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  • AS AVENTURAS DA AMBIVALNCIA

    (DA MODERNIDADE PS-MODERNIDADE SEGUNDO

    BAUMAN)

    ADVENTURES OF THE AMBIVALENCE

    (FROM THE MODERNITY TO THE POSTMODERNITY AFTER BAUMAN)

    Jos Caselas *

    [email protected]

    Resumo: Partindo da viso da modernidade e da ps-modernidade em Zygmunt Bauman, pretende-se articular o conceito de ambivalncia num contexto tico-poltico de modo a pensar a universalizao e a seculariza-o do saber que, na ps-modernidade, se guindou a um patamar que no possua anteriormente. De fato, com o advento da ps-modernidade j no possvel enveredar por uma noo de saber universal pastoral e proslito do Estado como no tempo dos philosophes das Luzes. Importa salientar de que modo o projeto da modernidade fracassou como sonho de engenharia social que redundou no totalitarismo e quais as categorias institudas na contemporaneidade. Palavras-Chave: Modernidade, ps-modernidade, ambivalncia, genocdio, secularizao.

    Abstract: This paper is indebted to Zygmunt Baumans views on modernity and postmodernity and aims to discuss the concept of ambivalence in an ethico-political context, assessing the ascendancy of secularized and uni-versal knowledge over the past century. In fact, with post-modernitys coming of age, it is no longer possible to embrace a notion of knowledge that may be sustained by the state in a pastoral and proselytizing fashion,

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    * Doutorando em Filosofia na Universidade de vora (Portugal).

    JOS CASELAS

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    as once did the philosophes of Englightenment. It is important to question how and why the project of modernity failed as a dream of social engineer-ing, degenerating into totalitarianism, and to foreground the categories favored by contemporaneity. Keywords: Modernity. Post-modernity. Ambivalence. Genocide. Seculariza-tion.

    O grande medo da vida moderna o medo da subdetermina-o, da falta de clareza, da incerteza por outras palavras, da ambivalncia.

    BAUMAN, Z., A vida fragmentada

    I Crtica da razo legislativa

    Assumindo uma perspectiva da modernidade inspirada em Kant, Michel Foucault traou para a filosofia a tarefa de se ocupar com o presente.1 De que maneira esta atitude repercutiu ou no em alguns empreendimentos de outros pensadores uma histria que est por fazer. Um dos que certamente seguiu nessa via, que implica retomar a provenincia da pesquisa, visto que o presente no se encontra suspenso do fio da Histria, foi Zygmunt Bauman com as suas anlises acerca da origem da modernidade e da ps-modernidade. A trilogia do seu perodo de viragem da dcada de 80 do sc. XX Legisladores e Intrpretes [1987], Modernidade e Holo-causto [1989] e Modernidade e Ambivalncia [1991]2 marcou to-

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    1 A questo da filosofia a questo deste presente que somos ns mes-

    mos. Foucault, M. Non au sexe roi. In: Dits et crits, vol. III, p. 266. Cf. igualmente Foucault, M. Quest-ce que les Lumires?. In: Dits et crits, vol. IV, p. 562.

    2 Para o leitor brasileiro existem vrias obras de Bauman traduzidas na

    editora Jorge Zahar Editor, nomeadamente os dois ltimos volumes des-ta trilogia.

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    das as reformulaes posteriores da sua obra, pelo que ser consi-derada neste artigo como o leitmotiv dos temas a abordar.

    A aventura, considerou Simmel, tem um princpio e um fim.3 A questo da aventura da ambivalncia posiciona-nos num centro aparentemente sem exterioridade ou periferia, um fim que, apesar de tudo, a possibilidade de um novo comeo visto que, para o aventureiro apenas conta o momento presente, uma continu-idade indefinida, da a afinidade entre o aventureiro e o artista. Ser moderno, para ele, estar numa situao de perptua moderniza-o, por consequncia, aberto a novos comeos. O aventureiro no tem passado e, por outro lado, o futuro no existe para ele: O a-ventureiro o exemplo mais forte do ser anhistrico do homem, do ser presente.4 Para simplificar poderamos dizer que Bauman rela-tou o destino da modernidade como uma hiptese de eliminar a ambivalncia/incerteza, ao passo que a ps-modernidade o modo de reintegr-la (de viver com o assombro da ambivalncia), mas isto nada diz sobre o fluxo vital de um conceito que se imbrica em todas as utopias enquanto sonhos de uma sociedade perfeita.

    A modernidade, definida nos termos do pensamento de Zygmunt Bauman indiscernvel da poca das Luzes, esse perodo em que o apogeu da Razo foi assumido pelos intelectuais e pela ideologia ao servio do Estado. O que levou edificao desse grupo de filsofos que se autonomizou por meio das ideias e de uma co-munidade de discusso? Fazendo a genealogia dos intelectuais, Bauman argumenta que a poca das Luzes ergueu o legisla-dor/filsofo/intelectual em plena modernidade. Por outro lado, a modernidade no apenas o perodo de secularizao, mas do apa-recimento do Estado-nao preocupado com a vigilncia do seu territrio.

    Os philosophes das Luzes formaram um grupo autnomo de intelectuais modernos que pugnou por uma utopia, aliada a um

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    3 Simmel, G. Philosophie de la modernit, p. 218. 4 Idem, p. 219.

