Artigo Revista Estudos Linguísticos 2007

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A “arte de pontuar” no século XVI e os Tratados de Fernão Cardim Maria Filomena Gonçalves Departamento de Linguística e Literaturas - Universidade de Évora Apartado 94, 7002-554 Évora - Portugal [email protected] Abstract. The aim of this paper is to analyse the punctuation and its function in the 16 th . century writing, supported by the transcripts known as Tratados da Terra e Gente do Brasil ascribed to Father Fernão Cardim (1548?-1625). Thus the punctuation inscribed in the “cardinian” corpus is compared with both the theory of the grammarians on the “art of punctuating” and the practice of the press of the time, which will allow us to draw the points of disagreement between the theories of the period and the practice present in Cardim’s Tratados. Keywords. Punctuation; writing; 16 th century; theories; practices. Resumo. Neste trabalho propõe-se uma análise da pontuação e a sua função na escrita quinhentista, com base nos apógrafos conhecidos como Tratados da Terra e Gente do Brasil, atribuídos ao Pe. Fernão Cardim (1548?-1625). Para isso, a pontuação registada no corpus cardiniano é confrontada quer com a teoria dos gramáticos a respeito da “arte de pontuar”, quer com a prática da imprensa daquele tempo, o que nos permitirá descrever os pontos de discordância entre as teorias da época e a prática presente nos Tratados de Cardim. Palavras-chave. Pontuação; escrita; século XVI; teorias; práticas. Estudos Lingüísticos XXXVI(2), maio-agosto, 2007. p. 3 / 21

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a arte de pontuar no século XVI

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  • A arte de pontuar no sculo XVI e os Tratados de

    Ferno Cardim Maria Filomena Gonalves

    Departamento de Lingustica e Literaturas - Universidade de vora Apartado 94, 7002-554 vora - Portugal

    [email protected]

    Abstract. The aim of this paper is to analyse the punctuation and its function in the 16th. century writing, supported by the transcripts known as Tratados da Terra e Gente do Brasil ascribed to Father Ferno Cardim (1548?-1625). Thus the punctuation inscribed in the cardinian corpus is compared with both the theory of the grammarians on the art of punctuating and the practice of the press of the time, which will allow us to draw the points of disagreement between the theories of the period and the practice present in Cardims Tratados.

    Keywords. Punctuation; writing; 16th century; theories; practices.

    Resumo. Neste trabalho prope-se uma anlise da pontuao e a sua funo na escrita quinhentista, com base nos apgrafos conhecidos como Tratados da Terra e Gente do Brasil, atribudos ao Pe. Ferno Cardim (1548?-1625). Para isso, a pontuao registada no corpus cardiniano confrontada quer com a teoria dos gramticos a respeito da arte de pontuar, quer com a prtica da imprensa daquele tempo, o que nos permitir descrever os pontos de discordncia entre as teorias da poca e a prtica presente nos Tratados de Cardim.

    Palavras-chave. Pontuao; escrita; sculo XVI; teorias; prticas.

    Estudos Lingsticos XXXVI(2), maio-agosto, 2007. p. 3 / 21

  • PONTUAA. Sa pontos, virgulas, & certos sinaes, & notas, com que na escritura, & na impressa se distinguem as palavras, & se dividem as sentenas para facilitar aos Leytores a intelligencia.

    Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez e Latino.

    1. Prembulo Nos ltimos anos, as exigncias da crtica textual tm atrado a ateno de

    fillogos e de linguistas para as antigas prticas de escrita (Accioli, 2004; Megale: 2006). Embora seja verdade que o estudo da componente grafemtica, devido sua importncia na reconstruo do sistema fonolgico e suas realizaes, tem registado significativos avanos, no menos certo que a pontuao costuma ser tratada como aspecto menor no quadro das prticas grficas dos manuscritos. Se outros no houvesse, esse seria motivo suficiente para suscitar o interesse pela anlise de casos especficos que possam contribuir para a compreenso das prticas de escrita nos finais do sculo XVI, e, por conseguinte, para a adequada transcrio de manuscritos de acordo com o tipo de edio que se pretenda levar a cabo.

    Associados ao nome do Pe. Ferno Cardim, os apgrafos dos Tratados da Terra e Gente do Brasil anlise que se divide em trs partes: na 1 tecem-se consideraes sobre os pressupostos tericos da arte de pontuar, sendo para isso revisitada a doutrina de gramticos quinhentistas; na 2 parte, luz dos dados anteriores, aduzem-se exemplos da prtica presente no corpus cardiniano; por ltimo, tentar-se- demonstrar em que medida a pontuao registada naqueles manuscritos corresponde prescrio feita na poca.

    2. A arte de pontuar sabido que a pontuao sempre resistiu circunscrio normativa ou

    prescritiva, motivo por que no raro remetida para o terreno da variao individual ou estilstica prpria do registo escrito da lngua, ora dependente dos graus de competncia do escrevente, ora decorrente da aproximao oralidade. s bvias dificuldades de normalizao e de padronizao at hoje sentidas, sobretudo em contexto de ensino-aprendizagem, acresce a oralizao intencional como forma de plasmar na linearidade da escrita a espontnea e ininterrupta corrente do pensamento. Com efeito, ao prescindirem dos sinais de pontuao, marcas de descontinuidade ou de segmentao no enunciado grfico, muitos escritores contemporneos Saramago disso exemplo assumem, implicitamente, que pontuao corresponde j um 1 grau de interpretao textual. Assim, a reduo da pontuao sua mnima funcionalidade oferece o texto como desafio interpretativo que exige a cumplicidade e a cooperao do leitor, a quem cabe desbravar a sequncia textual, emprestando-lhe assim sentidos prprios.

