto é, arbitrária, mas limitada por si mesma.

Quanto ao jornalismo de panfleto, Cândido (1964) apresenta Frei Caneca,

criador do periódico O Tifis Pernambucano (1823-1824), destacando-se dentre os

pasquins que vão influenciar a opinião pública em formação. O número XXI do Tifis

20

condenava o fato de Brasil ter ficado independente em 1822, mas não haver

consolidado o pacto social no país.

O terceiro ramo do jornalismo é o jornalismo de artigo, representado

peculiarmente, por Evaristo da Veiga, em A Aurora Fluminense, jornal de direita

liberal que circulava às segundas e sextas-feiras (1827-1839). Foi, segundo Cândido

(1964), equilibrado e, principalmente, num tempo de paixões desencontradas,

demonstrara rara capacidade de conciliar o equilíbrio com a energia, a prudência

com o desassombro, traduzindo-se pela moderação.

O estilo de pensador pairava sobre a prática jornalística de Hipólito da Costa;

em Frei Caneca, jorrava o fervor do debate; em Evaristo da Veiga, ao contrário,

percebia-se um jornalista de virtudes medianas ao ser comparado aos dois

primeiros. No entanto, foi jornalista no sentido moderno, pois nos números da Aurora

Fluminense reúnem-se artigos e notas ligados aos acontecimentos que comenta e

frequentemente os analisa à luz dos seus princípios.

O que há, pois, de fundamental a destacar é que os três tipos de jornalismo

possuíam um estilo convergente: os três procuravam analisar a situação, esclarecer

o juízo do leitor e orientar a atividade do homem público. Separavam-se, todavia, na

forma adotada e na densidade do pensamento.

Azevedo (1963) lembra, igualmente, que o processo da Independência fez

surgir vários periódicos de cunho doutrinador. Em 1821, aparece o Revérbero

Constitucional Fluminense, de Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da Cunha

Barbosa, comprometidos com os ideais da Independência. No mesmo ano, começa

a circular O Espelho, de Manuel Ferreira de Araújo, defendendo os interesses do

príncipe; a seguir, surge A Malagueta, de Luís Augusto May, também voltado aos

ideais da Independência e, em abril de 1822, a fim de defender a ideia de uma

Constituinte brasileira, João Soares Lisboa cria o Correio do Rio de Janeiro.

Quanto ao surgimento de vários periódicos, Azevedo (1963) revela que a

proclamação da independência política, a liberdade de imprensa, estabelecida na

carta constitucional, e as lutas políticas que se desencadearam com violência

extrema favoreceram o surto do jornalismo no Brasil.

Outro exemplo de jornalista dessa época citado por Prado Júnior (1969) é

Cipriano Barata, o qual desperta a consciência do público contra as tendências

conservadoras do novo governo imperial.

21

Levado pela pressão popular, o Imperador fora obrigado a convocar uma assembleia constituinte. Esta assembleia, embora composta de uma maioria reacionária e antiliberal, embaraçava muito a ação despótica do governo imperial, que, por isso, tramava sua dissolução. Cipriano Barata não se iludia, e pelas colunas de seu jornal denunciava abertamente o projetado golpe. (PRADO JÚNIOR, 1969, p. 203).

Até 1838, data de sua morte, o jornalista Cipriano Barata deixou inúmeros

periódicos sob o título de: Sentinela da Liberdade na guarita de Pernambuco;

Sentinela da Liberdade na guarita do Quartel-General de Pirajá; Sentinela da

Liberdade na guarita do Forte de São Pedro na Bahia de Todos os Santos. Em 1834

e 1835, Cipriano Barata publica na capital pernambucana sua última Sentinela:

Sentinela da Liberdade em sua primeira guarita, a de Pernambuco (PRADO

JUNIOR, 1969).

A partir de 1850, com o período da maioridade de Pedro II, cresceram as lutas

políticas e os pasquins deram lugar aos jornais dirigidos como empresas. O Correio

Mercantil foi um dos principais jornais da fase empresarial da imprensa brasileira,

contou com a colaboração de autores, como José de Alencar e Manuel Antonio de

Almeida (SIMÕES JÚNIOR, 2006).

É igualmente significativo o fato de que a imprensa recebera influência

decisiva por meio de outro fator que surgirá a partir da segunda metade do século

XIX: o advento do ideal republicano. O movimento republicano iria dar origem, por

sua vez, a vários jornais de caráter republicano, perfazendo até a derrocada do

Império, em 1889, 74 jornais republicanos espalhados pelo Brasil, sendo que a

região Sul (na época São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais)

contava com 54 jornais republicanos, ou seja, 73% do total (GUIMARÃES; FRANCO,

2009).

É importante que se note o número de folhas se intensificou com o

surgimento do ideal republicano; entretanto, os primeiros anos da República

trouxeram censura violenta aos jornais. Em 1891, Deodoro dissolveu o Congresso,

e, em 23 de novembro, renunciou sob forte repressão militar. O clima de desprezo a

uma consciência sobre os problemas da liberdade de opinião pela imprensa foi

notável com Deodoro e, depois, com Floriano em 1892 (GUIMARÃES; FRANCO,

2009).

22

Apesar da censura, o Brasil passou a reunir, nessa época, uma imprensa já

direcionada para o feitio empresarial. Dentre os principais jornais temos: Jornal do

Comércio (1827); O Correio Paulistano(1854); O Estado de São Paulo (1875);

Gazeta de Notícias (1875); O País (1884); A Plateia (1888); Jornal do Brasil (1891) e

o Correio da Manhã (1901) (GUIMARÃES; FRANCO, 2009).

O jornal Gazeta de Notícias (1875) apresentou-se por meio de uma

particularidade, a saber, era vendido na rua; outros, porém, dependiam de

assinantes. Ela possuía seis páginas, sendo as duas últimas destinadas a anúncios,

uma aos “A pedidos”, e o restante a uma mistura de notícias, informação comercial,

reportagens parlamentares e notícias sobre teatro (GLEDSON, 2006).

Após a proclamação da República, Sodré (1983) observa o surgimento dessa

particularidade introduzida pela Gazeta, isto é, o estreitamento da relação com o

leitor. A Gazeta é o exemplo de que o jornal seria, então, empresa capitalista, de

maior ou menor porte. O jornal como empreendimento individual, como aventura

isolada, começava a desaparecer nas grandes cidades.

É possível observar, todavia, que os aspectos do limiar da imprensa no Brasil

estão, de certa forma, amalgamados ao objetivo de defesa de uma corrente

ideológica de determinados grupos. Observamos também que a imprensa sempre

foi um palco de debates, em que se privilegiava, predominantemente, a opinião.

Marques de Melo (1994) destaca a natureza eminentemente política que o

jornalismo assume desde o seu nascimento como processo social. Suas formas

embrionárias eram caracterizadas ou por publicações clandestinas, manuscritas ou

até mesmo impressas, que circulavam à margem do aparelho de censura,

desafiando o poder absolutista, ou por publicações oficiais.

É oportuno lembrar, igualmente, que, desde seu início, Gazeta de Notícias

apresentou um texto que sempre a acompanharia, qual seja, a crônica semanal. É

por este motivo que focalizaremos, a seguir, o perfil que a crônica reuniu ao longo de

sua trajetória no jornal, já que foram inúmeros os escritores que a deixaram

registrada, sobretudo em Gazeta de Notícias. Entre eles: Eça de Queirós, Émile Zola

e Machado de Assis.

23

1.2 A Crônica: Um Perfil

A crônica tem origem na mitologia grega. Konder (2005) afirma que ela

compreendia o registro de eventos, situando-se entre os anais e a História. Os

primeiros cronistas assumiram o papel de escribas cuja função era relatar as ações

dos monarcas. O empenho dos antigos era o de apontar o que o rei tinha feito de

melhor, de mais duradouro. Os cronistas faziam o registro dos fatos, na ordem em

que haviam acontecido. O trabalho deles apontava, dentro de seus limites, para o

que viria a ser o trabalho de historiadores.

Fernão Lopes (apud SÁ, 1999), por meio das Crônicas de D.Pedro I, D.

Fernando e D.João I, em 1418, começa a compor o perfil do cronista, ligado não

somente ao fio da história, mas também à matéria ficcional, transformando a História

– pela interpretação, pelo subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia – também

em processo de ficcionalização do real (SÁ, 1999).

A originalidade de Fernão Lopes repousa na forma com que organiza a

narrativa, sobretudo porque lhe define a subjetividade do ponto de vista, o olhar é,

no fundo, o sentido de percepção que fundamenta o sujeito. Ele convidava o leitor a

olhar, operando um movimento como se o narrador suspendesse o relato, como se

calasse; passando a ver-se na narração, transformando-se ele também em instância

da narrativa e em efeito de leitura.

Sá (1999) fundamenta ser Pero Vaz de Caminha o nosso primeiro cronista,

em terra brasileira, porque a paisagem brasileira foi o ponto de partida para a

construção da carta a El-rei D.Manuel. No texto de Caminha percebe-se a arte de

recriar tudo o que ele registra no contato direto com os índios e seus costumes,

valorizando, sobretudo, o aspecto circunstancial.

Cândido (1992) não deixa de observar a relação estreita que a crônica

manteve com o espaço jornalístico, considerando-a filha do jornal e da era da

máquina. E por se abrigar nesse veículo transitório, o intuito dela não é o dos

escritores que pensam em ficar, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da

posteridade. A sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas

do simples rés-do-chão. Ela nasceu peculiarmente quando o jornal se tornou

cotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível. Antes de ser crônica

propriamente dita foi folhetim, ou seja, um artigo de rodapé.

24

Inúmeros estudiosos, dentre os quais, Marques de Melo (1994), Afrânio

Coutinho e Sousa (1940), Massaud Moisés (1961) se debruçaram na tentativa de

apresentar a crônica como gênero predominantemente ligado ao jornal, pois a partir

do desenvolvimento da imprensa no Brasil, sobretudo na segunda metade do século

XIX, ela começa a assumir o perfil que a acompanha até nossos dias.

Marques de Melo (1994), salienta o critério jornalístico feito por Luiz Beltrão,

ao analisá-la em função do tema e do tratamento que o cronista desempenha no

exercício da função. Quanto ao tema, Beltrão (1959 apud MARQUES DE MELO,

1994) cita a Crônica geral, cujo foco se dirige a assuntos variados, ocupando espaço

fixo no jornal; Crônica local, voltada às tendências da opinião pública da comunidade

em que se localiza; Crônica especializada, definida pelos assuntos referentes a um

determinado campo de atividade.

Coutinho e Sousa (1940) pensam a crônica a partir de uma tipologia literária,

sem, contudo, elegerem uma caracterização única para ela. Para os autores,

existem, cinco tipos de crônicas: Crônica narrativa, que se aproxima do conto; a

Crônica metafísica – constituída de reflexões de cunho mais ou menos filosófico;

Crônica-poema-em-prosa – de conteúdo lírico, mero extravasamento da alma do

artista ante o espetáculo da vida; Crônica-comentário – resenha de acontecimentos

diferentes; Crônica-informação, a qual se volta à divulgação de fatos, tecendo sobre

eles comentários.

Marques de Melo (1994) ressalta a tipologia apresentada por Massaud

Moisés, a saber, crônica-poema e crônica-conto. Crônica-poema, visto que os

cronistas chegam a fazer versos nas suas prosas emotivas. A Crônica-conto se

revela por meio do ato narrativo do cronista, em que o acontecimento é narrado

como se fora um conto.

Luís Fernando Veríssimo (1979 apud MARQUES DE MELO, 1994), também

oferece uma tipologia para a crônica a partir do viés da qualidade. Vejamo-la:

a) crônica; b) croniqueta; c) cronicão; d) cronicaço. Como identificar cada subdivisão? ‘Crônica é qualquer crônica, ou uma crônica qualquer. Croniqueta é o nome científico da crônica curta, como pode parecer [...]. Cronicão é a crônica grande, substanciosa, com parágrafos gordos. [...] Grande crônica é o cronicaço. O cronicaço é consagrador. Seu autor sai na rua e deixa um rastro de cochichos – É ele, é ele. (VERÍSSIMO, 1979 apud MARQUES DE MELO, 1994, p. 156).

25

Devido a esse caráter genérico do termo crônica é que Silva (2006) atribui a

ela a designação, por um lado, de um antigênero, uma espécie de ser anárquico no

meio da Literatura. Mas, ao mesmo tempo, ela contém a potencialidade de muitos

gêneros, já que tende a gerar o ensaio informal, o discurso lírico ou poético, o conto

de ação e de clima. Conclui que a crônica pode ser definida (se já não é mesmo)

pelo gênero do “quase”, isto é, um texto que é quase conto, quase poema, quase

ensaio curto, quase reportagem.

Conforme Silva (2006), Affonso Romano de Sant’Anna aprofundou a

particularidade da crônica no âmbito do jornal, como um gênero intermediário entre o

jornalismo e a literatura. O recorte da crônica ganha um significado especial. O leitor

se apodera do texto, guarda-o na carteira, na agenda, o reproduz e o leva adiante

como um atributo especial.

Carlos Drummond de Andrade (1999) mencionara esse caráter mediador da

crônica no jornal, precisamente o de garantir uma certa pausa em face dos

acontecimentos graves da semana:

Se a notícia deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal. Se a linguagem jornalística deve ser precisa e enxuta, a crônica é impressionista e lírica. Se o jornalista deve ser metódico e claro, o cronista costuma escrever pelo método da conversa fiada, do assunto-puxa-assunto, estabelecendo uma atmosfera de intimidade com o leitor. (ANDRADE, 1999, p. 12).

Em face da diversidade de critérios e conceitos envolvidos em torno da

crônica, cumpre-nos a missão de delimitarmos o conceito com o qual esta pesquisa

se fundamentará, qual seja,

[...] há um componente situacional que se precisa destacar como sendo a sua base ou a sua essência: a conversação. A crônica costuma simular a conversação; alguém, o cronista, escreve como se conversasse conosco, escreve como se esperasse, nessa conversa, que lhe respondêssemos ou que, pelo menos, o “ouvíssemos”. De vez em quando os cronistas deixam claro ser sua essa expectativa, própria de quem conversa querendo ser ouvido, querendo ser contestado, querendo ser confirmado ou negado [...]. (SILVA, 2006, p. 18).

Por causa da forte presença que a crônica assumiu no interior do jornal, pode

ser importante a esta pesquisa analisar, no próximo item, o papel da crônica

26

enquanto gênero jornalístico. Marques de Melo (1994), ao ocupar-se do estudo

sobre gêneros jornalísticos, concebe a crônica como relato poético do real, situado

na fronteira entre a informação de atualidade e a narração literária. Dessa forma, o

cronista que sabe atuar como consciência poética da atualidade é aquele que

mantém vivo o interesse do seu público e atua como mediador literário entre os fatos

que estão acontecendo e traços da mentalidade do povo brasileiro.

1.3 A Crônica: Gênero Jornalístico

Não foram poucos os estudiosos que, conforme Marques de Melo (1994),

debruçaram-se a fim de entender a natureza dos gêneros jornalísticos. Cada um

apresenta uma classificação diferenciada, o que demonstra a relativa dificuldade

histórica em classificar os gêneros jornalísticos. Senão vejamos:

No interior da classificação europeia, é possível observar uma tendência

abrangente na tentativa de agrupar os gêneros. Folliet (1961 apud MARQUES DE

MELO, 1994, p. 40) apresenta os seguintes gêneros:

1- Editorial 2- Artigos de fundo 3- Crônica geral (resenha dos acontecimentos) 4- Despachos (reportagem e entrevistas) 5- Cobertura setorial 6- Fait-divers 7- Crônica especializada (crítica) 8- Folhetim (ficção) 9- Fotos e legendas 10- Caricaturas 11- Comics

Ora, tal forma de segmentar os gêneros jornalísticos torna-se abrangente,

porque inclui todas as matérias veiculadas pelo jornal, senão os anúncios. Nesta

lista, segundo Marques de Melo (1994), aparece uma forma generalizante de

classificação, pelo fato de o folhetim ser categoria não pertencente ao universo

propriamente jornalístico.

27

Outra forma não menos ampla de categorizar os gêneros é a estruturada por

meio de sete gêneros:

1- Informações 2- Artigos 3- Combinações “informação-artigo” 4- Sumários de imprensa e de emissões radiofônicas 5- Folhetins, contos e novelas, quadrinhos e fotonovelas 6- Cartas dos leitores 7- Secções de serviço. (KAYSER, 1974 apud MARQUES DE MELO, 1994, p. 41).

É certo que a proposta de Kayser se apresenta mais condensada do que a de

Folliet, porém Marques de Melo (1994) sustenta a existência de uma certa

distorção, responsável por aproximá-las, qual seja, a inclusão de “unidades

redacionais” que pertencem ao âmbito do imaginário (folhetins, contos, novelas,

quadrinhos e fotonovelas) e do entretenimento (entre as seções de serviços estão os

“passatempos” – horóscopo, palavras cruzadas e outros). Comparando-as, Marques

de Melo (1994) salienta que a rubrica informações de Kayser abrange o editorial, os

artigos de fundo e a crônica especializada de Folliet. O que Kayser chama de

combinações “informação-artigo” parece ser a seção de despachos – reportagem e

entrevistas de Foliet.

Diante da tendência americana de agrupar os gêneros, implícita está a

tradição de separar aquilo que é intencionalmente informativo do que é

explicitamente opinativo. Marques de Melo (1994) assegura ser essa a orientação

que adota o clássico manual de Fraser Bond (1962 apud MARQUES DE MELO,

1994), que diz que de um lado estão as matérias que encerram tratamento noticioso,

de outro as que estão segregadas na ‘editorial page’. Podemos dizer que a

classificação é a seguinte:

A) Noticiário 1. Notícia 2. Reportagem 3. Entrevista 4. História de interesse humano B) Página Editorial 5. Editorial 6. Caricatura 7. Coluna 8. Crítica. (BOND, apud MARQUES DE MELO, 1994, p. 42).

28

Ao observar tal classificação, Marques de Melo (1994) não deixa de valorizar

o item História de interesse humano, pois além de implicar a noção do relativo

interesse ao homem, suscita nova roupagem, isto é, com o deslocamento da

fronteira entre o real e o imaginário, admitindo-se o tratamento literário de fatos que

antes figurariam apenas no noticiário policial como simples notícias.

Sobre a necessidade de pensar o modo de classificação no âmbito específico

do jornalismo brasileiro, Marques de Melo (1994) ressalta a sistematização oferecida

por Luiz Beltrão (1969 apud MARQUES DE MELO, 1994), não só pelo valor

histórico, mas também pelo caráter empírico que revela. Vamos, portanto, tomar

como parâmetro para a classificação dos gêneros jornalísticos no Brasil as seguintes

categorias:

A) Jornalismo informativo 1. Notícia 2. Reportagem 3. História de interesse humano 4. Informação pela imagem B) Jornalismo interpretativo 5. Reportagem em profundidade C) Jornalismo opinativo 6. Editorial 7. Artigo 8. Crônica 9. Opinião ilustrada 10. Opinião do leitor. (BELTRÃO, 1969 apud MARQUES DE MELO, 1994, p. 59).

Marques de Melo (1994) por entender que não é o código em si que

determina o relato que a instituição jornalística difunde para o seu público, põe em

discussão a maneira meramente funcional esboçada por Beltrão.

O que há, portanto, de fundamental a salientar é que Marques de Melo (1994)

apresentará, como contribuição ao estudo dos gêneros, uma perspectiva mais

descritiva, propondo-se a classificá-los a partir das trocas sociais entre jornal e

sociedade. Tomará dois critérios para a sua classificação: a intencionalidade

presente nos relatos, a qual se apresenta no jornalismo de duas maneiras, a saber,

como tentativa de reproduzir o real e como forma de ler o real. O segundo critério é

a natureza estrutural do relato, que, por sua vez, revela duas categorias de textos,

29

que são o jornalismo opinativo (Editorial, Comentário, Artigo, Resenha e Coluna) e o

jornalismo informativo (Nota, Notícia, Reportagem e Entrevista).

O jornalismo opinativo é regido, conforme pontua Marques de Melo (1994),

pelas variáveis autoria (quem emite a opinião) e angulagem (que dá sentido à

opinião). No caso dos gêneros opinativos, há uns que se estruturam

semelhantemente enquanto narração dos valores contidos nos acontecimentos, mas

assumem identidades diversas a partir da autoria/angulagem. O comentário, o artigo

e a resenha pressupõem autoria definida e explicitada. Em relação à coluna, crônica,

caricatura e carta um traço comum é a identificação da autoria. Já as angulagens

são distintas.

Marques de Melo (1994) determina que a crônica e a carta vinculam-se

diretamente aos fatos que estão acontecendo, mas não coincidem com o seu

momento eclosivo. A crônica incorpora ou faz a mediação com a ótica da

comunidade ou dos grupos sociais a que a instituição jornalística se dirige.

Torna-se pertinente afirmar que a diferenciação entre as categorias de

jornalismo informativo e opinativo decorre, de acordo com Marques de Melo (1994),

da necessidade de distinguir textos cuja finalidade é a de informar dados sobre fatos

daqueles textos que possuem o propósito visível de comentário sobre os fatos, como

é o caso da crônica. Todavia, no jornalismo, opinião e informação não se excluem.

Antes, são utilizados de modo que se complementam na elaboração da notícia.

Marques de Melo (1994) particulariza a crônica pelo atributo de ser um gênero

que se encontra completamente definido no jornalismo do Brasil. Seu perfil

contemporâneo permitiu a alguns estudiosos proclamarem-na como gênero

tipicamente brasileiro, não encontrando equivalente na produção jornalística de

outros países.

Quanto ao gênero, Marques de Melo (1994) assinala que a crônica está

inserta no jornal e dele depende. Ela, apesar de ser gênero literário, é, igualmente,

um gênero jornalístico, produto do jornal, porque dele depende para sua expressão

pública. Está vinculada à atualidade, porque se nutre dos fatos do cotidiano.

Ressalta, enfim, o fato de a crônica preencher as três condições essenciais de

qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade e difusão coletiva.

Esse caráter híbrido da crônica, de estar entre o jornal e a literatura, permitiu

a Pereira (1990) concluir que a crônica determina novas relações com os gêneros

jornalísticos, não se limitando a informar ou opinar; mas emprestando às

30

informações jornalísticas outros referentes concebidos na própria articulação entre

as várias linguagens que o cronista exercita para explicar a representatividade de

seu mundo ao leitor. Mas isto não significa uma dependência da crônica com relação

à literatura, pois a crônica guarda relativa autonomia aos gêneros literários ou

jornalísticos.

Medeiros (2005), em A crônica: uma falha no ritual, amplia a observação

sobre a relação de autonomia exercida pela crônica, ao concluir que ela lança mão

do objeto do cotidiano, trabalha com o objeto do jornal, apresentando outros

sentidos ao mundo. Ela é capaz de instaurar a possibilidade de um equívoco no

“fato”, no “acontecimento” jornalístico por não almejar a “verdade” apesar de

trabalhar questões da ordem do cotidiano.

Encontramos, pois, a preocupação desta pesquisa, ou seja, a de mostrar que

as crônicas selecionadas da série A Semana, de Machado de Assis, realizam,

conforme veremos no capítulo 3, uma espécie de jogo com a linguagem jornalística,

em que prevalece uma relativa independência estético-estilística. Tomaremos como

referência uma razão reconhecida como formadora da estratégia machadiana: a de

ter buscado a maturidade estética da crônica, tornando-a um gênero com autonomia

estética que pode abrigar várias linguagens nos jornais e manter uma independência

linguística ante o folhetim e o discurso jornalístico de sua época. Talvez por se

apresentar ao leitor como um texto sem muita rigorosidade com o real, a crônica seja

designada como gênero menor ou de pouco valor:

A crônica não é um “gênero maior” [...] “Graças a Deus”, - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para vida, que ela serve de perto, mas para a literatura [...]. Na sua despretensão, humaniza, e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. (CÂNDIDO, 1992, p. 13).

Enfim, focalizaremos, a seguir, a atividade jornalística de Machado de Assis

como forma de validar o pensamento de Marques de Melo (1994) de que a crônica,

como gênero jornalístico, assume o caráter de relato poético do real por ocupar a

fronteira da informação e da ficção, o que lhe garantiu, no seio do jornal, um perfil

híbrido. Assim, a análise da atividade jornalística de Machado de Assis será

31

igualmente determinante, porque a constatação de Marques de Melo (1994) é a de

que a crônica ganhou consistência e maturidade com Machado de Assis. Apesar de

lidar com informações jornalísticas, ela foge das regras de cunho informativo que

caracteriza a linguagem do jornalismo. É sobretudo com Machado que a crônica

rompe as amarras do jornal.

1.4 Aspectos da Atividade Jornalística de Machado de Assis

Especificamente, a atividade jornalística de Machado de Assis começa em

1858. Publica textos em prosa e poesias esparsas em a Marmota Fluminense.

Entretanto, Granja (2006) salienta que Machado já publicara em 1856, na mesma

Marmota, uma série de textos de nome Ideias Vagas, em que expunha seus

pensamentos a respeito dos diferentes gêneros literários.

Durante o período de 1858 e 1879, Machado começa a escrever com certa

regularidade. Em 1858 dois jornais publicam seus textos, além da Marmota

Fluminense: O Paraíba, editado em Petrópolis, e o Correio Mercantil. No ano

seguinte, escreve crítica teatral para a revista O Espelho.

Em 1860, começa a trabalhar no Diário do Rio de Janeiro a convite de

Quintino Bocaiuva. Além de responsável pelo noticiário, Machado exercia a função

de repórter no Senado, resenhando os debates ocorridos nessa Câmara.