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    dispositivo de poder/saber que contrariava a hierarquia eclesistica e a cultura popular, rumo a uma nova antropologia que advogava que o homem e a realidade humana eram capazes de conhecer o segredo oculto da Natureza. A educao do povo, a cruzada cultural teve como mbil a substituio de um poder pastoral da Igreja por um poder pastoral e proslito do Estado.5 esse o sentido da secu-larizao levada a cabo pelos filsofos. Foram os intelectuais que tomaram essa tarefa a seu cargo; todo o excedente do poder foi colocado sob a vigilncia panptica de modo a apagar as diferenas quantitativas. A vigilncia unidirecional tem tendncia a apagar as diferenas individuais e a substituir uma uniformidade quantificvel variedade qualitativa.6

    O afastamento da contingncia e da ambivalncia apenas poderia ser vivido num contexto de auto-iluso (a auto-iluso da modernidade). O papel dos filsofos o de educar o povo, mas esta ideia de educao oculta uma regulao da sociedade, aplicada so-bretudo s classes perigosas, a populao e os errantes sem domi-clio fixo. A eroso da universalidade no perodo ps-moderno con-duz emancipao, definida como tolerncia s formas de vida al-ternativas, sem que tenhamos que as perseguir com uma cruzada

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    5 A noo de poder pastoral utilizada por Bauman claramente captada em

    Foucault, embora de modo enviesado visto que, ao contrrio daquele, Foucault no emprega a noo de poder pastoral do Estado. Para Fou-cault, as tcnicas do poder pastoral (o ascetismo e a individualizao) in-fluenciaram uma arte de governo a que chamou razo de Estado. Inclusi-vamente na origem do poder disciplinar encontramos essas tcnicas mo-nsticas que foram secularizadas e cujo sentido se inverteu em torno da razo governamental. Bauman retoma essa mesma noo aplicando-a ao Iluminismo enquanto fonte de uma disciplinarizao das classes vaga-bundas. Ambos os autores confluem ao atribuir a origem do Estado mo-derno a essas tcnicas pastorais que individualizam e constrangem polti-ca e culturalmente o sujeito, erguendo todo um saber discursivo das ci-ncias humanas.

    6 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity

    and intellectuals, p. 47.

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    cultural. Mas a que tolerncia aludimos aqui? o direito do Outro estranheza: O direito do Outro sua estranheza (strangerhood) a nica maneira pela qual o meu prprio direito pode expressar-se, estabelecer-se e defender-se.7

    A batalha pela ordem revelou-se extremamente onerosa, visto que redundou nas formas de genocdio. O papel do legislador joga-se sobretudo na interpretao do telos da histria, uma viso que pretende resgatar histria a ideia de racionalizao progressi-va e de conquista com o consequente afastamento do preconceito e do irracional, do pulsional. Tudo o que recai fora do desenvolvimen-to normal da ocidentalizao seria o resduo da histria, o lastro da superstio e da ausncia de esprito crtico que resistiu passa-gem das Luzes.

    A modernidade foi incapaz de exorcizar os seus demnios interiores a promessa da universalizao dos philosophes e da sua rpublique des lettres. O seu modelo de reproduo social foi o da discusso, o consenso e a ideologia ( maneira de Destutt de Tracy). Para que os philosophes se tornassem uma presena persistente, formando a rpublique des lettres, foram determinantes algumas condies:

    1) A situao de maturidade da monarquia absoluta, apre-sentando a sua fora e a sua fragilidade, passvel de uma inverso revolucionria; 2) O estado de decomposio da antiga classe diri-gente, a nobreza; 3) A nobreza perdeu a sua importncia poltica ainda antes que um novo movimento social tomasse o seu lugar; 4) Os philosophes no possuam um estatuto tradicional; 5) Manti-nham uma comunicao densa, uma abundante correspondncia, a sua prpria corte papal em casa de Voltaire. Eles formavam um grupo autnomo que fazia opinio, escrita, discursos e linguagem em geral, um lao social que permitia desembaraar-se de todos os laos sociais; 6) O estabelecimento de uma rpublique des lettres no momento oportuno a fim de dotar o poder de meios de organi-

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    7 Bauman, Z. Modernity and Ambivalence, p. 236.

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    zao e gesto, ou seja, de um saber de especialistas.8 A repblica das letras, no fundo, a participao dos filsofos que se unem a um Estado legislador e secularizado na tarefa de educar o povo.

    A sociognese operada pelos intelectuais sados das Luzes (embora o termo apenas fosse cunhado no incio do sc. XX), deveu-se certamente a uma nova configurao do poder, por meio da se-cularizao das tcnicas pastorais e proslitas do Estado, contra as classes perigosas, a massa informe, o mobile vulgus, que importava instruir, civilizar e policiar o termo cultura surge no sc. XVIII ligado formao do esprito e no ao trabalho agrcola. O modelo legis-lativo do papel do intelectual traduz-se pelo fato de decidir as con-dies nas quais a verdade e a arte podem ser reconhecidas en-quanto tais e aceites com autoridade.9

    A tecnologia disciplinar que nasce no sc. XVIII exige uma espacializao dos corpos, uma nova arquitetura, do hospital, da priso e da escola com vista a um novo arranjo essa arquitetura reorganiza os gestos e o tempo para uma repartio ordenada dos indivduos. A modernidade aqui convocada como princpio orde-nador e individualizador. Procedimentos disciplinares e segmentos temporais concorrem para uma sujeio individualizadora ofereci-dos vigilncia panptica. Como escreve Foucault: As disciplinas marcam o momento em que se efetua o que se poderia chamar a inverso do eixo poltico da individualizao,10 tendo como base o exame, tcnica descritiva de dominao que combina a tcnica do-cumental normalizadora e classificadora e o relato biogrfico, em tudo semelhante anamnese da proto-psiquiatria.

    Para Foucault, aquilo de que se trata no chamado progres-so das Luzes, no sc. XVIII, no a razo, mas o mltiplo combate

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    8 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity

    and intellectuals, p. 25-26. 9 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity

    and intellectuals, p. 196. 10

    Foucault, M. Surveiller et punir, p. 194.

