Artigo de Arquitectura 2

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urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana (Brazilian Journal of Urban Management), v. 4, n. 2, p. 245-257, jul./dez. 2012 DOI: 10.7213/urbe.7399 ISSN 2175-3369 Licenciado sob uma Licença Creative Commons Rui Paes Mendes O modernismo e suas abordagens em Moçambique e Angola Modernism and its approaches in Mozambique and Angola Geógrafo, doutor em Geografia Humana, investigador do Centro de Estudos e Ordenamento do Território (CEGOT), Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto - Portugal, e-mail: [email protected] Resumo A ditadura portuguesa condicionou a vida de Portugal durante grande parte do séc. XX, procurando regular todos os sectores da vida portuguesa à vontade do Estado, indo sua intervenção até a uma imposição do gosto e da estética dos seus cidadãos que se refletiram na arquitetura e no urbanismo. Os arquitetos por- tugueses, inicialmente conformados a uma política de encomenda do Estado Novo, vêm a ser influenciados com o advento do modernismo, com forte impacto junto às novas gerações de arquitetos que se formam na década de 1940. A nova visão preconizava que a arquitetura deveria aproximar-se dos anseios do cidadão, numa linguagem internacional que conduziria à própria reorganização da cidade. Essa visão é fortemente influenciada pela produção arquitetónica brasileira, que se revelaria essencial, pois do ponto de vista climá- tico era muito semelhante ao continente africano, existindo diversas soluções e técnicas já experimentadas e saberes sedimentados que poderiam ser transpostos para aquele contexto. Até a independência, as coló- nias portuguesas experimentam um conjunto de intervenções arquitetónicas e urbanísticas influenciadas pelo modernismo brasileiro. Com a independência, a generalidade dos arquitetos regressa a Portugal, in- troduzindo novas contribuições estilísticas na paisagem urbana portuguesa, mas alguns partem (também) para o Brasil, estabelecendo sua atividade naquele país. Palavras-chave: Modernismo. Urbanismo. Arquitectura. Colonialismo. África. Abstract During most of the 20th century, Portuguese dictatorship conditioned the life of Portugal looking to regulate all sectors of Portuguese life to the will of the state, including an imposition of aesthetics in landscape and life of its citizens as reflected in architecture and urbanism. The Portuguese architects initially were submitted to a policy of the State, became influenced by modernism, with strong impact on new generations of archi- tects from (19)40. The new vision advocated that architecture should approach the aspirations of citizens in a international language that lead to the reorganization of the city itself. This view is strongly influenced by

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  • urbe. Revista Brasileira de Gesto Urbana (Brazilian Journal of Urban Management), v. 4, n. 2, p. 245-257, jul./dez. 2012

    DOI:

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    SN 2

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    Rui Paes Mendes

    O modernismo e suas abordagens em Moambique e Angola

    Modernism and its approaches in Mozambique and Angola

    Gegrafo, doutor em Geografia Humana, investigador do Centro de Estudos e Ordenamento do Territrio (CEGOT), Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto - Portugal, e-mail: [email protected]

    ResumoA ditadura portuguesa condicionou a vida de Portugal durante grande parte do sc. XX, procurando regular

    todos os sectores da vida portuguesa vontade do Estado, indo sua interveno at a uma imposio do

    gosto e da esttica dos seus cidados que se refletiram na arquitetura e no urbanismo. Os arquitetos por-

    tugueses, inicialmente conformados a uma poltica de encomenda do Estado Novo, vm a ser influenciados

    com o advento do modernismo, com forte impacto junto s novas geraes de arquitetos que se formam na

    dcada de 1940. A nova viso preconizava que a arquitetura deveria aproximar-se dos anseios do cidado,

    numa linguagem internacional que conduziria prpria reorganizao da cidade. Essa viso fortemente

    influenciada pela produo arquitetnica brasileira, que se revelaria essencial, pois do ponto de vista clim-

    tico era muito semelhante ao continente africano, existindo diversas solues e tcnicas j experimentadas

    e saberes sedimentados que poderiam ser transpostos para aquele contexto. At a independncia, as col-

    nias portuguesas experimentam um conjunto de intervenes arquitetnicas e urbansticas influenciadas

    pelo modernismo brasileiro. Com a independncia, a generalidade dos arquitetos regressa a Portugal, in-

    troduzindo novas contribuies estilsticas na paisagem urbana portuguesa, mas alguns partem (tambm)

    para o Brasil, estabelecendo sua atividade naquele pas.

    Palavras-chave: Modernismo. Urbanismo. Arquitectura. Colonialismo. frica.

    AbstractDuring most of the 20th century, Portuguese dictatorship conditioned the life of Portugal looking to regulate all sectors of Portuguese life to the will of the state, including an imposition of aesthetics in landscape and life of its citizens as reflected in architecture and urbanism. The Portuguese architects initially were submitted

    to a policy of the State, became influenced by modernism, with strong impact on new generations of archi-tects from (19)40. The new vision advocated that architecture should approach the aspirations of citizens in

    a international language that lead to the reorganization of the city itself. This view is strongly influenced by

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    na metrpole. A partir de 1948, d-se uma reaco a esse tipo de arquitectura, conduzida por uma ge-rao que tinha sido influenciada pelo CIAM e prin-cpios de Le Corbusier. Esses jovens arquitectos seguiam e admiravam os arquitectos modernistas brasileiros, fazendo leitura e interpretao aten-ta do imaginrio modernista que se produzia no Brasil. Em face da resistncia, quase negao, na sociedade e poderes polticos de Lisboa ao advento dessas ideias, muitos desses arquitectos embarcam (ou regressam) a frica, considerando ali existirem mais oportunidades para praticarem arquitectura livre dos espartilhos ditatoriais de uma arquitectu-ra imperial e regionalista.