A regularidade da prática jornalística de Machado também se nota nos

seguintes jornais: O Espelho (1859); Diário do Rio de Janeiro (1861- 1867), com

Comentários da Semana, entre outros; O Futuro (1862 – 1863); Semana Ilustrada

(1872 – 1875); Ilustração Brasileira (1876 -1878); O Cruzeiro (1878) e Gazeta de

Notícias (1881 – 1904), onde assinou (por meio dos pseudônimos de Lélio, João das

Regras, Boas-Noites e Malvólio) as seções Balas de Estalo, A + B, Gazeta de

Holanda, Bons Dias e a última série de crônicas A Semana (GLEDSON, 2006).

É notável a presença de Machado no cenário do jornal durante o século XIX,

pois colaborou com jornais num período que envolve toda a sua carreira. Sua

atividade jornalística inicia-se, na verdade, já aos 16 anos, em 1855, quando publica

poesias esparsas em A Marmota Fluminense, de Paula Brito. Seu emprego seguinte

32

o mantém próximo das letras, pois foi na Imprensa Nacional, que trabalha como

tipógrafo entre 1856 e 1858.

Nesse período, o jornal vivenciava o momento em que o tom de panfleto de

outrora cedia vez aos figurinos da moda, receitas de doces, versos, contos e

romances, sob a forma de folhetim. Além desse fator facilitador de seu encontro com

o jornal, até a segunda metade do século XIX, a impressão de livros no Brasil era

insignificante, então o jornal se tornava o principal veículo de comunicação. As

características, como periodicidade e variedade de temas, fortaleceram o vínculo do

jornal com a comunidade.

Machado, ao fazer, em 1859, na sua juventude, um elogio do jornal, observa

ser este superior ao livro, porque possui o caráter universalizante e regenerador:

Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? Não; nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático, como ele. Foi a nova cratera do vulcão [...] O livro era um progresso; preenchia as condições do pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma coisa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornal. (ASSIS, 1893 apud PINA, 2006, p. 65).

Mais tarde, em 1882, o cronista volta a salientar essa facilidade de divulgação

do jornal: “o tendeiro que assina o Jornal do Comércio, não julgue a leitora que o

faça para recreio seu, mas sim para o emprestar a vinte ou trinta famílias, que o

reclamam vinte ou trinta, mil vezes na roda do dia” (ASSIS, 1882 apud MEYER,

1992).

Será, sobretudo, no jornal Gazeta de Notícias que perceberemos notável

produção literária do cronista Machado de Assis. Gledson (2006) mostra que, ao

todo, Machado publicou cerca de 475 crônicas na Gazeta, mais de três quartos da

sua produção total no gênero (mais da metade dessas, por sua vez, pertencem à

sua última série, A Semana, publicada entre 1892 e 1897).

O jornal Gazeta de Notícias, de caráter liberal, vendido nas ruas, possuía a

independência que iria proporcionar amadurecimento ao trabalho do jornalista

33

Machado de Assis. Fundado por Ferreira Araújo, em 1874, era vendido a 40 mil réis

o exemplar, e tinha forte tendência a reduzir espaço para questões políticas e

literárias e, ao mesmo tempo, incentivar publicação de notícias (GLEDSON, 2006).

Especificamente com Machado de Assis que a crônica assumirá característica

peculiar enquanto gênero ao ser testada a partir do trabalho com várias linguagens,

assuntos e significados. O gênero tem uma história própria no desenvolvimento do

escritor. O ensaio realizado por Machado de Assis constitui-se numa tentativa de

encontrar um espaço dentro do corpo do jornal, em que predominava o discurso

bacharelesco e de caráter doutrinário.

Há que se considerar, no entanto, que Machado chegou ao jornal num

período em que o conteúdo polêmico declina para ceder espaço a assuntos mais

amenos, como, receitas de doces, figurinos da moda, conselhos de beleza e um

pouco de literatura. Era a época de os jornais estarem intimamente ligados à

literatura, tanto quando publicavam contos, crônicas, poemas e romances na forma

de folhetins.

Valorize-se ainda, o fato de que, em 1859, quando começou a escrever em O

Espelho, uma revista de literatura, modas e figurinos, o espaço do folhetim já estava

bem avançado. Dedica, em 30 de outubro de 1859, uma crônica ao folhetim:

O folhetinista é a fusão do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Esses dois elementos, arredados como pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal. (ASSIS, 1859 apud BRAYNER, 1992, p. 409).

Da simbiose entre jornal e literatura, duas imagens vão traduzir para o jovem

Machado o ritmo fragmentado e superficial do novo gênero: a do folhetinista com o

perfil de “colibri” pela leveza e qualidade de dominar os assuntos sem esgotar sua

“seiva” e a do confeiteiro literário sem horizontes vastos que define bem a sua

técnica de degustação agradável e amena.

Dez anos depois, em fins de 1869, Machado compara o folhetim ao

saltimbanco:

O folhetinista é o anão do circo Chiarini; enquanto os vários artistas executam os mais difíceis saltos, o anão deve apenas divertir a plateia dizendo o que lhe vem à cabeça.

34

O folhetim é filho do acaso e da fantasia. Sua musa é o capricho, seu programa a inspiração. Não reparam no teor e desenvolvimento de uma conversa sem assunto? Fala-se de um chapéu que passa; vêm à ideia as fábricas de Paris; segue-se uma discussão sobre Offenbach, entre em cena a Alemanha; ocorre falar de Goethe e de literatura; até cair na Angelina ou Dois acasos felizes, obra do Sr. Azurara, professor em Guaratiba. Ora, aí têm como de um chapéu se chega a um romance, passando pela Alemanha com música de Offenbach. É o folhetim. (ASSIS, 1869 apud BRAYNER, 1992, p. 409).

Quanto ao folhetim, Machado, com vinte anos, estabelece com o gênero

relação peculiar ao ser colaborador regular de O Espelho. A princípio, folhetim era o

espaço jornalístico em que se publicavam crônicas, artigos literários, resenhas e

artes plásticas, críticas teatrais, visão sobre moda e todo tipo de variedade. No

Brasil, teve início, em 1839, no Jornal do Comércio, sob o rótulo de literatura de

ficção:

O termo Feuilleton designava em essência o espaço vazio na geografia do jornal [...] destinado ao entretenimento. Era sinônimo de Rez-de-Chaussée (Rés-do-chão = rodapé) e de variétes (variedades) [...]. Nas décadas seguintes, o Folhetim constituiu-se, em sua quase totalidade, de traduções dos clássicos. (NADAF, 2001, p. 44).

Inicialmente, folhetim indicava qualquer espaço do jornal, em que surgiam

textos variados, desde resenhas de livros até pequenos ensaios. Neste foco, o

folhetim nada mais é do que uma miscelânea de artigos, crítica literária e, com o

advento do Romantismo, assumiu proporções extraordinárias, impondo-se,

cotidianamente, à atenção dos leitores.

A partir do Romantismo, o folhetim desprende-se do laço do rodapé, ganha

espaço no jornal e conquista o público leitor. Ele se distancia da noção anterior de

seção de jornal. Ganha uma relativa autonomia no espaço jornalístico quando passa

a abrigar boa parte da produção de consagrados escritores desse período.

O folhetim passa a assumir facilmente um número maior de leitores,

ganhando, pois, relativa autonomia no espaço do jornal e imprimia uma novidade à

época, a saber, o caráter de propagador da literatura de massa. Essa novidade

provoca, por sua vez, ênfase ao romance-folhetim. A novidade foi tão grande que

alguns jornais brasileiros chegaram a publicar simultaneamente mais de uma obra

num só exemplar ou mais de um título num só rodapé.

35

Não é novidade, então, a percepção de Machado de Assis sobre o jornal

como espaço em que o viés da multiplicidade se manifestava como linguagem

dividida entre o teatro, crônica, conto e o gênero romance-folhetim. Ele próprio, em

O Globo, publica A Mão e a Luva, e, mais tarde, em O Cruzeiro, Iaiá Garcia.

É a forma encontrada pelos autores de divulgarem o seu trabalho, uma vez que, na segunda metade do século XIX, a impressão de livros aqui no Brasil era uma raridade [...] e uma vez que o poder imperial (anos cinquenta) estava no seu auge, predominando o latifúndio escravista e a estagnação política, o Folhetim se converteria numa forma adequada ao momento. (SANTOS, 2002, p. 73).

O que há, entretanto, de fundamental a salientar é que Machado de Assis não

se conformou com a posição ocupada pelo folhetim no espaço jornalístico. Chamou

a atenção do leitor para o caráter ambíguo deste novo gênero, questionou a

importância de um emblema estranho à natureza brasileira, marcada pelo atraso

social e, por isso, resistente ao novo ideário europeu.

Além da consideração de Machado acerca do folhetim, constata-se que,

apesar da adesão de autores da literatura ao estilo folhetinesco, este não conseguiu

romper as amarras do espaço jornalístico. Uma razão está no fato de propagar-se

como a institucionalização de uma narrativa fragmentada e carente da imagem do

romance. O folhetim só adquire ‘personalidade’, no interior da linguagem da época, a

partir de 1850, quando passa a divulgar os pressupostos do Romantismo.

Há, igualmente, a necessidade de se notar uma singularidade que surgia no

espaço jornalístico, qual seja, uma relativa diferença entre o folhetim e a crônica.

Pereira (1989) defendeu a ideia de que o folhetim não tinha autonomia dentro do

jornal. Esta particularidade é essencial para entendermos a diferença entre crônica e

folhetim. Este sempre remetia o leitor para uma narrativa mais bem acabada, no

caso, o romance, enquanto aquela, aos poucos, foi adquirindo independência,

passando a ser considerada um gênero à parte. Dessa forma, a diferença entre

crônica e folhetim não se resume apenas a uma questão etimológica, mas se

estabelece na relação que ambos mantêm com o espaço jornalístico.

O folhetinista novato, Machado de Assis, espalha não só a percepção acerca

do folhetim, mas lança-se numa luta para dominar o puro factual do jornal a fim de

criar perspectiva ímpar à narrativa, sobretudo à crônica. Elege, como estratégia, a

matéria viva das situações urbanas, cuja dimensão volta-se à busca de notícias

36

dispersas e à busca das miudezas do cotidiano. Tal estratégia representou,

igualmente, uma forma de livrar-se do estilo folhetinesco, o qual se prendia ao

modelo jornalístico, em que predominava uma linguagem de cunho doutrinário.

É, sobretudo, nessa busca machadiana pelas miudezas da rua que a crônica

começa a romper as amarras do jornal e do próprio folhetim, a apresentar-se com

novas vestimentas em que se evidenciam as possíveis diferenças entre os gêneros.

A crônica, contrariando as conceituações emprestadas ao folhetim, perdeu seu

caráter de atrelada ao campo jornalístico na medida em que amplia suas relações

com o leitor, buscando realizar-se esteticamente no espaço do jornal.

Concomitantemente, Cândido (1992), ao se referir à crônica, sustenta ser esta

um espaço-jornalístico em que pega o miúdo e mostra nele a grandeza,

desprezando um cenário excelso, o qual é identificado por uma aglomeração de

adjetivos e linguagem rebuscada. Por ser a crônica filha do jornal, não carrega a

pretensão de ser eterna.

A reforçar essa reflexão acerca da crônica, especificamente a machadiana,

Facioli (1982) indaga se o trato das quinquilharias e das minúcias do mundo, no

tempo em que havia bondes e carroças, puxados a burro, restaria algo interessante

e valioso que nos atraísse hoje. Rapidamente, porém, responde afirmando a

existência de um consenso em relação à permanência e originalidade do texto

cronístico de Machado de Assis.

O certo é que a atividade jornalística de Machado de Assis ocupou lugar de

destaque, a reunir, em si, um olhar instrumentalizador sobre todas as seções do

jornal. Antes de escritor foi jornalista, que conhecia todas as seções do jornal.

Grande parte de sua obra – contos, romances, poesias, críticas, estudos e, é claro,

crônicas – foi acolhida pelos periódicos de seu tempo, dos mais variados.

Não menos certo é o fato de que por ser extensa a atividade jornalística de

Machado, suas crônicas vêm a despertar interesse de pesquisadores. Em 1910,

Mario de Alencar publicou 28 crônicas da série A Semana; em 1937, a Editora

Jackson publicou uma coletânea das crônicas; em 1957, Aurélio Buarque de

Holanda Ferreira preparou a edição de crônicas; em 1959, Afrânio Coutinho inclui na

Obra Completa, da Editora Aguilar, nova seleção das crônicas machadianas. Em

1982, Facioli publicou nova coletânea das crônicas, dirigindo-se ao papel do

narrador machadiano, constatando a relativização dos valores, com todas as

37

instâncias, artísticas como as imediatamente sociais e a consequente relativização

de qualquer hierarquia social (CRUZ JÚNIOR, 2002).

Pereira (1989) em sua dissertação de mestrado, Crônica: arte do útil ou do

fútil?, defendida na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, apresentou

um importante estudo sobre o significado da crônica machadiana no espaço

jornalístico. O que se evidencia na dissertação de Pereira, e, por isso, aproveitada

nesta dissertação, é a noção de que o trabalho de recodificação da linguagem

jornalística realizado pelo cronista se verifica à medida em que a sua crônica

reelabora temáticas já inscritas nos jornais.

Os signos do dia-a-dia têm uma importância vital para o cronista, quando eles

transgridem a linearidade dos eventos sociais. O que atrai o cronista não é o caráter

insólito dos acontecimentos, mas a capacidade de provocar uma tensão entre o que

foi estabelecido socialmente e o que se pode estabelecer culturalmente, a partir de

uma reescritura desses fatos.

Granja (2000), em estudo sobre as crônicas de Machado de Assis, ressalta o

contraponto entre os dois ‘Machados’: o cronista da República, que escreve em A

Semana e o do Segundo Reinado, o qual era um crente da possibilidade de reforma

das instituições. O interesse pelo trabalho de Granja está, sobretudo, porque a

autora aprofundou a diferença entre a crônica e a literatura, tomada em sentido

amplo.

O que há, pois, de fundamental a completar é que, a partir de 2001, novos

estudos, como os apresentados por Cruz Junior (2002), a tese de Santos (2002), o

ensaio de Bosi (2004), dentre outros, trouxeram conteúdos significativos à pesquisa

sobre a atividade jornalística de Machado de Assis, peculiarmente sobre as crônicas

de A Semana e, simultaneamente, constituíram-se num divisor de águas para o

avanço e a compreensão do olhar jornalístico de Machado de Assis.

Cruz Júnior (2002) apresenta sua dissertação sobre as Estratégias e

máscaras de um fingidor, acerca das crônicas de A Semana, revelando que os fatos

mencionados são meios pelos quais o cronista focaliza um aspecto que se revela

sempre nessas crônicas, a saber, o ato de narrar:

Os fatos da semana estão todos ali, entretanto, algo no texto sugere que, ao contrário do que ocorria anteriormente, não eram o objetivo último do cronista, mas um pré-texto para que ele discutisse algo que, se não é o mais importante, é, com certeza, o mais frequente

38

nessas crônicas e que também não falta aos seus romances e contos: o ato de narrar [...]. A narrativa que faz da semana finda são todos inseridos dentro de uma outra narrativa que narra não mais as manchetes dos jornais, mas o próprio processo de elaboração da crônica. (CRUZ JÚNIOR, 2002, p. 24).

O pensamento de Cruz Júnior (2002) interessa a este trabalho por ocupar-se

também com o fato de que a força das crônicas de Machado nasce, então, não só

de sua capacidade de registrar e transmitir elementos da realidade, mas,

principalmente, da sua arguta percepção da dinâmica que os produz. São textos

importantes não porque descrevam costumes ou acontecimentos políticos e

econômicos, mas pelo fato de que, por meio dessas ocorrências, estudadas como

sintomas, o ator capta a dinâmica do funcionamento da sociedade.

Em 2002, surge a tese de Jeane Laura da Cunha Santos, apresentada na

Universidade Federal de Santa Catarina, relativa a Experiências pioneiras de

Machado de Assis sobre o jornal. Ela investiga o instante pioneiro de

experimentação do jornal através do olhar machadiano na virada do século XIX para

o século XX. Olhar que, segundo a autora, atravessou algumas experiências, como

a de antecipação de ideias sobre o jornal:

Em pelo menos três crônicas, ele antecipa questões que, guardadas as devidas proporções de velocidade contemporânea, são atuais. Na primeira delas (publicada no dia quatro de dezembro de 1892, na Gazeta de Notícias), muito tempo antes dos americanos inventarem o Lead na década de 40 do século XX, ele já intuía o que essa técnica jornalística significava [...] ‘porém arranjar as crônicas de maneira que os acontecimentos fiquem sempre em cima; a parte inferior das linhas cabe às considerações de menor monta, ou absolutamente estranhas’ [...] O mais importante então deve ficar no começo para que o leitor, caso interrompa a leitura, não perca o melhor. O autor entende também que o leitor dos novos tempos não quer mais só ficção, quer informação. (SANTOS, 2002, 95-96).

Alfredo Bosi, em 2004, com o ensaio O teatro político nas crônicas de

Machado de Assis, observa que o cronista não se mostra interessado na cena

parlamentar que a Câmara propiciava. Ao contrário,

[...] o que o seduzia era a retórica de lances individuais em contraste. É próprio dos espetáculos brilharem só por algumas horas e depois passarem; a crônica evoca-os sabendo que são de ontem, e que amanhã costuma esquecê-los. O que impressiona no texto machadiano é o movimento passageiro das aparências [...]. (BOSI, 2004, p. 5).

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O pensamento de Bosi (1999) a ser aproveitado neste trabalho vem por meio

da importância do aprendizado do próprio cronista, representada por uma intensa

movimentação:

O observador da semana que “borboleteia” entre os assuntos não segue apenas o movimento da costura das notícias e acontecimentos, como parece ser comum entendermos. Na verdade, esse narrador, à medida que avança no espaço das linhas e colunas dos jornais, afasta-se e aproxima-se da transformação desses fatos em matéria narrativa, fazendo uso do espaço tridimensional para movimentar-se. (BOSI, 1999, p. 13).

Não faltam, portanto, estudos que se debruçam sobre a atividade jornalística

de Machado de Assis. Inúmeras pesquisas vêm buscando delimitar, revisitar ou

acrescentar novas informações aos estudos sobre os textos machadianos. Essas

pesquisas revelam, por um lado, que o autor de A Semana permanece um problema

crítico na cultura brasileira e, por outro, a consciência da atualidade da mente

jornalística de Machado sobre o jornal e sobre os mecanismos de funcionamento da

sociedade brasileira.

Contudo, torna-se necessário descobrir como a crônica teve história própria

no desenvolvimento de Machado. Como o cronista conseguia conferir aos seus

textos uma relação lúdica, em que transformava a informação do jornal em material

para a narrativa. Com essa finalidade, nas linhas seguintes, tendo por guia o estudo

de alguns críticos, procurar-se-á conhecer um pouco mais dessa relação de

Machado com a crônica.

40

CAPÍTULO 2 - MACHADO DE ASSIS: O CRONISTA

A atividade de Machado como cronista avançou ao longo de sua carreira.

Partindo da matéria viva do cotidiano, tornou-se um narrador estimulante, capaz de

avaliá-la de forma distanciada. Demonstrou grande habilidade na arte de fazer com

que a realidade, a história, a política, a ficção fossem transformadas em motivos

para convidar o leitor a participar do jogo narrativo.

2.1 Aspectos do Cronista Machado de Assis

Como cronista, o desempenho de Machado foi expressivo, colaborando,

durante a década de 1860, em três periódicos: Diário do Rio de Janeiro; O Futuro e

Semana Ilustrada (GRANJA, 2000).

Gomes (1963) ofereceu um possível esboço cronológico para a produção

cronística de Machado de Assis. Classifica-as em quatro períodos:

I- 1861 – 1867: “Comentários da Semana” (Gil e M. A.); “Crônicas” (Machado de Assis); “Correspondência da Imprensa Acadêmica” (Sileno); “Ao Acaso” (M. A.); e “Cartas Fluminenses” (Job). II- 1876 – 1878: “Histórias de Quinze Dias” e “Histórias de Trinta Dias” (Manassés); “Notas Semanais” (Eleazar). III- 1883 – 1889: “Balas de Estalo” (Lélio); “A + B” (João das Regras); “Gazeta de Holanda”, em versos (Malvolio) e “Bons Dias” (Boas Noites). IV- 1892 – 1900: “A Semana”, sem assinatura. (GOMES, 1963, p. 9).

É um perfil que nos possibilita compreender o longo período, quatro décadas,

em que a crônica acompanha a jornada de Machado nos jornais e periódicos.

Também é uma amostra para entendermos a constatação feita por Brayner (1982)

de que a crônica constituiu-se em espaço de laboratório ficcional para o autor,

porque o contato direto com o leitor e, sobretudo, com as miudezas da rua,

garantiram-lhe construções notáveis para a tessitura literária.

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Entre tais construções, situa-se um narrador que tem como foco a matéria

viva das ações cotidianas da cidade, é um narrador presente e estimulante, capaz

de avaliá-las mantendo uma risonha distância, não se submetendo às opiniões do

momento, dominado-as através do comentário percuciente e um tanto cético, que

escapa à cronologia, instaura um presente de acentuada oralidade e controla o

leitor.

Em 1883, começa uma longa relação de Machado com a Gazeta de Notícias,

no qual escreveu suas mais de crônicas: Balas de Estalo(1883-1886), Bons Dias

(1888-1889) e A Semana (1892-1897).

A longa relação de Machado com a Gazeta de Notícias ilustra perfeitamente a questão – ele começou a escrever para uma série coletiva, “Balas de estalo”, mas gradativamente, ao longo da década de 1880, foi reconhecido como cronista e conquistou uma consequente autonomia, que resultou nas sete crônicas “A + B” e depois no rimado “Gazeta de Holanda” – em “Bons Dias!”, ele até fugiu à regra de que as crônicas tinham que ser publicadas regularmente, e, em “A Semana”, ainda que fossem regulares, as crônicas eram um acontecimento semanal, envoltas do prestígio único do autor. Não eram assinadas, mas todos sabiam quem as escrevia. (GLEDSON; GRANJA, 2008, p. 22).

Como vimos, Marques de Melo (1994) sustentou a visão de que a crônica,

enquanto gênero, ganhou maturidade com Machado de Assis. Aqui ela surge com

os olhos do cronista postos na rua, isto é, com o foco voltado para as miudezas,

para os ajuntamentos da rua, sobretudo da Rua do Ouvidor, para as notícias da

semana, enfim, para o mover da agitação humana. Isto se revela pela própria

seleção de temas às crônicas. A informação que serviria de substrato para as suas

crônicas quase sempre partia das notícias locais, dos fatos mínimos, das notícias

escusas, que se cobriam de graça e humor. Às vezes era um simples anúncio; às

vezes um telegrama, não raro coisa nenhuma; mas sobre coisas banais emprestava-

lhes relato poético.

As crônicas de Machado revelam cuidado com a linguagem e, sobretudo, com

o tratamento dos assuntos escolhidos, os quais são esteticamente reelaborados.

Assim sendo, também podemos entendê-las como gênero do discurso literário.

Assumimos, neste sentido, a concepção de Bakhtin (1997) sobre gênero de

discurso: “[...] cada esfera da utilização da língua elabora seus tipos relativamente

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estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gênero do discurso

“(BAKHTIN,1997,p. 279).

Ora, estamos cientes da impossibilidade de retratar todos os aspectos do

cronista uma vez que a sua obra e a crítica dela estão, segundo Granja (2006),

ainda um tanto quanto dispersas. Elegeremos, então, apenas três aspectos, os

quais serão pertinentes para esta pesquisa. Entre eles, o olhar miúdo do cronista

para as facetas do cotidiano; a relativização textual e o olhar do cronista sobre o

movimento das ruas. Seguiremos, então, os conselhos de Granja (2006), a saber, o

de tomar as precauções necessárias para penetrar neste terreno escorregadio e

ainda pouco conhecido, que envolve o estudo sobre a produção cronística de

Machado de Assis.

Assim sendo, um desses aspectos notáveis da estratégia machadiana está no

que Moisés (1961) ressaltou como foco, qual seja, o fato de ver no acontecimento

diário o eterno a se movimentar, o permanente que subjaz em todas as coisas e que

só se mostra ao olhar exigente. Ao cronista não interessa o efêmero cotidiano

mesmo se carregado de muito pitoresco ou picante; só lhe interessa aquilo que, na

diversificação contínua de tudo, revela uma constância que vem antes dele e se

manterá no fio dos anos enquanto o homem for homem.

A observação de Moisés (1961) será retomada e ampliada por Brayner (1982)

quando esta se refere aos caminhos favoritos do cronista Machado de Assis.

Observa Brayner (1982) o interesse particular do narrador, de modo especial à

busca pela apreensão do fato cotidiano, sem importância enquanto ação, mas

explorado em seu conteúdo pitoresco, humano e urbano do final do século,

reinterpreta-os com um tempero de humour em que os contrastes predominam.