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    dos saberes, utilizando processos de anexao, confiscao e rea-propriao dos saberes menores. Nessa luta, o Estado acaba por intervir com a finalidade de eliminar e desqualificar os pequenos saberes, normalizar e ajustar os outros, classificar e hierarquizar e, finalmente, operar uma centralizao. A tudo isto correspondeu uma srie de prticas, obras e instituies como a universidade, com o seu papel de constituio de uma comunidade cientfica e organi-zao de um consenso (uniformizao dos saberes e instaurao de uma comunicabilidade). A cincia precisamente o que emerge dessa disciplinarizao dos saberes.

    O sculo XVIII foi o sculo da disciplinarizao dos saberes, is-to , da organizao interna de cada saber como uma disci-plina, tendo, no seu prprio campo e simultaneamente, crit-rios de seleo que permitem afastar o falso saber, o no-saber, formas de normalizao e de homogeneizao dos contedos, formas de hierarquizao e, por fim, uma organi-zao interna de centralizao desses saberes em torno de uma espcie de axiomatizao de fato.

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    A Revoluo francesa teve uma influncia preponderante na edificao da sociedade regulada. O discurso das Luzes foi um momento apropriado para a Razo se opor ao obscurantismo pro-pondo a ideia de uma educao para todos e a criao do Homem Novo, conciliando a engenharia social com o proselitismo estatal. A educao torna-se a metfora da sociedade. O poder pastoral do Estado leva autolegitimao dos intelectuais legisladores. A escola ideal assenta numa austera disciplina e numa ativa vigilncia. A po-sio de Foucault face s Luzes e modernidade ambgua. Por um lado, evita nomear a Revoluo como uma trajetria para o progres-so, preferindo fazer no a genealogia da noo de modernidade mas da modernidade como questo, deslocando-a para um ethos capaz de dar conta da nossa experincia no que designou uma ontologia

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    11 Foucault, M. Il faut dfendre la Socit. Cours au Collge de France, p. 161-162.

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    de ns prprios, da nossa atualidade, isto , o cuidado de si como forma de resistncia sujeio das normas.

    No plano intelectual, a redefinio da ordem social impli-cou uma aniquilao das culturas espontneas ou populares, dessa sociabilidade densa pr-moderna com vista instaurao de uma ordem racional secularizada. [] a poca moderna definia-se a si prpria, antes de mais, como o reino da Razo e da racionalidade; consequentemente, todas as outras formas de vida eram tidas como destitudas das duas.12

    As teses de Bauman e Foucault convergem num ponto: a disciplinarizao da sociedade teve razes nas Luzes e influenciou mesmo a gnese dos Estados totalitrios ulteriores. Escreve Fou-cault: Afinal de contas, o nazismo , de fato, o desenvolvimento at ao paroxismo dos novos mecanismos de poder que haviam sido introduzidos desde o sculo XVIII.13 Por que motivo o anti-semitismo encontrou na modernidade terreno frtil, uma vez que a segregao que os tornou numa casta de prias, signo da judeofobi-a, existia havia sculos? Eles, a nao sem nacionalidade, encarna-vam a incompatibilidade do estranho. O nacionalismo e o Estado nacional esbarraram com o seu internacionalismo e transnacionali-dade endmicos.

    Eles eram o lado opaco de um mundo que lutava pela clari-dade, a ambiguidade de um mundo ansioso por certeza. [] O judeu conceitual foi, de fato, construdo como a viscosi-dade arquetpica do moderno sonho de ordem e clareza, como o inimigo de toda a ordem, velha, nova e, particular-mente, a ordem desejada.

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    12 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity and intellectuals, p. 111.

    13 Foucault, M. Il faut dfendre la Socit. Cours au Collge de France, p. 230-231.

    14 Bauman, Z. Modernity and the Holocaust, p. 56.

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    Encravados entre a pr-modernidade e a modernidade, os judeus acabaram vtimas de uma assimilao cuja histria foi uma longa compilao de mal-entendidos. Eles eram o totalmente outro, a encarnao da ambivalncia e da des-ordem. A obra Modernidade e Ambivalncia relata o combate entre a assimilao e a ambivaln-cia, um jogo de foras sempre mal sucedido, cujo desfecho foi a Soluo Final. O impacto nivelador das diferenas na modernidade encontrou no racismo um modo de desqualificar esses elementos estranhos, toda uma vasta categoria de seres humanos que no pde ser integrada na nova ordem racional, na sociedade ideal a-grupada por um sentimento vlkish. Esse racismo de Estado a ni-ca possibilidade de tirar a vida numa sociedade de normalizao biopoltica a partir de uma cesura biolgica. A eliminao do judeu degenerado, entregue medicalizao, permite o fortalecimento da raa mais sadia e pura.15

    Quando que o legislador se torna evanescente, a sua au-toridade contestada, varrendo as evidncias da modernidade, essa Era da certeza? A partir do momento em que as novas tecnologias do poder dispensam o carter legislativo e educador dos intelectu-ais, a demanda da certeza cessa; nesse caso, a ps-modernidade auto-caracteriza-se como o reino da incerteza permanente e irre-medivel, onde as formas de vida se tornam concorrentes, sem ou-tra pretenso do que as suas convenes histricas. Trata-se do abandono do sonho do absoluto e do entusiasmo legislativo, crian-

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    15 E pode-se compreender tambm por que o racismo se desenvolve nes-sas sociedades modernas que funcionam baseadas no modo do biopo-der; compreende-se por que o racismo vai irromper em certo nmero de pontos privilegiados, que so precisamente os pontos em que o direito morte necessariamente requerido (Foucault, M. Il faut dfendre la So-cit, p. 229). Para Bauman, as Luzes entronizaram a Razo e a Natureza os cientistas tornaram-se os seus sacerdotes numa aliana com vista a melhorar essa mesma natureza segundo planos de engenharia social. A medicina permitiria separar os elementos mrbidos a exterminar, sepa-rando-os dos elementos teis. (Cf. Bauman, Z. Modernity and the Holo-caust, p. 91 ss).