    A essa tendncia de oralizao da escrita literria, que apenas afectar os consumidores dessa literatura, no se poder, contudo, assacar a responsabilidade das hesitaes experimentadas por aqueles ao terem de pontuar um texto, mas, sim, falta de treino em contexto escolar ou de exercitao ao longo da vida. A tudo isto soma-se,

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  • por outro lado, o facto de o estudo da pontuao no ter grande tradio entre ns portugueses e brasileiros , conforme denuncia a escassez de produo ensastica relativa ao assunto, tanto do ponto de vista sincrnico como do diacrnico. De facto, raros so os ttulos centrados especificamente na matria, valendo por isso a pena realar a tese de doutoramento de Carlota Paixo Rosa, que trata da Pontuao e sintaxe em impressos renascentistas (1994) e, ainda no Brasil, a tese de mestrado de Machado Filho (2004), sobre a pontuao em textos medievais. Na dcada de 50 do sculo passado j tinham vindo a lume algumas tentativas de anlise lingustica da pontuao segundo critrios lingusticos, de que so exemplo os estudos de Leite (1959) ou Rebelo (1957). Embora s acima referidas se possam juntar outras contribuies a respeito tanto da pontuao medieval (Martins 1986; Ferreira, 1986) como da pontuao moderna (Nogueira 1989), este gnero de trabalhos no fez carreira entre ns.

    Assunto controverso, a pontuao nunca foi matria consensual entre pedagogos, gramticos, fillogos, escritores e mesmo linguistas (Defays, 1998), existindo testemunhos da insegurana prescritiva por ela suscitada em vrias pocas, conforme aconteceu no primeiro quartel de Oitocentos, perodo em que se registou um sentimento de anarquia pontuacional, conforme salienta Antnio Gil Gomes, autor das Regras Elementares sobre a Pontuao, segunda parte da Orthographia impressas no Brasil em 1831 (cf. Anexo 1). Nelas tenta o autor regular os usos pontuacionais do seu tempo, fazendo jus ao ttulo da obra. Pouco depois, em 1838, no peridico O Panorama, o escritor romntico Alexandre Herculano vinha a terreiro para pr ordem em matria de pontuao em dois artigos que denunciam quanto o uso dos pontemas estaria ento sujeito a exageros e extragavncias. Mais prximo do final do sculo, Jos Feliciano e Castilho (1870) no faria melhor apreciao das prticas pontuacionais, consoante mostra no Tratado Elementar da Pontuao da Lngua Portuguesa. Ademais da inteno normativa que a elas presidiu, as obras acima mencionadas so exemplo de que volta da pontuao se constitua um gnero metalingustico autnomo da ortografia, prtica por que no sculo XVI j se enveredara, quer em Frana, quer em Itlia, pases em que cedo a pontuao viu a sua prtica ser objecto de prescrio por serem ento dos mais avanados no que arte impressria dizia respeito. Se isso mostra que a pontuao era vista como parte da normalizao grfica requerida pela converso do manuscrito em impresso, tambm explicar que os impressores italianos sejam responsveis pela doctrina puntuandi, vertida depois no vernculo como larte del puntar, assunto de que tratou o impressor Orazio Lombardelli, em 1585, num tratado sobre Larte del Puntar gli Scritti, com 255 pginas, nmero nada despiciendo para aquela poca (cf. Anexo 2). J antes, em 1540 ano da impresso da segunda gramtica portuguesa , o francs Etienne Dolet dera estampa em Lyon, cidade de grande tradio impressria, La maniere de bien traduire dune langue en aultre. De la punctuation de la langue franoyse. Associadas s casas de impresso ou escritas pelos prprios impressores, tais obras espelham que a criao de sinais de pontuao, depois de sculos de prtica manuscrita, passou para a alada das oficinas de impresso, cujos progressos se repercutiriam na prpria prtica manuscrita, num processo de interaco entre a letra de forma e a letra de mo. Inversamente, os primeiros impressos (incunbulos) tinham procurado reproduzir o manuscrito nas suas caractersticas formais e estticas. Prova cabal das relaes entre a imprensa e a escrita manual a inveno da letra aldina (hoje itlico), por Aldo Mancio (1449-1515), famoso impressor italiano que, coadjuvado

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  • pelo gravador Francesco Griffo, criou um caracter inclinado letra aldina , tambm conhecida como grifo, letra cursiva ou itlico.

    Antes da interveno dos impressores, pontuao cabia a funo de auxiliar da leitura em voz alta, embora at hoje se desconheam as relaes daquela com o campo prosdico da lngua do perodo medieval (Machado Filho, 2004). Devido s condies sociais e s prticas de leitura (Marquilhas, 2000), ler era um acto colectivo, em certo sentido um acto pblico, sobretudo quando se tratava da Bblia e de textos religiosos. Na Idade Mdia, o acto de ditar correspondia ao registo da fala de algum, tarefa confiada ao copista ou escriba. Naquele tempo, pontuao no eram alheias questes de economia do suporte, visto que tanto o pergaminho quanto depois o papel eram bens escassos e caros, motivo por que eram sucessivamente reutilizados. A economia de suporte e de tempo explicar em parte a proliferao de abreviaturas e de outros procedimentos (como as ligaduras) que igualmente cooperavam no desembarao e maior dbito da escrita, em especial quando se tinha de produzir vrias cpias de um mesmo documento.