    O espao africano contava com um nmero mui-to reduzido de aglomerados, pois seu povoamento e sua estruturao territoriais foram muito tardios, ante os espaos do subcontinente indiano e brasi-leiro. Durante vrios sculos, para Portugal, frica pouco mais representava do que porto de escala e/ou abrigo nas viagens de travessia dos oceanos para oeste e leste; complementarmente era alfobre de riquezas como os escravos e o marfim. A priorida-de assentava noutras paragens coloniais: a sombra das riquezas provenientes das ndias e dos brasis impede uma valorizao sustentada e coerente nos territrios africanos, influenciando a forma como se construam os aglomerados urbanos, que, com ra-ras excepes, eram manifestamente precrios.

    A consolidao de processos no espao colonial africano: das encomendas de Estado reaco modernista

    O espao colonial portugus e suas abordagens territoriais

    O entendimento da arquitectura modernista na frica portuguesa compreensvel como uma re-aco a uma prtica de arquitectura e urbanismo defendida e implementada pela ditadura portu-guesa que conduziu os destinos do Estado (e suas colnias) de 1926 a 1974. Essa concepo estatal, que bebia influncias em vrios pases e colnias, construiu um imaginrio formal imperial pouco di-nmico que reproduzia um mesmo modelo de fa-zer a cidade e era idntico independentemente do espao geogrfico do imenso imprio portugus1, mas que teve nas parcelas africanas territrios urbanisticamente (quase) virgens o palco ideal para sua concretizao.

    Todo o processo era submetido vontade do Estado, em Lisboa: desde a localizao (nos novos aglomerados que foram sendo construdos durante a ditadura) at os projectos, arquitectos, engenhei-ros, etc., pouco sobrando para uma concepo livre e imaginativa, pese embora em frica, em virtude da distncia de Lisboa e vizinhana das colnias com outras realidades coloniais (francesa, belga e britnica), existisse maior liberdade formal do que

    Brazilian architectural production that has proven ideal to the climatic characteristics, very similar to that

    in the African continent, where several solutions and techniques were tested and sedimented. Until the in-dependence, Portuguese colonies experienced a set of architectural and urban interventions influenced by

    Brazilian modernism. With the independence the majority of architects returned to Portugal introducing

    new stylistic contributions in Portuguese urban landscape but some went (also) to Brazil establishing its

    activities in that country.

    Keywords: Modernism. Urbanism. Architecture. Colonialism. Africa.

    1 O imprio colonial portugus era vasto e compreendia territrios em diversos continentes: na Europa, Portugal continental, Aores e Madeira; em frica, Cabo Verde, Guin-Bissau, S. Tom e Principe, S. Joo Batista de Ajud, Cabinda, Angola, Moambique; na sia, Estado portugus da ndia (Goa, Damo e Diu), Macau e Timor. Dessa diversidade territorial resulta igualmente uma di-versidade cultural com implicaes na forma de se construir a cidade, pois existiam colnias (sia) com um saber milenar na sua construo e s quais os portugueses se adequaram, e outras (frica) onde quase no existiam preexistncias urbanas. Dessa forma, apesar de existir uma linguagem comum reconhecvel na paisagem urbana, existem adaptaes decorrentes da ancestrali-dade cultural dos espaos.

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    que os territrios ultramarinos no seriam atracti-vos para um conjunto de tcnicos ainda insuficientes para Portugal Continental (MENDES, 2012, p. 189).

    Uma anlise atenta entre as plantas da metrpo-le e as das colnias africanas no detecta ruptura entre a prtica vigente em Portugal, ou mesmo do resto da Europa, e o que se fazia em frica, onde imperava uma tendncia de se ampliar as urbes ou reconfigur-las tendo por base o segmento de recta, algo que perceptvel comparando-se a planta de uma urbe no contraste entre o seu ncleo e a sua periferia. Na metrpole, como nas colnias, os enge-nheiros militares desempenhavam papel activo na interveno no corpo urbano, mesmo aps a cria-o das Escolas Politcnicas de Lisboa e do Porto, em 1837 (FERNANDES, 2001, p. 77). Essas plantas assumiam valor jurdico imprescindvel, quer para os actores pblicos, quer para os privados, pois era preciso possuir uma planta de valor legal para divi-dir em parcelas o espao destinado s habitaes, distinguindo-o daquele para uso pblico, como ruas e praas (BRUSCHI; LAGE, 2005, p. 26). A planta ortogonal nesses territrios caracteriza-se pelo uso de um bloco compacto de quarteires, separados uns dos outros e limitados por estradas sempre da mesma largura. Os quarteires so divididos em ta-lhes, que nesse perodo inicial eram de prefern-cia quadrados, sendo que a ausncia de um quar-teiro em posio central representava a praa (BRUSCHI; LAGE, 2005, p. 26-27).

    Essa a matriz dos aglomerados urbanos nas co-lnias africanas que, mesmo nos casos em que exis-tiam preexistncias urbanas de outros perodos, normalmente de reduzidas dimenses como o caso de Loureno Marques/Maputo no que respeita a seu ncleo antigo ou o de Luanda , predomi-nante na sua envolvente. Uma das poucas excepes a esse tipo de assentamento ortogonal acontece na Ilha de Moambique, mas, nesse caso, preexistncias histricas e culturais, assim como constrangimen-tos geogrficos, explicam outro desenho urbano.

    O crescimento dos ncleos urbanos na frica Portuguesa, como reflexo de uma valorizao ter-ritorial geradora de recursos financeiros, permite abordagem diferente na criao do espao urbano, traduzida numa preocupao com a forma e com o conforto, procedendo-se, ento, incorporao dos normativos legais vigentes em Portugal, a fim de me-lhorar as condies de habitabilidade (FERNANDES,

    A valorizao urbana do espao africano portugus

    A partir da independncia do Brasil, compreen-de-se a necessidade de valorizar as possesses afri-canas, projecto sucessivamente adiado em virtude de instabilidades polticas de Lisboa, crises econ-micas e guerras civis. No entanto, a partir de 1885, com a Conferncia de Berlim, que obrigava a uma ocupao efectiva do territrio que os portugue-ses (e restantes potncias) iniciam a ocupao do interior do continente, seleccionando os locais es-tratgicos para o aglomerado e construindo-o. Foi um perodo de actividade cientfica e construo urbana intensas, que transformariam as cidades africanas em palcos para a aplicao de solues urbanas modernas e de demonstrao de poderio por meio da construo de uma imagtica urbana muito prpria.