Vejamos, como exemplo desse primeiro aspecto, a crônica de 16 de outubro

de 1892, em que o cronista escuta uma conversa entre dois burros de bonde. Esta

crônica também mantém relação estreita com a hipótese de nossa pesquisa, a

saber, o cronista como construtor de uma estratégia de conversação na qual deixa

transparecer resíduos do cotidiano até então despercebidos pelo jornal e talvez pelo

próprio leitor. É o que se observa quando o cronista escuta uma conversa entre dois

burros de bonde:

Não tendo assistido às inauguração dos bondes elétricos, deixei de falar neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as

43

impressões da nova tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo pela praia da Lapa, em um bonde comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar. [...] De repente ouvi vozes estranhas; pareceu-me que eram os burros que conversavam, inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles mesmos ... Fiquei inclinado e escutei: - Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da esquerda. O da esquerda: - Desde que a tração elétrica se estenda a todos os bondes, estamos livres, parece claro. - Claro, parece; mas entre parecer e ser, a diferença é grande. Tu não conheces a história da nossa espécie, colega; ignoras a vida dos burros desde o começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens nascido entre nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natal escapamos da pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte. - Quem tem isso com a liberdade? - Vejo, redarguiu melancolicamente o burro da direita, vejo que há muito de homem nessa cabeça. - Como assim? Bradou o burro da esquerda estacando o passo. O cocheiro, entre dois cochilos, juntou as rédeas e golpeou a parelha. - Sentiste o golpe? Perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando os bondes entraram nesta cidade, vieram com a regra de se não empregar chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu burro andar sem chicote? [...] - O bonde elétrico apenas nos fará mudar de senhor. - De que modo? - Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças. - Pela burra de Balaão! Exclamou a burra da esquerda. Nenhuma aposentadoria? Nenhum prêmio? Nenhum sinal de gratificação? Oh! mas onde está a justiça deste mundo? [...] - Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não conheces a língua da esperança. - Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda sobre dois pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da astronomia. Nós nunca seremos astrônomos; mas a filosofia é nossa... O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as rédeas, e travou o carro. Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dois interlocutores. Não podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para levá-la ao outro lado do carro; aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dois burros: - Houyhnhnms! [ língua dos cavalos, referência à obra de Swift] Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as patas e perguntaram-me cheios de entusiasmos:

44

- Que homem és tu, que sabes a nossa língua? Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo uma lambada, bradou para mim, que lhe não espantasse os animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: - Onde está a justiça deste mundo? (ASSIS, 1892 apud GLEDSON, 1996, p. 135 – 138).

Finda a crônica, porém o foco sobre a conversa dos burros continua a mostrar

um traço do caráter percuciente do cronista a mirar dois elementos que estão

próximos, mas divididos pela disparidade, quais sejam, a sorte dos burros e o

chicote do cocheiro, ou, ainda, o destino dos burros e o advento do progresso. A

pena do cronista se dirige à arte de aproximar acontecimentos de esferas

relativamente distantes. Dois elementos contrastantes que dialogam simbolicamente

com os extremos opostos de uma época. Dois elementos que deixam implícito um

aspecto da estratégia do cronista, o de soldar tipos de experiências díspares e

acessar resíduos do cotidiano.

Então, enquanto toda a cidade festejava a modernização, o cronista mirava o

gesto do cocheiro e a conversa dos burros, sobretudo nesta, porque pode refletir a

posição dos pobres em geral, cujo meio de subsistência se via ameaçado em face

do avanço tecnológico.

Faoro (1974) assinala que a revolução do bonde, iniciada em 1868, termina

com o bonde elétrico de 1892. O autor afirma ser o bonde elétrico um grande tema

das crônicas de Machado de Assis, por causa da revolução que provocou na cidade,

sobretudo o de instaurar o convívio de classes. Homens e mulheres dele se utilizam,

integrando-se na vida quotidiana de todos.

Outrossim, antes de apologia ao progresso, o cronista parece interessado em

tratar da forma autoritária da modernização que ao inovar-se não se atém à sorte

dos pobres. Enquanto a cidade festejava e os jornais anunciavam o bonde elétrico, o

cronista parecia focalizar a contradição da própria sociedade: progresso e exclusão

social. Desaparece o bonde puxado por burro, mas permanece o atraso social.

Desaparece o cortiço “Cabeça de Porco”, assunto da crônica de 29 de janeiro de

1893, contudo permanece o desprezo aos marginalizados. Desaparecem as

diligências, ônibus e gôndolas, permanece, porém, o paradoxo social. Dessa forma,

a prática excludente da sociedade sempre está presente no foco do cronista.

Sabemos, porém, que não há como garantir categoricamente que o tema

desta crônica seja a injustiça social, visto que ambiguidade sempre subjaz como

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uma das marcas do texto machadiano. Os textos são construídos de tal forma que

fica difícil afirmar qual é a real posição do cronista em relação ao fato que está

narrando. Isto significa que Machado não fica preocupado em passar ao leitor um

significado que seja o mais sólido, o mais definitivo, o mais verdadeiro.

Não nos esqueçamos igualmente de que o cronista de 14 de agosto de 1878

mencionara sobre a leveza do estilo da crônica, sobre o apreço a coisas mínimas:

Que valor poderia ter um minuete no meio de uma batalha, ou uma estrofe de Florian entre dois cantos da Ilíada? Evidentemente nenhum. Consolemo-nos; é isto mesmo a vida de uma cidade, ora tétrica, ora frívola, hoje lúgubre, amanhã jovial, quando não é todas juntas. Sobretudo, aproveitemos a ocasião, que é única; deixemos hoje as unturas do estilo; demos a engomar os punhos literários; falemos à fresca, de paletó à fresca, de paletó branco e chinelas de tapete. Que há de levar umas férias para nós outros, beneditinos da história mínima e cavouqueiros da expressão oportuna. (ASSIS, 1878 apud PAIXÃO, 1994, p. 30).

Outra forma de alargar nossa visão sobre alguns aspectos que permeiam os

textos do cronista Machado de Assis repousa sobre o que Brayner (1992) chamou

de relativização textual: atitude estética que se materializa estilisticamente à medida

que o cronista torna relativa toda exterioridade e toda conduta humana. O cronista

transforma-se num malabarista sobre a corda circense, a controlar e orientar de

forma quase lúdica a estruturação, desenvolvimento e funcionalidade das ideias

vazadas nas crônicas jornalísticas.

Vejamos, a seguir, a crônica de 4 de julho de 1883, publicada na seção

“Balas de Estalo”, em que o cronista elabora um conjunto de regras para os usuários

dos bondes do Rio de Janeiro:

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez. Art. I – Dos encatarroados Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: - ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.

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Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de fazerem no próprio Bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc.,etc. Art. II – Da posição das pernas As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco [...]. Art. III – Da leitura dos jornais Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente. Art. IV – Dos quebra-queixos É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: - a primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao descer. Art. V – Dos amoladores Toda pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar o passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los [...]. Art. VI – Dos perdigotos Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua. Art. VII – Das conversas Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras... Art. VIII – Das pessoas com morrinha As pessoas com morrinha podem participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela. Art. IX – Da passagem às senhoras Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação. Art. X – Do pagamento Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa. (ASSIS, 1883 apud FACIOLI, 1982, p. 98).

A crônica realiza-se por meio da paródia com a possibilidade de um discurso

oficial que regulamentasse um padrão comum de conduta, porém nada é gratuito em

se tratando de Machado de Assis. Por meio do confronto humorístico surgem

implícitos que nos sugerem um pesar ou uma crítica do cronista em face da situação

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do transporte coletivo. Sugerem-nos, igualmente, que o cotidiano acessado pelo

cronista parece estar além das fronteiras do jornal.

Nesta direção, Brayner (1992) ressalta que o intento do cronista revela-se

mais humorístico quanto mais despropositadas são suas indicações, infringindo o

discurso sério institucional até o limite de sua negação e de seu contrário. O cronista

tenta inverter as posições da normalidade, mas demonstra no confronto dos

enunciados a própria crise da situação, isto é, as dificuldades e percalços de um

cidadão desprevenido e educado dentro de uma condução coletiva.

Conforme Brayner (1992) a relativização textual ocorre, igualmente, à medida

que se cruzam, no decorrer da crônica, várias instâncias de discursos sobre o fundo

de construção do decálogo, cuja evidente intenção de prescrição torna-se

humorística pela ausência de um verdadeiro suporte axiológico para as atribuições:

Assim, cruzando-se com o discurso institucional que é parodiado, surge também o discurso do espaço médico ([...] “têm dois alvitres: - ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama”). Parte Machado de uma medicina de senso comum ou caseira, cujas fórmulas verbais contêm aquele tipo de clichê lingüístico. (BRAYNER, 1982, p. 429).

Maya (1942), pioneiro no estudo sobre o humor em Machado de Assis, revela

que Machado se deleita em revelar o ridículo ora numa paráfrase mordaz, ora numa

redução folgazã da natureza e quase sempre na realidade individual. Dessa forma,

conclui, o humour funda-se em assimetrias morais e desenvolve-se, portanto, em

riscos de caricatura, arte de rebeldia, contra realidades grotescas, de protesto contra

o disforme e o injusto.

Neste sentido, Faoro (1974, p. 52) salienta que o humor machadiano não se

prende na graça das palavras, antes, revela-se no processo narrativo, no qual é

possível depreender uma nota de crítica social:

Notará Machado de Assis que o bonde, obrigando ao contato de pessoas de todas as classes, não educou nem impôs um padrão comum de conduta [...]. A gente do Rio de Janeiro, em cinquenta anos de ônibus, diligências, gôndolas e ônibus não teria aprendido a disciplina do convívio. Sociedade fluida e de hierarquia frouxa, não tinha, dentro de si, elementos de autoeducação, proporcionada por camadas superiores com autoridade sobre as inferiores. Não lograram os padrões de cultura se impor de cima para baixo, permitindo melhor ajustamento social. O quadro de 1883 ter-se-á modificado? [...] O bonde, no outro extremo, é a sociedade democrática que se expande e cresce – sociedade mal-educada, que

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cospe no chão e fala alto [...] num painel autêntico do que vale cada homem no conceito de outro homem.

O terceiro aspecto notável do cronista Machado de Assis repousa no fascínio

do autor pelos ajuntamentos da rua, por aquilo que ocorre alheio à ordem e aos

regimentos, sobretudo o que ocorre na Rua do Ouvidor. Senão vejamos:

A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais [...]. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras [...]. (ASSIS, 1882 apud TRIGO, 2001, p. 245).

Talvez não seja arriscado dizer que as ruas nas crônicas de Machado de

Assis possuam uma função social, como se tivessem alma própria, porque nelas é

possível abstrair as contradições da época, o estado da sociedade, a decadência de

um grupo, o mover dos tempos, a chegada do novo, o fato despercebido pelos

jornais e talvez até pelo próprio leitor. Nessas crônicas, enfim, o ruído das praças e

ruas diz mais, muitas vezes, do que as alegrias íntimas ou a decepção oculta.

O cronista Machado de Assis revela ser um frequentador assíduo das ruas,

de onde retira muitos dos seus temas para o trabalho ficcional, de onde espreita e

avalia condutas sociais, atitudes humanas e traços da mentalidade do povo

brasileiro. E ao enveredar por entre ruas, mostra-se ora deslumbrado pela amplidão

europeizada da nova metrópole, ora o atraso resultante do período colonial.

Gledson (2006) observa, pois, que o Rio de Janeiro era, para Machado de

Assis, metáfora de uma realidade humana. Simbolizava, acima de tudo, a

possibilidade de uma verdadeira comunidade. E, neste sentido, a verdadeira artéria

da cidade transformava-se na rua do Ouvidor, em que o cronista parecia conhecer

cada loja, e por onde as notícias, em forma de boato, corriam de um extremo a

outro:

A notícia foi referida por ele na rua do Ouvidor, esquina da rua Direita [hoje, Primeiro de Março]. Daí a dez minutos chegara à rua da Quitanda. Tão depressa ocorreu que um quarto de hora depois era assunto de conversa na esquina da rua dos Ourives. Uma hora bastou para percorrer toda a extensão da nossa principal via pública.

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Dali espalhou-se em toda a cidade. (ASSIS, 1872 apud GLEDSON, 2006, p. 356).

Especificaremos, a seguir, o cronista atento ao movimento de seu tempo,

analisando a realidade humana, utilizando-se do espaço literário para refletir sobre

os acontecimentos da história.

2.2 Aspectos do Cronista da Série “Bons Dias”

Machado de Assis inaugura esta série de crônicas em 5 de abril de 1888 e

durou até 29 de agosto de 1889. A primeira crônica da série, o cronista usa, para se

referir a si mesmo, a imagem do relojoeiro. Nesta crônica, o relojoeiro “descrê do seu

ofício” (ASSIS, 1888 apud GLEDSON, 2006, p.143), pois os relógios afinal

discrepam e fica-se sem saber a hora exata.Entre os fatores que influenciaram o tom

dessa série podemos destacar a data do início, praticamente um mês antes da

Abolição e, outro, não menos importante, a data da fundação do jornal Gazeta de

Notícias, em 1874. Elas começavam com a saudação “Bons Dias” e terminavam

com o pseudônimo “Boas Noites”.

As crônicas eram sempre assinadas por pseudônimos, mas muitas vezes o segredo da sua autoria era um segredo compartilhado, quando não era de conhecimento público, como foi o caso dos três alter egos anteriores, Lélio, João das Regras e Malvolio, cuja identidade foi divulgada pela revista A Semana quando as crônicas estavam sendo publicadas. É impossível exagerar a importância desse verdadeiro anonimato para a série; não se trata apenas de um novo pseudônimo [...]. Parece claro que Machado ia dizer algumas coisas duras, mesmo sob a capa da ironia, e queria poder dizer essas coisas com uma margem extra de liberdade, sem sofrer consequências imediatas. Parece que o disfarce funcionou à perfeição; como vimos, só nos anos 1950 é que se soube que essas crônicas eram de Machado. (GLEDSON, 2006, p. 143).

Gledson (2006) considera que o início dessa série se relaciona com o fim do

processo de escravidão. Com o fim da escravidão, o cronista focalizou-se quase que

inteiramente na questão do regime, do fim inevitável da monarquia e da chegada da

república.

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A primeira crônica que abre a série vem por meio da preocupação do cronista

em se apresentar. O cronista prioriza, a princípio, não o assunto em si, mas a forma

de construção do persona do cronista na sua relação com o leitor. Vejamo-la:

Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e ir logo dizendo que me aparecesse; depois ia-me embora, para voltar na outra semana. Mas, não, senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa, em resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo; ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me com tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora bem! Feito esse cumprimento, que não é do estilo, mas é honesto, declaro que não apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no Bethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que é que vai fazer; o melhor é fazer calado. Nisto pareço-me com o príncipe (sempre é bom parecer-se a gente com príncipes, em alguma coisa, dá certa dignidade, e faz lembrar um sujeito muito alto e louro, parecidíssimo com o imperador, que há cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela Imperial, pour étonner Le bourgeois; os fiéis levavam o olhar para um e para outro, e a compará-los, admirados, e ele teso, grave, movendo a cabeça à maneira de Sua Majestade. São gostos) de Bismarck. O príncipe de Bismarck tem feito tudo sem programa público; a única orelha que o ouviu, foi a do finado imperador, - e talvez só a direita, com ordem de o não repetir à esquerda. O parlamento e o país viram só o resto. Deus fez programa, é verdade (E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, para que presida etc. Genesis, I, 26); mas é preciso ler esse programa com cautela. Rigorosamente, era um modo de persuadir ao homem a alta linhagem de seu nariz. Sem aquele texto, nunca o homem atribuiria ao Criador, nem a sua gaforinha, nem a sua fraude. É certo que a fraude, e, a rigor, a gaforinha são obras do diabo, segundo as melhores interpretações; mas não é menos certo que essa opinião é só dos homens bons; os maus creem-se filhos do céu – tudo por causa do versículo da Escritura. Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo; cá virei uma vez por semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não senhor; não tenho papas na língua, e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engoli-as e estava acabado. Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro. Um exemplo. O partido liberal, segundo li, estava encasacado e pronto para sair, com o relógio na mão, porque a hora pingava. Faltava-lhe só o chapéu, que seria o chapéu Dantas, ou o chapéu Saraiva (ambos da chapelaria Aristocrata); era só pô-lo na cabeça, e

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sair. Nisto passa o carro do paço com outra pessoa, e ele descobre que ou o seu relógio estava adiantado, ou o de Sua Alteza é que se atrasara. Quem os porá de acordo? Foi por essas e outras que descri do ofício; e, na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos. Aqui me terão, provavelmente até à escolha do Sr. Guaí, e talvez mais tarde. Não digo mais nada para não os aborrecer, e porque já me chamaram para o almoço. Talvez o que aí fica, saia muito curtinho depois de impresso. Como eu não tenho hábito de periódicos, não posso calcular entre a letra de mão e a letra de forma. Se eu tivesse aqui o meu amigo Fulano (não ponho o nome, para que cada um tome para si esta lembrança delicada), diria logo que ele só pode calcular com letras de câmbio – trocadilho que fede como o diabo. Já falei três vezes no diabo em tão poucas linhas; e mais esta, quatro; é demais. (ASSIS, 1888 apud MAGALHÃES JÚNIOR,1956, p. 53)

Consoante Gledson (2006), a forma de apresentação e a ausência de um

programa podem ser pretextos em que o cronista se apoia para dirigir seu foco ao

regime. O cronista se permite um lance irônico bastante extremo e ousado: dado o

protesto dos escravocratas diante da perspectiva da Abolição total sem

compensação, diz que não é político anunciar abertamente o que vai fazer, “o

melhor é fazer calado”.

Nisto pareço-me com o príncipe [...]; o leitor logo pensaria no imperador, que, em teoria e provavelmente de fato, tinha tentado agir nos bastidores para empurrar os sucessivos governos na direção da Abolição, e usar o Poder Moderador para esse fim. Porém, depois de um parêntese que dura nada menos que 73 palavras, a frase continua – de Bismarck! (ASSIS, 1888 apud GLEDSON, 2006, p. 147).

É uma crônica que reage ao acontecimento político do momento. Esta será,

para Gledson (2006), a particularidade desta série de crônicas: estar à mercê dos

acontecimentos diários e aos fatos veiculados nos jornais. O assunto central das

primeiras duas crônicas é político, embora sendo histórico no sentido mais lato

também. Ambos tratam do paradoxo da escolha de um governo conservador para

promulgar o que era, em essência, uma medida liberal, a Abolição da escravidão. Na

terceira crônica, de 19 de abril, vêm à tona dois temas frequentes em Machado:

primeiro, o recurso do governo a empréstimos, e segundo, a própria escravidão. Na

quarta crônica, de 27 de abril, o fim inevitável da escravidão acaba subindo à cena.

A quinta crônica, de 4 de maio de 1888, é, na verdade, uma conversa cômica. É

significativo que corresponda a um dos momentos “oficiais” do processo de Abolição

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– a abertura do Parlamento pela regente e a Fala do Trono. É como se Machado

estivesse decidido a não ser seduzido, nem mesmo na aparência, pelo barulho ou

pela cerimônia, tratando da política do Ceará, assunto que já era velho.

Essas crônicas publicadas em torno do dia 13 de maio de 1888 são

consideradas como protótipos para que se perceba o pensamento crítico do cronista

em relação ao processo da Abolição da escravidão. Elas retratam as causas da

Abolição, a fuga dos escravos e o egoísmo dos ex-donos de escravos. As últimas

crônicas da série trarão, porém, a visão do cronista sobre o processo que levava à

República. Dessa forma, sempre estiveram a reagir sobre os acontecimentos diários.

A especificidade dessas crônicas se revela pelo diálogo constante com os

eventos, principalmente, os fatos políticos: o fim da escravidão e o advento do

período republicano. Em crônica de 22 de agosto de 1889, o cronista satiriza os

partidos: “Oh! não mudeis de casa! Mudai de roupa, mudai de fortuna, de amigos, de

opinião, de criados, mudai de tudo, mas não mudeis de casa”. (ASSIS, 1889 apud

GLEDSON, 2006, p. 185):

Mudar, começar de novo, é lançar-se ao desconhecido, com todos os seus perigos. Aqui está a chave para compreender por que Machado sentia que a série tinha que acabar: seu medo de que o mapa da política brasileira fosse mudar, e que ele, junto com a sociedade para a qual escrevia, perderia o rumo. Como monarquista convicto, talvez até temesse que ele, apesar do anonimato, se exporia demais nas novas circunstâncias. Quem somos nós para criticá-lo?

Percebemos, então, que a linguagem das crônicas da série Bons Dias

assumiu a faceta humorística como sinal de estranhamento sistemático do cronista

diante das notícias comentadas. Veremos, a seguir, que o acontecimento deixa de

ser relatado como notícia e passa a ser pretexto para que o cronista acesse uma

conversa que não estivesse ligada linearmente ao fato apresentado pelo jornal.

2.3 Aspectos do Cronista da Série “A Semana”

As crônicas da série A Semana eram publicadas aos domingos, na Gazeta de

Notícias, com o título em maiúscula. O objetivo da coluna fora apresentado pelo

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conselho editorial: fazer a história completa da semana decorrida, dando a nota do

dia. Registrar tudo o que fora feito na semana em ciências, artes, letras, comércio,

indústria, costumes e religião. O jornal era conhecido pela oposição sensata e

moderada ao regime republicano. Possuía seis páginas, as últimas destinadas a

anúncios, uma trazia o título “A Pedidos”, as demais reuniam uma mistura de

notícias, informações comerciais, reportagens parlamentares, críticas teatrais,

artigos mais longos, assinados por nomes influentes da Literatura, romances em

folhetim e crônicas.

O jornal Gazeta de Notícias constituiu-se em novidade entre os jornais

brasileiros, pois era vendido nas ruas e não apenas para assinantes. Segundo

Gledson (2006) era um jornal politicamente independente, vivo e empenhado em

apoiar boas produções literárias. Ferreira Araújo, seu fundador e redator-chefe, era

um jornalista admirável e muito amigo de Machado, para quem as portas da Gazeta

se abriram pelo menos desde 1876.

Nesta última série de crônicas jornalísticas de Machado, alguns aspectos que

lhe são peculiares, entre eles, a omissão do pseudônimo. Sobre este aspecto,

Gledson (2006) mostra-se surpreso com o fato de que Machado não apresenta suas

crônicas e a si mesmo no começo dessa importante série, que foi planejada para

sair todo domingo.

Gomes (1963) observara que na série A Semana, o cronista já entra a

conversar, sem, antes, recorrer a apresentações ou utilizar-se de pseudônimos. Um

dos motivos, segundo o autor, é que em seu último e mais notável período, de A

Semana, escolheu, conscientemente, o anonimato puro e simples; tornara-se

escusado recorrer a novos pseudônimos, já que o estilo de suas crônicas estava

definitivamente identificado com a sua personalidade e não havia mais como

disfarçá-la.

Perceptível também é a estratégia usada pelo cronista de A Semana para

conduzir o processo narrativo. Até a série Bons Dias, predominantemente, o cronista

estava comprometido com o cotidiano imediato, isto é, com o fato que estava a

ocorrer. Seu proceder direcionava-se a comentar o que vira ou o que ouvira. Nesta

série, ao contrário, já não comenta o que viu ou ouviu, mas também o que

noticiavam as folhas.

Entretanto, a relação do cronista com o jornal também foi decisivamente

singular e, por isso, contrastante com o proceder anteriormente veiculado, por

54

exemplo, na série Bons Dias. Na série do relojoeiro ou de Policarpo, a notícia estava

na crônica, a opinião do cronista sobre o fato também era passível de percepção. Na

série A Semana, contudo, o jornal é tomado, pelo menos na maioria das vezes,

como pretexto para que o cronista pudesse acessar uma conversa que não

estivesse ligada linearmente ao fato apresentado pela folha.

O certo é que, a partir desta série, surge uma estratégia inovadora por parte

do cronista no que diz respeito a sua relação com o próprio jornal. Tal recurso lhe

permitiu conduzir a crônica para uma espécie de jogo com a linguagem jornalística,

em que prevaleceu, como estratégia, a ruptura com o desejo de apresentar a versão

real dos fatos, com a ânsia para esclarecer o leitor de que o fato se passara desta

ou daquela forma.O cronista mostrará interesse em acessar resíduos do cotidiano

até então despercebido pelo jornal e talvez pelo próprio leitor. Este jogo torna-se um

recurso estilisticamente construído, que toma o jornal ou a folha diária como ponto

de partida, e não como ponto de chegada. A crônica, então, deixa de ser o relato do

acontecimento da semana apesar de o conselho editorial ter notificado ser este o

objetivo da coluna A Semana.

Embora o processo de ruptura não esteja na palavra, mas no processo

narrativo, conforme veremos, não são poucos os exemplos em que o cronista inicia

a conversa a partir da pauta dos jornais, com o fato veiculado pela folha, mas, à

maneira do colibri, desprende-se rapidamente do que é dado e instaura outro

assunto, em outro nível, ou, diferentemente, o mesmo assunto, porém numa direção

inusitada: “Mato Grosso foi o assunto principal da semana” (8/5/1892); “Banco

Iniciador de Melhoramentos...” (19/6/1892); “Eis aí uma semana cheia” (9/10/1892);

“Gosto deste pequeno... Barata Ribeiro” (29/1/1893); “Que cuidam que me ficou dos

últimos acontecimentos políticos do Amazonas?” (12/3/1893); “Há hoje um eclipse

do sol. Está anunciado” (16/4/1893). O assunto, todavia, será tratado em outra

direção.

Quanto ao processo narrativo, é igualmente oportuno notar, pois, o fato de

que os pesquisadores atuais estejam a ressaltar importância a esse recurso

estilístico confeccionado pelo cronista de A Semana. Cruz Júnior (2002) insiste na

observação de que o cronista não mira o comentário dos fatos, ou melhor, os fatos

da semana estão todos ali; entretanto, algo no texto sugere que, ao contrário do que

ocorria anteriormente, não eram o objetivo último do cronista, mas um pré-texto para

que ele discutisse algo que não está totalmente estampado nas páginas dos jornais.

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Pina (2006) ao tecer comentários sobre a estratégia do cronista de A

Semana, não desconsidera a tese veiculada em Estratégias e máscaras de um

fingidor, de Cruz Júnior (2002), porque também vê um jogo na estratégia do cronista,

caracterizado por um jogo de esconde-mostra, que se concretiza nos textos por um

sistema de comparações, para o qual concorrem, além dos fatos estampados nos

jornais, resíduos literários, históricos e sociais.

Todavia, esse jogo com a linguagem jornalística não é tão exclusivo do

cronista, porque ele depende de que o leitor vá ajustando sua posição para construir

o sentido do texto, na verdade, ele necessita de que a crônica seja compreendida.