    Do ponto de vista histrico, a pontuao remonta ao sistema de trs pontos dos Gregos ponto ao alto, ponto ao meio e ponto em baixo , correspondentes a outros tantos graus de pontuao, a saber: forte (plena distinctio), mdia (distinctio media) e fraca (subdistinctio). Para aumentar a legibilidade destes trs pontos, entre os sculos IX e XII, foram-lhes acrescentados alguns diacrticos como uma vrgula em baixo ou em cima < ; >, < >, < ! > , passando a ser designados como periodus (finitiva), colon e comma (Catach, 1994: 14-23). J no sculo XVI, com o contributo da famlia de impressores Mancio, aqueles sinais receberam as designaes de periodus < ; >, colum ponto em baixo < . > e comma < : >. Lefvre dEtaples (1529) adoptou essas designaes, embora o termo comma remetesse para uma vrgula < , >, no para < : >. Para Etienne Dolet (1540) colon < . > era a marca da pontuao forte, representada pelo ponto em baixo; o antigo periodus < ; > deixa de funcionar como marca de pargrafo e passa a ter funes semelhantes s do actual ponto e vrgula1; comma < : > correspondia pontuao mdia; o termo incisum ou vrgula < , > remetia para a pontuao fraca. Posto isto, a figura e o valor da pontuao forte ter-se-o fixado logo no sculo XVI, ao passo que a pontuao mdia estaria sujeita, at hoje, a maiores oscilaes, ora sendo assinalada por < : >, ora, por < ; >.

    Traduzidos embora por unidades formal e funcionalmente distintas das originais veja-se o caso do ponto e vrgula , os actuais pontemas reflectem os mesmos trs graus da primitiva pontuao, facto que traduz o papel hierarquizador dos segmentos grficos delimitados pelas unidades pontuacionais. De facto, na sua origem, a pontuao decorreu de trs ordens de necessidades: ajudar na leitura para distinguir unidades de sentido; cooperar no estabelecimento e tratamento do texto (assinalar aspectos visuais ou crticos); e auxiliar no canto ou na recitao cantada (sobretudo em textos litrgicos). Devido interveno dos impressores humanistas, que criaram novas unidades ou atriburam funes diferentes s antigas, parece inegvel que a moderna pontuao subsidiria, a vrios ttulos, da arte impressria.

    3. Pontuao na poca de Ferno Cardim Sem o flego terico dos seus congneres franceses ou italianos, os gramticos portugueses de Quinhentos, cujas doutrinas serviro aqui de contraponto prtica

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  • pontuacional presente nos textos atribudos ao Pe. Ferno Cardim (1548?-1625), reconheciam j a funo da pontuao, conforme se v em Joo de Barros (1496-1570), Pro Magalhes de Gndavo (?-1579) e Duarte Nunes de Leo (1530-1608). Apesar de o assunto ser preceituado em gramticas da lngua latina publicadas no mesmo perodo, Joo de Barros foi o primeiro gramtico a incluir uma seco sob o ttulo de Dos Pontos e distines da oram, onde reala o valor funcional dos pontemas na separao dos elementos da frase: ha das cousas prinipes da orthografia, pela qul entendemos a escritura: o apontr das prtes e clusulas, e em que os latinos mostrram muita diligia (Barros, 1540: 49). Palavras do mesmo gramtico informam que os quinhentistas, ao contrrio dos Antigos, no eram to diligentes na arte de pontuar: Esta nam temos ns, principlmente na letera tirda, sendo cousa que imprta muito: por que s uezes fica a ram amfibolgica sem elles, donde nem duuidas (Barros, 1540: 49). Se a crtica de Barros prtica sua contempornea justificaria um gnero metalingustico centrado na arte de pontuar, portanto autnomo do ortogrfico ou gramatical, na esteira de publicaes francesas e italianas coetneas, na verdade esse gnero frutificaria em Portugal, nem mesmo nos sculos seguintes. A propsito da funo de cada pontema diz Joo de Barros:

    Cma, uocbulo grego, aque podemos chamr cortadura: por que aly se crta a clusula duas prtes. Estas duas prtes, se crtam em uirgulas: que sam has distines das prtes da clausula.

    Clo, o termo ou mrco em que se acba a clusula. As figuras de cada ponto destes: sam as seguintes. Dous a este mdo : se chamam cma. Este s se chama clo. As uergas sam estas zeburas, ao mdo dos gregos. Na cma paree que descansa a uz, mas nam fica o intendimto satisfeito: por que deseia a outra prte, com que a ram fica perfeita e rematda com este ponto clo. Estam antre as cortaduras que sam estes dous pontos: has zeburas assy, aque chammos distines das prtes da clausula. Este s pto (como ia disse) se chama clo. As paluras que izm antre dous clos, se chama, clausula, ao nsso mdo: e segundo os gregos, periodo aque os latinos chamam termo. Os dous rcos que fzem estas palauras (como ia disse): usam os latinos quando comtem ha figura aque chamam Entreposiam, e os gregos, partesis, daqul tratamos na construam.

    Qudo pergtamos lga cousa dizendo. Quem foy o primeiro que achou o uso das leteras ? Estes dous pontos assy escritos onde apergunta acba, podemos chamr interrogatiuos: por serem sinl que interrogamos e preguntamos alga cousa. (Barros, 1540: 49r-49v; grifo nosso).

    As designaes usadas por Joo de Barros cma, clo, uerga, parentesis e interrogam denotam a herana da terminologia greco-latina, marcada pela sua origem retrico-literria. Segundo Barros, o colon < . >, sinal de fechamento do enunciado, designa-se tambm cortadura; comma refere o pontema < : >.