    A lgica na seleco dos stios assentava pri-mordialmente em escolhas de carcter estratgico e, quando possvel, conciliando o factor comercial e militar: o primeiro, para garantir as necessidades da metrpole, enquanto que o segundo procurava submeter os indgenas e a segurana dos colonos e das rotas/abastecimentos comerciais. Dessa forma, esse primeiro impulso estruturado de transforma-o urbana do espao orientado pelo Estado, seja na definio dos novos assentamentos aps mis-ses de reconhecimento para o qual muito contri-buiu a Sociedade de Geografia de Lisboa , seja na regulao da forma e recursos desse mesmo assen-tamento (MENDES, 2012, p. 188).

    Genericamente, essa primeira abordagem do Estado portugus s questes do urbanismo na frica portuguesa segue de perto a tendncia das restantes potncias coloniais que na poca tinham uma prtica assente no modelo ortogonal. de su-blinhar, de resto, que a atraco pelo segmento de recta no era exclusivo do espao africano, sendo igualmente replicado em escalas diferentes e condi-cionalismos diversos ditados pelo espao disponvel, relevo e preexistncias urbanas. igualmente impor-tante sublinhar que durante o sc. XIX e o incio do sc. XX, as intervenes na malha urbana de aglome-rados urbanos existentes no Ultramar estavam sob alada dos engenheiros militares, em virtude de um esprito de cerco e de conquista no qual assentava a colonizao portuguesa, assim como o facto, de

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    2001, p. 190-191). Em Angola, um plano de Nova Lisboa, de 1912, assenta numa base de cidade-jar-dim, enquanto que em Moambique os novos ap-ports esto patentes no caso de Inhambane, com um plano de 1910, no qual era evidente a inteno de se (re)criar uma cidade estilisticamente depurada, em contracorrente a um traado de ndole prtica e estilisticamente frugal, apesar de na actualidade se encontrar substancialmente alterado. H tambm o projecto surpreendente, e parcialmente concreti-zado, de Vila Cabral/Lichinga, de 1931-1932, cida-de situada junto fronteira de Moambique com o Malawi que viu desenhada um plano inspirado no urbanismo utpico renascentista da cidade ideal (Figuras 1 e 2), demonstrando que as influncias no tinham fronteiras, aplicando-se em qualquer contexto geogrfico.

    A implantao da Repblica em Portugal, em 1910, se marca a criao de um novo modelo polti-co e social para a metrpole, incapaz de desenvol-ver e implementar um modelo de desenvolvimento colonial fruto da instabilidade poltica e econmica do pas, agravada com o envolvimento na Primeira Guerra Mundial, a pretexto de proteger da cobia de alemes e de britnicos suas colnias de Angola e de Moambique. Esse conflito leva o Estado por-tugus a encetar uma campanha de pacificao dos indgenas que se opunham autoridade portuguesa e a uma tentativa, limitada por escassez de fundos, de estruturar os territrios por meio do desenvolvi-mento de redes urbanas e comerciais.

    Dessa forma, durante esse perodo houve algum esforo para se criarem povoados que traduzis-sem essa ocupao do territrio (em Moambique: Namaacha, 1916; Nampula 1920; Massinga, 1916; Mocuba, 1918, por exemplo; em Angola: Huambo/Nova Lisboa 1912, Vila Robert Williams/Cala, 1912), mas, do ponto de vista cartogrfico, no se conhece grande produo no levantamento e docu-mentao dos povoados/aglomerados existentes nem para efeitos de base cadastral.

    Em 1926 imposta uma ditadura militar que cria mitologia prpria de um Imprio Colonial que teria Portugal Continental, ou mais propriamente Lisboa, como principal dnamo de territrios tributrios e enfeudados, regulando e determinando todos os sectores da vida do pas (e suas colnias) vontade de um punhado de personalidades que definiam a concepo de fazer arte, de fazer a cidade, de pensar

    Figura 1 - Planta de Vila Cabral/Lichinga (1931, 1932)Fonte: BRUSCHI; LAGE, 2005.

    Figura 2 - Imagem de satlite de LichingaFonte: Google Earth, 2011.

    o territrio. A ditadura tem uma preocupao vinca-da com o(s) territrio(s), reflectindo em sua aco as preocupaes urbansticas e de ordenamento do territrio que ento surgiam e que eram introduzi-dos e trabalhados de acordo com a realidade econ-mica e poltica preconizada para o pas.

    Na dcada de 1930, o regime lana vasta poltica de obras pblicas, que visava infraestruturao e ao reequipamento territorial e que cristalizou uma forma de intervir no espao. Essa interveno ba-seia-se na construo de estradas e disseminao do transporte martimo e telefone, no sentido de

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    Figura 3 - Vista area cidade baixa de Loureno Marques/Maputo, antigo pn-tano do Maxaquene urbanizado e rea futuramente conquistada ao mar (1935)

    Fonte: Moambique - Documentrio Trimestral, 1935.

    articular o territrio numa tripla vertente: interna, colnias e externa. Nesta ltima possvel detectar lgica de continuidade e uniformidade na execuo dos projectos de equipamentos de que os diversos sectores tivessem necessidade para sua aco go-vernativa (MONIZ, 2005, p. 68-79), marcados, se-gundo a arquitecta Ana Tostes (1999, p. 524), pela modernidade e a monumentalidade, numa elegante e austera simbiose balanada entre a manipulao de volumes claros e puros, e o frequente recurso a uma composio simtrica, com entradas marcadas por grandes pilastras, escadarias monumentais, ps-direitos mltiplos, revestimentos em mrmore e enquadramentos de painis pictricos.