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    do-se um pluralismo das comunidades de sentido. Essa pluralizao de universos de discurso divergentes constitui especificamente a experincia ps-moderna.

    O legislador moderno transformou-se no intrprete ps-moderno, devido sociedade de consumo e ao recuo dos peritos para a sua esfera especializada, a partir da sepa-rao entre autoridade e verdade. Nesse caso, o intrprete ps-moderno dever aprender a viver com a ambivalncia que a modernidade tentou expurgar, sada-a como efeito secundrio irreversvel e destina-se a si prprio tarefa de comunicabilidade e traduo entre as vrias tradies. Es-creve Bauman a este respeito:

    Num contexto de pluralismo irreversvel, sendo im-provvel um consenso escala mundial sobre as vi-ses do mundo e os valores e estando todas as Wel-tanschauungen solidamente ancoradas nas suas res-pectivas tradies culturais (para ser mais exato, nas suas institucionalizaes autnomas de poder), a co-municao entre as tradies torna-se o problema principal do nosso tempo.

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    Mas podero estas tradies contemporneas e an-tagnicas comunicar entre si numa base de tolerncia, com o chamado multiculturalismo? Esta face liberal de tolerncia no nacionalista revelou-se afinal aportica e incapaz de abolir as desigualdades. Na verdade, o multiculturalismo liberal transforma as desigualdades em meras diferenas culturais essencializadas ou naturalizadas como tal. Porm, a postura ps-moderna de uma suposta tolerncia redunda na economia poltica da incerteza.17

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    16 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity and intellectuals, p. 143.

    17 Bauman, Z. Em busca da poltica, p. 175.

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    II O crepsculo da ambivalncia. Da utopia ao genocdio

    Como vimos atrs, Bauman inscreve a utopia totalitria no seio do Iluminismo. A racionalidade burocrtica foi um dos modos de lidar com a ambivalncia. Importa, por isso, rastrear de que for-ma o fez e os resultados obtidos. Bauman refere que a cultura mo-derna de tipo jardim. O que significa esta assero? Para ele, uma genealogia da modernidade inseparvel do projeto de construo de uma sociedade onde o intelecto e por isso, os intelectuais, de-sempenhassem um papel significativo. Nessa reconstruo geneal-gica as culturas espontneas e populares foram substitudas pelas culturas cultivadas para que os especialistas pudessem converter os corpos e as almas. O couteiro ou guarda-caa deu, assim, lugar cultura de jardim com vista redefinio da ordem social, o que acarretou uma nova tecnologia de poder que Foucault tinha desig-nado como disciplinas: O poder que preside modernidade (o po-der pastoral do Estado) modelado sobre o papel do jardineiro.18

    A viso de Bauman confessadamente tributria das teses de Adorno/Horkheimer (Dialctica da Aufklrung) com a sua crtica racionalidade instrumental. Ele prprio o confirma na abertura do seu livro Modernidade e Ambivalncia: Qualquer leitor do livro notar que o seu problema central est firmemente enraizado nas proposies formuladas primeiramente por Adorno e Horkheimer na sua crtica das Luzes (e, atravs delas, da civilizao moderna).19 Sem ter vivido pessoalmente a experincia do Holocausto, as descri-es da sua mulher, Janina, na sua obra Winter in the morning, onde fala da sua vivncia de judia no gueto de Varsvia, foram determi-nantes para o interesse de Bauman por essa temtica.

    O jardineiro o construtor das utopias, ao passo que o couteiro ou guarda-caa estava confinado ao territrio de um nobre.

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    18 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity and intellectuals, p. 52

    19 Bauman, Z. Modernity and Ambivalence, p. 17.

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    O jardineiro biopoltico visto que se ocupa das populaes para o seu projeto de engenharia social; o seu papel o de extirpar as er-vas daninhas, os que no so dignos de viver, a vida indigna. Sem a civilizao moderna e suas conquistas mais fundamentais, no teria havido Holocausto.20

    A perspectiva de jardinagem equivale busca de uma or-dem artificial e racionalmente construda, sustentada num tipo de ao a que Bauman cunhou de adiaforizao moral da ao, ou seja, uma ao individual cujo critrio moral neutro. Do que se trata da produo de uma distncia social/psicolgica propcia a uma crueldade modernizada de acordo com trs aspectos: 1) uma media-tizao onde o executante no v o estado final da ao o que se consegue pelo afastamento entre aquele que a desencadeou e os restantes agentes da cadeia operativa; 2) uma diviso horizontal e funcional do conjunto de tarefas (cada ator tem um trabalho espec-fico); 3) os alvos da ao no surgem aos olhos dos agentes como seres humanos completos, com responsabilidade moral ou como sujeitos ticos.21

    Em que sentido podemos afirmar que a modernidade criou condies para o Holocausto? evidente que sempre existiram ge-nocdios e pessoas cruis, mas a modernidade simplesmente inven-tou uma circunstncia em que os massacres pudessem ser realiza-dos por pessoas no cruis. Esta foi a banalizao do mal, na afirma-o controversa de Hannah Arendt. Na sua obra Modernidade e Holocausto, Bauman argumenta que os judeus estavam no caminho dos planos da sociedade ideal a construir e que esta apenas se divi-sava como possvel graas aos avanos da cincia moderna, a que se aliou uma forma de racismo que repelia o Outro que ameaava a unidade desse grupo nativo. Assim, o racismo indissocivel do projeto de engenharia social pensado pelos idelogos do nacional-socialismo como forma de extirpar as ervas daninhas. Como escreve

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    20 Bauman, Z. Modernity and the Holocaust, p. 87.