Então,

[...] a intervenção desse peculiar contador de histórias sobre o mundo factual será sempre <<controlada>> pelas expectativas referentes ao segmento de mundo ao qual ele se dirige [...] Quando se depara com a cascata de fatos da semana que o assola, o cronista costura-os como pode, lançando mão de um repertório de leituras e saberes partilhados pelo leitorado alvo da folha em que publica: fazendo isso, ele expõe seu texto deliberadamente como ficcional, sem excluir de sua composição o factual. (PINA, 2006, p. 65).

Por meio desta visão dialética sobre o movimento operado pelo cronista, Pina

(2006) apresenta-o como um contador de histórias, cuja técnica é, a princípio,

fragmentá-las e, a seguir, engatá-las uma a outra, num processo lúdico que fisga a

atenção do leitor e o insere no jogo do texto.

Na série A Semana se evidencia a inserção do leitor, cujo exercício envolve

uma atividade cooperativa de recriação do que é omitido. O leitor vai preenchendo

os vazios do texto e desvendando o que se oculta no tecido textual. Dessa forma,

cronista e leitor passam a ser sujeitos do discurso:

[...] o leitor institui-se no texto em duas instâncias: 1) no nível pragmático, enquanto sujeito veiculador de mensagem, o escritor está atento ao seu destinatário, mobilizando estratégias que tornem possível e facilitem a comunicação. Na perspectiva bakthiniana, o outro na figura do destinatário instala-se no próprio movimento de produção do texto na medida em que o autor orienta sua fala [...] cabe ao leitor mobilizar seu universo de conhecimento para dar sentido [...] 2) no nível lingüístico-semântico [...] um texto é sempre lacunar, reticente. Apresenta ‘vazios’ – implícitos, pressupostos, subentendidos – que se constituem em espaços disponíveis para a entrada do outro, isto é, em espaços disponíveis a serem preenchidos pelo leitor. (BRANDÃO, 2005, p. 271).

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Torna-se importante, então, que avancemos na análise dos aspectos do

cronista de A Semana, sobretudo no que será essencial a esta pesquisa, a saber, a

interação com a sociedade de seu tempo, permeando-lhe o modo de conduzir a

conversa com o leitor. Isto equivale dizer que o cronista está atento às mudanças

pelas quais a sociedade atravessava. Atuou também como um captador dos reflexos

das mudanças provocadas pela interação do Rio de Janeiro com o progresso

econômico.

Anteriormente, observamos a perplexidade do cronista diante da inauguração

do bonde elétrico. Vimos, precisamente, o olhar voltado à contradição da tecnologia.

Encontramo-lo mais sensível ao destino do burro e menos eufórico com o avanço do

progresso. Isto é uma sinalização de que devemos abandonar a ideia de um

Machado indiferente às grandes questões sociais e políticas de seu tempo. Sobre

esta relação, Azevedo (2006), ao analisar o livro de Sidney Chalhoub, ressalta

importância à

[...] refutação cabal do alheamento do escritor em relação à realidade político-social de seu tempo [...] contribuição não menor do livro de Sidney Chalhoub foi mostrar quão férteis podem ser os estudos (não apenas em relação à obra de Machado de Assis) que investigam a interrelação literatura e história. (AZEVEDO, 2006, p. 491).

Nesta esteira, Gledson (2006) é categórico ao afirmar que se há uma história

para contar que ligue as crônicas como um todo, esta se baseia na reação de

Machado à cena política e social que o cercava, num período muito turbulento. Claro

que as crônicas eram supostamente leves e triviais, mais recreativas que educativas.

Todavia, em se tratando de Machado, este requisito pode ser tomado como irônico.

Esta derradeira série de Machado de Assis surgiu em abril de 1892, num

período de forte turbulência social, período que Gledson (2006, p. 190) afirma ter

sido de:

[...] considerável tensão política, com golpes e contragolpes de Estado, dois deles - o “golpe da bolsa” de 3 de novembro de 1891, por Deodoro, e a remoção de Deodoro por Floriano no dia 23 do mesmo mês – tinham ocorrido recentemente [...]. Floriano decretou estado de sítio por 72 horas e prendeu vários políticos importantes. Em 12 de abril, foi publicado um decreto que exilava muitos deles para partes longínquas do Brasil.

57

O período de opressão militar, momento de terror político, pode ter

contribuído, de acordo com Gledson (2006), para que o estilo do cronista surgisse

marcado por fortes rupturas no interior do texto. Mas não só, sua interpretação é a

impressão de que Machado lançava mão de determinados gêneros em momentos

diferentes e que seus impulsos criativos achavam sua melhor expressão e a crônica

tornava-se a predileta para aquele momento turbulento da República.

Vale ressaltar que o Rio de Janeiro, dessa época dos primeiros anos da série

A Semana, constituía-se em torno de 500 mil habitantes. Era a capital política e

administrativa, porém conduzida sob forte jugo da força. Sequer havia participação

do povo nas decisões políticas. Não havia sobretudo sentimento de pertencer a uma

comunidade. Quanto ao povo, passava ao largo do mundo oficial da política. A

cidade não era uma comunidade no sentido político, não havia sentimento de

pertencer a uma entidade coletiva.

Este fato pode ter aguçado e muito o espírito de Machado, para quem o Rio

de Janeiro era, antes de tudo, uma realidade humana. E, sem dúvida, pelo fato de

que o escritor sempre demonstrou preocupação com a sorte de seu país. Gledson

(2006) certifica-nos que Machado sonha o Rio de Janeiro como o seu clube, lugar

onde todo mundo se conhece, onde a fofoca e o escândalo são atividades diárias,

símbolos e sintomas dessa comunidade.

Vejamos um trecho da crônica de 20 de agosto de 1893, em que o cronista

está a subir ao morro do Castelo a fim de apresentá-lo a uma pessoa de fora:

[...] Não é só chapa, é estilete. O meu sentimento nativista, ou como quer que lhe chamem – patriotismo é mais vasto, - sempre se doeu desta adoração da natureza. Raro falam de nós mesmos: alguns mal, poucos bem. No que todos estão de acordo, é no pays féerique. Pareceu-me sempre um modo de pisar o homem e suas obras. Quando me louvam a casaca, louvam-me antes a mim que o alfaiate. Ao menos, é o sentimento com que fico; a casaca é minha; se não a fiz, mandei fazê-la. Mas eu não fiz, nem mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos, e não nego que sejam admiráveis; mas há outras coisas que ver. Há anos chegou aqui um viajante, que se relacionou comigo. Uma noite falamos da cidade e sua história; ele mostrou desejo de conhecer alguma velha construção. Citei-lhe várias; entre elas a igreja do Castelo e seus altares. Ajustamos que no dia seguinte iria buscá-lo para subir o morro do Castelo. Era uma bela manhã, não sei se de inverno ou primavera. Subimos; eu, para dispor-lhe o espírito, ia-lhe pintando o tempo em que por aquela mesma ladeira passavam os padres jesuítas, a cidade pequena, os costumes toscos, a

58

devoção grande e sincera. Chegamos ao alto, a igreja estava aberta e entramos. Sei que não são ruínas de Atenas; mas cada um mostra o que possui. O viajante entrou, deu uma volta, saiu e foi postar-se junto à muralha, fitando o mar, o céu e as montanhas, e, ao cabo de cinco minutos: “Que natureza que vocês têm!”. Certo, a nossa baía é esplêndida; e no dia em que a ponte que se vê em frente à Glória for acabada e tirar um grande lanço ao mar para aluguéis, ficará divina. Assim mesmo, interrompida, como está, a ponte dá-lhe graça. Mas, naquele tempo, nem esse vestígio do homem existia no mar: era tudo natureza. A admiração do nosso hóspede excluía qualquer ideia da ação humana. Não me perguntou pela fundação das fortalezas, nem pelos nomes dos navios que estavam ancorados. Foi só a natureza... (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 286).

Sarah Bernhart, famosa atriz, sempre mencionada nas crônicas de Machado,

ao fazer elogio ao Brasil, expressa-se com a sentença “Ce pays féerique2”.

Conforme Cruz Júnior (2002), Machado rejeita o elogio não porque este seja

desrespeitoso, mas principalmente porque revela o que se convencionou sobre o

Brasil, algo que teria soado aos seus ouvidos como a opinião do Janjão da “Teoria

do medalhão”. A preocupação de Machado é com o reconhecimento da relação

existente entre o indivíduo e o meio que o cerca. A reação do cronista está,

sobretudo, na dimensão humana que também estava sendo desprezada pelo

hóspede. O visitante, ao comentar a beleza da natureza, excluía a ação do homem,

centro da atenção do cronista.

Consoante ao comentário de Bastide (2006), o visitante só fixava a criação de

Deus, suprimindo tudo o que lhe acrescentara o povo da terra. Ora, nessa subtração

desaparecem traços do comportamento do homem brasileiro, peculiarmente, o

desejo de fazer alguma coisa de novo, a originalidade brasileira.

O cronista, como veremos no capítulo 3, mostra-se sensível a esta

particularidade que também é um traço do comportamento do caráter nacional, o de

cantar a natureza com maior fervor do que valorizar a presença do povo. O cronista

mostrar-se-á resignado com a constatação de que o povo se move à margem das

preocupações políticas e sociais no Brasil. Neste sentido, Ribeiro (2004), ao notar a

estranheza do cronista, ressalta-lhe importância devido ao tom de valorização à

ação do homem brasileiro:

2 Ce pays féerique: É um país deslumbrante.

59

Há uma presença sempre de natureza que é muito forte nas evocações a que estivemos acostumados desde a infância do país, uma presença de natureza mais do que do povo. Se tomamos, por exemplo, o quadro que está no Museu do Ipiranga aqui em São Paulo, que é a representação canônica da Independência do Brasil... este quadro o que nos mostra? O então príncipe D.Pedro proclamando a independência, a sua comitiva militar festiva, a sua comitiva civil admirando, porém a única pessoa que não pertence à elite militar e civil do Império que se inicia é um condutor de boi ao lado do quadro, que olha com espanto, aparentando não entender nada do que está acontecendo. Esse é o povo [...] Então nós temos uma representação do país em que basicamente o que conta não é o povo [...] O comentário de Machado de Assis é: toda essa adoração da natureza o que faz senão desmerecer a ação humana? Ela não valeria nada, o que contaria para nós seriam apenas os elementos que nos precedem e que independem de nós. Qual a grande novidade do nosso tempo? É que passamos a considerar prioritária a ênfase na cultura e na educação, isto é, em tudo que mostra a força da ação humana. (RIBEIRO, 2004, p. 1).

Por serem crônicas que operam uma intervenção no real, atraindo, dessa

forma, o leitor pela leveza e pela familiaridade, as crônicas selecionadas da série A

Semana também podem constituir lugar privilegiado para delimitarmos o sentido

com que Machado de Assis nos destina em seus textos: um sentido que nos conduz

à percepção de que a crônica pode ajudar-nos a pensar a realidade brasileira, ao

pôr em cena a singularidade da experiência do cronista. Senão vejamos.

60

CAPÍTULO 3 – CRÔNICAS

Na série A Semana o cronista fixa seu olhar para as miudezas do cotidiano.

Toma os acontecimentos como pretexto para criar reflexões, indagações, fábulas

irônicas ou aquilo que lhe viesse à mente. É lançando mão desse artifício que dirige

seu foco às sutilezas da vida, valorizando-as como mote para arquitetar finas

análises acerca de seu tempo.

3.1 Crônica de 24 de Abril de 1892

Especificaremos, neste capítulo, o fato de que crônica se apresenta, de um

lado, como um relato do cotidiano, de outro, como arte capaz de simular a

conversação, na qual o cronista escrevesse como se conversasse com o leitor.

Dessa forma, as crônicas selecionadas recuperam essa arte da conversa não só

com o leitor mas, sobretudo, com o cotidiano de seu tempo. Entretanto, o nosso

argumento é o de que essa conversa vem mediatizada pela interrupção, que

também é um meio pelo qual o cronista relativiza o próprio comando veiculado pelo

conselho editorial, o de retratar os fatos da semana. E como nada é gratuito em se

tratando de Machado de Assis, observaremos, neste capítulo, outro movimento do

cronista, qual seja, apreender um cotidiano até então despercebido pelo leitor.

Pretendemos, a seguir, delimitar o sentido com que o cronista nos apresenta

seu texto: um sentido que pode ajudar-nos a pensar a realidade brasileira ao pôr em

cena a singularidade de uma experiência. Optamos pela crônica de 24 de abril de

1892 (Anexo A) porque ela vem ao encontro da hipótese de nossa pesquisa, a

saber, o cronista é o construtor de uma estratégia de conversa, em que prevalece a

interrupção de um assunto por outro, o que lhe permite prender a atenção do leitor e,

ao mesmo tempo, acessar um cotidiano até então dissimulado.

Ao contrário da estratégia do cronista da série Bons Dias, cuja forma era a de

apresentar-se com a saudação “Bons Dias” e, ao final, “Boas Noites”, agora, em A

Semana, o cronista não se apresenta ao leitor. Aproxima-se e vai logo dizendo o que

lhe convém. Outra particularidade diz respeito ao assunto, que muda

61

constantemente, quase sem que o leitor perceba. Essa interrupção não é tão

acidental porque ela dura a crônica inteira. Vejamos.

Na segunda-feira da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente era uma charada; mas o nome de problema dá dignidade, e excita para logo a atenção dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas festa artística. A coisa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em número, seja em preço; o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dois atos, uma poesia, vários ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato à beneficiada. Tudo pede certa elevação. Conheci dois velhos estimáveis, vizinhos, que esses tinham todos os dias a sua festa artística. Um era cavaleiro da Ordem da Rosa, por serviços em relação à Guerra do Paraguai; o outro tinha o posto de tenente da guarda nacional da reserva, a que prestava bons serviços. Jogavam xadrez, e dormiam no intervalo das jogadas. Despertavam-se um ao outro desta maneira: “Caro major!” – “Pronto, comendador!” – Variavam às vezes: - “Caro comendador!” – “Aí vou, major.” Tudo pede certa elevação. Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do heroico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas [...]. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião-dentista. Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião. Há muitos anos, um rapaz – por sinal que bonito – estava para casar com uma linda moça-, a aprazimento de todos, pais e mães, irmãos, tios e primos. Mas o noivo demorava o consórcio; adiantava de um sábado para outro, depois quinta-feira, logo terça, mais tarde sábado; - dois meses de espera. Ao fim desse tempo, o futuro sogro comunicou à mulher os seus receios. Talvez o rapaz não quisesse casar. A sogra, que antes de o ser já era, pegou do pau moral, e foi ter com o esquivo genro. Que histórias eram aquelas de adiamentos? - Perdão, minha senhora, é uma nobre e alta razão; espero apenas... - Apenas...? - Apenas o meu título de agrimensor. - De agrimensor? Mas quem lhe diz que minha filha precisa do seu ofício para comer? Case, que não morrerá de fome; o título virá depois. - Perdão; mas não é pelo título de agrimensor, propriamente dito, que estou demorando o casamento. Lá na roça dá-se ao agrimensor, por cortesia, o título de doutor, e eu quisera casar já doutor...

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Sogro, sogra, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, e aprovaram o moço. Em boa hora o fizeram. Dali a três meses recebia o noivo os títulos de agrimensor, de doutor e de marido. Daqui ao passo eleitoral é menos que um passo [...]. (ASSIS, 1892 apud GLEDSON, 1996, p. 47).

O cronista apresenta várias histórias: a dele próprio, com seus vizinhos

enxadristas, a de Tiradentes, a do jovem agrimensor e, finalmente, a do caso

eleitoral. Cada história é representada por sentenças, como, “tudo pede certa

elevação”; “Para não ir mais longe, Tiradentes”; “Daqui ao caso eleitoral é menos

que um passo”. Para Gledson (2006), a princípio, elas parecem nada ter de

coerência. Entretanto, estão relacionadas por uma série de informações não

expressas explicitamente. Tudo está amarrado: nada é redundante, mas cabe ao

leitor costurar os sentidos provocados.

O acontecimento que paira sobre o início da crônica é realmente a data de

comemoração cívica de Tiradentes. Em 1890, a República institucionalizou o dia 21

de abril como feriado. Gledson (2006) nos fala de um recurso machadiano, a saber,

mistura de cálculo e sinceridade, pois o apreço do escritor pela figura do mártir era

grande. É também uma suspeita do por que Machado ter começado a série na

semana seguinte ao “dia de Tiradentes”.

A crônica inicial da série possui uma lógica complexa, dividida em seções e

marcada por fortes transições, demonstrando, sobretudo, que com o passar do

tempo, Machado aprendeu a utilizar a “arte das transições” que as regras do gênero

da crônica lhe facultavam (GLEDSON, 2006). O jogo irônico, desencadeado pelo

cronista, instaurava dois tópicos que pareciam nada ter a ver um com o outro, mas,

por meio de sua justaposição, produziam um significado inesperado.

Quanto à sinceridade, a estratégia de Machado, segundo Gledson (2006), é,

a princípio, tomar o que vem institucionalizado e oficialmente aprovado, como, o

centenário da morte de Tiradentes, também por estar coerente com a sua simpatia

pelo mártir. Todavia, não podemos nos esquecer de que a crônica se realiza por

meio de uma conversa e, principalmente, de que a intervenção desse contador de

histórias sobre o fato da semana é dependente também das expectativas referentes

ao segmento de mundo ao qual ele se dirige: o leitor da Gazeta de Notícias.

63

E nisto está a importância de observarmos o seu mover sobre o espaço

cronístico. Na verdade, é um mover que simula a conversação, na qual os

interlocutores situam o seu dizer em um determinado ponto e vão alterando,

ajustando ou conservando esse contexto, visando, sobretudo, o diálogo, o

entendimento.

Quanto ao cálculo, o contexto político com o qual o cronista reage, envolvia,

de modo especial, o período de tensão política, com golpes e contragolpes de

Estado, – o golpe da bolsa de 3 de novembro de 1891, por Deodoro, e a remoção de

Deodoro por Floriano no dia 23 do mesmo mês – tinham ocorrido recentemente.

Ora, se por um lado, é impossível saber exatamente o que Machado pensou desses

eventos, por outro, é fácil conjeturar que sentisse pouca simpatia por qualquer dos

lados da disputa.

Seja como for, a mistura de cálculo e sinceridade também pode ser vista por

meio do movimento veiculado pela escrita do cronista. À maneira do colibri, salta de

um assunto a outro, de uma sentença a outra; desfaz-se de um termo; agarra-se a

outro; não se apoia em nada; tudo num malabarismo lúdico, passível de

significações, entre elas, a noção de que onde tudo é indeciso só se pode viver num

desvio perpétuo, uma fuga constante.

Entretanto, não façamos desaparecer o contexto político mostrado por

Gledson (2006), o que mais de uma vez recebeu do cronista a designação de “o ano

terrível”.

Conforme vimos, Machado vivenciou a farsa da Abolição, o engodo da

República e, agora, no início desta série de crônicas, o circo de golpes e armas. A

censura, prisão e perseguição tomaram conta da cidade do escritor.

Assim sendo, como iniciar uma nova série de crônicas em torno deste clima

de insegurança? Neste palco de situação tensa? Outrossim, como conversar com o

leitor sobre os fatos da semana? Como cumprir o dever de cronista? Como criar o

elo? Como entregar-se à crônica? É o que nos ensinou Machado de Assis nesta

derradeira série de crônicas: a conversação. Sobre a conversação, já dissera o

conselheiro Aires em 13 de novembro de 1888, “foi o melhor veículo; é desses que

têm as rédeas surdas e rápidas, e fazem andar sem solavancos” (ASSIS, 1888 apud

LOPES, 2001, p 79).

Ribeiro (2006), ao citar o ensaio de Stendhal, A comédia é impossível em

1836, observa que os cortesãos eram obrigados, por determinação de Luís XIV, a

64

permanecerem reunidos o dia todo em Versalhes. Então, ou achavam assunto ou

morreriam de tédio. Assim, diz ele, nasceu a arte da conversa. Temas pequenos,

leves, mas sobretudo agradáveis começaram a constituir um ponto de encontro de

seus desejos e interesses. É uma metáfora que nos faz pensar a arte da conversa

do cronista de A Semana.

Não é arriscado dizer que traços da arte da conversação ou da

desconversação repousam sobre a crônica que inicia a série A Semana. Um

contexto de perseguição e censura, certamente, necessitava da crônica como ponto

de encontro, em que os assuntos leves pudessem estabelecer o elo da conversa. A

crônica leve, trivial, apenas para matar o tempo, como dirá o cronista de 12/3/1893,

pode trazer-nos uma grande verdade, qual seja, o elo forte da política e da

sociedade dependem dos elos leves e passageiros do cotidiano. A conversa séria

precisa da conversa mole.

Voltemos à crônica de 24 de abril de 1892. Ela foi publicada três dias após o

centenário da morte de Tiradentes. O clima político era tenso por causa dos

protestos e principalmente em função da ditadura de Floriano. Gledson (2006) se

mostra, então, surpreso sobre o porquê de Machado recomeçar a série de crônicas,

sobretudo num período político de grande tensão, e que seria pior ao longo dos dois

primeiros anos de produção, processo que culminaria na Revolta da Armada e no

bombardeio do Rio nos últimos meses de 1893, quando, por um mês, a Gazeta foi

embargada.

Surpreso, principalmente, ao reconhecer que será nesta crônica de 24 de abril

que o cronista apresentará uma estratégia a fim de dialogar com o próprio período

designado de terror político. Tal estratégia foi reconhecida por Gledson (2006) como

mistura de cálculo e sinceridade, porque, de um lado, existe o respeito de Machado

por Tiradentes, e, por outro, o fato de a República ter assegurado o dia 21 de abril

como feriado, deve ter sido um aspecto que o cronista podia aprovar de todo o

coração.

Gledson (2006) elege duas características inerentes à crônica de 24 de abril,

a saber, a origem “política”, cuja especificidade gira em torno do centenário da morte

de Tiradentes e, ao mesmo tempo, o perfil do próprio cronista, voltado à interrupção,

à modificação do assunto, quase sem a percepção do leitor, e, rapidamente,

interrompendo-se já na segunda oração. Interrupção esta que durará a crônica

inteira.

65

A escrita do cronista, conforme pondera Gledson (2006, p. 198), é marcada

por fortes digressões: a primeira vem por meio da sentença “tudo pede certa

elevação”, a qual, por sua vez, conduz o leitor a Tiradentes e à história do jovem que

deseja seu título de agrimensor antes de casar. E essa história leva por sua vez ao

“caso eleitoral”. Embora a lógica aqui seja ainda mais obscura, nada é redundante,

mas o leitor tem que trabalhar para compreender qual a natureza das relações.

É bom que se note, porém, que o cronista, ao citar a história dos vizinhos

enxadristas, pode estar mirando a Guerra do Paraguai e A Guarda Nacional, pois:

Machado vê a guerra como pretexto para um falso patriotismo, combinado com benefícios pessoais. [...] A Guarda Nacional, que ao final do Império perdera completamente seu objetivo original, é sempre vista por Machado como uma mera desculpa para vaidades e bate-bocas mesquinhos. (GLEDSON, 2006, p. 197).

A segunda digressão vem por meio da sentença “Daqui ao caso eleitoral é

menos que um passo”. Esta interrupção requer, conforme Gledson (2006), alguma

ginástica mental, porém, o cronista facilita o caminho dos leitores, de modo que

muitos nem sequer perceberão o salto que fazem de um assunto para outro.

Todavia, a sentença é rapidamente desviada pela afirmação do cronista, a saber,

[...] mas, não entendendo eu de política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado do dia 20 quer dizer descrença, com afirmam uns, ou abstenção como outros juram [...]. Há quem não veja em tudo isto mais que a ignorância do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus patrícios. (ASSIS, 1892 apud GLEDSON, 1996, p. 47).

O caso eleitoral a que se refere o cronista diz respeito à eleição para

preencher uma vaga no Senado. O jornal Gazeta de Notícias traz um comentário

sobre a apatia política dos fluminenses:

Cumpre, porém, reconhecer [...] que as circunstâncias em que foi feita a eleição de anteontem, justificam em parte essa abstenção e esse indiferentismo. Por mais que sejam os esforços dispensados para se provar que estamos atravessando uma época normal, e que pelo fato de estar promulgada uma constituição estamos rigorosamente no regime constitucional, os fatos estão bradando bem alto que ainda não passamos do período revolucionário [...] Certamente não vale a pena usar de um direito que dá resultados dessa natureza. É por estar convencido dessa verdade e que o seu direito é perfeitamente platônico, que o eleitorado se absteve [...]

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Urna e espada não são feitas para andar juntas. (ASSIS, 1892 apud GLEDSON, 2006, p. 47).

De acordo com o comentário da Gazeta (1892 apud GLEDSON, 2006), a

abstenção fora uma forma de protesto contra o perfil autoritário de Floriano e o

comportamento passivo do Congresso, porque a expectativa inicial, despertada pela

República, de maior participação, foi sendo assim sistematicamente frustrada.

Ora, enquanto o jornal focalizava fatos inerentes ao período florianista, como,

a abstenção do eleitorado, o cronista de 24 de abril direcionava seu olhar para outro

foco, mirando uma particularidade do eleitorado, a saber, a descrença, sobretudo, a

descrença como fenômeno alheio à vontade do eleitor.

É, pois, a partir do olhar do cronista sobre o comportamento do eleitorado que

Gledson (2006) encontra as possíveis razões para as interrupções do cronista,

principalmente a que vem expressa pela sentença “Daqui ao caso eleitoral é menos

que um passo”. Uma explicação de tal digressão está no fato de que as duas

histórias passam a refletir traços do comportamento do povo brasileiro.