    O advento do modernismo em Portugal e o impulso na arquitectura e urbanismo colonial

    O reconhecimento da especificidade urbana da frica Portuguesa

    Dos projectos do governo elaborao de um con-junto de regras, muitas vezes informais, mas por todos subentendidas, padronizadas e sistematizadas, discre-tamente impostas e tacitamente aceites pela maioria dos arquitectos, foi um passo (Figura 3). Apesar de garantir o trabalho a muitos arquitectos portugueses, eles tinham que trocar sua criatividade pelo benepl-cito do Estado, traduzido sob a forma de encomendas, sujeitas a uma mesma filosofia e a um ou a uns poucos modelos facilmente reconhecveis, aplicveis e replic-veis a qualquer situao ou territrio.

    O projecto imperial portugus, no que respeita aos princpios arquitectnicos e urbansticos, teve sua montra em 1940 com a realizao da Exposio do Mundo Portugus, para a qual foram convidados todos os arquitectos portugueses de nomeada para contribuir para as celebraes e, simultaneamente, requalificar toda uma zona da cidade. Foi um mo-mento importante da propagandstica portuguesa e de sedimentao de uma imagem comum, mas teve igualmente o condo de revelar a carncia tcnica dos arquitectos envolvidos, pois eles estariam lon-ge de poder pensar em termos urbanos, em termos de cidade, [] faltando uma dimenso urbanstica

    para alm de implicar uma falta de conscincia so-cial [] (FERNANDES; ALMEIDA, 1993, p. 123). Essa constatao teve por prerrogativa uma aposta, por parte do governo portugus, em recrutar urba-nistas estrangeiros como Agache, Groer, Piacentini e Muzio para trabalharem o territrio portugus2, numa aco que viria a marcar a paisagem urbana portuguesa, influenciando arquitectos e engenhei-ros portugueses e trazendo para o pas tcnicas e estilos provenientes de pases onde a prtica da ci-ncia urbanstica se encontrava consolidada.

    A Exposio do Mundo Portugus, de 1940, de-finia a linha que se pretendia implementar em ter-mos arquitectnicos e urbansticos no territrio portugus e ultramar, reduzindo as opes tcnicas e estilsticas que existiam nas colnias, e que se fa-ziam sentir em algumas tentativas tmidas de fugir malha ortogonal e de introduzir alguma ruptura num urbanismo convencional e repetitivo tenta-tivas que, de resto, iam fazendo escola em alguns projectos pontuais, e de maior escala, como bairros, de que exemplo o bairro indgena de Loureno Marques/Maputo (Figura 4) ou mesmo na cidade da Beira (MENDES, 2012, p. 197).

    Essas limitaes conceptuais cristalizam-se com a criao do Gabinete de Urbanismo Colonial, em 1944, com a incumbncia de conduzir as obras

    2 Apenas em 1945 surge o primeiro arquitecto portugus com formao especfica em Urbanismo, Faria da Costa.

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    Figura 4 - Planta bairro do indgena de Munhuana (c. 1939)Fonte: Rui Paes Mendes, 2011.

    Nota: foto do Arquivo Histrico de Moambique (no publicado).

    pblicas e a urbanizao das colnias. No entanto, a aco ao nvel das obras pblicas era complexa, pois o territrio ultramarino portugus assentava em realidades sociais diversas que no permitiam uma abordagem homognea: em frica, a ocupao efectiva era recente e desigual com parcelas de ter-ritrio claramente desestruturadas, enquanto que na sia, mais concretamente na ndia Portuguesa, os nveis de desenvolvimento eram efectivos e glo-balmente positivos, assentando o desenvolvimento em ncleos urbanos preexistentes.

    Segundo Decreto n. 34.173, cabia ao Gabinete de Urbanizao Colonial a importante tarefa de velar pelo crescimento urbano dos territrios, devendo para tal estudar e acompanhar a formao e o de-senvolvimento dos aglomerados populacionais nas colnias de modo a aproveitar os ensinamentos da urbanstica, evitando os erros por vezes irremedi-veis, de um crescimento ao acaso (PORTUGAL, 1944), procedendo execuo e acompanhamento das obras pblicas adjudicadas nos territrios colo-niais. Isso significava claramente que o urbanismo e a arquitectura passavam a ser um instrumento do Estado na domesticao do espao e elaborao de uma linguagem colonial que servisse os intentos do controlo do Estado sobre o espao, garantindo des-ta forma a sobrevivncia do primeiro (MENDES, 2012, p. 198). O urbanismo das cidades coloniais tem carcter imperativo na aco do Gabinete, sen-do essencial intervir naqueles espaos, de acordo

    com Decreto n. 34.173, de 1944, como forma de ul-trapassar os problemas da urbanizao colonial e promover a elaborao de planos de arranjo e ex-panso das cidades e vilas das colnias africanas (PORTUGAL, 1944). Essa linha levou realizao de Anteplanos de urbanizao para a maioria das cida-des e vilas das colnias portuguesas3.

    A centralizao do processo de planificao ur-bana dos espaos coloniais tinha o problema de ser conduzido, a partir de Lisboa, por tcnicos com pouco ou nenhum conhecimento da realidade dos territrios para os quais projectavam, obedecendo a ditames polticos, que traduzisse uma forma portu-guesa de construir o espao colonial, mas que aten-desse s especificidades climticas inerentes aos trpicos (MILHEIRO; DIAS, 2009).

    Inicia-se uma profunda interveno no espao urbano colonial, de acordo com

    um modelo que nas reas centrais das cidades

    procurava efeitos de monumentalidade atravs de

    eixos convergentes ou grandes avenidas lineares,

    que assumiam uma funo estruturante para o

    inteiro organismo urbano. O mesmo modelo, nas

    reas residenciais, no menosprezava a utilizao

    de uma composio mais livre, utilizando solues

    formais j experimentadas no paisagismo britni-

    co. Em todos os casos, as solues eram sempre

    estudadas em pormenor, sendo os planos caracte-

    rizados por uma execuo grfica muito cuidada

    (BRUSCHI; LAGE, 2005, p. 35).