    Dobrada a metade de Quinhentos, ainda sem o termo pontuao e sob o ttulo de Dos lugares omde se hade vsar destas letras maiusculas, & das pausas & distines que se requerem no discurso das escripturas (1574), Magalhes de Gndavo1 (1574) traa um sistema de pontuao baseado nos referidos trs graus:

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  • E no discurso a escriptura auer tres maneiras de distines, pera que o lector saiba melhor pausar & entender o sentido da sentena, ou clausula, conuem a saber, auer virgula, dous pontos : hum ponto. (da maneira que fica significado) Da virgula se vsar quando quiserem destinguir ha parte da outra indo proseguindo pela sentena adiante todas as vezes que for necessario. Dos dous pontos em algs lugares, onde se fezer mais pausa. De hum ponto no fim da clausula, onde se acaba de concluir algua cousa. E logo a diante do mesmo ponto a primeira letra que se seguir ser maiscula: porque hum ponto s tem mais fora que dous, & os dous mais que a virgula. (Gndavo 1574: 10r-10v).

    Dois anos depois, Duarte Nunes de Leo (ou Lio) publica na sua Orthographia o primeiro Tractado dos Pontos das clausulas, & de outros que se pem nas palauras; ou orao (Leo, 1576: fl. 74r-78), ali referindo a vrgula < , > , a comma < : > e o colon < . > como principais pontemas. O sistema de pontuao assim descrito pelo ortgrafo quinhentista:

    [] E os pontos que neste tempo se vso, no partir & diuidir as clausulas, assi na scriptura de mo, como na stampada, so tres. s. virgula, coma, colon, que teem estas figuras [].

    E a differena que ha entre tres pontos he, que a uirgula se pe, & faz distino, quando ainda no sta dicto tal cousa, que dee sentido cheo, mas soomente descansa para dizer mais (Leo, 1576: 74v).

    O segundo se pe, quando st dicto tanto, que d sentido mas fica ainda mais para dizer, para perfeio, & acabamto da sentena. O qual ponto se chama comma, que quer dizer cortadura.

    O terceiro se pe, quando teemos chea a senta, sem ficar della mais que dizer. E chama se colon, que quer dizer mbro. Porque elle he parte do periodo, que he a clausula ou materia acabada, de que a baxo diremos mais. O qual periodo, que quer dizer arrodeo, consta de tres membros, & ao menos de dous (Leo, 1576: 75r; grifo nosso).

    Dos excertos de Gndavo e Leo se conclui que a pontuao tanto dependia da estrutura sintctico-semntica vejam-se as referncias ao perodo, clusula e sentena e ao sentido como das pausas respiratrias.

    semelhana de Barros (1540), quer Gndavo quer Leo incluem os pontos de exclamao e de interrogao nos respectivos elencos, abaixo reunidos num quadro em que sobressai a variedade das unidades apontadas por Nunes de Leo.

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  • Quadro 1

    Sistema de pontuao Gramtico Vrgula

    (,) Coma (:) colon /

    ponto (.) Interrogao/ exclamao

    Parntesis Outros

    Barros 1540

    uerga (zeburas)

    comma (cortadura)

    clo

    interrogatiuo

    entreposiam partesis

    -

    Gndavo 1574

    virgula

    comma hum ponto (exclamao)

    Interrogao parenthesis

    -

    Leo 1576

    virgula coma colon interrogatiuo patenthesis admiratiuo paragrapho meo circulo

    apices hyphen

    asterisco obelisco brachia diuiso angulo

    Confrontadas as doutrinas pontuacionais destes gramticos verifica-se que, em obedincia tradio dos trs pontos, as unidades relacionadas com a construo sintctica, a delimitao de sintagmas e de oraes eram a vrgula, os dois pontos (coma) e o ponto, sendo de salientar que a teoria gramatical de Quinhentos no integrara ainda o ponto e vrgula, tal como o empregamos hoje, conquanto j existisse, formalmente, desde a poca medieval, para assinalar o periodus, vale dizer, o pargrafo. Retomado no sculo XVI pelo humanista francs Lefvre dEtaples (Catach, 1994: 14-15), este pontema fora veiculado pela prtica manuscrita, tornando-se cada vez mais frequente nos impressos. Pese embora o seu antigo emprego em manuscritos medievais e na escrita renascentista, ao tempo de Leo o ponto e vrgula era tido como novidade, consoante se infere das palavras do autor ao comentar:

    De outro ponto vso agora algus modernos, que consta de hum colon, na parte superior, & de ha virgula na inferior assi; do quel dizem, q querem vsar, onde no st dicto tanto, que se aja de por comma, nem tpouco, que se aja de poer virgula. Mas a meu veer, he inuo de pouca vtilidade, & desnecessaria, & que eu no imitaria. Porque pelos antigos se distingue tudo, & este faz mais toruao, que distino, que he o fim dos pontos (Leo, 1576: 76v, grifo nosso).

    Com efeito, o ponto e vrgula seria apenas referido e usado com regularidade, nas obras dos prprios gramticos, no decurso do sculo XVII, reconhecendo os autores a dificuldade em prescrever este pontema, conforme mostram as obras ortogrficas de lvaro Ferreira de Vera (1631), Bento Pereira (1666) e Joo Franco Barreto (1671). Para o primeiro, a virgula & ponto (colon ou membro imperfeito i.e. ponto e vrgula)