É bom que se observe que as sentenças que encabeçam a interrupção não

são gratuitas. Elas servem para que o cronista interrompa a conversa em um nível a

fim de acessá-la em outro. Este outro nível é o cotidiano despercebido, no qual se

encontram traços do comportamento coletivo, especificamente, na crônica de 24 de

abril, uma atitude do caráter nacional perante o tempo. Uma atitude que pode ser

problemática, porque faz com que as pessoas prefiram um futuro falsamente

idealizado a um presente que tem a vantagem de ser real.

Os eleitores, assim como fez o futuro agrimensor com o casamento, adiam o

encontro com a realidade. Em vez de brincar com a realidade, eles estão, como os

vizinhos do cronista, condenados a um eterno jogo de xadrez. É possível perceber,

dessa forma, que o cronista tinha algo a dizer que transcendia os limites de uma

obrigação de apenas retratar a semana.

A partir dessa relação entre a história do agrimensor e o comportamento do

eleitorado, surgirá outra característica ímpar do cronista, qual seja, a revelação de

que tais comportamentos fogem da ordem da razão e são predominantemente de

ordem afetiva: “ A descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor”(ASSIS, 1892

apud GLEDSON, 1996, p.47). Tal constatação será decisiva, conforme Gledson

(2006), para que Machado realize experiências no jornal, como a de tecer reflexão

67

sobre a natureza do caráter nacional brasileiro, antecipando, por sua vez, idéias

desenvolvidas mais tarde, no século XX, principalmente por Sérgio Buarque de

Holanda (1963) em Raízes do Brasil.

Uma reflexão de Raízes do Brasil que vai ao encontro da história do

agrimensor, na crônica de 24 de abril de 1892, é a do prestígio do diploma com o

título de “doutor”, como traço dominante, sobretudo, nas elites brasileiras:

[...] ainda no vício do bacharelismo ostenta-se também nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio superior às contingências. A dignidade e a importância que conferem o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta compostura. (HOLANDA, 1963, p. 149).

Como estava interessado em reconstituir a identidade brasileira, Holanda

(1963) revelou-nos o perfil de uma sociedade que apresentava um caráter ambíguo

na qual circulavam os interesses dos círculos ligados ao poder e de outros que

dependiam dessa realidade.Enfatizou que o caráter do povo brasileiro mostra-se

avesso às atividades morosas e monótonas. Assim sendo, pode-se apontar um

traço da personalidade coletiva do brasileiro que emerge: o de dificilmente suportar

ser comandado por um sistema exigente e disciplinador.

O certo é que o comportamento do agrimensor em retardar o contato com a

realidade e a própria postura do eleitorado podem revelar traços da vida íntima

brasileira, sobretudo aquela dificuldade brasileira em lidar com projetos de longo

prazo, como a lenta construção do espaço público. Tal dificuldade, abstraída pelo

olhar do cronista, é resultado, conforme Holanda (1963), do predomínio entre os

brasileiros de valores abstratos e sentimentais, isto é, valores que adentraram na

formação do caráter brasileiro, mostrando-nos que a vida íntima do brasileiro nem é

bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua

personalidade.

É igualmente certo que o cronista de A Semana capta nas miudezas do

cotidiano um certo relacionamento entre imaginação e realidade, capaz de

confeccionar um comportamento perante o tempo, isto é, uma ação problemática, a

qual faz com que o agrimensor prefira um futuro idealizado a um presente

identificado com o real e, ao mesmo tempo, o cronista sentencia a decisão do

eleitorado, caracterizada pela abstenção, descrença e omissão. Esse

68

relacionamento captado pela lente do cronista também é uma tendência que

antecipa as reflexões de Holanda (1963) sobre “O Homem Cordial”, sobretudo a

bipolaridade ora para estabelecer laços comunitários, ora para uma reação

intempestiva.

Para Holanda (1963), a cordialidade brasileira é do íntimo, do familiar,

significando, pois, que a nossa maneira de convívio social é diametralmente oposta

à polidez. Ela está impregnada na alma do brasileiro, é fruto da predominância dos

valores abstratos e sentimentais, isto é, o predomínio de valores domésticos e

familiares que se institucionalizaram na formação do caráter brasileiro.

Isto se explica uma relativa dificuldade no caráter nacional de estabelecer

relações formais entre o real e o imaginário. A cordialidade torna-se a responsável,

enfim, pela falta de coesão social.

Voltemos ao cronista de 24 de abril naquele foco que se direciona menos

para a preocupação com fatos do jornal do que com atitudes, ideologias e

instituições; menos para o acontecimento da semana do que com a sociedade

brasileira como um todo, e, de modo especial, à natureza do caráter nacional,

particularmente quando revelado no cotidiano carioca. Este foco será o ponto de

partida para que percebamos o cronista institucionalizando-se também como

consciência poética da realidade ao captar estados emergentes da psicologia

coletiva, representados pelos traços do caráter do homem brasileiro.

Instaurar-se como consciência poética da realidade é, segundo Marques de

Melo (1994), uma das características do cronista que se torna intérprete das

mutações que dão nova fisionomia à sociedade brasileira e, sobretudo, porque

mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em algo desejado pelos

leitores. Atua, desse modo, como mediador literário entre os fatos que estão

acontecendo e a psicologia coletiva.

Duas estratégias notáveis de o cronista de 24 de abril de 1892 lhe permitem

ser mediador entre os fatos que estão a ocorrer e os sinais da identidade nacional. A

primeira vem representada pela organização de tópicos que pareciam nada ter em

comum, como, vizinhos enxadristas, Tiradentes, o jovem agrimensor e o caso

eleitoral, mas, por meio da justaposição, produziram significações inesperadas,

principalmente, aquelas que se referem à subjetividade brasileira.

A segunda vem por meio de o cronista usar uma opinião convencional,

institucionalizada, já firmada socialmente, como o centenário de Tiradentes, sob a

69

forma de pretexto que lhe permite tecer um relato poético de ideias menos oficiais,

menos visíveis e muitas vezes semiocultas. Tais estratégias, por sua vez,

subordinam-se também à necessidade de o cronista em transformar o espaço da

crônica em conversa com o leitor e com as próprias características do jornal de seu

tempo.

Torna-se indispensável, então, aceitarmos um aspecto destacado por esta

dissertação, a de que a crônica de 24 de abril de 1892 constitui-se como conversa

que se realiza por meio da interrupção. Forma pela qual o cronista relativiza o

comando do conselho editorial, o de retratar o fato da semana, e, a seguir, termina

por construir sua própria versão, que resulta, por sua vez, numa consciência poética

partilhada com o leitor.

Assim sendo, observamos que o próprio cronista se constrói como alguém

que escreve como:

[...] se esperasse, nessa conversa, que lhe respondêssemos ou que, pelo menos, o ouvíssemos. De vez em quando os cronistas deixam claro ser sua essa expectativa, própria de quem conversa querendo ser ouvido, querendo ser contestado, querendo ser confirmado ou negado. (SILVA, 2006, p. 18).

Nessa crônica inaugural da série podemos perceber a conversação do

cronista como aquele que não só está com os ouvidos colados nas miudezas do

cotidiano, mas também disposto a estabelecer com outrem um diálogo, apesar de

estar vivendo uma época de ditadura, um ano de terror político. É uma conversação

que surge como se estivesse procurando o leitor a fim de construir uma relação bem

ao rés-do-chão, mediatizada pela arte de um contador de casos: “Na segunda-feira

da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto

de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente era uma charada” (ASSIS,

1892 apud GLEDSON, 1996, p. 45).

O que há, entretanto, a reforçar é que essa arte de contar casos será

marcada por um discurso sempre interrompido. Ela será abruptamente interrompida,

já no segundo parágrafo, com a sentença “Tudo pede uma certa elevação. Conheci

dois velhos estimáveis, vizinhos”, a qual, será abandonada imediatamente no

terceiro parágrafo, por meio da expressão “Para não ir mais longe, Tiradentes”. Um

pouco adiante, cessando o caso de Tiradentes, introduz-se outro assunto “Há muitos

anos, um rapaz – por sinal bonito – estava para casar com uma linda moça”: o

70

assunto do jovem agrimensor, o qual será substituído por outro enunciado “Daqui ao

caso eleitoral é menos que um passo; mas não entendendo eu de política” (ASSIS,

1892 apud GLEDSON, 1996, p. 45).

Observamos, assim, que o cronista cria um elenco de convenções que parece

problematizar a nossa leitura ao apresentar tantas interrupções. Parece exigir do

leitor afinada ginástica mental a fim de imaginar uma conexão possível entre os fatos

relatados. Entretanto, esse procedimento não o torna enigmático, porque o cronista

ensaia, realmente, na crônica uma conversa que recupera a estratégia de

conversação, na qual prevalece a interrupção, como meio de acessar resíduos do

cotidiano até então despercebidos pelo jornal. Recupera, dessa forma, a descrição

mais simples de uma conversa:

[...] a descrição a mais simples de uma conversa mais simples, poderia ser a seguinte: quando dois homens falam juntos, eles não falam juntos, mas cada um por sua vez; um diz algo, depois pára, o outro outra coisa (ou a mesma coisa), depois pára. O discurso coerente que veiculam é composto de sequências que, quando elas trocam de parceiro, interrompem-se, mesmo se elas se ajustam para se corresponder. (BLANCHOT, 2001, p. 131).

Talvez possamos dizer, então, que o porquê das inúmeras intermitências do

cronista de 24 de abril de 1892 não esteja sobre um enigma a ser decifrado, não

assente na necessidade de buscar a essência das interrupções e nem repouse,

igualmente, sobre a exigência de buscar uma leitura verdadeira que não se deixe

enganar. Apresenta-se, tão somente, à medida que sintamos o desejo de tomar o

cronista como um homem com quem conversamos, com quem queremos ouvi-lo,

interrompê-lo ou confirmá-lo, com quem, enfim, almejamos o diálogo.

A fim de que especifiquemos a direção metodológica de nossa pesquisa, sob

a qual repousa nossa hipótese, tomamos como proposta teórica não só os estudos

de Gledson (2006) sobre a crônica machadiana, mas também, recorremos ao

conceito de interrupção oferecido pelo teórico da literatura, Blanchot (2001). Este

autor está interessado, sobretudo, naquilo que faz com que a palavra se constitua

como conversa e para isso centrou sua análise na conversa realizada por meio da

interrupção, por considerar que ela pode ser um meio facilitador da comunicação.

Blanchot (2001) afirma que a interrupção é, na verdade, o intervalo que ocorre

na comunicação dialética, isto é, aquela que busca um diálogo unificador com o

71

outro e, dessa forma, o fato da palavra precisar passar de um para outro, seja para

ser confirmada, contestada, ou desenvolvida, mostra a necessidade do intervalo.

Neste sentido, a interrupção permite a troca. A interrupção torna-se necessária em

toda sequência de palavras, visto que a descontinuidade pode assegurar a

continuidade do entendimento.

Apesar de estarmos amparados pelo conceito blanchotiano de interrupção,

devemos deixar especialmente evidente que não se trata de aplicar rigorosamente

tal conceito para pensarmos o cronista de 24 de abril de 1892, mas precisamente

usar o instrumento deste teórico da literatura a fim de depreender o sentido que o

cronista nos destina. Sobretudo para este cronista cujo objetivo eram as miudezas

de um mundo que se assemelhava a um vulcão em erupção.

Valorizamos o instrumental de Blanchot (2001) porque a forma como este

autor descreve uma simples conversa, pelo viés da interrupção, encontra íntima

coesão com o resultado dos estudos sobre as crônicas machadianas, por exemplo,

a pesquisa desenvolvida por Pina (2007), cuja especificidade voltou-se à análise das

relações entre o real e o ficcional do cronista de A Semana.

[...] as crônicas machadianas seguem, no plano discursivo, o mosaico característico da página jornalística: são textos que circulam entre o fato e a ficção, proporcionando ao receptor, de certa forma, uma visão fluida das barreiras entre um e outra. O cronista cria uma costura invisível, que viabiliza ao consumidor do periódico um processo de reflexão sobre a realidade circundante [...] a relação texto-leitor abre incontáveis possibilidades de comunicação, que dependem dos mecanismos textuais de controle. Os vazios, as negações, as supressões, as cesuras, os cerzidos do texto, enfim, dão lugar do leitor, quebrando o fluxo textual, interrompendo a articulação discursiva sequencial. Dessa forma, o texto pode provocar o imaginário do leitor, dinamizando o impresso. (PINA, 2007, p. 40).

Isto posto, a crônica de 24 de abril, realizada especialmente por meio da

interrupção, deve ser entendida como a conversa que o cronista estabelece com o

leitor, a qual pode acontecer no momento em que o cronista se encontra com o

leitor, seja no bonde, na rua ou, mesmo, no espaço do texto escrito. Deve ser

entendida, igualmente, como a descrição mais simples de conversa: quando dois

homens falam juntos, eles não falam juntos, mas cada um por sua vez; um diz algo,

depois para, o outro outra coisa (ou a mesma coisa) depois para e assim

sucessivamente.

72

Gledson (2006) foi pioneiro ao mostrar que o cronista da série A Semana

aparece a falar, isto é, com a conversa já estabelecida e interrompendo-se, às

vezes, sem que o próprio leitor perceba. O cronista não possui a necessidade que o

acompanhava nas séries anteriores, como o uso de pseudônimos ou de longas

apresentações, por exemplo, na penúltima série Bons Dias: “hão de reconhecer que

sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e ir logo dizendo o que me

parecesse. Mas, não, senhor. Chego à porta, e o meu primeiro cuidado é dar-lhe os

bons dias” (ASSIS, 1888 apud GLEDSON, 2006, p.143). Aqui, o cronista ainda se

preocupava com a arte de despistar o leitor e impedir que este descobrisse a

identidade do verdadeiro autor.

Tomar a crônica como conversa que se realiza pela estratégia de provocar

desvios permite-nos a percepção de que, por meio destas interrupções, há um

discurso coerente. Este se revela passível de entendimento, capaz de se configurar

à medida que vamos percebendo a interrupção como a respiração da conversa do

cronista com o jornal e com o próprio leitor.

Igualmente, estamos a perceber que o perfil do cronista de 24 de abril não é o

de artífice de uma escrita linear, como espelho da realidade. Ao contrário, esse

narrador, à medida que avança no espaço das linhas e colunas dos jornais, afasta-

se e aproxima-se da transformação desses fatos em matéria narrativa. Faz uso do

espaço jornalístico para movimentar-se, atingindo, desse modo, resíduos do

cotidiano até então despercebidos.

Sobre esta particularidade do cronista de A Semana, Bosi (2004 apud

GRANJA, 2006) acrescenta a ideia de que os fatos sociais são colocados pelo

cronista em situação de um teatro imaginário, no qual a cena se sobrepõe ao enredo

e a construção assume importância maior que o fato. Neste sentido, até a política

aparece, no limite, como encenação desse ceticismo.

Ainda que tenha como tarefa retratar os principais acontecimentos da

semana, o que se percebe é que, ao fim, acessa outro cotidiano, até então

despercebido. Aponta novas direções aos fatos, sobrepondo-se ao acontecimento

veiculado pelo jornal:

Com um olho no jornal e outro muito além dele, o bruxo contador de histórias sabia como poucos fazer a banalidade tornar-se rara e preciosa para com isso ir além da ‘pobre ocorrência do nada’ [...]. A sua relação com o fato banal do cotidiano é difícil: ela está lá para

73

quem quiser ver, mas o olhar atento perceberá algo de perturbador nessa relação; verá que o fato referido, não importando se é a Revolta Armada, um anúncio de jornal ou a morte de odaliscas turcas, é apenas um pretexto para a discussão de outros temas que não estão sujeitos ao aqui e ao agora do cronista. (CRUZ JUNIOR, 2002, p. 34).

A nossa leitura da crônica de 24 de abril procura revelar que o leitor será

convidado a olhar não diretamente ao fato expresso pelo jornal, mas, antes,

convocado a atentar-se à conversa do cronista. A sua perspectiva surge marcada

pela duplicidade, porque num momento o leitor se vê distanciado dos fatos da

semana, e, paradoxalmente, em virtude dos comentários, é arrastado para dentro da

crônica.

Essa duplicidade veiculada na conversa do cronista comporta algumas

características, entre elas, a necessidade de, enquanto jornalista, ter em vista a

preocupação com aquele que lê:

Leitor oitocentista não é mera virtualidade representada no texto, ele existe potencialmente: orientar seu gosto, estabelecer modos de habituá-lo a determinado tipo de texto e/ou de publicação eram ações autorais/editoriais importantíssimas [...] introjetar o leitor empírico na obra, focalizando-o como personagem ou, até mesmo, como interlocutor estrutural do narrador, é um instrumento de ligação entre o texto e o leitor, estabelece o diálogo necessário, como meio de convencimento e persuasão do mesmo, habituado a uma cultura oralizada e pouco acostumado ao impresso. (PINA, 2006, p. 68).

Neste sentido, Pina (2006) observa que essa atenção ao leitor não era tarefa

só do cronista, mas do próprio jornal. O leitor era um amigo a quem não se poderia

decepcionar. Cita, por isso, a crônica de 22 de outubro de 1893, em que Ferreira

Araújo, dono do jornal Gazeta de Notícias, ocupa o lugar do cronista e assim

escreve:

Doente o cronista, doente ou alistado em um batalhão de voluntários, voluntário ou preso sem nota de culpa, preso ou narrador barrigudo, força é que alguém o substitua por esta vez só, amigo leitor, que há tempos trazes o paladar apurado pelo manjar dos deuses, que todos os domingos te servem. (ARAÚJO, 1893 apud PINA, 2006, p. 75).

Disso resulta que a tarefa do cronista foi, sobretudo, pedagógica ao conduzir

o leitor, habituado à cultura oralizada, a construir novos comportamentos, dentre os

74

quais, o hábito da leitura. O conteúdo deste processo pedagógico foi capaz de

imprimir à própria crônica um procedimento em que a conversação deixa de ser

representação fiel do cotidiano expresso pelo jornal. Isso significa também que o

cronista não se contenta mais em conversar sobre o cotidiano veiculado pelo jornal,

mas, especialmente, acerca de outro cotidiano que está além do jornal e que escapa

ao próprio leitor.

Sobre essa relação do cronista como o jornal do século XlX, Pereira (1989)

observa que ela foi marcada por fortes rupturas no aspecto linguístico do jornal. Foi

construtora de uma nova ordem de organização textual cuja essência dirige-se às

coisas miúdas do cotidiano, ao falatório nas ruas, às ideias de libertos ou escravos,

de senhores e crianças. Assim, os textos de A Semana imprimem ao leitor uma

visão mais ampla da representação do jornal na sociedade.

Aprofundamos, neste trabalho, a ideia de que a crônica, por estar ao rés-do-

chão, pode assumir a feição de uma conversa entre amigos. E o tom desta conversa

será mediatizada pela consciência poética do cronista à medida que se torna

construtor de sua própria semana. Elabora, desse modo, uma verdadeira

ficcionalização do cotidiano.

Essa ficcionalização do cotidiano será representada pelas experiências que o

cronista ensaiará no interior do jornal, entre elas, a mistura entre ficção e história; a

busca pelas miudezas; a autoridade volúvel de um narrador que se eleva e cai a

todo instante; o dialogismo permanente com um leitor que ora é elogiado, ora

criticado e, igualmente, a ironia dos valores aceitáveis como verdadeiros.

A crônica de 24 de abril de 1892 convém-nos por sugerir uma relação entre

imaginação e realidade, caracterizada, por exemplo, na figura do agrimensor cujo

comportamento era marcado pelo desejo de um futuro promissor e idealizado. Este

olhar do cronista mirava, entre outros, a vida íntima do brasileiro, sobretudo, a que

Holanda (1963) apresentou em Raízes do Brasil. Constituía, então, a forma de o

cronista acessar um cotidiano que estava além do próprio jornal.

Enquanto o jornal labutava sobre um cotidiano que já tinha passado, o

cronista fixava seu olhar à rua, nas miudezas dispersas. Como colibri, salteava a fim

de tornar sensível o acontecimento, torná-lo espetáculo ao leitor. Enquanto o próprio

leitor tentava recapturar o cotidiano ao nível do cotidiano, isto é, esperava os

comentários dos fatos da semana, o cronista apresentava-lhe outra imagem, em que

o cotidiano deixava de ser necessariamente o que o leitor vivenciara. Ao contrário,

75

aquilo que, sob a pena do cronista, tomaria, qual seja, uma presença fugidia, um fato

suspeito, oblíquo e que se relacionava, por exemplo, com um fenômeno alheio à

vontade do eleitor.

Daqui ao caso eleitoral é menos que um passo; mas, não entendendo eu de política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado na eleição de dia 20 quer dizer descrença, como afirmam alguns, ou abstenção como outros juram. A descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor; a abstenção é propósito. Há quem não veja em tudo isto mais que ignorância do poder daquele fogo de Tiradentes legou aos seus patrícios. O que sei, é que eu fui à minha seção para votar, mas achei a porta fechada e a urna na rua, com os livros e ofícios. Outra casa os acolheu compassiva; mas os mesários não tinham sido avisados e os eleitores eram cinco. Discutimos a questão de saber o que é que nasceu primeiro, se a galinha, se o ovo. Era o problema, a charada, a adivinhação de segunda-feira. Dividiram-se as opiniões; uns foram pelo ovo, outros pela galinha; o próprio galo teve um voto. Os candidatos é que não tiveram nem um, porque os mesários não vieram e bateram dez horas. Podia acabar em prosa, mas prefiro o verso:

Sara, belle d’indolence, Se balance Dans um hamac... (ASSIS, 1892 apud GLEDSON, 1996, p

47).

Há que se considerar, como complemento, que o conceito de cotidiano tem,

nesta pesquisa, a referência do estudo de Blanchot (2007). Especialmente, quando

este teórico da literatura menciona o caráter ambíguo que o termo carrega, porque

numa primeira aproximação, o cotidiano é aquilo que somos em primeiro lugar e o

mais frequentemente: no trabalho, no lazer, na vigília, no sono, na rua, no privado da

existência. Todavia, em outro nível, o cotidiano não é mais a existência média,

estatisticamente constatável de uma sociedade dada num momento dado. Passa a

ser uma categoria, uma utopia e uma ideia.

O pensamento de Blanchot (2007) será aproveitado nesta pesquisa porque o

teórico amplia sua noção de cotidiano ao mencionar o traço fugitivo dessa realidade:

Quaisquer que sejam os seus aspectos, o cotidiano tem esse traço essencial: não se deixa apanhar. Ele escapa. Ele pertence à insignificância, e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez o lugar de toda significação possível. O cotidiano escapa. É nisso que ele é estranho, o familiar que se descobre sob a espécie do extraordinário. É o desapercebido. (BLANCHOT, 2007, p. 237).

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Blanchot (2007) define o cotidiano como o movimento pelo qual o homem se

mantém no refúgio, escondido, pois no cotidiano não temos mais um nome. Para o

autor, cotidiano não está no calor de nossos lares, não está nos escritórios nem nas

igrejas, nem tampouco nas bibliotecas ou nos museus. Está – se estiver em algum

lugar – na rua.

A rua assume o espaço no qual o cotidiano se move, o espaço em que a

presença fugidia do cotidiano se instaura. Ela é o ponto de referência a fim de se

entender essa dimensão despercebida do cotidiano, precisamente porque ela tem o

poder de publicar o que está escondido, o poder de tornar visível o que se passava

em segredo,

[...] reencontro aqui um dos belos momentos dos livros de Lefebrve. A rua, observa, tem esse caráter paradoxal de ter mais importância do que os locais que ela conecta, mais realidade viva do que as coisas que reflete [...]. O que é publicado na rua não é no entanto realmente divulgado: diz-se-o mas esse ‘diz-se’ não é levado por nenhuma fala realmente pronunciada, assim como os rumores que se propagam sem que ninguém os transmita e porque aquele que os transmite aceita não ser ninguém. (BLANCHOT, 2007, p. 238).

Por ser espaço onde tudo é dito, tudo é ouvido, sem que nada se afirme,

adquire, conforme Blanchot (2007), mais peso rapidamente, dando lugar à opinião

pública. Para o autor, o cotidiano é sem acontecimento; no jornal, essa ausência de

acontecimento torna-se o drama do fait divers3. Tudo é cotidiano, no cotidiano; no

jornal, todo cotidiano é sublime e, por fim, tudo se denuncia.

Ao contrário do jornal, a rua não é ostentatória, pois os passantes nela

passam desconhecidos, representando apenas a beleza anônima dos homens

essencialmente destinados a passar. Na rua, quando as pessoas se encontram, é

sempre com surpresa e como que por engano. Blanchot (2007) afirma que o jornal

incapaz de alcançar aquilo que não pertence ao histórico, mas que está sempre a

ponto de fazer irrupção na história, agarra-se à anedota.

O que há, portanto, de fundamental a fim de validar tal conceito para nossa

pesquisa é a existência de um procedimento reconhecido como formador da crônica

3 Fait divers: fatos diversos.

77

machadiana, qual seja, a idéia de que o cronista se projetou com um olho no jornal

e outro lançado aos retalhos da rua:

Para as mínimas histórias da rua, e sua forma revela essa perspectiva estilhaçada. O texto sofre fraturas, encurta-se, desmembra-se para caber nas páginas volantes do jornal. Nesse contexto, os fragmentos do texto, as ruínas, adquirem importância fundamental [...] é na estética da crônica que o pormenor esvaziado do sentido cotidiano, catada no chão das ruas [...] ressurge aos olhos do observador como material poético. (SANTOS, 2002, p. 77).

Assim, destaca-se a estratégia do cronista, a de voltar-se às miudezas da rua,

conforme nos diz “gosto de catar o mínimo e o escondido”; “Eu apertei os meus

(olhos) para ver cousas miúdas, coisas de míopes”; “Onde ninguém mete o nariz, aí

entra o meu, com curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto” (ASSIS,

1897 apud SANTOS, 2002, p.101).