    O princpio atrs enunciando era, nos seus tra-os genricos, o mesmo que era prosseguido no Portugal metropolitano, no qual se procedia cons-truo de uma mitologia simblica representativa do regime, procurando passar a imagem da supre-macia do Estado, da ordem pblica e da funciona-lidade orgnica da cidade na autorregulao e vigi-lncia de seus cidados que, na prtica, traduzia-se na implementao de forte zonamento segregacio-nista, numa atitude de demonstrao dos benefcios civilizacionais para os territrios em domesticao (MENDES, 2012, p. 199).

    No entanto, essa poltica de forte interveno urbana era dispendiosa, no possuindo o Estado

    3 A exemplo, alis, do que acontecia no Portugal metropolitano.

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    descentralizao de servios que tornasse mais clere a aco urbanstica e de engenharia civil e, simultaneamente, reconhecesse a especificidade territorial de cada parcela colonial. Nesse contexto, decretada a extino do Gabinete de Urbanismo do Ultramar, sendo substitudo pela Direco de Servios de Urbanizao e Habitao, com seco de urbanizao especficas para cada territrio.

    A frica Portuguesa como destino de uma gerao de arquitectos

    Do ponto de vista cultural, a aco de um con-junto de arquitectos influenciados pelo modernis-mo, teve um impacto importante na conjuntura. Se numa fase inicial geraram resistncias junto aos poderes institudos, acabariam por se aliar com os servios da administrao colonial a requisitar os seus servios.

    A gerao modernista comea a ganhar protago-nismo com o fim da Segunda Guerra Mundial, mo-mento marcante do ponto de vista das concepes estilsticas ao nvel do urbanismo e da arquitectura em Portugal, a partir do qual as ideias veiculadas pelo CIAM Congrs Internationaux dArchitecture Moderne (IV), em especial nas solues para a reso-luo do problema habitacional dos estratos com menores recursos, comeam a ganhar adeptos jun-to aos arquitectos mais jovens. O ponto de viragem ter sido o I Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional de Arquitectos, em 1948. Esse Congresso constituiu oportunidade nica para a escola mais progressista/modernis-ta expressar-se, debater, trocar ideias, defendendo uma outra concepo de arquitectura para l da cartilha que uma arquitectura de cariz regionalista e nacionalista imposta pelo Estado para adjudica-o das suas encomendas provocava, defendendo que uma nova arquitectura deveria ser prossegui-da, mais prxima do mundo real, das vontades e expectativas dos cidados, numa linguagem comum internacional que, em seu ponto ltimo, se consubs-tanciaria na reorganizao da cidade.

    Igualmente importantes so as concluses do Congresso que destacam a necessidade de facilitar o tirocnio de arquitectos nas Colnias, contribuin-do para fixar alguns deles no Ultramar, com mani-festa vantagem para a arquitectura colonial e para

    portugus recursos suficientes para intervir na to-talidade das parcelas territoriais de que dispunha e nos quais desejava intervencionar, sendo unica-mente possvel em centros urbanos de mdia ou grande dimenso, geradores de fluxos financeiros passveis de pagarem por si mesmos essas obras. Em Moambique, apenas Loureno Marques/Maputo e a cidade da Beira, ou em Angola Luanda, Nova Lisboa/Huambo e o Lobito, estariam nessas condies, enquanto que nos restantes territrios africanos sob domnio portugus apenas Bissau, na Guin, enunciava condies para tal. Para os centros de menores dimenses, o modelo seguido apostava numa linha enunciada pelo arqutipo das cidades--jardim, nas quais se sublinhava o contraste dado:

    no tratamento das zonas centrais utilizava-se todo

    o repertrio da monumentalidade, mas sublinhan-

    do o traado dos eixos estruturantes com massas

    vegetais em substituio da frente contnua dos

    edifcios, enquanto que nas zonas residenciais

    continuavam a ser utilizados elementos selec-

    cionados do repertrio da cidade jardim, como a

    sinuosidade das ruas, a nfase na arborizao e a

    fraca densidade (BRUSCHI; LAGE, 2005, p. 36).

    Essa disposio possua ainda a virtude de se constituir como reas-tampo entre raas e classes sociais, numa estratgia securitria e higienista, de acordo com o que vigorava noutros quadrantes do espao colonial africano.

    Paralelamente, o conhecimento pelas especifici-dades territoriais das colnias vai-se aperfeioando e especializando com visitas de reconhecimento, de acompanhamento, e pela frequncia de cursos de arquitectura tropical, em Londres, a tcnicos do Gabinete. Este serviu igualmente para diversos jo-vens arquitectos da linha modernista efectuarem seu tirocnio, levando-os a apreender os concei-tos da arquitectura portuguesa de estado antes de embarcarem para frica, desenvolvendo trabalhos que se encontravam nos anpodas dos pressupostos estatais.

    O desenvolvimento econmico (e cultural) das principais colnias portuguesas Angola e Moambique , conjugado com os desenvolvimentos polticos provocados pelo incio da Guerra Colonial, provoca uma alterao de paradigma na abordagem efectuada ao territrio, recaindo a opo por uma

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    j experimentadas e saberes sedimentados que po-deriam ser transpostos com segurana para aquele contexto.

    A gerao de arquitectos modernistas portugue-ses embarcam para as colnias portuguesas africa-nas por diferentes razes: ideolgicas ou polticas (como o caso de Francisco Castro Rodrigues), pela sua naturalidade (como Vasco Vieira da Costa, Ferno Simes de Carvalho ou Joo Garizo do Carmo), ou simplesmente procurando novas opor-tunidades (como Joo Jos Tinoco, Francisco Castro ou Paulo Melo Sampaio (MAGALHES; GONALVES, 2009, p. 18), procurando (e encontrando) nos hori-zontes africanos maior liberdade criativa, longe do brao duro da ditadura.

    Em frica, esses arquitectos obtm reconheci-mento e encomendas, numa primeira fase do sector privado e, mais tarde, com o fim do Gabinete de Urbanismo do Ultramar, junto ao sector pblico. A conjuntura poltica, econmica e social altera-se nas colnias portuguesas: o nmero de portugue-ses que demandam frica cresce substancialmente fazendo face ao impulso econmico registado, dina-mizando o tecido comercial e industrial. A conjuga-o do investimento entre estados e particulares no tecido produtivo leva ao aparecimento de uma clas-se mdia-alta disposta a demonstrar status e pres-tgio que procede a encomendas de autor, seja na construo de edifcios empresariais na implemen-tao de conglomerados industriais com impacto na malha urbana e/ou rural ou habitaes particu-lares, seja na construo de equipamentos de lazer para fazer frente nascente indstria do turismo.