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  • serve para fechar sentena imperfeita quando no basta virgula; nem tampouco conv dous pontos [](Vera, 1631: 38). Quanto aos dois pontos, o mesmo ortografista previa que fosse usado quando temos cheia a sentena, sem ficar mais que dizer, distinguindo-o, portanto, do ponto e vrgula, j que este, ao ser colon imperfeito, deixa suspenso o sentido at ouvir a particula indeclinavel, ou relativa, que se segue (Vera, 1631: 38v). Ademais desta, Vera destaca j a funo dos dois pontos como pontema do discurso repetido ou encaixado, para indicar a abertura das citaes. Impressa em caracteres aldinos ou itlicos, a obra de Ferreira de Vera apresenta inmeras ocorrncias do ponto e vrgula nos contextos previstos na doutrina do ortgrafo, ao invs do que acontece na obra de Bento Pereira (1666), situao que, podendo ser imputvel ao impressor Domingos Carneiro, se prender igualmente coma difcil prescrio do seu emprego, qual alude aquele jesuta alentejano quando se refere destrina funcional entre o colon imperfectum e o colon perfectum:

    Mayor difficuldade he explicar outra parte da regra, & dar differena entre o uso do ponto, & virgula, & o de dous pontos. Quanto ao uso de ponto & virgula [] entam se dar, quando na basta a virgula, nem convenha porse dous pontos: o que acontece quando fecha sentena imperfeyta [] Quanto a dous pontos [] usamos delle, quando temos chea a sentena sem ficar mais que dizer. E assim a raza de se chamar mbro perfeyto, he por ser parte do periodo, o qual, como corpo he clausula, ou materia particular acabada (Pereira, 1666: 14-15).

    Seja como for, a ausncia do ponto e vrgula na obra de Bento Pereira demonstra em que medida a pontuao dos textos seiscentistas estava ainda condicionada pela prtica impressria. Diferente do anterior o caso da Ortografia da Lingua Portuguesa (1671), de Joo Franco Barreto. Impressa em Lisboa na Oficina de Joo da Costa, nesta obra a teoria do ortgrafo v-se reflectida no texto imprenso, sendo at ampliados os contextos previstos para cada pontema. Sob a designao de pontuao, para Barreto os trs sinais essenciais continuam a ser a vrgula (coma ou inciso e meio ponto), o colon ou ponto e vrgula (colon imperfeyto) e o perodo (ponto), sem deixar de mencionar a destrina entre o ponto e vrgula e os dois pontos com base na diferena de sentido dos membros delimitados por um e por outro. A esse propsito, acrescenta o ortgrafo:

    O ponto & virgula, que chamamos colon imperfeyto, usamos, quando a virgula n basta, & os dous pontos sobejam; quero dizer; quando n est dito tanto, que se haja de por dous pontos, n t pouco, que se haja de por virgula; ms he cousa muyto dificil de se conhecer; aindaque Duarte Nunez, a chama inven de pouca utilidade, & desncessaria, o que elles diz, n imitaria, sendo t nimio, outras cousas menos importantes. [colon perfeito] quando temos cheya a sentena, ms n acabado o periodo; & parece que o animo do que ouve fica suspenso, esperando outra cousa mays, que depende do que est dito (Barreto, 1671: 216-217; grifo nosso).

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  • Na verdade, para Barreto o sinal de dous pontos fica reservado para marcar o incio de uma citao, isto , de um discurso repetido: Tamb usamos de dous pontos, quando na pratica que fazemos referimos palavras de outrem [] (Barreto, 1671: 217-218). Para este ortografista, a distribuio dos pontemas na cadeia grfica decorre da prpria organizao interna do perodo, porque colon perfeyto, ou imperfeyto, pde comprender muytas virgulas, & o ponto final muytos coma, & cols (Barreto, 1671: 218), acrescentando depois Barreto: e isto he o que se chama periodo onde vay a clausula, & materia toda acabaa, incluindo seys membros, ou sentenas distintas per suas virgulas, cols, & rematadas c ponto final (Barreto, 1671: 218-219).

    Revisitada a doutrina quinhentista e seiscentista a respeito da pontuao, dela se conclui, por um lado, que o ponto e vrgula, sinal de pontuao mdia, no fora ainda completamente integrado na doutrina dos gramticos de Quinhentos, embora no ltimo quartel do sculo, consoante se viu em Leo, merecesse j referncia, a ttulo de unidade exterior ao elenco fundamental; por outro lado, conforme se notou em Bento Pereira, nem sempre a aluso ao ponto e vrgula acompanhada da sua ocorrncia nos impressos. Se a presena desta unidade nos impressos parece estar dependente da disponibilidade das oficinas de impresso, resta saber, por um lado, em que medida a prtica manuscrita a contemplava e, por outro, qual a funo por ela desempenhada na escrita dos finais de Quinhentos. Para isso, servem de exemplo os Tratados do Pe. Ferno Cardim.

    3.1. A pontuao nos Tratados de Cardim Os relatos de viagem escritos pelos missionrios destinavam-se a serem lidos

    (possivelmente em voz alta) pelos membros da ordem ou congregao, o que ter determinado uma pontuao orientada para a funo pausal ou entoacional, conquanto no desatendesse organizao sintctico-semntica do texto. Eram relatos de carcter informativo e descritivo, aspecto que importa realar, j que o gnero textual2 tanto quanto as circunstncias da redaco, o destinatrio ou as finalidades, decerto ter condicionado a pontuao neles presente.