Muito nos chama a atenção esse fascínio do cronista pelo despercebido. Por

meio das crônicas de A Semana, é possível percebê-lo acessar um cotidiano oculto,

encoberto nas miudezas da rua e submerso num movimento pelo qual o homem se

mantém no anonimato.

Por ser um cronista identificado com as miudezas da rua, por não a ver como

mero lugar de passagens das pessoas, consegue acessar um cotidiano que está

despercebido, encoberto pelos graves acontecimentos que ocupam as páginas dos

jornais. Um cotidiano que lhe abre reflexões sobre a sociedade de seu tempo, sobre

traços do comportamento do homem brasileiro. É o que vamos perceber,

igualmente, na próxima crônica.

3.2 Crônica de 29 de Maio de 1892

Analisaremos a crônica de 29 de maio de 1892, (Anexo B) cujo início é

marcado pelo comentário do cronista sobre a frase de Alexandre Dumas (1844 apud

GLEDSON, 1996, p. 65):

O velho Dumas ou Dumas I, em uma daquelas suas deliciosas fantasias, escreveu esta frase: “Um dia, os anjos viram uma lágrima nos olhos do Senhor; essa lágrima foi o dilúvio”.

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Uma lágrima! Ai, uma lágrima! Quem nos dera essa lágrima única! Mas o mundo cresceu do dilúvio para cá, a tal ponto que uma lágrima apenas chegaria a alagar Sergipe ou a Bélgica. Agora, quando os anjos veem alguma coisa nos olhos do Senhor, já não é aquela gota solitária, que tombou e alagou um mundo nascente e mal povoado. Caem as lágrimas às quatro e quatro, às vinte e vinte, às cem e cem, é um pranto desfeito, uma lamentação contínua, um gemer que se desfaz em ventos impetuosos, contra os quais nada podem os homens, nem as minhas árvores, que se estorcem com desespero [...] Cresci, mudou tudo. Agora é água e mais água, apenas interrompida por um triste sol pálido e constipado, em que não confio muito. Vento e mais vento. Cerração e naufrágios. Pobre Solimões. Uma só daquelas gotas e um só daqueles gemidos bastaram a lançar ao fundo do mar tantas vidas preciosas [...] Que outro assunto? O primeiro que se oferece é a Câmara dos Deputados, que, após longos dias de ausência e interrupções, começou a trabalhar, e parece que com força, calor, verdadeira guerra. Alguns jornais tinham notado as faltas de sessões, infligindo à Câmara uma censura, que a rigor não lhe cabe [...] Não se pode julgar uma instituição, sem estudar o meio em que ela funciona. (ASSIS 1892 apud GLEDSON 1996, p. 66).

O que se percebe é o malabarismo do cronista à busca do assunto. “Mudo de

assunto, para obedecer ao poeta: ‘Glissez, mortels, n´appuijes pas’ [...]. Que outro

assunto? O primeiro que se oferece é a Câmara dos Deputados” (ASSIS, 1892 apud

GLEDSON 1996, p.66). Entretanto, o comentário sobre a Câmara dos Deputados é

abandonado no próximo parágrafo em face da seguinte reflexão:

Ora, é certo que nós não damos para reuniões. Não me repliquem com teatros nem bailes; a gente pode ir ou não a eles, e se vai é porque quer, e quando quer sair, sai. Há os ajuntamentos de rua, quando alguém mostra um assobio de dois sopros, ou um frango de quatro cristas. Uma facada reúne gente em torno do ferido, para ouvir a narração do crime, como foi que a vítima vinha andando, como recebeu o empurrão, e se sentiu logo o golpe [...]. (ASSIS, 1892 apud GLEDSON 1996, p.67).

Esta facilidade do cronista para mudar de um assunto a outro foi observada

por vários autores, entre eles, Cruz Júnior (2002), ao declarar que a força da crônica

machadiana repousa, principalmente, no fato de que a realidade como que

desaparece e o cronista passa a se relacionar com os discursos sobre ela. Nesse

processo buscam-se não tanto as causas ou as implicações do acontecimento em

pauta, mas sim os discursos sobre ela.

79

Torna-se necessário que fundamentemos, nesta dissertação, o perfil do

cronista machadiano, como meio para que se confirme a hipótese de que as

crônicas selecionadas funcionam especialmente como conversas, sobre as quais o

cronista acessa um cotidiano que está além do jornal e até despercebido do leitor.

Será por meio da conversa do cronista que perceberemos o fato de que os

acontecimentos da semana cedem vez a outra preocupação do cronista,

principalmente a que envolve a ficcionalização do cotidiano.

A ficcionalização do cotidiano deve ser entendida como a forma pela qual o

cotidiano, que se encontra obscurecido nas ruas, assume visibilidade na crônica. De

modo especial, aquele cotidiano perdido nos ajuntamentos da rua.

O certo é que a sentença do cronista de 29 de maio, por exemplo, “mudo de

assunto”, será o meio pelo qual simulará o diálogo com o leitor. Um diálogo marcado

pela interrupção, como meio de preservar a comunicação, meio de estabelecer a

pausa necessária para que o entendimento se configure.

Não menos certo é, pois, sustentar o fato de que o cronista de 29 de maio de

1892 instaura a expressão “mudo de assunto”, não gratuitamente. Ao contrário, seus

olhos estão voltados às miudezas da rua. É necessário trazê-las para o jornal,

apresentá-las de forma sublime a fim de completar o vínculo com o leitor, alimentar

um público que se formava, como um almoço de domingo, e, dessa forma, garantir a

interação do próprio jornal com o receptor.

É importante a constatação da sentença “mudo de assunto” pode revelar, a

princípio, a noção de que a continuidade incomode o leitor e prejudique nele os

hábitos da conversa. Em seguida, pode revelar a necessidade de que o cronista tem

ao suspender a palavra para restaurá-la em outro nível. Este outro nível, a que esta

pesquisa se refere, pode ser o cotidiano que se aproxima daquele estado em que

vivemos:

[...] como que fora do verdadeiro e do falso é um nível da vida em que o que reina é a recusa de ser diferente, a animação ainda indeterminada, sem responsabilidade e sem autoridade, sem direção e sem decisão, uma reserva de anarquia, já que repele todo começo e rejeita todo fim. É o cotidiano. (BLANCHOT, 2007, p. 242).

Do mesmo modo, torna-se sintomático o dizer do cronista de que na rua

agimos por atos voluntários, em que

80

Não há calendário, nem relógio, nem ordem do dia; não há regimentos. O que não podemos tolerar é a obrigação [...]. Nós fazemos tudo por vontade, por escolha, por gosto; e, de duas uma: ou isto é a perfeição do homem, ou não passa das primeiras verduras. Não é preciso desenvolver a primeira hipótese; é clara de si mesma. A segunda é a nossa virgindade, e, quando menos em matéria de amofinações, políticas ou municipais, é preciso aceitar a teoria de Rousseau: o homem nasce puro. Para que corromper-nos? (ASSIS, 1892 apud GLEDSON, 1996, p 67).

A expressão “nós fazemos tudo por vontade”, carregada de oralidade, garante

ao cronista mais dinamismo e subjetividade, pois aproxima-o do leitor, convidando-o,

desse modo, a olhar para a rua, não como espaço de segurança, de conquistas

seguras, mas, antes, como espaço movente, frouxo e sem fortes regimentos. É

assim que o cronista vai convertendo em texto a frouxidão da própria vida,

convertendo em texto, sobretudo, os traços daquele cotidiano despercebido pelo

jornal. Tais traços são captados, porque ele possui a particularidade de ser também

o homem da rua, aquele que escapa a toda autoridade, seja ela política, moral ou

religiosa.

O que há, pois, de fundamental a destacar é a reflexão de Gledson (2006)

sobre a ausência de respeito à lei, expressa na sentença do cronista: “Ora, é certo

que nós não damos para reuniões”. Conforme o pesquisador, essa constatação

sobre a dificuldade de organização coletiva que caracterizava a nação brasileira vem

de forma inteiramente desenvolvida somente na série A Semana.

Esta espécie de reflexão sobre a natureza do caráter nacional brasileiro aparece numa forma tão desenvolvida somente nesta última série de crônicas, se não me engano, mas, mesmo não aparecendo com frequência, pode ser uma antecipação bastante surpreendente de idéias desenvolvidas mais tarde, no século XX. (GLEDSON, 2006, p. 203).

As sentenças “é certo que nós não damos para reuniões” e “Nós fazemos

tudo por vontade” estabelecem entre si relações que permitem ao cronista acessar

outro cotidiano que não está explícito nas folhas dos jornais. Está na consciência do

cronista partilhada com o leitor. Sobretudo a que revela traços do caráter nacional

brasileiro:

Machado não pode deixar de ver os defeitos reais que acompanham essa simpática familiaridade: a falta de espírito público é a mais

81

lamentável de todas [...] Ele nos dá a que talvez seja sua mais ponderada discussão sobre o tema do caráter nacional, em termos que antecipam os de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, em que se discute o “homem cordial”. Os brasileiros só se reúnem quando querem, afirma ele, e então, regra geral, só por curiosidade. (GLEDSON, 2006, p 225).

O homem cordial, em Raízes do Brasil, é o resultado do predomínio de

valores abstratos e sentimentais, ou seja, o predomínio de valores familiares que

invadem a formação do caráter brasileiro. Daí que há uma relativa dificuldade no

caráter nacional de estabelecer diferença entre o mundo público e o privado. No

dizer do cronista, de que nós não damos para reuniões, nossos atos são voluntários

e o que fazemos é tudo por vontade, encontramos antecipações para as reflexões

de Holanda (1963). Senão vejamos:

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez [...]. A exaltação dos valores cordiais [...] encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social [...]. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. (HOLANDA, 1963, p. 144).

Semelhantemente, Ribeiro (2000), em A sociedade contra o social, declara

haver uma dificuldade no caráter nacional brasileiro em lidar com o trabalho, com a

demora, enfim, com o próprio tempo. O brasileiro, de modo geral, seria alguém que

sonha com a “sorte grande”, com um ganho mágico e imediato, e que, por isso,

resistiria a lidar com o mundo relativo, com projetos de longo prazo, com a lenta

construção de um espaço público.

A escolha da crônica de 29 de maio torna-se necessária, pois, a esta

pesquisa porque vemos nela o olhar do cronista dirigir-se para uma particularidade

que não está ligada diretamente ao fato da semana, mas a um cotidiano que está

além das fronteiras do próprio jornal. Um cotidiano que surge nos ajuntamentos da

rua. Alheio a projetos de longo prazo, alheio a regimentos. Onde tudo é feito tão

somente pela vontade. Um cotidiano, enfim, regido não por um princípio racional,

mas pelo gosto, ou, pelos atos da vontade.

Há que se considerar, simultaneamente, que esse cotidiano acessado pelo

olhar do cronista vem ao encontro do pensamento do filósofo Schopenhauer (1960),

82

com quem Machado de Assis manteve alguma comunhão de pensamento. Mantém

proximidade, de modo especial, com a ideia do filósofo suíço de que a vontade é o

núcleo do homem, porque ela vitaliza a ação humana:

Conforme Schopenhauer, o que alguém faz, os atos que cada um pratica têm por mola os impulsos, não as máximas racionais. Os atos são obras da vontade, em dado momento perante certos motivos, certos interesses [...]. A ação do indivíduo se pauta por aquilo que mais lhe convém num preciso momento, pauta-se por aquilo que combina naturalmente com a sua personalidade, que combina com o seu eu, com certas circunstâncias, impossíveis de ser quantificáveis e preconcebidas. (BARBOSA, 2000, p. 14).

O cotidiano revelado nos ajuntamentos de rua, dos quais nos fala o cronista,

mantém relação com o fato de que os indivíduos agem sem apreço à polidez, ao

regimento. São atos voluntários. Schopenhauer (1960) ressalta, neste sentido, uma

particularidade do homem, a de ser um relógio que segue frivolamente o curso do

tempo. O relógio marca as horas, quer dizer, realiza uma série de atos insensatos

pelos quais os homens ora se agridem, ora se atribuem louvores.

Schopenhauer (1960) considera a vontade como o núcleo do homem, porque

ela vitaliza a ação humana. Ela escapa ao processo de explicação racional, espaça

ao princípio da razão. É, pois, um impulso cego, “nada mais que este mundo, nada

mais que a vida, que é ela mesma, nada mais que viver, viver e

viver”(SCHOPENHAUER,1960, p.67).

Por estar interessado, especialmente, na conversa com o leitor, o cronista não

se desprende da expressão consagrada “mudo de assunto”. Em vez de discutir o

fato da semana, o fato de a Câmara dos Deputados voltar a trabalhar quase três

semanas após a data prevista para a abertura do Congresso, instaura outra

conversa na qual um cotidiano despercebido começa a ganhar destaque na crônica.

Um cotidiano que está nos ajuntamentos da rua, onde visualiza, bem à

maneira de Schopenhauer (1960), uma série de atos da vontade pelos quais os

homens ora se ferem ora se consolam:

Quando algum bonde pisa uma pessoa, só não acode o cocheiro, porque tem de evadir-se, mas todos cercam a vítima. Há dias, na Rua do Ouvidor, um gatuno agarrou os pulsos de uma senhora, abriu-lhes as pulseiras, meteu-as em si e fez como os cocheiros. Mas não faltaram pessoas que rodeassem a senhora, apitando muito.Tudo por quê? Porque são atos voluntários, não há calendário,

83

nem relógio, nem ordem do dia; não há regimentos. (ASSIS, 1892 apud GLEDSON, 1996, p. 67).

Salientamos, então, que o cotidiano ao qual o cronista de 29 de maio acessa

é aquele que estava despercebido, pelo menos, não era o foco do jornal, porque

este se voltava aos grandes acontecimentos da semana. Alguns jornais, conforme

citou, tinham notado as faltas de sessões na Câmara dos Deputados. Entretanto, o

cronista foge desse assunto. Mira uma particularidade do comportamento do homem

brasileiro, a de escapar de reuniões, de regimentos, de ordem do dia.

É importante ressaltar que a reflexão do cronista sobre essa tendência de não

tolerar obrigações acaba por revelar-nos a sua própria característica, qual seja,

homem alheio ao material jornalístico ao seu redor, alheio à ordem do dia e à

autoridade centralizadora apesar de estar vivendo o ano terrível da ditadura de

Floriano. Revela-nos, enfim, um notável observador e narrador das circunstâncias

sociais.

Ao longo destas páginas estão sendo levantadas algumas características das

crônicas de A Semana, entre elas, o fato de que elas se realizam como conversas,

nas quais os assuntos cotidianos são tratados como se dois amigos conversassem.

Veremos, nas páginas seguintes, o cronista transitando entre fatos diversos, ligando-

os pelo humor ou pela livre associação.

3.3 Crônica de 29 de Janeiro de 1893

Durante o século XIX, o Rio de Janeiro experimentou variadas mudanças,

entre elas, uma crescente transformação do espaço físico da cidade. O cronista

captou as vozes de seu tempo por meio de uma conversa marcada pela interrupção.

Estratégia que lhe possibilitou conectar-se a um assunto que não estava posto pelo

jornal. Este movimento descontínuo e intermitente do cronista recebeu também a

denominação de:

[...] arte da desconversa: refinada, alusiva, muitas vezes maldosa e sempre irresistível. Ninguém escapa a tanta movimentação e humor, mesmo depois de todos esses anos do desaparecimento dos fatos

84

que mostraram aquelas páginas extraordinárias. (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p. 59).

Entendemos que esse movimento do qual ninguém escapa é o que impede o

cronista a se ater a algo em específico, porque ater-se a algo supõe dizer que há

algo determinado a que se ater. Ao contrário, age como colibri, saltando de um

assunto a outro, sem, contudo, eleger algum deles para apresentá-lo como verdade

absoluta. Todo movimento faz parte dessa (des)conversa.

É pertinente, pois, a ideia de que só podemos depreender bem a sua

conversa se a cada vez que ele afirmar algo, buscarmos outra conversa com a qual

essa afirmação se relaciona. Isto se confirma, pois alguns textos de A Semana

conferem uma certa ambiguidade, o que torna difícil afirmar qual é a real posição

do cronista diante dos assuntos que comenta, já que nunca se tem certeza se o

autor fala sério ou não.

Necessário é que, a seguir, as ideias sejam ainda mais sistematizadas de

forma que percebamos como as crônicas selecionadas são marcadas pela

ficcionalização do cotidiano. Esta é definida como uma estratégia estilisticamente

confeccionada em que ora se dirige ao cotidiano, ora dele se afasta, num movimento

de libertar os fatos da semana a fim de instaurá-los em outro nível.

É por meio da ficcionalização do cotidiano que se opera uma tensão dialética

entre o fato real e o fato narrado; entre o assunto da crônica de 29 de janeiro de

1893 e o cotidiano perdido nas miudezas da rua; entre a modernização e o atraso;

entre a destruição do cortiço Cabeça de Porco e a sorte dos pobres da nação.

A crônica de 29 de janeiro de 1893 (Anexo C) inicia-se por meio do elogio:

Gosto deste homem pequeno e magro chamado Barata Ribeiro, prefeito municipal, todo vontade, todo ação, que não perde o tempo a ver correr as águas do Eufrates. Como Josué, acaba de pôr abaixo as muralhas de Jericó, vulgo Cabeça de Porco. Chamou as tropas, segundo as ordens de Javé; durante os seis dias da escritura, deu volta à cidade e depois mandou tocar as trombetas. Tudo ruiu, e, para mais justeza bíblica, até carneiros saíram de dentro da Cabeça de Porco, tal qual da outra Jericó saíram bois e jumentos. A diferença é que estes foram passados a fio de espada. Os carneiros, não só conservaram a vida mas receberam ontem algumas ações das sociedades anônimas. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 186).

O assunto da crônica é a destruição do grande cortiço Cabeça de Porco,

localizado a pouca distância da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil. O

85

cronista começa com o elogio a Barata Ribeiro e a comparação com Josué da Bíblia.

Feita a associação irônica entre a missão deste e a força daquele, a Bíblia é

rapidamente abandonada por meio da seguinte sentença:

Fora com estes sapatos de Israel. Calcemo-nos à maneira da Rua do Ouvidor, que pisamos, onde a vida passa um burburinho de todos os dias e de cada hora. Chovem assuntos modernos [...]. Ainda não estava descoberto o remédio que previne a concepção para sempre, e deque ouço falar na Rua do Ouvidor. Dizem até que se anuncia, mas eu não leio anúncios. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 190).

Quanto ao aspecto histórico, as primeiras décadas da proclamação da

República foram marcadas por muitas turbulências, nas quais emergiram fortes

transformações que agitaram a capital, impedindo, por exemplo, que a rua ficasse

determinada apenas como mero local de passagem das pessoas. Ao contrário, o

cronista passa a ver as mudanças metaforizadas na Rua do Ouvidor. A rua e o

progresso são capazes de dialogar entre si:

Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça [...]. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilantes de riqueza. (Assis, 1882 apud TRIGO, 2001, p.245).

O próprio Rio de Janeiro vai mostrar toda a agitação dos últimos tempos,

porque a cidade se transforma na metáfora das atenções de todo país. Os

acontecimentos, por banais que fossem, assumiam importância desmedida em

função da ressonância produzida pela situação privilegiada em que se achava a

cidade.

Observamos, então, a preocupação do cronista de 29 de maio de 1893 com o

diagnóstico das consequências da República, principalmente, os aspectos

contrastantes de uma modernização defendida por todos, como, a destruição do

cortiço Cabeça de Porco, exemplo de descaso em relação à sorte dos pobres da

nação, pois

86

Entre as elites, houve sem dúvida a sensação geral de libertação, que atingiu não só o nível das ideias mas também dos sentimentos e das atitudes [...] em termos concretos, a prevenção republicana contra pobres e negros manifestou-se na perseguição movida por Sampaio Ferraz contra os capoeiras, na luta contra os bicheiros, na destruição, pelo prefeito florianista Barata Ribeiro, do mais famoso cortiço do Rio, a Cabeça de Porco [...] destruído em autêntica operação militar. (CARVALHO, 1987, p. 26).

Conforme Cruz Júnior (2002), o republicano Barata Ribeiro foi responsável

por fortes transformações no Rio de Janeiro, entre elas, os bondes elétricos, a

iluminação pública melhorava, os cortiços, como a Cabeça de Porco, eram

demolidos para dar passagem a novas avenidas, a rua do Ouvidor era o alvo de

projetos que visavam alargá-la.

É oportuno ressaltar, para a análise desta crônica, que o fato da destruição do

cortiço foi aclamado pelos jornais da época e por todos os que se alegravam com a

marca do progresso. De acordo com Gledson (2006) a própria Gazeta deu uma

grande cobertura ao acontecimento, e não mostrou nenhuma hesitação quanto a

sua aprovação dessa obra de civilização. Parece que Machado teve dúvidas,

embora tenha encontrado dificuldades ao expressá-las, provavelmente por causa da

unanimidade da “opinião pública” (representada pelos jornais) sobre o assunto.

É o momento, então, de voltarmos ao exercício da escrita em que, num

primeiro nível, o cronista recupera a euforia pública, enaltece a opinião dos jornais e,

desse modo, aproxima-se da expectativa inicial do leitor por meio da sentença

“Gosto deste homem pequeno e magro [...] como Josué, acaba de pôr abaixo as

muralhas de Jericó, vulgo Cabeça de Porco”. O cortiço fora derrubado e a euforia da

modernização é geral (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 186).

Entretanto, há outro nível cuja especificidade está no fato de que podemos

bem compreender esse cronista se a cada vez que ele afirmar algo, buscarmos uma

conversa diferente com a qual essa afirmação se relaciona. É consensual o fato de

que a força das crônicas de Machado nasce, conforme Cruz Júnior (2002), não só

de sua capacidade de registrar e transmitir elementos da realidade, não porque

descrevem costumes ou acontecimentos políticos e econômicos, mas pelo fato de

que, por meio dessas ocorrências, o autor capta a dinâmica do funcionamento da

sociedade brasileira.

87

A fim de compreendermos como o cronista capta a dinâmica do

funcionamento da sociedade brasileira, é importante ter a consciência de que a sua

conversa se dá por meio da interrupção, movimento responsável por recuperar um

cotidiano que esteja além da notícia da semana.

É por isso que podemos entender por que o cronista trouxe o elogio ao

“pequeno” e “magro” Barata Ribeiro no mesmo parágrafo em que insinua a ideia de

que certas sociedades anônimas obtiveram lucros com a desgraça alheia. Assim,

resulta a estratégia do cronista, isto é, iniciar a discussão em um determinado nível,

mas, aos poucos, deslocar o foco para outros discursos que tratam do mesmo

assunto, travando com eles uma polêmica mais ou menos velada.

E por estar entre a fronteira do jornal e da rua, o cronista nos convida a

calçarmo-nos à maneira da Rua do Ouvidor, onde os burburinhos estão a qualquer

lugar. Foca seu olhar, sobretudo, àquele cotidiano ignorado, como, a sorte dos

pobres. Constrói sua especificidade de tal forma que numa perspectiva fotografa o

capitalista que se quer notório; em outro instante está a registrar o apelo pela moral

e os bons costumes; noutro a defender a viúva que busca um marido pelo jornal; a

seguir é escritor solitário; ora é o cronista das multidões; num instante escreve a

partir do interior burguês e, por vezes, está à cata de notícias nas ruas da cidade.

O cotidiano despercebido pelos jornais e, talvez, pelo próprio leitor, vem

acessado por meio da ironia, presente na constatação de que:

Tudo pereceu portanto, e foi bom que perecesse. Lá estavam para fazer cumprir a lei a autoridade policial, a autoridade sanitária, a força pública, cidadãos de boa vontade, e cá fora é preciso que esteja aquele apoio moral, que dá a opinião pública aos varões provadamente fortes. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 188).

Além da ironia presente na posição do cronista, Gledson (1996) observa que

o cronista aceita de má vontade a euforia da modernização. Todos os jornais,

inclusive Gazeta de Notícias, deram grande cobertura ao fato. Apesar disso, a

reflexão do cronista não deixa de apontar para a ausência de preocupação com a

sorte dos pobres. “Um mês depois, o Rio News dizia o seguinte: ‘Segundo O Paiz, a

cidade e os seus subúrbios estão cheios de pobres que não têm abrigo desde que

começou a destruição dos cortiços” (GLEDSON, 2006, p. 223).

88

O terceiro parágrafo da crônica transforma-se, pois, em escada pela qual o

cronista acessa o cotidiano ofuscado pela euforia da modernização. Apoia-se, para

isto, num texto que parafraseia a Bíblia:

Não me condenem as reminiscências de Jericó. Foram os lindos olhos de uma judia que me meteram na cabeça os passos da escritura. Eles é que me fizeram ler no livro do Êxodo a condenação das imagens, lei que eles entendem mal, por serem judeus, mas que os olhos cristãos entendem pelo único sentido verdadeiro. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 188).

Neste trecho, Gledson (1996) reconhece uma estratégia do cronista em usar

o texto bíblico como forma de questionar, por exemplo, a atitude unânime da

imprensa quanto à destruição do cortiço. Parece que o cronista mira a atitude da

imprensa e, talvez dos leitores, pois estão contentes com a encenação deste

pequeno drama, em vez de promover soluções verdadeiras para melhorar a cidade,

em prol de todos os seus habitantes.