    Esta prtica resultante da encomenda de priva-dos leva-os a adquirir uma percepo integrada da realidade espacial dos problemas e necessida-des que o contexto africano tinha e uma aura de prestgio e valia tcnica que lhes permite assumir a execuo dos Planos urbansticos neste contexto especfico (MENDES, 2012, p. 199), que viria a ser aproveitada pela administrao colonial.

    A conjuntura poltica era nefasta para o regime, com os processos de descolonizao a ocorrerem por todo o globo e aos quais Portugal no se con-segue manter imune: a campanha internacional de que alvo para promover uma descolonizao e para que o pas respeite os Direitos Humanos, a tenso com o governo indiano de Nehru visando s colnias de Goa, Damo e Diu (Estado Portugus da

    o Pas (SINDICATO NACIONAL DOS ARQUITECTOS, 1948, p. 147), que vem na esteira da interveno do arquicteto Joo Simes:

    A profisso de arquitecto nas colnias, na qual

    considera estar a aco nas metrpoles limitada,

    no tendo os arquitectos ali radicados sido ca-

    pazes de criar uma Arquitectura Funcional, bem

    resolvida, a que fosse possvel chamar a nossa

    Arquitectura colonial, variada consoante os locais,

    una quanto s preocupaes de melhor defesa

    das condies de vida humana, quer a do indge-

    na, quer a do colono (SINDICATO NACIONAL DOS

    ARQUITECTOS, 1948, p. 147).

    Se as influncias tericas so bebidas atravs das publicaes internacionais, nomeadamente as resultantes do CIAM, as de ndole prtica so assi-miladas ou inspiradas pela produo arquitectnica brasileira, que encontra como elemento de trans-misso a realizao de duas exposies de divulga-o da arquitectura brasileira que ocorrem em ter-ritrio portugus.

    A primeira ocorreu em data incerta, entre fins de 1948 ou incios de 1949 (MILHEIRO; FERREIRA, [200-], p. 2), no Instituto Superior Tcnico, durante trs dias, mas com grande impacto junto a alguns arquitectos, como nos demonstra um texto extre-mamente elogioso sobre o evento, escrito pelo ar-quicteto Sebastio Formosinho Sanchez, na revista Arquitectura, em 1949. Esse arquitecto seria um dos responsveis pelo projecto conhecido como Bairro das Estacas, em Lisboa, que viria a ser premiado na II Bienal do Museu de Arte Moderna de So Paulo, de 1953 (MILHEIRO; FERREIRA, [200-], p. 6).

    A segunda exposio sobre arquitectura brasi-leira realiza-se em 1953, na Sociedade Nacional de Belas Artes, por ocasio do III Encontro da Unio Internacional de Arquitectos, realizada em Lisboa no Palcio Foz, com um impacto meditico muito maior que a anterior, chegando a muito mais ar-quitectos e alunos de Arquitectura (MILHEIRO; FERREIRA, [200-], p. 6).

    As influncias prticas da produo arquitect-nica e urbanstica brasileira no contexto colonial portugus revelar-se-iam essenciais, pois, do ponto de vista climtico, o Brasil era muito semelhante ao que se podia encontrar na frica portuguesa, exis-tindo um conjunto enorme de solues e tcnicas

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    O modernismo e suas abordagens em Moambique e Angola 253

    apropriao e incorporao na sua obra da univer-salidade e do dogmatismo do iderio moderno o que lhes justifica a capacidade, contraria esses prin-cpios, de adaptao s especificidades do lugar [] (MAGALHES; GONALVES, 2009, p. 18).

    A contribuio dos arquitectos modernistas por-tugueses reflecte-se nas plantas, por exemplo, nas tentativas para se romper com a ditadura de se construir/planificar de acordo com a rigidez da ma-lha ortogonal seja atravs de transformaes na pr-pria malha, seja atravs de reas de ruptura na sua periferia, procurando, no entanto, respeitar a integri-dade das preexistncias (MENDES, 2012, p. 199).

    As marcas modernistas desses (e doutros arqui-tectos) so imensas, quer ao nvel do urbanismo, quer da arquitectura em geral, estando ainda por efectuar um trabalho sistemtico de levantamen-to e catalogao do patrimnio arquitectnico nas ex-colnias portuguesas, que se torna urgente pela forte dinmica da construo civil registada em Angola e Moambique. As marcas modernistas na frica Portuguesa atestam o percurso dos arquitec-tos que intervencionaram o territrio, que dentre as diversas influncias que beberam existe um papel determinante dos conceitos da arquitectura moder-nista brasileira, de tal forma que Portugal foi assim o caso nico de uma nao com regime poltico re-trgrado a nvel europeu que teve uma produo de vanguarda inovadora no seu espao colonial africano (FERNANDES, 2000, p. 31).

    Importa igualmente reflectir e contextualizar geograficamente a assimilao do modernismo colonial portugus com o impacto que a produo brasileira teve na regio, nomeadamente na frica do Sul, que influenciaria a produo em Angola e, especialmente, no vizinho Moambique. Os ensina-mentos do modernismo brasileiro foram divulgados e assimilados desde cedo na frica do Sul, em espe-cial em Joanesburgo e Pretria. Os alunos de arqui-tectura, tal como em Portugal a linha modernista, tinha como livro guia o catlogo Brazil Builds, que se disseminou pelos cmpus logo em 1943, altura, alis, em que nasce a Faculdade de Arquitectura de Pretria, na qual Brazil Builds adoptado como c-none (PEROLD, 2009, p. 43). A produo arquitect-nica dentro da linha brasileira fervilhante, encon-trando-se marcos por toda a paisagem urbana do Transvaal, de tal forma que logo em 1953 Nikolaus Pevsner refere-se cidade de Joanesburgo como

    ndia), com sua consequente ocupao e anexao Unio Indiana, associadas a alguma instabilidade poltica interna, obrigam a uma alterao artificial da posio do regime.