    21 Bauman, Z. A vida fragmentada, p. 200-201.

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    o autor: Por essas razes, a verso exterminadora que desenvolveu o anti-semitismo deve ser vista como um fenmeno totalmente mo-derno, isto , algo que s poderia ocorrer num estdio avanado de modernidade.22

    Os nazis conseguiram que a estratgia de massacre fosse apresentada s vtimas como um procedimento racional, isto , de acordo com uma racionalidade de autopreservao. Para isso conta-ram com a colaborao das vtimas, nomeadamente os Conselhos Judeus que, no fundo, no tiveram alternativas (ningum lhes con-cedeu a possibilidade de escolher) seno separar a racionalidade do ator da racionalidade da ao, a elevao da racionalidade tcnica e a supresso da responsabilidade moral. O que permitiu o genocdio moderno foi um propsito, a viso de uma sociedade grandiosa de jardineiro. Essa ordem artificial de jardim necessitava de um padro tecnolgico-burocrtico. Ser, portanto, a burocracia, a administra-o burocrtica, com uma diviso hierrquica e funcional do traba-lho a substituir a responsabilidade moral pela tcnica. A desumani-zaro comea no ponto em que, graas ao distanciamento, os obje-tos visados pela operao burocrtica podem e so reduzidos a um conjunto de medidas quantitativas. [] A burocracia intrinseca-mente capaz de ao genocida.23 O que importa a diminuio dos custos, a eficincia, a centralidade, a soluo mais adequada, trans-formando os meios em fins. A cincia desempenhou um papel rele-vante no Holocausto devido ao seu culto da racionalidade, partici-pando nesse sonho de uma melhoria da realidade, incapaz de deter a mo do jardineiro com a sua racionalidade instrumental.

    No subcaptulo de Modernidade e Ambivalncia (Cincia, ordem racional, genocdio Cap. 1) Bauman argumenta que o con-ceito de Natureza, na sua acepo moderna, acabou por se opor ao conceito de humanidade, visto que a Natureza devia subordinar-se vontade e razo humanas. Ao contrrio dos grandes sistemas da

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    22 Bauman, Z. Modernity and the Holocaust, p. 73.

    23 Idem, p. 102, 106.

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    escolstica, o conhecimento da Natureza no necessita da assistn-cia sobrenatural; ele est acessvel lei natural (lex naturalis) dis-pensando a lex divina a razo no mais servidora da revelao. Como afirma Cassirer: O novo conceito da natureza [] caracteriza-se antes de mais por esta nova relao que se estabelece entre sen-sibilidade e entendimento, entre experincia e pensamento, entre mundus sensibilis e mundus intelligibilis.24

    O discurso da raa apoiou-se tambm nas cincias biom-dicas segundo uma lgica da razo legislativa. O primado da raciona-lizao que levou desumanizao no era apenas apangio do nazismo. As utopias socialistas e comunistas seguiram na senda des-se postulado: O comunismo moderno foi um discpulo super-receptivo e fiel da Idade da Razo e das Luzes e, provavelmente, o mais consistente dos seus herdeiros do ponto de vista intelectual.25

    III Fenomenologia do estranho

    O estranho o des-ordenado, a perdio da modernidade, ele est fora do lugar e sem casa; estigmatizado, a sua lealdade duvidosa. O estranho indefinvel e incongruente entrou no mun-do da vida sem ser convidado e sobre ele recai o horror da inde-terminao. Ele o portador e corporificao da incongruncia26 porque a sua presena incompatvel com as outras presenas. Com ele praticamos a arte do desencontro: A arte do desencontro (the art of mismeeting) primeiro e antes de mais nada um conjunto de tcnicas que servem para des-etificar (de-ethicalize) a relao com o Outro. Seu efeito geral uma negao do estranho como objeto moral e como sujeito moral.27

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    24 Cassirer, E. Filosofa de la Ilustracin, p. 55-56.

    25 Bauman, Z. Modernity and ambivalence, p. 36.

    26 Idem, p. 60.

    27 Idem, p. 63.

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    quando o Outro deixa de estar no nosso campo de visibi-lidade que se torna imperioso vigi-lo. O panptico na verso fou-caultiana tem a propriedade de assegurar a vigilncia na ausncia do guarda porque se trata de uma vigilncia internalizada que faz uma economia de meios. Isto significa que a vigilncia unidirecional, logo assimtrica, dispensa a coero, esbate as diferenas individuais e uniformiza as condutas. Segue-se da uma categorizao dos sujei-tos, uma prtica divisora. Uma outra consequncia de grande al-cance da assimetria da vigilncia a demanda de especialistas aos quais atribui a superviso.28 O papel do especialista o de modifi-car a conduta ao constatar a assimetria. Foucault percebeu bem e Bauman retoma a ideia, de que a vigilncia para ser eficaz precisa de ser contnua, sendo muito mais ambiciosa do que a antiga e difusa vigilncia do prncipe que irrompe de tempos a tempos para des-membrar o corpo do insurrecto.