Esta crônica demonstra que os textos de Machado não podem ser vistos

apenas como enunciados, porque neles encontramos sentidos diversos. Conforme

Maingueneau (2006, p. 74):

[...] toda clareza é enganosa: mesmos textos que parecem extremamente transparentes exigem do destinatário que derive sentidos ocultos. A missão do verdadeiro intérprete é descobrir o ponto a partir do qual a clareza se obscurece

O cronista de 29 de janeiro de 1893 demonstra, assim, não estar à vontade

para somar-se ao corpo daqueles que elogiavam a modernização pela força policial,

como a desenvolvida por Barata Ribeiro. Sua postura, enquanto homem do jornal e

da rua, marca-se pela suspeita, pois de um lado está sua obrigação em escrever a

crônica e, ao mesmo tempo, sua estratégia de usá-la como conversa sobre

acontecimentos que somente são compreendidos quando a eles são inseridos

elementos exteriores.

O tom que segue até o final sugere o ceticismo de um cronista que está

cumprindo seu dever de escrever o texto. Entretanto, ao escrever, deixa uma crítica,

deixa um murmúrio escrito, uma lamentação escrita, resultado da percepção do

contraste entre a velha cidade e a violência da modernização.

89

Tal violência veio representada pela força policial, como meio pelo qual

Barata Ribeiro se projetava e, ao mesmo tempo, inaugurava um cenário político

sobre o qual se abria

[...] o caminho para o autoritarismo, que na melhor das hipóteses poderia ser um autoritarismo ilustrado, baseado na competência, real ou presumida, de técnicos [...]. Muitos destes técnicos eram republicanos de primeira água, como Barata Ribeiro. Mas, chegados ao poder, do espírito de república guardavam no máximo alguma preocupação com o bem público, desde que o público, o povo, não participasse do processo de decisão. (CARVALHO, 1987, p. 35).

Fortalece-se na crônica de 29 de maio de 1893 a perspectiva de o cronista

acessar outro nível de conversa, em que o valor heroico de Barata Ribeiro é

problematizado. A estratégia do cronista é a de oferecer a ficcionalização do

cotidiano, transformando a crônica num meio pelo qual o leitor é convocado a

despojar-se do hábito normal de leitura contínua e linear. Através da interrupção, da

mudança de assunto, o cronista instaura uma reflexão que não estava ao alcance do

imediatismo do jornal.

Antes, estava na rua, onde a vida passa um burburinho contínuo. Ali recolhe

as miudezas que lhe permitem agir como consciência poética da realidade. É, por

essa razão, que fortalecemos o argumento de que, embora a crônica reflita o

acontecimento da semana, o cronista não deixa que o texto seja ditado pelo fato do

momento. Isso, de igual modo, permite-nos afirmar que o cronista tinha algo a dizer

que transcendia os limites de apenas retratar os acontecimentos.

Semelhantemente, destacam-se características que nos possibilitam

apreender o gosto do cronista pela escrita descontínua; constatar a preferência pela

(des)conversação; acompanhar o olhar direcionado à rua, dando a ver um cotidiano

que remete de certa forma ao caráter do povo brasileiro. Cotidiano voltado também

ao mover do cenário político, o qual se distanciava das representações dos

cidadãos, porque surgia a contraditória situação, que abrigava, num mesmo país e

num mesmo período, dois tempos distintos: o atraso e o progresso.

Há que se considerar, então, como perspectiva do cronista de 29 de janeiro

de 1893, livrar-se da obrigatoriedade de retratar o fato glorioso de Barata Ribeiro,

enaltecido pelos jornais, e constituir-se no artífice de uma linguagem que instaura

outro cotidiano, marcado pelo descaso com a sorte dos pobres da nação. Neste

sentido, Brayner (1982) nos ensina que Machado, ao fazer um comentário de ordem

90

social, trata o fato como uma totalidade desconcertante, o que aumenta sempre a

impressão de descompasso entre o mundo exterior e o que é captado pelo se olhar.

Destarte, busquemos outras crônicas que ampliem a nossa compreensão do

cronista em compartilhar com o leitor a intuição acerca do mover de uma sociedade

que se abria à modernização sem, contudo, desprender-se das amarras do

autoritarismo e da exclusão social. Ampliar, especialmente, a visão de que as

crônicas machadianas são como conversas não só com o leitor, mas também o perfil

da sociedade de seu tempo. E por serem relativas à conversação, exigem que

sejamos bons juízes de tons de voz para capturar nuances de um cotidiano que não

reside na superfície do texto, mas nas entrelinhas da escrita.

Crônicas que nos convençam de que essas conversas realizaram-se não

somente por meio de um discurso intermitente e descontínuo com o leitor, mas

porque se constituíram, principalmente, fissão com o próprio jornal. Nesta ruptura, a

crônica deixa de ser mero entretenimento e passa a ter o estatuto de protagonista,

travando uma luta com o próprio jornal.

Não tem o intuito, porém, de destruir o berço onde se desenvolveu. Apenas

com o pretexto de que ambos, crônica e jornal, possam atuar em histórias

diferentes. Na ânsia de livrar-se da obrigatoriedade de retratar a semana, o cronista

acabou por instaurar outra história, a sua própria semana. Esperava-se que

apresentasse os comentários da semana. Todavia, sua conversação vai além, pois

seu texto instaura a discussão sempre em outro nível conforme veremos,

igualmente, na crônica seguinte.

3.4 Crônica de 12 de Março de 1893

A crônica de 12 de março (Anexo D) se inicia por meio de uma interrogação

endereçada aos leitores “Que cuidam que me ficou dos últimos acontecimentos

políticos?” e, a seguir, a resposta rápida “um verbo: desaclamar-se”. Esta estratégia

não deixa de ser uma forma de esvaziar o sentido do próprio assunto sobre os

últimos acontecimentos políticos. Vamos ao trecho inicial da crônica:

91

Que cuidam que me ficou dos últimos acontecimentos políticos do Amazonas? Um verbo: desaclamar-se. Está em um dos telegramas do Pará e refere-se ao cidadão que, por algumas horas, estivera com o poder nas mãos. “Tendo em ofício participado a sua aclamação e marcado o prazo de 12 horas para a retirada do governador, desaclamou-se em seguida por outro ofício [...] Pode ser (tudo é possível) que o intuito da palavra fosse antes gracejar com a ação; mas as palavras, como os livros, têm os seus fados, e os desta serão prósperos. É uma porta aberta para as restituições políticas. Resignar, como abdicar, exprime a entrega de um poder legítimo, que o uso tornou pesado, ou os acontecimentos fizeram caduco. Mas, como se há de exprimir a restituição do poder que a aclamação de alguns entregou por horas a alguém? Desaclamar-se. Não vejo outro modo... (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 209).

No ponto atual da presente dissertação, dever ser clara a ideia de que o

cronista constitui-se como artífice de uma narrativa cuja linguagem passa a

estabelecer uma espécie de jogo com a linguagem jornalística, na medida em que

se afasta do jornal, mas, conservando-se diante dele, atribui-lhe outro tom. Este

processo lúdico vem por meio da interrupção de um assunto por outro, que, nesta

crônica de 12 de março de 1893, manifesta-se pelo ato de fugir dos acontecimentos

político-amazonenses. Assim, enquanto o jornal oferece o assunto que fundamenta

o início da conversa, o cronista mira um tom mais descompromissado, o qual lhe

parece ser útil para prolongar a conversa com o leitor, com própria semana ou,

simplesmente, matar o tempo.

Este jogo se concretiza à medida que a escrita revela diferentes atitudes do

cronista, como, a análise dos vários neologismos nascidos nos jornais ou no

parlamento:

Que valem, por exemplo, todas as lutas do nosso velho parlamentarismo, em comparação com esta simples palavra: inverdade? Inverdade é o mesmo que mentira, mas mentira de luva de pelica. Vede bem a diferença. Mentira só, nua e crua, dada na bochecha, dói. Inverdade, embora dita com energia, não obriga a ir aos queixos da pessoa que a profere [...] desaclamar-se; “chefia de polícia”; “chefação”; “chefança”; “chefatura” e “chefado”. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 210).

É um procedimento útil para que o cronista passe a cunhar um projeto

alternativo para a crônica. Um projeto que não está fixado fielmente ao

acontecimento do dia. Antes, está no endereço predileto do cronista, a saber, a rua:

92

Velha imaginação, onde vais tu, pelos caminhos do sonho? Deixa os camelos e a sua carga, deixa o Egito, fecha as asas, abre os olhos, desce; esta é a Rua do Ouvidor, onde não se mata José nem chefia; mas unicamente o tempo, esse bom e mau amigo, que não tem pai, nem mãe, nem irmãos, e domina todo este mundo, desde antes de Jacó até Deus sabe quando. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 211).

É de consenso que a crônica, sobretudo a machadiana, se acomodou bem ao

jornal e se tornou membro dele. O que se percebe,nesta pesquisa, é a noção de que

ela adquiriu relativa autoridade no espaço do jornal, de tal forma que respondeu

afirmativamente ao pedido que lhe fora feito: retratar a semana. Ficou a obedecer,

mas subvertendo a ordem quando se lhe subordina. E isso pode nos sugerir a ideia

de que a crônica machadiana constitui-se protagonista no espaço jornalístico. Este

protagonismo lhe retira, contudo, a autoridade para assegurar a unidade plena com

o próprio jornal, pois ela passa, de certa forma, a competir com o assunto do jornal.

Uma competição em que a imaginação do cronista prevalece à medida que dirige

seu olhar à rua.

Enquanto o jornal chama a atenção para o fato da semana, o cronista, de seu

lado, desce à rua, onde se mata tão somente o tempo, na qual há mais realidade

viva. Isto também nos remete à confirmação da nossa hipótese de que o cotidiano

acessado pelo cronista esteja além das fronteiras do jornal. Esteja, sobretudo, nos

ajuntamentos da rua, em que nada é regido por um princípio racional. É o espaço

em que o cronista se mostra também atento aos traços do comportamento do

homem brasileiro, porque a rua torna público o que está oculto:

Reencontro aqui um dos belos momentos dos livros de Lefebvre. A rua, observa, tem esse caráter paradoxal de ter mais importância do que os locais que ela conecta, mais realidade viva do que as coisas que reflete. A rua torna público [...] E o que é publicado na rua não é no entanto realmente divulgado: diz-se-o mas esse ‘diz-se’ não é levado por nenhuma fala realmente pronunciada, assim como os rumores se propagam sem que ninguém os transmita e porque aquele que os transmite aceita não ser ninguém [...]. A rua não é ostentatória, os passantes nela passam desconhecidos, visíveis-invisíveis, representando apenas a ‘beleza’ anônima dos rostos e a ‘verdade’ anônima dos homens essencialmente destinados a passar. (BLANCHOT, 2007, p. 242).

É por esta razão que as ocorrências da semana ou os acontecimentos

políticos do Amazonas só interessam ao cronista à medida que são dissolvidos pela

93

imaginação, cujo foco se volta à análise dos neologismos. Esta reflexão sobre as

palavras bastou para que o assunto do jornal fosse dissolvido na crônica em

detrimento da interpretação do cronista. Bastou-nos, igualmente, para constatar o

fato de que o cronista é o construtor de uma estratégia de conversação, mediatizada

pela interrupção.

É oportuno retomar, pois, essa particularidade da crônica machadiana, qual

seja, a de conseguir articular algumas narrativas que criam uma espécie de jogo

com a linguagem jornalística, porque, de um lado, ela é produto do jornal, quer dizer,

depende dele para a sua manifestação pública. Por outro lado, foge a todas as

regras do jornalismo. Isto quer dizer que, embora tome como ponto de partida o

material jornalístico, ela acaba por construir a ficcionalização do cotidiano.

Não nos esqueçamos também de que a atividade jornalística de Machado, em

que predominaria a crônica, estendeu-se por mais de 40 anos. Facioli (1982)

observa a especificidade da crônica machadiana como um texto voltado à

contestação permanente, anti-imprensa, na medida em que oferecia outra leitura da

história e dos acontecimentos. A crônica machadiana sempre criava vários pontos

de vista no interior do jornal, revelando-nos a posição de um cronista cujos olhos

estavam postos nos ajuntamentos da rua, onde tudo foge ao princípio racional.

Desse modo, as crônicas, a que esta pesquisa vem se referindo, permite-nos

construir uma forma de enredo entre elas, sobre o qual captamos reflexos do

cronista de A Semana. Entre eles, o fato de caracterizar-se como construtor de um

relato poético do real, em que os acontecimentos da semana passam a ser um

pretexto que lhe permite vir a ser intérprete de um cotidiano mal assimilado pela

linguagem jornalística.

Outro sinal dessa estratégia verificada na postura do cronista de 12 de março

de 1893 é a de que para além do comunicado do jornal sobre o fato ocorrido, existe

um outro comunicado a perpassar esse discurso, com o qual se evita uma

linguagem imperativa, que apresente a história como verdade absoluta. Interessa-

lhe menos o caráter insólito do fato ocorrido do que a capacidade de instaurar uma

tensão entre a notícia e a possibilidade de criar novos fatos.

É por este caminhar que, ao começar a crônica, lança-se aos jogos

ficcionalizantes, analisando neologismos, numa perspectiva tão distanciada do fato

da semana, mas, simultaneamente, apresenta-nos a cena e seu olhar sobre ela. A

partir desse afastamento simula, ainda, uma situação na qual o próprio leitor se

94

sente livre dos acontecimentos graves da semana: “Para a crônica é pouco; mas

para matar o tempo, sobra.” (ASSIS, 1893 apud GLEDSON,1996, p. 211).

3.5 Crônica de 11 de Junho de 1893

Antes de relatar a semana, costumo passar pelos olhos os jornais dos sete dias. É um modo de refrescar a memória. Pode ser também um recurso para achar uma ideia que me falha. As ideias estão em qualquer coisa; toda a questão é descobri-las. Há algumas ideias boas nesta casaca, dizia o alfaiate de um grande poeta [...] Quantas não acharia ele em uma loja de casacas da Rua Sete de Setembro... Não digo o número, para me não suporem sócio comanditário; mas procurem nos anúncios. Note-se que nada mais casual do que a achada deste anúncio, porque a semana foi, entre todas, cheia de lances, debates, cóleras, acontecimentos, notícias e boatos; tais coisas não deixam tempo à leitura de anúncios. Mas eu ia dobrar uma folha para passar à outra, quando ele me chamou a atenção com suas letras normandas, e um título por cima. Nada mais simples: “Casacas e coletes para todos os corpos; alugam-se na rua...” Isto só, e não foi preciso mais para esquecer por instantes o resto do mundo. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 252).

Percebemos que a crônica (Anexo E) inicia a conversa a partir da

apresentação de seu comportamento, o de passar pelos olhos os jornais dos sete

dias. Conforme Gledson (2006), o cronista era leitor de vários jornais, como a

Gazeta de Notícias, o Jornal do Commercio, O País, O Tempo, o Diário de Notícias,

o Jornal do Brasil, A Cidade do Rio e o Rio News, jornal de expressão inglesa. Por

vezes, o cronista menciona histórias retiradas deles, dialogando, pois, com os

acontecimentos do momento.

Aqui, o cronista se apresenta como dublê de leitor. Era nos jornais diários de

onde captava a maioria das informações que irá comentar com os leitores da Gazeta

de Notícias. A condição de leitor de jornal deixa-o à espera que as notícias cheguem

até ele.

Ora, se os jornais estiveram ocupados com os graves acontecimentos da

semana: debates, as cóleras, notícias e boatos; o cronista, por sua vez, diz, com a

pena da galhofa, que tais acontecimentos não deixam tempo à leitura dos anúncios.

Neste momento, afasta os olhos do leitor daquilo que se tornou notável nos jornais

dos sete dias.

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Convida os leitores à miudeza dispersa no próprio jornal, a saber, um

anúncio: aluguel de casacas. A seguir, passa a imaginar um baile para o qual

fossem convidados cem homens que não possuíssem casaca, nem dinheiro para

mandar fazê-la. E mais, não possuíam tempo de modo que tiveram que se contentar

com as que restavam na loja, mesmo que não se ajustassem aos corpos. Desse

modo, a situação foi inusitada:

Alguns, de pequena estatura, traziam abas que pareciam buscar o chão, enquanto as golas tendiam a subir pelos lustres. Outros, de tronco extenso e pernas compridas, pareciam estar de jaqueta, tal era a exigüidade das abas. E jaqueta curta, porque mal passava da metade do tronco. Deu-me vontade de apitar, como nos teatros, quando se faz mutação à vista, a fim de ver trocadas as casacas e restituída a ordem e a elegância; mas nem tinha apito comigo, nem era certo que a troca das casacas melhorasse grandemente o espetáculo. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 253).

Ao término da imaginação, o leitor se depara com a revelação de que “os

desconcertos da vida não têm outra origem, senão o contraste dos homens e das

casacas”. Neste sentido, Cruz Júnior (2002, p. 166) observa que a sentença “este

mundo é um baile de casacas alugadas” também é representativa de pretexto para o

cronista acessar outra conversa,

[...] e quando alerta o leitor de que não está dosando um elixir para cérebros práticos pode-se entender algo como: olhe, leitor, o que me interessa nesta narrativa não é examinar o processo de casacas, mas [por exemplo] o desconcerto do homem em relação à sua situação moral, social [...] o cronista se vale de um fato banal para discutir o modo de funcionamento daquela sociedade.

A partir desta consideração, elegeremos duas características complementares

desta crônica que nos permitirão aprofundar a tese de nossa pesquisa: a primeira

está no fato de o cronista, ao construir a ficcionalização do cotidiano, deixar

transparecer a ideia de que o mundo é um baile de casacas alugadas e a dança

cumpre o papel de dissimular o aspecto dos homens, fazê-los esquecer o

constrangimento e o próprio tédio de uma época repleta de debates, cóleras,

acontecimentos, notícias e boatos.

A segunda decorre da anterior, isto é, o cronista passa a ser um agente da

consciência poética da realidade, porque, ao imaginar um baile de casacas, também

mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em algo desejado pelos

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leitores, uma forma de matar o tempo. Atua como mediador literário entre os fatos

que estão acontecendo e a dinâmica de funcionamento da sociedade.

A crônica de 11 de junho de 1893 pode constituir-se como relato poético do

real à medida que mostra outro lado de tudo, outro cotidiano que não consta na

linguagem séria do jornal. É relato poético do real, sobretudo, por ser um paradigma

do que Marques de Melo (1994) vai encontrar depositado no pensamento do

cronista paulistano, Lourenço Diaféria, segundo o qual:

A crônica descobre as pessoas no meio da multidão de leitores. Ela revela ao distinto público que atrás do botão eletrônico existe um baixinho resfriado e de nariz pingando, que assoa e vocifera. A crônica serve para mostrar o outro lado de tudo – dos palanques, das torres, dos eclipses, das enchentes, dos barracos, do poder e da majestade. Ela não consta no periódico por condescendência. A crônica é a lágrima, o sorriso, o aceno, a emoção, o berro, que não têm estrutura para se infiltrar como notícia, reportagem, editorial, comentário ou anúncio publicitário no jornal. E, contudo, é um pouco de tudo isso. (DIAFÉRIA, 1981 apud MARQUES DE MELO, 1994, p. 162).

Marques de Melo (1994) observa também que o cronista é, antes de tudo, um

intérprete das mutações que dão nova fisionomia à sociedade brasileira. Todavia,

interpretar deixa de ser, em Machado de Assis, tradução de ideias para uma

linguagem como espelho da realidade. Conforme Dixon (2006) é preciso, afinal,

considerarmos Machado de Assis como o mestre do “não-dito”, como aquele que

cria uma arte em que o leitor é constantemente convidado para funcionar como co-

produtor dos significados.

Ainda que não seja o nosso interesse mostrar evidentemente a significação

da ironia machadiana, não desconsideramos o sentido com que ela se abre às

significações possíveis. Um significado particularmente útil a este trabalho está no

humor do cronista: o de se divertir ao mostrar o comportamento desproporcionado

de um grupo de convidados ou, ainda, de homens que infligem a si próprios para

poderem se acomodar ora às casacas ora às determinações sociais, as quais eram

regidas por fortes contrastes, desproporções e disparates.

Schwarz (2000) observa em Ao Vencedor as Batatas que o Brasil, desde o

período da escravidão, apresentava-se pela coexistência de ideias antagônicas,

conciliadas por meio do autoritarismo. O resultado disso foi a sensação que o Brasil

vivencia sempre contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos,

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contradições, conciliações. Tal particularidade do Brasil, a presença destes

deslocamentos, não conhecia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua

natureza.

É nosso interesse, então, enfatizar a noção de que a crônica de 11 de junho

de 1893 pode até não transmitir a concepção de mundo de Machado de Assis, mas,

certamente, convida-nos a pensar o mundo ao pôr em cena o comportamento

desproporcionado dos homens em suas casacas. Tal ideia se concretiza à medida

que aceitemos um fato reconhecido como formador do texto machadiano, a saber,

“o ato de narrar de Machado demonstra, antes de informar acerca de algum

acontecimento, uma forma de compreender o mundo” (TEIXEIRA, 2008, p. 162).

Assim sendo, atentemos para um aspecto desta pesquisa cujo foco repousa

no fato de o cronista não deixar escapar a necessidade de os convidados buscarem

na opinião dos outros o ponto seguro para não só acomodarem-se à sua casaca,

mas ao próprio baile “consolava-os a vista dos companheiros; persuadiam-se talvez

de que era uma epidemia de casacas mal-ajustadas. A música chamava à dança;

todos corriam a convidar pares” (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p.254).

São sintomáticas as sentenças “consolava-os a vista dos companheiros” e

“persuadiam-se talvez de que era uma epidemia de casacas mal-ajustadas. A

música chamava à dança; todos corriam a convidar pares”, porque nos permitem

abstrair traços dos padrões éticos da sociedade brasileira. O primeiro vem por meio

da sentença “consolava-os”, uma forma de o cronista apresentar uma possível arte

de adaptação dos convidados aos valores e exigências sociais; o segundo, por meio

da sentença “persuadiam-se”, uma maneira de se evitar comportamentos próprios,

diferenciados e singulares. Os dois, porém, apontam a mesma direção, qual seja,

um comportamento moldado, uniforme e livre de ideias próprias.

O baile e as casacas podem revelar, igualmente, por meio do humor

machadiano, os modos de uma ética irresponsável que induzia no comportamento

dos convidados uma “casaca” grotesca cuja finalidade era a de enquadrar-se à

dança. Isto nos remete também à ideia de enquadrar-se, sobretudo, à ética do

“homem cordial”, cuja vida em sociedade

[...] é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela

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social, periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa. (HOLANDA, 1963, p. 138).

O cronista, entretanto, não deixou de observar o próprio desconforto dos

convidados em relação à sua casaca. Esse desconforto pode ser também a

metáfora do homem em relação à sua situação social. Aqui, o cronista nos sugere,

sutilmente, que sob o manto da ordem, da força militar, da opressão do momento,

escondia outro cotidiano transfigurado numa roupa incômoda, apertada e sem

medida certa.

O cronista-anfitrião, então, finaliza:

Condoído desse melancólico espetáculo, Jesus achou um meio de corrigir os desconcertos, removendo deste mundo para o outro a esperança das casacas justas. Bem-aventurados os mal-encasacados, porque eles serão vestidos no céu! [...]. Que a Fortuna ou a Providência, com a melhor tesoura do globo, talhe as casacas por medida, e as prove uma e muita vez no corpo de cada pessoa, e não haverá largas nem estreitas, longas nem curtas, todas parecerão ter sido cosidas na própria pele dos convidados. Sem isso, o baile será esplêndido pela profusão de luzes e flores, pelo serviço de boca, pela multidão e variedade das danças, mas não haverá perdido este pecado original de ser um baile de casacas alugadas. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 254).

Enfim, a imaginação do cronista permitiu-lhe tomar como ponto de partida um

anúncio do jornal, mas, sutilmente, desviar-se para um baile em que os convidados,

apesar das casacas desajustadas, acomodaram-se bem, e, dessa forma, revelou-

nos uma situação na qual as aparências bastam. Estas trouxeram tranquilidade aos

convidados e “todos corriam a convidar pares”. Isso é sintomático, visto que confirma

a hipótese desta pesquisa, de que o cronista acessa resíduos do cotidiano até então

despercebido pelo jornal, sobretudo esta particularidade emergente da psicologia

coletiva, qual seja, o fato de que a aparência satisfaz

[...] uma das coisas especiais de Machado é que as aparências satisfazem [...] existem relações mais sofridas ou mais felizes com as aparências, mas estas não se suprimem [...] o normal do pensamento utópico é dar o presente como negativo. Ora, em Machado, o presente é cheio de prazeres, só que eles não têm sentido. Muitas delícias sempre, inaceitáveis, mas sempre delícias. É uma posição de um realismo tremendo (SCHWARZ, 1982, p. 342).

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No decorrer destas páginas, foram discutidas algumas crônicas que veiculam

um pressuposto subjacente, qual seja, a instauração de uma narrativa enquanto

processo de (des)conversação não só com o leitor mas principalmente com a

linguagem jornalística, à medida que o cronista elege a notícia como ponto de

partida para a crônica. Todavia, acaba transformando a informação dos jornais em

material para a construção de um enredo que lhe permite acessar um cotidiano que

está além do próprio jornal, que se aproxima de um olhar aos traços do caráter

nacional do povo brasileiro.

É oportuno, então, esclarecer a tese de que acessar outro cotidiano significa o

ato de estabelecer, entre os fatos apresentados nos jornais, vínculos despercebidos

e até então desconsiderados. Significa, também, a noção de que a tarefa do jornal, a

de mostrar o acontecimento ou informar o leitor, pode tornar-se território ambíguo

porque o cotidiano mostrado pelo cronista é movediço e dissimulado.

O leitor é sutilmente convidado a abandonar o que está fixado pelo jornal e

adentrar no que vem sendo projetado por meio da imaginação e do humor do

cronista. Assim sendo, observemos outra crônica, a de 26 de novembro de 1893, na

qual o cronista, apesar de mostrar-se exausto com a realidade, encontra no jornal

florianista, O Tempo, um telegrama que servirá de mote para a construção da

própria crônica. Analisemo-la.