    Essa situao abre caminho aos arquitectos modernistas radicados nas colnias portuguesas africanas, demonstrando uma abertura, mas igual-mente procurando projectar internacionalmente uma aparncia de normalidade e modernidade. Os arquitectos de outrora, se no ostracizados, pelo menos secundarizados pelos poderes polticos, so, ento, procurados para intervir formalmente no te-cido urbano das colnias. Essa inverso por parte do regime tem resultados prticos que se traduzem em planos nos quais a funo da cidade dominan-te, reflectindo um conhecimento das caractersticas e necessidades de cada espao urbano:

    em alguns casos o plano contemplava um esque-

    ma de vias de comunicao e um zonamento es-

    quemtico de funes, noutros casos aprofundava

    o desenho urbano at propor solues de por-

    menores, sendo estas solues inspiradas a uma

    composio mais aberta do espao e dos edifcios

    (BRUSCHI; LAGE, 2005, p. 49).

    O modernismo como modelador da paisagem urbana em frica

    A arquitectura modernista integrava-se simbioti-camente paisagem africana, denotando uma adap-tabilidade s especificidades climticas tropical, como demonstram diversas solues e obras implementa-das executadas pelas diversas potncias coloniais nos seus territrios ultramarinos, nas quais as suas rea-lizaes confirmam a adaptabilidade da arquitectura moderna a climas tropicais (MILHEIRO, 2009, p. 68) e para as quais no universo portugus as referncias arquitectura brasileira, uma das culturas arqui-tectnicas emergentes a partir dos anos quarenta, prova exactamente essa qualidade de aclimatao (MILHEIRO, 2009, p. 68), com a propriedade de que quando transpostas para fora do claustrofbico rec-tngulo portugus, no seio de uma sociedade menos restritiva e mais distante do centro do poder, o que estes arquitectos tiveram em comum foi essa possi-bilidade de construir com um vocabulrio moderno (MAGALHES; GONALVES, 2009, p. 18), atravs da

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    (Figuras 5, 6 e 7), Carlos Ivo, Bernardino Ramalhete ou Eduardo Naia, entre outros, produziram suas prin-cipais obras naquela cidade, dotando-a de um carc-ter modernista que no se esgota numa nica leitura, tal o nmero de abordagens estticas e o experimen-talismo, no mbito da engenharia civil, que provoca-ram num solo pouco prprio para a construo.

    Declaradamente modernistas, a influncia bra-sileira notria, existindo casos de (aparente) ins-pirao directa de obras produzidas em solo brasi-leiro. Foi o caso de Joo Garizo do Carmo, com uma de suas obras mais emblemticas: a igreja da Manga (Beira, Moambique) com fortes semelhanas inspi-racionais com a igreja de S. Francisco de Assis, na Pampulha (Brasil), de Oscar Niemeyer. Ao nvel do urbanismo, Paulo de Melo Sampaio, a par de obras de arquitectura marcante, foi responsvel pela ela-borao de diversos Planos de Pormenor (Macti/Beira) e de Urbanizao (Vila Pery/Chimoio, Nacala, Porto Amlia/Pemba) (MAGALHES; GONALVES, 2009, p. 200). Tambm Bernardino Ramalhete, com um percurso ligeiramente diferente dos seus cole-gas, assinaria vrios Planos de Urbanismo (Nam-pula, Antnio Enes/Angoche e Vila Pery/Chimoio), mas na Beira e nos projectos que executou que se lhe reconhece o trao4.

    Ainda na Beira, cidade de mltiplos mistrios arquitectnicos, uma referncia a um edifcio que por si s constitui uma marca na paisagem urbana e um marco na arquitectura portuguesa: o Grande Hotel da Beira (Figura 8). um projecto de trao modernista, da responsabilidade de Jos Porto e Francisco Castro, construdo para ser um smbo-lo da cidade. Implantado junto ao mar num terre-no com 12 mil m2, onde, alm do edifcio do Hotel, com 125 quartos, inclua-se uma piscina olmpica e um casino. Iniciadas as obras em 1953, foram con-cludas em 1955, um ano depois do previsto e com uma enorme derrapagem financeira, triplicando os custos iniciais. O Hotel encerrou dois anos aps a inaugurao, por falta de clientela e por no ter sido autorizada a abertura do casino, que seria o garante do projecto. Actualmente, residem nas estruturas muito degradadas do Hotel cerca de 3 mil pesso-as, que aqui encontraram refgio da guerra civil que assolou o pas.

    a little Brazil within the Common wealth (apud PEROLD, 2009, p. 43). Essa ligao sul-africana com o modernismo brasileiro no se deve perder em vir-tude da proximidade geogrfica e do impacto cultu-ral dos maiores territrios portugueses e daqueles onde mais se fizeram sentir as experincias moder-nistas. Importa proceder a estudos comparativos que possam sustentar a influncia nos arquitectos portugueses a trabalhar na frica Portuguesa, al-guns dos quais se formando em universidades do Transvaal (Pancho Guedes ser o que mais se des-taca), onde mais se observam as influncias do mo-dernismo brasileiro.

    A marca dos autores na paisagem urbana em Moambique e Angola

    Francisco Castro Rodrigues (n. 1920) tem um percurso que lhe permite proceder a uma crtica conducente ruptura pela prtica instituda pela arquitectura de estado. Se a teoria bebe-a nas teses do CIAM tendo sido um dos tradutores para por-tugus da Carta de Atenas, Rodrigues esteve igual-mente ligado revista Arquitectura (1947-1954) , a prtica inicia-a no Gabinete de Urbanismo Colonial e posteriormente do ateli de Joo Simes, de quem subscreve as teses apresentadas no Congresso de Arquitectura de 1948 (MILHEIRO, 2008, p. 4). Estabelece-se em Angola, no Lobito, onde produz uma vasta obra que no renega a influncia brasi-leira. Alis, Francisco Castro Rodrigues ser respon-svel pelo Ncleo de Estudos Angolano-Brasileiros, organizando uma exposio sobre A Arquitectura Moderna Brasileira, que palmilhar vrias provn-cias de Angola (MILHEIRO, 2008, p. 8), assim como sua produo extravasa cada vez mais o Lobito.