    O estranho mina (undermine) a ordem espacial do mundo, afirma Bauman, da que seja um alvo para a territorialidade e para o nacionalismo. Nenhuma assimilao resgata os estranhos da sua indesejabilidade. Ele o outsider por excelncia. Os habitantes da cidade no logram escapar, aprofundam mesmo o fenmeno de estranheza, apesar dos condomnios que delimitam um dentro e um fora. Na cidade o estranho/estrangeiro est sempre ante portas. Como observou Simmel no seu diagnstico penetrante da moderni-dade, a cidade leva intensificao da vida nervosa e conduz a uma atitude de reserva: A atitude de esprito dos habitantes das grandes cidades, uns relativamente aos outros, pode ser designada de um ponto de vista formal como uma atitude de reserva.29 essa mes-ma cidade que apela mais ao uso do intelecto do que sensibilidade e s relaes afetivas, visto que a o indivduo est mais votado autoconservao. Desprovidas da tonalidade afetiva, as grandes cidades providenciam uma troca indiferente entre os sujeitos; o que

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    28 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity and intellectuals, p. 47.

    29 Simmel, G. Philosophie de la modernit, p. 175.

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    as determina uma mera economia monetria. O indivduo acaba por ser invadido pela cultura objetiva, perdendo a sua espiritualida-de, a sua delicadeza e idealismo caractersticas da sua forma de vida subjetiva. A atitude blas da metrpole deriva da monetarizao da economia; o dinheiro como critrio de troca leva antipatia e indi-ferena nas relaes humanas.

    A emergncia da civilidade deu-se na poca dos legislado-res, mas agora ela uma mscara para a sociabilidade quando os estranhos se encontram na cidade. Se a vida moderna urbana, na cidade as pessoas so superfcies, comunidades sonhadas que vo emergir na ps-modernidade como sucedneos de uma comunidade por fabricar.

    A passagem da ambivalncia da esfera pblica para a pri-vada redundou no que Bauman designa a privatizao da ambiva-lncia. Em que consiste? Como aprender a viver com a ambivaln-cia? Significa que devemos enfrentar sozinhos as dificuldades sist-micas transformando-as em questes individuais.

    Na ausncia de uma legitimao sistmica, o mercado vem definir a individualizao das formas de vida ligando-as mercadori-a. O percurso do estranho , assim, traado em Legisladores e Intr-pretes desde esse povo annimo que devia ser instrudo, at aos novos pobres, os consumidores deficientes (flawed consumers) ou os no-consumidores atuais. O que aconteceu entretanto ao projeto da modernidade? Escreve Bauman. Na sua histria real, distinta do seu projeto de origem, a modernidade subordinou a autonomia individual e a tolerncia democrtica, ao mesmo tempo que promo-via os pr-requisitos funcionais da razo instrumental da indstria e da produo de mercadorias.30 De capitalista puritano do perodo fordiano, do capitalismo duro da fbrica de estrutura piramidal e rgida, a consumidor deficiente, o estranho tornou-se o aptrida, o refugiado.

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    30 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity and intellectuals, p.192.

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    Num interessante estudo sobre a mentalidade do capita-lismo tardio, A Cultura do Novo Capitalismo (2006), Richard Sennett demonstra que o desmantelamento da velha estrutura burocrtica da viso weberiana trouxe agora novas consequncias sociais e e-mocionais para um indivduo instvel e fragmentado, nomeadamen-te ao nvel de trs dficits sociais: fraca lealdade institucional, dimi-nuio da confiana informal e enfraquecimento do conhecimento institucional. O problema que o modelo capitalista em plena crise de legitimidade, com a separao entre o poder e a autoridade, est sendo aplicado ao sector pblico. As identidades laborais esbate-ram-se diante da precariedade, com o aparecimento dos McJobs, a tica protestante da satisfao diferida desapareceu, o risco con-verteu-se no valor dominante. Com a eroso do capitalismo social a desigualdade aumentou e com ela o espectro da inutilidade. Trs foras moldam o espectro da inutilidade como ameaa moderna: a oferta mundial do trabalho, a automatizao e a gesto do envelhe-cimento.31 Esse espectro da inutilidade cruza-se com o medo dos estrangeiros, com o preconceito racial ou tnico. A ambiguidade da experincia da cidade moderna reemerge na ambivalncia ps-moderna do estranho/estrangeiro.32

    O corpo do indivduo moderno que estava entregue vigi-lncia panptica, era um corpo igualmente sitiado. A construo da sociedade perfeita necessita de sistemas de excluso destinados a des-ambivalentizar a ambivalncia condensando-a ou focando-a sobre um objeto evidente e tangvel e queimar depois a ambiva-lncia em efgie.33 Embora Bauman se tenha fixado no judeu como exemplo extremo de ambivalncia, o estranho por excelncia o louco; sobre ele recaram todos os sistemas de excluso.34 Numa

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    31 Sennett, R. A Cultura do novo capitalismo, p. 65.

    32 Bauman, Z. A vida fragmentada, p. 145.

    33 Idem, p. 219.

    34 Para o tema da priso como fbrica de excluso e imobilidade ver Bau-man, Z. Le cot humain de la mondialisation, p. 171.

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    conferncia proferida em Tquio em 1978, Foucault referiu-se ao qudruplo sistema de excluso do louco: excludo do trabalho, da famlia, do discurso e do jogo. Escreve Foucault: A partir do sc. XVIII, a presena do louco, no interior da famlia, no interior da cida-de, na sociedade, tornou-se literalmente intolervel.35 Tratava-se de desalojar do seio de um capitalismo florescente e em via de se organizar econmica e socialmente, o ocioso, o desocupado. Esta massa de populao ociosa, indivduos associais, no poderia inte-grar o circuito de produo econmica. Com a Revoluo surgiu a presena das classes dangereuses, pessoas sem mestre, o mobile vulgus, a multido ignorante que suscitava a averso de DAlembert, dificilmente enquadrveis numa ordem previsvel e numa organiza-o racional. Para o louco a soluo encontrada foi um sistema de internamento, hospitalizao orgnica e funcional, destinado a um personagem novo que acabava de nascer: o doente mental. Pode-mos ainda considerar no universo foucaultiano outras modalidades de ambivalncia: o delinquente, o anormal, o onanista, o incorrig-vel, etc.