    O contedo dos manuscritos do Cod CXVI / 1-33 da Biblioteca Pblica de vora Do principio & origem dos Indios do Brasil & de seus costumes, adoraa, & cerimonias, fol. 1-12; Do Clima, & terra do Brasil, e de algas. cousas notaueis que se acha assi na terra como no mar, fol. 13-33) corresponde ao texto conhecido desde o sculo XIX (Cardim 1925; 1997) como Tratados da Terra e Gente do Brasil. O seu autor, o Pe. Ferno Cardim (1548?-1625), jesuta alentejano que viajou para a Bahia como secretrio do Visitador Cristvo Gouveia, exerceu a misso no Brasil durante mais de quarenta anos. Embora os manuscritos da Biblioteca eborense no sejam autgrafos, pois sabe-se que os originais tero ido parar a Inglaterra na poca em que o Padre Cardim, no regresso Bahia, vindo de Roma, foi capturado por corsrios ingleses que o levaram como prisioneiro para aquele pas, o seu contedo idntico ao que se encontra em Purchas and his Pilgrims, obra publicada em Inglaterra em 1625, sem qualquer meno a Ferno Cardim. Os manuscritos apresentam caractersticas paleogrficas e de escrita prprias de finais do sculo XVI ou de comeos do seguinte (Megale, 2005; Accioli, 2003), sendo possvel que uma das duas assinaturas apostas em cartas includas no mesmo cdice seja do Pe. Cardim. Embora no possam atribuir-se pena de Cardim, estes textos tm o interesse de serem uma cpia do texto produzido na

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  • poca do autor, exemplificando, portanto, a prtica da pontuao desse perodo. Tudo aponta para um nico punho bastante hbil, pois os traos e demais caractersticas assim o indicam. O alinhamento das margens quase perfeito; a letra humanstica elegante, clara e limpa, incluindo as habituais abreviaturas e ligaduras, em conformidade com o que era corrente na mesma poca. No se trata de um rascunho, visto as rasuras serem poucas, mas de uma cpia, sem data ou assinatura. um apgrafo, cujo contedo coincide com o da edio seiscentista em lngua inglesa.

    semelhana de outros relatos de viagem escritos por missionrios no Novo Mundo, estes textos destinar-se-iam a circular entre os irmos da Companhia, uma vez que as informaes relatadas descrio dos gentios e da realidade natural do Brasil eram de grande utilidade para quem fosse converter os indgenas em territrio brasileiro. Escrito numa poca em que j existia imprensa, o texto de Cardim (ou de quem copiou o seu texto) representa a prtica de um homem culto.

    Se a doutrina quinhentista prescrevia sobretudo o uso da vrgula, dos dois pontos3 e do ponto, j a prtica presente nos manuscritos associados a Cardim, sem a contrariar, afasta-se dela no que tange ao ponto e vrgula, cujo uso afinal mais frequente do que se depreende da lio dos gramticos de Quinhentos e de alguns do sculo seguinte. Devido sua plurifuncionalidade, as unidades de pontuao fraca e forte a vrgula e o ponto , so obviamente as mais frequentes, cabendo aos dois pontos uma funo de pontuao mdia, cujo uso depende da extenso do enunciado, visto servir para delimitar os membros do perodo. Tal como se depreendia da doutrina de Nunes de Leo, a entrada do ponto e vrgula para o domnio da pontuao mdia veio suscitar a especializao funcional deste pontema e dos dois pontos.

    A prtica da pontuao nos Tratados de Ferno Cardim ser a seguir ilustrada a partir de excertos dos manuscritos eborenses.

    3.2. Pontuao fraca - vrgula Nos Tratados cardinianos, a vrgula antecede com regularidade a conjuno coordenativa de adio e, independentemente da sua alografia (e ou &), e o mesmo acontece com a conjuno disjuntiva ou3. Dada a frequncia de estruturas de coordenao na sintaxe quinhentista (Barreto, 1996), a primeira daquelas conjunes a mais frequente, estando tambm presente nas enumeraes de formas lexicais e na separao de sintagmas. Atente-se nos seguintes passos:

    i. Vrgula depois de conjuno coordenativa e e ou (1) As armas destes gentio sam arcos, e frechas, e delles se honrra mujto, e os fazem de boas madras, e muito galantes, tecidos c palma de uarias cores, & lhe tingem as cordas de uerde, ou uermelho, e as frechas fazem mujto galantes uscando canas, e na ponta lhe metem dentes de animais, ou has certas canas muito duras e crueis, ou hs paos agudos c muitas farpas, e as uezes as eruo c peonha. (fol. 5v).

    (2) A priguia q chama do Brasil, he animal pera uer, parecese c cas felpudos, ou perdigueiros. So muito feos, e os rosto parece de molher mal toucada. Tem as mas e pees compridos, e grandes unhas, e crueis, ando com o peito plo cha, e os filhos abraados na barriga, p mais q lhe dem anda to deuagar q ha mister muito tp pera

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  • subir a ha aruore, e p isto so tomados facilmente. Sustentase de certas folhas de figuas, e por isso na pod ir a Portugal, por que como lhe falta, morrem logo. (fol. 16r.).

    ii. Vrgula separadora em enumeraes (3) [Parreyras] Ha mtas castas duuas como ferraes, boaes, bastarda, verdelho, galego, e outras mtas. ate o Rio de Janro tem todo o anno vuas se as quer ter, p q se as podo cada me, cada mes uao dando vuas successiue (fol. 33r; grifo nosso).

    (4) [Legumes] Melos na falta em mtas cap.tas e so bons e finos, mtas abobaras, de q faz tambem cserua, muitas alfaces, de que tazem se tambem a fazem, couues, pipinos, rabas, nabos, mostrada, ortella, coentros, endros, funchos, eruilhas, gerselim, sebollas, alhos, borrags, e outros legumes q do reino trouxera q se da bem na terra. (fol. 33r-33v; grifo nosso).

    Ademais dos contextos acima, nos manuscritos em apreo, ao invs do que prescreveriam os gramticos e ortgrafos de Seiscentos, ainda no era constante nem sequer predominante o uso de vrgula antes de que, fosse ele pronome relativo ou uma conjuno, conforme se v nos exemplos a seguir.

    iii. Vrgula antes de que (5) [Aiuruatubira] Esta aruore q he piquena da ha fruita vermelha, e della se tira h oleo vermelho com q tab se unta os Indios. (fol. 22r).