3.6 Crônica de 26 de Novembro de 1893

Tudo isto cansa, tudo isto exaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul ou embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, o burro que puxa o bonde, o bonde que leva a gente, a gente que fala ou cala, é tudo a mesma coisa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este vende, aquele compra, aquele outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopra ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Tudo isto cansa, tudo isto exaure. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 335).

Recordemos um procedimento reconhecido como formador do texto

machadiano que é a arte de o narrador flexibilizar posições, em que as ideias são

abandonadas umas pelas outras, sem a necessidade de ater-se a uma verdade

absoluta. Antes, chega-se a tal ponto em que não se identifica claramente se

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[...] o nada machadiano pode ser a insignificância diante do homem [...] pode ser o nada de Eclesiastes, da volta ao pó [...] pode ser a nulidade da razão diante das exigências do inconsciente cultural de extrema profundidade. Agora, não é uma posição definida. Essa é uma realidade. (SCHWARZ, 1982, p. 320).

O que há, pois, de fundamental a salientar é que o cronista em 15 de janeiro

de 1893 já lançara o projeto de recorrer ao Eclesiastes como referência para

enfrentar as adversidades da vida:

Onde há muitos bens, há muitos que os coma, diz o Eclesiastes, e eu não quero outro manual de sabedoria. Quando me afligirem os passos da vida, vou-me a esse velho livro para saber que tudo é vaidade. Quando ficar de boca aberta diante de um fato extraordinário, vou-me ainda a ele, para saber nada é novo debaixo do sol. (ASSIS, 1893 apud LOPES, 2001, p. 107).

Não foram poucos os estudiosos que se lançaram a mostrar o quanto o texto

machadiano ora recupera o Eclesiastes pela visão humorista do mundo ora como

pretexto para interpretações dos fatos sociais. Entre os autores, Coutinho e Sousa

(1940, p. 186):

Sabe-se que foram livros seus de cabeceira, sobretudo o Eclesiastes que ele muito cita e sobre o qual chega a deixar um sincero depoimento de admiração. No Eclesiastes há tudo para todos, afirma ele na Semana [...]. O grande livro bíblico [...] exerceu uma singular sedução sobre o espírito de Machado, que via nele uma suma das vaidades e misérias humanas, às quais ele era tão sensível.

A crônica de 26 de novembro (Anexo F) surge com a surpresa do cronista

diante dos fatos, em especial, em face da forte censura do período republicano, em

que O Jornal do Brasil, surgido em 1891, seria impedido de circular em primeiro de

outubro de 1893 por seu apoio à Revolta Armada. Naquele período, outras folhas

como a Cidade do Rio e a Gazeta de Notícias também foram fechadas pela pressão

florianista. A Gazeta de Notícias ficou suspensa por um mês.

A partir de 1891, vários foram os episódios envolvendo a Marinha: primeiro

contra a tentativa de golpe de Deodoro e, depois, em oposição ao continuísmo de

Floriano. Em 1893, o almirante Custódio José de Melo, senador da República e ex-

ministro da Marinha, rompeu com o governo de Floriano, declarando-o ilegítimo, e

deu início à Revolta Armada. Como o seu anti-Florianismo coincidia com o da

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Revolução Federalista no Sul, os dois movimentos acabaram fundindo-se na luta

contra Floriano. Porém, foram duramente sufocados pelas forças florianistas. Desse

modo, o autoritarismo prevaleceu nos conturbados primeiros anos de República.

Então, o cronista de 26 de novembro tem motivos para manter-se fiel ao

projeto que assumira em 15 de janeiro de 1893, o de ficar de boca aberta diante de

um fato extraordinário: “Vou-me a esse velho livro para saber que nada é novo

debaixo do sol”.

Havia uma guerra em novembro de 1893. Ocorria dura repressão militar.

Sobre esse fato, Gledson (1996) observa que a censura era tão violenta que na

tentativa desesperada de preencher as páginas dos diários, usava-se tudo: triviais

faits dívers, notícias estrangeiras, notícias velhas, folhetins antigos, tudo que

pudesse encher os jornais que já tinham sido reduzidos de tamanho. O cronista de

26 de novembro, de forma sutil, encontra um telegrama, em O Tempo, jornal que

apoiava Floriano e estava autorizado a publicar mais notícias.

À maneira de 11 de junho de 1893, em que o anúncio do aluguel das casacas

atiçou-lhe a imaginação, aqui, à beira da Revolta Armada, o cronista encontra no

jornal o mote para convidar o leitor a deixar o fardo da semana e adentrar em um

assunto mais ameno. Ao se referir ao anúncio, diz:

Imaginai com que alvoroço li (se não lestes também) esta notícia de uma de nossas folhas: “Na Grécia foi preso o Deputado Talis, e expediu-se ordem de prisão contra outros deputados, por fazerem parte de uma quadrilha de salteadores, que infesta a província de Tessália. Dou-me dez minutos de incredulidade para o caso de não haverdes lido a notícia; e, se vos acomodais da monotonia da vida, podeis clamar contra semelhante acumulação. Chamai Bárbara à velha Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 335).

Esta estratégia do cronista revela sua característica peculiar, a de estar com

um olho no jornal e outro no leitor. Isto revela também um forte compromisso

profissional, pois a crônica precisava ser escrita apesar das adversidades do

momento. Entre elas, a censura acompanhada de dura repressão militar

desencadeada pela força florianista. O cronista presenciava uma guerra em

novembro de 1893, abaixo de seus olhos, na própria baía de Guanabara, onde a

Marinha ainda mantinha sua posição rebelde, e ameaçava bombardear a cidade.

102

Assim sendo, compreende-se bem o cronista de 26 de novembro de 1893 se

a cada vez que ele afirmar algo, buscarmos uma afirmação oposta com a qual essa

afirmação se relaciona a fim de entrar em contato com resíduos do cotidiano até

então despercebido ou censurado pela força militar.

O espanto do cronista revela não só fina ironia, mas também uma possível

atitude de subversão ao cotidiano de terror e dura censura que buscava afirmação

através da coerção. É por isso que Gledson (2006, p. 233) observa:

Não creio que seja muito arriscado dizer que a afirmação é subversiva no contexto em que os próprios políticos se envolviam na violência, não só na baía, mas na repressão florianista em terra firme. No dia seguinte, Ferreira Araújo desfechou um editorial duríssimo contra o regime, e a Gazeta foi fechada durante um mês, recomeçando a ser publicada no dia 1 de janeiro de 1894.

A atitude do cronista é irônica porque usa o enredo dos salteadores da

Tessália como pretexto para mostrar sua reação amargurada com a prática política

que destruía qualquer esperança de democracia. A ironia manifesta-se por meio de

um movimento de voltar-se contra a própria enunciação. A mesma enunciação serve

para dizer algo sobre os salteadores de Tessália e, simultaneamente, para trazer

outro discurso. Isto porque os salteadores da Tessália não são sinônimos de orgulho

do cronista. Antes, tornam-se estratégia para fustigar uma prática constante dos

responsáveis pela preservação do ambiente democrático.

É uma crônica que surge dissimulada, mas com coerência absoluta.

Conforme Gledson (2006), no contexto tinha grau de significado, pois surgia

carregada da fina ironia ao contexto político, o qual estava alheio aos interesses

nacionais.

É difícil não chegar à conclusão de que o cronista sentia necessidade de

questionar a base dos mecanismos de dominação, a base da versão oficial dos

acontecimentos. Desse modo, questionar, sobretudo, os caminhos por que a

República passava, pois o povo estava em segundo plano e ameaçado em face do

militarismo crescente.

Destarte, percebe-se na estratégia do cronista de 26 de novembro de 1893

não é só o pessimismo diante da opressão política, mas principalmente o tom

dubitativo, representado por meio de uma escrita desconfiada que, de certa forma,

opõe-se ao engodo dos jornais da época, sobretudo o jornal florianista O Tempo.

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Esta característica reafirma o propósito desta pesquisa, sobretudo, o de evidenciar o

perfil do cronista, a saber, ser no jornal um artista cuja especificidade é a de nunca

dizer, linearmente, à superfície do texto, aquilo que, de fato, pensa; mas, antes, tudo

o que diz é mediado por uma forma, em que se percebe o uso de sentenças a fim de

dar sentido a outro contexto até então desconsiderado.

Prevalece, igualmente, na crônica de 26 de novembro de 1893, outro

procedimento formador do texto machadiano, que nos serve também para

aprofundarmos a análise do papel do cronista como construtor de uma estratégia de

conversação: a permanência das reflexões metalinguísticas acerca da prática da

crônica e do ofício do cronista. Anteriormente, em crônica de 15 de setembro de

1862, ao se dirigir à pena do cronista, encontramos a seguinte reflexão:

O pugilato das ideias é muito pior que o das ruas; tu és franzina, retrai-te e fecha-te no círculo dos teus deveres, quando couber a tua vez de escrever crônicas. Sê entusiasta para o gênio, cordial para o talento, desdenhosa para a nulidade, justiceira sempre, tudo isso com aquelas meias tintas tão necessárias aos melhores efeitos da pintura. (ASSIS, 1862 apud LOPES, 2001, p. 89).

Em 1877, o cronista nas Notas Semanais, fala sobre a arte de iniciar a crônica

e oferece pistas sobre o ofício do cronista, vejamos:

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que Calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glacê est rompue; está começada a Crônica. (ASSIS, 1877 apud PAIXÃO,1994, p. 13).

Na série Bons Dias, em crônica de primeiro de janeiro de 1877, ainda sobre a

origem da crônica, encontramo-lo assim:

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que é coletânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais

104

fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica. (ASSIS, 1877 apud PAIXÃO, 1994, p. 13).

Em crônica de 14 de julho de 1878, o cronista mostra-se perplexo com a

crônica:

Que sabes tu, frívola dama, dos problemas sociais, das teses políticas, do regime das coisas deste mundo? Nada; e tanto pior se soubesse alguma coisa, porque tu não és, não foste, nunca serás o jantar suculento e farto; tu és a castanha gelada, a laranja, o cálice de chartreuse, uma coisa leve, para adoçar a boca e rebater o jantar. (ASSIS, 1878 apud LOPES, 2001, p. 90).

Ao se referir ao ofício do cronista, em crônica de 25 agosto de 1878,

compara-o ao cachimbo dos turcos,

Há outro ponto em que o cronista se parece com os turcos; é em fumar quietamente o cachimbo do seu fatalismo. O cronista não tem cargo de almas, não evangeliza, não adverte, não endireita os tortos do mundo; é um mero espectador, as mais das vezes pacato, cuja bonomia tem o passo tardo dos homens do harém. (ASSIS, 1878 apud LOPES, 2001, p. 90).

Na crônica de 26 de novembro de 1893, com o intuito de acrescentar humor a

sua escrita e à tarefa dos jornais de lidar com o passado, o cronista acaba por tecer

uma reflexão sobre o próprio ofício:

A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia por dia, até o sétimo em que o Senhor descansou. O meu velho colega bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão o sentimento de caducidade da obra. (ASSIS, 1893 apud GLEDSON, 1996, p. 334).

Voltará em crônica de 6 de janeiro de 1895 a tecer considerações, recheadas

de humor, sobre o cronista do séculos XX:

Que inveja que eu tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX! Que belas cousas que ele há de dizer, erguendo-se na ponta dos pés, para crescer com o assunto, todo auroras e folhas, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo, cousa que não trará consigo o século XX, um século que se respeitará, que amará os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ciência, que é o ofício dos pacíficos. (ASSIS, 1895 apud FERREIRA, 1959, p. 265).

105

Observemos Carlos Drummond de Andrade, como exemplo de um poeta e,

ao mesmo tempo, cronista das colunas jornalísticas do século XX. Sua preocupação

também será a de estabelecer, entre os fatos postos nos jornais, vínculos até então

pouco percebidos. Ele procurava levar o leitor aos problemas da época, os quais

escapavam ao pré-estabelecido e ao próprio jornal.

Será o próprio Drummond que, em 1999, mostrar-se-á atento ao ofício do

cronista machadiano, e, como cronista do século XX, oferecerá um diálogo com o

cronista de 6 de janeiro de 1895:

As crônicas escritas há mais de cem anos, por um cidadão chamado Machado de Assis estão hoje vivas como naquele tempo. Os acontecimentos perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu, porque ela traduz uma visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva da realidade, que o acontecimento fica valendo pela interpretação que Machado de Assis deu. (ANDRADE, 1999, p. 13).

Constatamos, no decorrer destas crônicas, que a estratégia do cronista,

sobretudo a de recolher as notícias dispersas e atribuir-lhes significação, torna-se

uma forma de perpetuar o ofício do cronista, pois se de um lado os acontecimentos

perdem a atualidade, de outro, a estratégia de conversação alcança leitores dos dias

atuais. Tal estratégia também abriu-nos a possibilidade de percebê-lo como

intérprete das mutações que deram nova fisionomia à sociedade brasileira. Como

consciência poética da atualidade ao ser construtor de uma estratégia de

conversação, na qual prevalece a interrupção como meio acessar resíduos de um

cotidiano mais leve, menos rigoroso, mas que dialogam com os traços do

comportamento do homem brasileiro.

O que nos resta, enfim, como destaque destas crônicas evocadas,

especialmente a de 26 de novembro de 1893, como forma de garantir o objetivo

desta pesquisa, é a noção de que Machado foi um escritor empenhado, intérprete

das mutações sociais. Um autor com quem conversamos cada vez que lhe lemos as

crônicas e, sobretudo, um cronista que luta para se livrar da obrigatoriedade de

retratar os fatos graves postos nos jornais, e, ao mesmo tempo, manter um

compromisso notável com o leitor. É uma estratégia que traz lição para nossos dias,

representada na comovente combinação de sentido e dever profissional, pois a

crônica precisava ser escrita apesar de toda a censura e repressão do período.

106

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação teve seus objetivos alcançados, pois apontamos a estratégia

do cronista de recolher as notícias dispersas e atribuir-lhes significação como forma

de perpetuar seu ofício. Observamos, igualmente, que elegeu o jornal como ponto

de partida que lhe permitiu acessar uma discussão que se prolonga para além das

páginas do jornal. Sua particularidade esteve na arte de captar a dinâmica do

funcionamento da sociedade, dominando as miudezas da rua, aquilo que nem

sempre aparecia à superfície do texto jornalístico.

Constatamos que o cronista transformou-se no construtor de uma escrita

marcada pela arte da conversação, em que um assunto se move com facilidade de

um para o outro. A interrupção revelou-se numa arte de transições, em que um

assunto era desprezado pelo outro sem uma ordem aparente, mas que todos juntos

acabavam produzindo um significado inesperado.

Tornou-se, simultaneamente, visível o cronista como artífice de uma escrita

marcada pela arte da dissimulação. Ao tomar uma notícia como ponto de partida,

permitia que dela se depreendesse outro cotidiano, voltado, por exemplo, a ironizar

os caminhos do progresso, as contradições sociais e as formas autoritárias do

poder, capazes de ameaçar as esperanças da democracia e pôr em risco a unidade

da nação.

Dessa forma, apesar de refletirem temas do cotidiano, as crônicas não são

necessariamente ditadas pelos acontecimentos do momento. Isso nos deu

possibilidade para argumentar que o cronista possuía algo a dizer que transcendia

os limites de retratar a semana.

Verificamos, então, que a estratégia do cronista foi a de valer-se do fato

veiculado pelo jornal, mas, abruptamente, deslocá-lo de seu contexto imediato. Este

desvio lhe permite focalizar ora os traços do comportamento nacional, ora o

cotidiano revelado, de modo especial, no ajuntamento da rua, ora as disparidades da

vida comum. Tal interrupção permitiu-lhe atribuir à crônica o papel de protagonista

no espaço jornalístico.

As crônicas analisadas nos possibilitaram maior compreensão da estratégia

do cronista de A Semana, principalmente a de estabelecer com a linguagem

jornalística uma espécie de jogo, na medida em que acessa um cotidiano distante do

107

foco jornalístico. Tal jogo se realizou através do movimento paradoxal em que se

afasta do jornal, e, ao mesmo tempo, conservando-se diante dele, atribui-lhe outro

tom. Desse modo, sempre daquilo que aparece no jornal, surge, simultaneamente,

um resíduo que é dado pelo cronista.

Essa espécie de jogo com a linguagem jornalística pôde ser entendida

também porque a crônica machadiana se constituiu como narrativa autônoma, capaz

de reunir linguagens diversas que ultrapassavam os referenciais do jornal.

Porque analisamos aspectos do cronista Machado de Assis, na fronteira entre

o jornal e a ficção, podemos afirmar que a crônica machadiana não é uma réplica da

história, nem a miniatura histórica.

Neste sentido, a pesquisa fundamentou-nos a percepção de que o texto de

Machado nunca é gratuito, ou seja, mera forma de prolongar uma conversa. A

estratégia de conversação é empregada a fim de despertar no leitor um vislumbre e

esboçar uma forma de suportar os acontecimentos graves do cotidiano.

Podemos dizer, igualmente, que as crônicas selecionadas possuem o caráter

de ser um apelo, um aceno, um grito no espaço jornalístico. Uma forma encontrada

pelo cronista para despertar o leitor e mantê-lo vivo diante do peso do cotidiano.

Neste estudo, melhor compreendemos a noção de que, apesar de a crônica

estar comprometida com um instante fugaz, existe a estratégia do cronista. Este, ao

ser chamado a retratar a semana, não deixou de lançar seu murmúrio, seu grito. É

justamente porque ele grita e por causa desse grito é que a efemeridade da crônica

pode permanecer. E permanecendo, prolonga a conversação com o leitor dos dias

atuais.

Esta estratégia também foi responsável por imprimir maturidade à própria

crônica, enquanto gênero jornalístico. Assim sendo, podemos dizer que ela chegou

ao jornal como agregada à maneira de José Dias; cresceu solta e volúvel como Brás

Cubas; enredou-se, pois, atraente e dissimulada, com bonitos olhos de ressaca,

bem ao estilo de Capitu.

E, antes de dar por concluída esta pesquisa, ousamos revelar que, apesar de

não ser academicamente pertinente justificar a escolha do corpus pelo critério do

prazer que ele nos provoca, é impossível não reconhecer ser também esse o critério

que sempre norteou o nosso olhar em direção ao cronista de A Semana.

Acreditamos, pois, que o prazer, o do texto, deve constituir-se na eterna busca do

pesquisador. Se selecionamos pouquíssimas crônicas é porque queríamos tomar as

108

precauções necessárias para penetrar neste terreno escorregadio e, conforme

Granja, ainda pouco conhecido que envolve a produção cronística de Machado de

Assis. Atentamo-nos, então, ao conselho de Granja de que por ora suspendêssemos

o passado, adiássemos o futuro e ficássemos atentos tão somente ao que nos disse

o próprio cronista em 1894:

Compilador do século XX, quando folheares a coleção da Gazeta de Notícias, no ano da graça de 1844, e deres com estas linhas, não vás adiante sem saber qual foi a minha observação. Não é que lhe atribua nem uma mina de ouro, nem grande mérito; mas há de ser agradável a meus manes saber que um homem de 1944 dá atenção a uma velha crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever em algum livro ou revista: “Um escritor do século XIX achou um caso de cor local que não parece destituído de interesse...”, se fizeres isso, podes acrescentar como o soldado da canção francesa: Du haut Du ciel – ta deméure derniére – Mon colonel – tu dois être content Do alto do céu – ou dos confins dos infernos – ele agradece (ASSIS, 1894 apud GRANJA, 2006, p. 399).

109

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115

ANEXO A – GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 24 DE ABRIL DE 1892

116

ANEXO B – GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 29 DE MAIO DE 1892

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ANEXO C – GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 29 DE JANEIRO DE 1893

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ANEXO D – CRÔNICA DE 12 DE MARÇO

Que cuidam que me ficou dos últimos acontecimentos políticos do Amazonas? Um verbo: desaclamar-se. Está em um dos telegramas do Pará e refere-se ao cidadão que, por algumas horas, estivera com o poder nas mãos. “Tendo em ofício participado a sua aclamação e marcado o prazo de 12 horas para a retirada do governador, desaclamou-se em seguida por outro ofício...”

Pode ser (tudo é possível) que o intuito da palavra fosse antes gracejar com a ação; mas as palavras, com os livros, têm os seus fados, e os desta serão prósperos. É uma porta aberta para as restituições políticas. Resignar, como abdicar, exprime a entrega de um poder legítimo, que o uso tornou pesado, ou os acontecimentos fizeram caduco. Mas, como se há de exprimir a restituição do poder que a aclamação de alguns entregou por horas a alguém? Desaclamar-se. Não vejo outro modo.

Mérimée confessou um dia que da história só dava apreço às anedotas. Eu nem às anedotas. Contento-me com palavras. Palavra brotada no calor do debate, ou composta por estudo, filha da necessidade, oriunda do amor ao requinte, obra do acaso, qualquer que seja a sua certidão de batismo, eis o que me interessa na história dos homens. Desta maneira fico abaixo do outro, que só curava de anedotas. Sim, meus amigos, nunca me vereis vencido por ninguém. Alta ou baixa que seja uma idéia, acreditei que tenho outra mais alta ou mais baixa. Assim o autor da Crônica de Carlos IX dava Tucídides por umas memórias autênticas de Aspásia ou de um escravo de Péricles. Eu dou as memórias deste escravo pela notícia da palavra que Péricles aplicava, em particular, aos cacetes e amoladores de seu tempo.

Que valem, por exemplo, todas as lutas do nosso velho parlamentarismo, em comparação com esta palavra: inverdade? Inverdade é o mesmo que mentira, mas mentira de luva de pelica. Vede bem a diferença. Mentira só, nua e crua, dada na bochecha, dói. Inverdade, embora dita com energia, não obriga a ir aos queixos da pessoa que a profere. — “Perdoe-me Vossa Excelentíssima, mas o que acaba de dizer é uma inverdade; nunca o presidente da Paraíba afirmou tal coisa.” — “Inverdade é a sua; desculpe-me que lhe diga em boa amizade; Vossa Excelentíssima neste negócio tem espalhado as maiores inverdades possíveis! para não ir mais longe, o crime atribuído ao redator do Imparcial...” — “São pontos de vista; peço a palavra.”

Parece que inexatidão bastava ao caso; mas é preciso atender ao uso das palavras. Não cansam só as línguas que as dizem; elas próprias gastam-se. Quando menos, adoecem. A anemia é um dos seus males freqüentes; o esfalfamento é outro. Só um longo repouso as pode restituir ao que eram, e torná-las prestáveis.

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Não achei a certidão de batismo da inverdade; pode ser até que nem se batizasse. Não nasceu do povo, isso creio. Entretanto, esta moça, pode ainda casar, conceber e aumentar a família do léxicon. Ouso até afirmar que há nela alguns sinais de pessoa que está de esperanças. E o filho é macho; e há de chamar-se inverdadeiro. Não se achará melhor eufemismo de mentiroso; é ainda mais doce que sua mãe, posto que seja feio de cara; mas quem vê cara, não vê corações.

Vi muitos outros viventes de igual condição, que mereceriam algumas linhas; mas o tempo urge, e fica para outra vez. Nem há só viventes separados; tenho visto irmãos, fileira de irmãos, saídos da mesma coxa ou do mesmo útero, com o nome de uma só família, apenas diferençado pelo sufixo, cuja significação não alcanço. Um exemplo, e despeço-me.

A chefia, e particularmente a chefia de polícia, é uma dona robusta, de grandes predicados e alto poder. Supus por muitos anos que era filha única do velho chefe; mas os tempos me foram mostrando que não. Tem irmãs, tem irmãos, tem chefação, pessoa de igual ou maior força, porque a desinência é mais enérgica. Tem chefança. Vi muitas vezes esta outra senhora, à frente da polícia ou de um partido, disputar às irmãs o domínio exclusivo, sem alcançar mais que comparti-lo com elas. Vi ainda a nobre chefatura, tão válida e tão ambiciosa como as outras. Dos irmãos só conheço o esbelto chefado, que, alegando o sexo, pretendeu sempre a chefança, a chefatura, a chefação ou a chefia da família.

Parece que, à semelhança dos filhos de Jacó, invejosos de José, que era particularmente amado do pai, os filhos e filhas do velho chefe, vendo a predileção deste pela linda chefia, cuidaram de a matar. Estavam prestes a fazê-lo, quando surgiu a idéia de a meter na cisterna, e dizê-la morta por uma fera, como na Escritura; mas a vinda dos mesmos israelitas, com os seus camelos, carregados de mirra e aromas...

Velha imaginação, onde vais tu, pelos caminhos do sonho? Deixa os camelos e a sua carga, deixa o Egito, fecha as asas, abre os olhos, desce; esta é a Rua do Ouvidor, onde não se mata José nem chefia; mas unicamente o tempo, esse bom e mau amigo, que não tem pai, nem mãe, nem irmãos, e domina todo este mundo, desde antes de Jacó até Deus sabe quando.

Para crônica, é pouco; mas para matar o tempo, sobra.

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ANEXO E - GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 11 DE JUNHO DE 1893

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ANEXO F - GAZETA DE NOTÍCIAS, DE 26 DE NOVEMBRO DE 1893

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AUTORIZAÇÃO PARA REPRODUÇÃO

Eu, Ernaldo Francisco dos Santos, autor da Dissertação/Tese intitulada "AS

CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS PUBLICADAS NA

GAZETA DE NOTÍCIAS – 1892 a 1893", apresentada como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Comunicação, em ....... de ....... de 2009, autorizo a

reprodução desta obra a partir do prazo abaixo estabelecido, desde que seja citada

a fonte.

( ) após 6 meses da defesa pública

( ) após 12 meses da defesa pública

Marília, ..(dia)...... de .....(mês)...... de ..(ano)......

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