    Os dois tipos de corpos (moderno e ps-moderno) enfren-tam a inquietante estranheza do incerto, o medo do desvio, embora de maneiras diferentes (o primeiro coletivo, o segundo privatizado). O corpo moderno pode ser descrito como fornecedor de bens e o segundo, ps-moderno, como corpo consumidor, recoletor de pra-zeres ou receptor de sensaes. O corpo moderno empenhou-se na manuteno da sade, ao passo que o corpo que neste momento vivenciamos ocupa-se em coligir as sensaes sob a gide da plena forma, o que no menos ambguo. um corpo em estado de stio. A envergadura da tarefa, agravada a seguir pela sua ambivalncia intrnseca, alimenta uma mentalidade sitiada: eis o corpo, e em par-ticular a sua plena forma, ameaado por todos os lados.36

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    35 Foucault, M. La folie et la socit. In: Dits et crits, vol. III, p. 494.

    36 Bauman, Z. A vida fragmentada, p. 127.

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    Nas sociedades pr-modernas no se podia permanecer estranho durante largos perodos; acabava-se por ser domestica-dos ou expulso. Porm, nas cidades o estranho causador de ansi-edade e agressividade. Partilhar o espao com estranhos, viver na sua proximidade repugnante e impertinente, uma condio da qual os habitantes das cidades consideram difcil, talvez impossvel, escapar.37 A vida na cidade intrinsecamente ambgua. A cidade favorece a mixofobia do mesmo modo e ao mesmo tempo que a mixofilia. A vida urbana intrnseca e irreparavelmente ambivalen-te.38

    Como lidar com estranhos? As novas formas de subjetiva-o, parecendo escolhas livres dos indivduos, so, contudo, modali-dades de sujeio; o trabalho sobre si do corpo bio-politizado ins-creve-se, no fundo, numa norma subliminar que no o reconduz totalmente ao Estado mas a uma injuno de consumo liberal. Te-mos portanto o homo consumens como prtica de si sujeitadora. O corpo no est entregue a um sistema de totalizao face ao poder soberano que o expe morte (pelo menos nas democracias oci-dentais) num dispositivo foucaultiano que congrega elementos hete-rogneos, sendo um deles a vertente medicalizadora. O papel dos mdicos no se confina a uma assistncia estatal nem a um meca-nismo libertador; ele enquadra-se numa biologizao do sentido e da vida que produz uma discursividade privada (o indivduo levado a assumir os destinos da sua sade).

    O judeu o estranho por natureza, hostil e indesejvel, o estrangeiro no nosso meio, o estranho dentro devido dispo-ra, sua universal falta de lar. Os judeus eram uns esquisitos; uma entidade que desafiava a clareza cognitiva e a harmonia moral do universo.39 A misso civilizadora da modernidade no seu af uni-

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    37 Bauman, Z. Amor lquido. Sobre a fragilidade dos laos humanos, p. 136.

    38 Idem, p. 142.

    39 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity and intellectuals, p. 37.

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    formizador deixou os judeus de fora, vistos como agentes do caos e da desordem, minavam a prpria diferena entre nacionais e es-trangeiros.

    O processo civilizador redistribui a violncia, premeia uns e incapacita outros; no h atividade ordenadora sem a sua contra-partida de criao de refugo e de produo de ambivalncia, de impossibilidade de erradicao da contingncia. O estranho est encerrado numa estrutura aportica insolvel e o seu estatuto pare-ce ser a absoluta indeterminao. Do ponto de vista do espaamen-to social/cognitivo e do espaamento moral o estranho v-se desen-quadrado.

    No espao social mapeado cognitivamente, o estranho al-gum do qual sabemos pouco e do qual desejamos saber a-inda menos. No espao moral, o estranho algum que nos importa pouco e nos sentimos tentados a que nos importe ainda menos.

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    IV Os intelectuais: modo de usar

    Tudo o que durvel dissolve-se no ar: eis o lema da ps-modernidade segundo Bauman. Privados do seu agente histrico de transformao social (o proletariado), dispensados de uma interven-o utpica de engenharia social e sem o seu ascendente universal, os intelectuais ps-modernos no se interessam pelos novos pobres, os no consumidores, os desempregados e os refugiados. J no existe dspota esclarecido que busque o conselho dos filsofos e a meta-autoridade de validao, quer da arte, quer dos valores o mercado, que subsume a autonomia individual na produo de con-dies funcionais de uma razo instrumental dirigida produo de mercadorias.

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    40 Bauman, Z. tica posmoderna, p. 191.

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    Os intelectuais estiveram comprometidos com a elimina-o da ambivalncia e com a promoo de uma racionalidade uni-versalmente vlida, de uma ordem perfeita incontestada. Enquanto os poderes modernos continuaram a rebaixar, banir e expulsar o Outro, o diferente, o ambivalente, os intelectuais puderam contar com poderoso apoio sua autoridade de julgar e separar o verda-deiro do falso, o conhecimento da mera opinio.41 Aps uma auto-construo a ambivalncia privatizada, dissolve-se numa condio de universalidade extensvel a todos os contemporneos: agora, na ps-modernidade, todos temos que conviver com a ambivalncia e aprender a co-existir nessa condio. No domnio poltico, expurgar a ambivalncia equivale a segregar os estranhos. A tarefa da tica justamente o contrrio: assumir a responsabilidade pelo Outro co-mo estrutura primria e fundamental da subjetividade tal como a definiu Levinas.