    Se no Lobito, a paisagem urbana se confunde com a produo de um arquitecto em Moambique, a pai-sagem urbana da cidade da Beira conhece intensa actividade criativa, pontuando vrios arquitectos que deixariam sua marca num dos espaos mais surpre-endentes do universo urbano colonial lusfono. Nomes como Paulo de Melo Sampaio, Joo Garizo do Carmo, Francisco Castro (os trs assinariam o projecto da Estao de Caminho-de-Ferro da Beira)

    4 Fora dessa cidade de assinalar a Biblioteca de Quelimane, considerada obra de grande importncia no patrimnio arquitectnico moambicano.

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    Figura 5 - Estao de Caminho-de-Ferro da Beira, projecto dos arquitectos Paulo de Melo Sampaio Sampaio, Joo Garizo do Carmo, Francisco Castro

    Fonte: Rui Paes Mendes, 2011.

    Figura 6 - Motel Estoril, Macti (1965), projecto do arquitecto Paulo Melo Sampaio

    Fonte: LOUREIRO, 2001.

    Figura 7 - Igreja da Manga (2009), projecto do arquitecto Joo Garizo do Carmo

    Fonte: MAGALHES; GONALVES, 2009.

    Figura 9 - Plano de Urbanizao de Porto Amlia/Pemba, arquicteto Paulo de Melo Sampaio, (1965-1967)

    Fonte: BRUSCHI; CARRILHO; LAGE, 2005.

    Figura 8 - Grande Hotel da Beira (c. 1957), projecto do arquitecto Jos PortoFonte: LOUREIRO, 2001.

    De entre os diversos planos urbansticos efectua-dos por arquitectos modernistas damos como exem-plo o caso de Paulo Melo Sampaio, para Porto Amlia/Pemba (Figura 9), como ilustrao das abordagens es-paciais para as cidades durante o perodo correspon-dente dcada de 1960. um plano que mantm as caractersticas de zonamento racial, no existindo aqui nenhuma ruptura com a prtica anterior. Procura-se efectuar uma transformao na grelha ortogonal, in-troduzindo e anexando reas de composio aber-ta, com sistemas de eixos urbanos hierarquizados, utilizando tipologias mais complexas que a moradia unifamiliar ento preferida (BRUSCHI; CARRILHO; LAGE, 2005, p. 49). Procura-se igualmente proceder a uma transformao nas reas destinadas aos bair-ros informais, regulando-os e/ou transpondo-os para outros espaos, mas com uma nova filosofia menos segregacionista ao nvel racial: so substitudos por zonas destinadas a construes de baixo custo de ca-ractersticas multiculturais e multirraciais.

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    o ateli de Le Corbusier, no qual exerce arquitec-tura, entre 1955 e 1959 (tem participao direc-ta nos projectos do convento de La Tourette, nas Units dHabitacion de Berlim e Briey-en-Fret e no Pavilho do Brasil da Cidade Universitria de Paris), ano no qual embarca para Angola, onde tem a sua actividade em Luanda. Regressa a Lisboa em 1967, mas seu priplo profissional no terminaria na ca-pital portuguesa: de 1977 a 1979 trabalha no Brasil, conduzindo projectos na rea do urbanismo, fina-lizando posteriormente sua carreira em Portugal (MAGALHES; GONALVES, 2009, p. 196-197).

    Muitos outros nomes e obras emblemticas do modernismo colonial portugus, influenciado pelo Brasil, poderiam ser referenciados numa rea na qual muito (quase tudo?) se encontra por fazer, pois os levantamentos nas antigas colnias portuguesas so diminutos e limitados pelos custos e dimenso geogrfica. O certo que ainda muito est por des-cobrir, classificar e divulgar em territrios que no cessam de surpreender pela diversidade, imagina-o e riqueza arquitectnica e urbanstica, que no se limitam a ideias pr-concebidas ou esteretipos que urge quebrar.

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    No entanto, esse tipo de interveno urbana de-para-se com fortes constrangimentos, que impedem sua cabal concretizao em virtude de questes ju-rdicas relacionadas com a posse da terra/proprie-dade e antagonismo dos proprietrios aplicao do Plano.

    Num quadrante oposto ao nvel da formao, mas nem por isso distante do imaginrio moder-nista brasileiro, e com uma obra que desafia todas as convenes e profundamente actual, o trabalho de Pancho Guedes em Moambique, mais concre-tamente em Maputo, marcaria de forma indelvel a paisagem da cidade (Figura 10). Sua formao de base difere da dos restantes arquitectos portu-gueses pelas influncias que bebeu (tambm) em consequncia de ter estudado na frica do Sul, na Universidade de Witwatersrand Joanesburgo, onde se perspectivava uma arquitectura diferencia-da daquelas definidas na academia portuguesa, mas igualmente muito prxima daquilo pelos quais os formados na sua universidade ficariam conhecidos por produzir: Little Brazil. Apesar do priplo que efectua pelo Brasil, onde visita obras emblemtica e divulga seu trabalho (MILHEIRO, 2008, p. 12), sua obra absorve e sintetiza elementos caractersticos da sociedade e cultura moambicanas, reflectindo criaes aparentemente populares mas formalmen-te complexas e imaginativas.

    Finalmente um ltimo nome, essencialmente simblico pelo priplo a que nos propusemos fazer com o presente artigo: Ferno Simes de Carvalho, arquitecto e urbanista com uma produo legada a Angola. Tendo estudado em Lisboa, passa pelo Gabinete de Urbanismo Colonial, seguindo para

    Figura 10 - Edifcio Abreu, Santos e Rocha, arquitecto Pancho GuedesFonte: Rui Paes Mendes, 2011.

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