    (6) Jararaca he nome q cprehende quatro generos mto. peonhentas [fol. 17r]

    No entanto, a vrgula aparece antes de locuo concessiva:

    iv. Vrgula antes de conjuno / locuo concessiva (7) [Mandioca] O mantimto ordinario desta terra q serue de pa se chama Mandioca, e sa has raizes como de senouras, ainda q mais grossas e compridas. (fol. 22 v).

    3.3. Pontuao mdia: dois pontos e ponto e vrgula Se a vrgula tem elevada frequncia porque est associada sobretudo separao de sequncias sintagmticas e presena de conjunes coordenativas, j a pontuao mdia tem menor presena no corpus em apreo, parecendo depender da estrutura sintctica ou da dimenso do perodo, pois ocorre quando a extenso deste requer uma pontuao de fora superior e com funes diferentes das atribudas vrgula. Contudo, afora a organizao do perodo, o emprego dos dois pontos estar igualmente condicionado por contextos especficos4, como a existncia de um pronome relativo distinto de que, consoante indicam os exemplos (8) e (9), nos quais no ser de excluir a correspondncia a uma pausa pausa maior do que a assinalada pela vrgula separadora de sequncias sintagmticas ou lexicais.

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  • (8) [ndios] Os q tomados na guerra viuos sao destinados morte uem logo de laa com hum sinal q he ha cordinha delgada ao pescoo, e se he homem q pode fugir traz ha ma atadaso pescoo de baixo da barba, e antes de entrar nas pouoais q ha polo caminho os enfeita, depenando lhes as pestanas, sobrcelhas, e barbas trosquinandoos a algum modo, e penando os com penas amarellas tamb assentadas q lhe na parece cabello : as quais os fazem ta lustrosos como aos Espanhoes os seus uestidos ricos, e assi ua mostrando sua uictoria p onde quer que passa. (fol. 6r.).

    Os dois pontos eram, por outro lado, a marca introdutria da descrio do elemento anunciado no segmento anterior, correspondendo a uma pausa maior que a da vrgula:

    (9) [Pca.] Estas pacas so como leites. ha grande abundancia dellas: a carne he gostosa, mas carregada. (fol. 14r.).

    (10) [Tapyret.] Estas sa as antas de cuja pelle se fazem as adargas: parecem se c vacas emuito mais c mullas [] (fol. 13v)

    Embora possa ocorrer em vrios contextos quando se trata de dividir enunciados grficos extensos (cf. exemplo 12), o ponto e vrgula est associado presena de uma conjuno adversativa e pausa registada nesse ponto do enunciado, em funo do contraste semntico expresso pela conjuno, conforme se observa em (11).

    (11) [Boicininga.] Esta cobra se chama de cascauel, he de grande peonha; por faz tanto ruido com h cascauel q tem na cauda, q a poucos toma: ainda que he ta ligeira q lhe chamao a cobra q voa: seu comprimeto he de doze, e treze palmos. Ay outra chamada Biciningbba: esta tamb tem cascauel, mas mais piqueno, he preta, e tem muita peonha. (fol. 17v.)

    (12) [Arara.] Estes papagayos sa os q por outro nome se chama Macaos: he passaro grande, e so raros, e pola fralda do mar na se acha. he ha fermosa em cores. os peitos tem uermelhos como gra ; do meo corpo pera o rabo algs sa amarelos, outros uerdes, outros azuis, e de ordinario, cada pena tem tres, quatro cores, e o rabo he muito cprido. (fol. 18r).

    No exemplo (11) nota-se que a locuo concessiva precedida, desta feita, por por dois pontos, o que parece denotar que em tal contexto se requeria uma pontuao mais forte que a vrgula. J em (12), a existncia do ponto e vrgula5 decorrer da extenso do perodo e da necessidade de separar elementos relativos mesma sequncia descritiva da ave.

    3.4. Pontuao forte A marca de finalizao ou de encerramento , por excelncia, o ponto, no

    obstante poder corresponder, quando em interior de frase, a uma vrgula ou a um ponto vrgula. Alm de delimitar a cadeia grfica, igualmente sinal de abreviatura, sendo se assinalar que nos manuscritos em apreo, nem sempre constante e sistemtico o seu

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  • uso com tal funo, porquanto das inmeras abreviaturas presentes no texto uma parte significativa no inclui o referido ponto, conforme se observa em sobremanra (fol. 14v), mto, ligr, instrumto , somte, mtas (fol. 15).

    Posto isto, no corpus cardianiano o ponto acumula vrias funes, que vo desde a delimitao dos ttulos at ao encerramento sintctico, passando pela finalizao de oraes ou frases de maior ou menor complexidade; mas serve ainda de pontuao mdia quando corresponde a uma unidade de menor extenso e de sentido incompleto.

    i. Ponto nos ttulos (13) Dos Casamentos. (fol. 1v)

    (14) Do clima, & terra do Brasil e de algas. cousas notaueis que se acha assi na terra cimo no mar. (fl. 13r)

    ii. Ponto de fechamento sintctico (15) [Gatos brauos] Deste ha mujtas castas, hs pretos, outros brancos assafroado, e so muito gallantes pera qualquer forro, sa estes gatos muito terriueis, e ligros : uiuem de caa e passaros, e tambem acometem a gente, algs sa tamanhos como cas. (fol. 15v).

    iii. Ponto interior sem maiscula seguinte (valor de pontuao mdia)

    (16) [Coati.] Este animal he pardo, parecese c os texugos de Portugal, tem o fucinho mto comprido, e as unhas, trepa polas aruores como bugios. na lhe escapa cobra nem ouo, nem passaro, n quanto pode apanhar, fazemse domesticos casa mas na ha quem os sofra tudo com. brinca c gatinhos, e cachorrinhos, & sam maliciosos, apraziueis, e tem muitas habilidades. (fol. 15v).