    Um projeto de engenharia social (as utopias modernas so-nharam-no embora em modalidades diferenciadas, seja no Estado-nao, no socialismo, no nazismo e no comunismo) realiza-se com base em sistemas de excluso.

    Apesar de a ps-modernidade no apostar nos sistemas de excluso, como outrora a modernidade, incorporando uma diversi-dade no limitada, a sua propalada tolerncia frgil, sem uma soli-dariedade militante orientada por lutas concretas. A privatizao da ambivalncia conduziu a uma falta de crtica dos modelos sistmi-cos, mas a liberdade apenas a do consumidor (mercantilizao da felicidade). As ambies privatizadas predefinem a frustrao como um assunto igualmente privado, singularmente incapaz de se trans-formar em uma ofensa coletiva.42 Se quisermos recensear os valo-res ps-modernos tal como faz Bauman: a liberdade, a diversidade, a tolerncia, constatamos que a liberdade e a diversidade se cingem opo do consumo guiado pelo mercado e que a tolerncia pode

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    41 Bauman, Z. Modernity and ambivalence, p. 253.

    42 Idem, p. 262.

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    desembocar em isolamento e indiferena; esta ltima no gera a solidariedade mas uma forma de dominao social fragmentada e apoiada num discurso tecnolgico. A condio ps-moderna trans-forma os reprimidos em consumidores frustrados diante da impo-tncia do Estado protetor que colapsou.

    Com o esbatimento da figura do intelectual enquanto le-gislador universal, que papel lhe resta desempenhar numa socieda-de ps-industrial ou da modernidade lquida (termo que Bauman elege em lugar do que vinha designando como ps-modernidade)? Poder ele reavivar a desejabilidade da revoluo, esse entusiasmo annimo que se apoderou das gentes no acontecimento histrico-mtico fundador de 1789?

    notrio em Michel Foucault certo ocaso do intelectual universal, aquele que seria capaz de iluminar e apontar caminhos. Para ele o intelectual portador de valores universais estava com-prometido com uma verdade que se reclamava de uma postura jurdica (a lei justa), ao passo que o intelectual especfico deve ques-tionar os efeitos de poder que se jogam em torno da verdade. Num texto de 1976, A funo poltica do intelectual escreve: preciso pensar os problemas polticos dos intelectuais no em termos de cincia/ideologia, mas em termos de verdade/poder.43 Impe-se portanto a figura do intelectual especfico, o que interroga as polticas de verdade no sentido de se confrontar com as formas de dominao. O intelectual especfico no prope um programa uni-versal para a sociedade, mas aponta os efeitos dos abusos do poder.

    Bauman, por seu turno, contra as reaes que pretendem reabilitar de modo confuso as novas filosofias da histria universal, concede aos intelectuais o papel de intrpretes num contexto de pluralismo, uma possibilidade de comunicao entre as vrias tradi-es, uma arte da conversao civilizada. Mas no ser suficiente-mente vaga esta aluso que prope uma conversao amigvel en-tre as vrias comunidades de sentido, afastando j o consenso e a

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    43 Foucault, M. Dits et crits, vol. III, p. 113.

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    validade universal? Bauman alude ainda a uma possibilidade de redeno discursiva, isto , o fato de expor os limites da razo ins-trumental e, desse modo, restaurar a autonomia da comunicao humana e da criao de sentidos guiados pela razo prtica.44 O papel do intelectual no o de decidir sobre a verdade, mas o de separar os valores primordiais da autonomia, perfeio individual e autenticidade das interpretaes foradas do mercado.

    Perante um sistema fragmentado de valores, o Estado concentra os seus esforos em prol da perpetuao das foras do mercado. A irremedivel fragmentao dos saberes est votada a uma individualizao radical que transparece em termos de consu-mo.

    Num dilogo com Keith Tester, Conversao 3: The Ambi-valence of Modernity, Bauman sugere que o projeto da moderni-dade deve ser sujeito a uma crtica ilimitada, de tal modo que no pode ser visto como inacabado mas como inacabvel (unfinishable) e que essa a essncia da Era moderna. O prefixo post no deve, assim, ser encarado como o fim das tentativas de modernizao, da ambio de um plano de ordem total (total-order-designing). Mas poder esta conscincia de uma ordem social prosseguir nos termos de uma des-identificao entre o ordenamento e a ambiguidade ou ambivalncia? E o que fazer dos que, estando dentro continuam no pertencendo ao interior (a ambiguidade da condio humana), lan-ados na posio de eternos perdedores, que tm que beber no rio da ambivalncia?45 Apesar de superados os tempos das cruzadas culturais e das presses assimilatrias, a ambivalncia no desapa-receu para os que mantm a repulsa pelos imigrantes e aceitam as limpezas tnicas, que no se conciliam com a incerteza e com a in-segurana.

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    44 Bauman, Z. Legislators and Interpreters. On modernity, post-modernity and intellectuals, p. 191.

    45 Bauman, Z.; Tester, K. Conversations with Zygmunt Bauman, p. 82.

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    Uma ltima questo subsiste: ser que a modernidade ca-pitulou diante do triunfo da ambivalncia, ou ainda resta alguma possibilidade de reerguer o seu projeto noutras bases, prosseguindo um trabalho ainda inacabado? Se o projeto da modernidade fracas-sou isso no significa que no exista um potencial e uma promessa a cumprir.

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