    Em relao ao emprego do ponto como pontuao fraca (i. e vrgula) e pontuao mdia (i.e. ponto e vrgula) sublinhe-se que tal prtica deriva da tradio anterior, na qual o ponto era bastante polivalente.

    4. Notas finais O confronto da pontuao manuscrita do corpus cardiniano com a doutrina dos gramticos quinhentistas ps de manifesto, por um lado, que em finais de Quinhentos ainda no se generalizara o uso do ponto e vrgula e dos dois pontos com as funes actuais, e, por outro lado, que a pontuao mdia podia ainda ser assegurada ou pelo ponto interior (no seguido de maiscula) ou pelos dois pontos. O confronto da teoria com a prtica tambm permitiu concluir que o ponto e vrgula tinha fraca expresso no corpus em apreo, sendo baixa a sua frequncia mesmo em perodos longos.

    Tal como se adiantava a propsito da teoria dos gramticos quinhentistas, a pontuao mdia, a finais de Quinhentos, dependia da existncia de unidades de sentido mais ou menos extensas, visto que o ponto e vrgula ocorre a par dos dois pontos apenas em frases ou perodos mais longos. Alm disso, a pontuao mdia parece relacionar-se, por sua vez, com o tipo de conectores de oraes. As conjunes (e locues conjuncionais) que mais parecem estar vinculadas pontuao mdia so as subordinativas. A vrgula, por separar as partes menores da orao e, por conseguinte,

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  • dos enunciados grficos, tem uma frequncia mais elevada. Pelo contrrio, poucas so as ocorrncias tanto do ponto e vrgula como dos dois pontos, se bem que este pontema, correspondente pontuao mdia preceituada pelos ortgrafos portugueses, mais frequente do que aquele. Registe-se, por outro lado, que nos impressos da poca de Cardim o ponto e vrgula tem baixa frequncia, sendo descrito como novidade prpria de impressores, os mesmos que acabariam por ser responsveis pela sua difuso em letra de forma.

    Em sntese, do cruzamento da doutrina gramatical com os dados do corpus retiram-se algumas concluses provisrias a respeito da prtica pontuacional dos finais do sculo XVI: 1.O ponto e vrgula e os dois pontos no se tinham ainda especializado nas funes actuais, parecendo depender da estrutura sintctica e da complexidade do perodo. 2. A pontuao mdia j era ento um campo dado variao, sendo certo que estaria associada a uma pausa maior do que a da vrgula. 3. O pontema mais recorrente era a vrgula, devido ao predomnio de estruturas de coordenao e grande quantidade de enumeraes lexicais. 4. O uso de vrgula antes de que, prescrito pelos gramticos do sculo XVII, no integrava nem a teoria nem o uso pontuacional de finais de Quinhentos. 5. Ao ponto, sinal de fechamento sintctico e de unidade semntica, cabia ainda um valor de pontuao mdia, em interior de frase seguido de minscula, correspondendo ento vrgula ou ao ponto e vrgula.

    Embora nesta fase da anlise dos Tratados de Ferno Cardim no tenha sido possvel apresentar o tratamento estatstico de todas ocorrncias dos pontemas, nem esse era, na verdade, o objectivo das reflexes acima, pensa-se ter mostrado que a pontuao, por mais incoerente que possa parecer, ao traduzir a aspectos prosdicos da lngua num certo perodo (a entoao e o ritmo, por ex.) e ao articular-se com a prpria organizao sintctica dos enunciados grficos, pondo em relevo as relaes lgicas entre os sintagmas e as oraes, tem na escrita um papel que, longe de ser despiciendo, mais significativo quanto maiores forem as divergncias entre as prticas e os preceitos da arte de pontuar.

    Notas 1 O seu nome est ligado Brasil por ter escrito a Historia da Provncia de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576). Vide: Gndavo (1984). 2 No vamos deter-nos em pormenor na adequao da pontuao aos gneros textuais, mas evidente que alguns sero mais favorveis que outros representao da oralidade. A propsito da Carta de Pro Vaz de Caminha, Corteso (1967: 59-60) sublinhava, por exemplo, que gnero epistolar favorecia uma aproximao da escrita lngua oral. 3 Na Carta de Pro Vaz de Caminha, segundo Barreto (1996: 138), no se regista uma nica ocorrncia da conjuno disjuntiva ou. 4 De acordo com Nogueira (1989: 33-34), os dois pontos tm na essncia o mesmo valor do ponto final, considerados foneticamente; considerados semanticamente, eles indicam: a) que a frase que se lhes segue a justificao daquilo que se enuncia na frase que os precede, e, em certos casos, substitui a conjuno causal porque. [] b) que,

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  • em determinada lista de coisas ou de factos, eles (os dois pontos) substituem a expresso o seguinte. [] Em geral, empregam-se os dois pontos em seguida s expresses: a saber, o seguinte, tais so, por exemplo, verbi gratia. 5 Actualmente, o ponto e vrgula tem na essncia o mesmo valor da vrgula, apenas com a particularidade de imprimir frase maior durao na pausa. [] o ponto e vrgula emprega-se para: a) delimitar grupos conexos de coisas ou de factos constitutivos de sucesses. [] b) Nas alneas de um artigo legislativo, por ex. [](Nogueira, 1989: 66).

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  • Anexo 1

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  • Anexo 2

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  • Anexo 3

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