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Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 109 Antonio Gomes Penna A ntonio Gomes Penna nasceu em 13 de maio de 1917, no Rio de Janeiro. Sua contribuição pioneira à Psicologia brasileira é atesta- da por vários historiadores. Parte desta contribuição está expressa nos 14 livros que publicou. O Prof. Penna realizou duas docências-livres, em Psicologia e em Psicologia Educacional. Exerceu várias funções aca- dêmicas, entre elas, a chefia do Centro de Pós-graduação em Psicologia do ISOP, da Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antonio Gomes Penna concedeu esta entrevista a Elza Dutra, psicóloga e professora da UFRN, no Rio de Janeiro, em outubro de 1996. (EP): Inicialmente eu gosta- ria que o senhor falasse um pouco sobre a sua formação. Antonio Gomes Penna (AGP): A minha formação foi um pouco complicada. Eu sou filho de imigrante; meu pai era industrial, queria que eu me dedicasse a vida eco- nômica e o sucedesse na fá- brica. Eu não tinha interesse mas, para atender a ele, fiz o curso de Economia que, na- quela época, estava se inici- ando. Mas depois me entu- siasmei por Direito. A facul- dade de Direito tinha professo- res muito badalados, grandes nomes. Depois fui fazer Fi- losofia, que eu desejava mui- to, onde se podia estudar Psi- cologia. O meu encanto era Filosofia e Psicologia. Lá eu encontrei grandes professo- res; foi lá que eu me realizei mesmo. Quando eu terminei, fui convidado para ser profes- sor de História da Filosofia e professor da Psicologia. Eu preferi a Psicologia. A minha formação então foi essa, Eco- nomia, Direito e Filosofia. Depois dos três cursos de gra- duação, me dediquei inteira- mente à Psicologia. Naquela época não havia psicólogos, apenas profissionais que se E N T R E V I S T A

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Antonio Gomes Penna

Antonio Gomes Penna nasceu em 13 de maio de 1917, no Rio deJaneiro. Sua contribuição pioneira à Psicologia brasileira é atesta-da por vários historiadores. Parte desta contribuição está expressa

nos 14 livros que publicou. O Prof. Penna realizou duas docências-livres,em Psicologia e em Psicologia Educacional. Exerceu várias funções aca-dêmicas, entre elas, a chefia do Centro de Pós-graduação em Psicologiado ISOP, da Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professor emérito daUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Antonio Gomes Penna concedeuesta entrevista a Elza Dutra, psicóloga e professora da UFRN, no Rio deJaneiro, em outubro de 1996.

(EP): Inicialmente eu gosta-ria que o senhor falasse umpouco sobre a sua formação.

Antonio Gomes Penna(AGP): A minha formaçãofoi um pouco complicada. Eusou filho de imigrante; meupai era industrial, queria queeu me dedicasse a vida eco-nômica e o sucedesse na fá-brica. Eu não tinha interessemas, para atender a ele, fiz ocurso de Economia que, na-quela época, estava se inici-ando. Mas depois me entu-siasmei por Direito. A facul-dade de Direito tinha professo-res muito badalados, grandes

nomes. Depois fui fazer Fi-losofia, que eu desejava mui-to, onde se podia estudar Psi-cologia. O meu encanto eraFilosofia e Psicologia. Lá euencontrei grandes professo-res; foi lá que eu me realizeimesmo. Quando eu terminei,fui convidado para ser profes-sor de História da Filosofia eprofessor da Psicologia. Eupreferi a Psicologia. A minhaformação então foi essa, Eco-nomia, Direito e Filosofia.Depois dos três cursos de gra-duação, me dediquei inteira-mente à Psicologia. Naquelaépoca não havia psicólogos,apenas profissionais que se

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duas docências livres. A umasemana do concurso para efe-tivação, o reitor recebeu umdocumento dizendo que eunão poderia ser catedrático. Esuspenderam o concurso. Pa-ra acabar com os confrontos,pedi aposentadoria especial;para não ter mais contato coma Universidade do Estado. Efiquei na universidade fede-ral, onde eu já tinha feito oconcurso, felizmente. Há mui-tos anos não havia concursona Faculdade Nacional de Fi-losofia mas, em 1965, poruma exigência do CasteloBranco, abriram o concurso.E eu fui o primeiro a fazer ins-crição. Quando o diretor per-guntou se eu queria concor-rer, eu disse: “amanhã”; esta-va louco para fazer o concur-so. Mas tive que esperar trêsmeses. Não tive problemas,fui aprovado. Mas minha car-reira foi muito dificultada,porque eu nunca consegui serdiretor do Instituto de Psico-logia. Sempre que meu nomeia em primeiro lugar nas lis-tas, era vetado. Até que afi-nal, em 1979, eu consegui quemeu nome fosse aprovado,para surpresa minha, pois jápoderia estar aposentado. Na-quela época, começava a ha-ver uma certa abertura e eupude ser chefe de departa-

especializavam em Psicolo-gia. Ou eram psiquiatras, es-tudavam psicopatologia, liamalguma coisa sobre anormal,ou então os que faziam cursode Pedagogia, estudavam umpouco de Psicologia Educa-cional e uma introdução dePsicologia Geral. Mas já ha-via o curso de Psicologia nodepartamento de Filosofia,com três anos de duração; aísim, era um curso mais rico,da Universidade do Brasil.

(EP): O Prof. Nilton Cam-pos era o responsável poreste curso?

(AGP): Era. Mas o NiltonCampos sempre me encarre-gava do primeiro ano e euacabava dando os três anos decurso. Eu fui aluno do NiltonCampos no curso de Direitoe Economia, em 1944. Duran-te 15 anos, lecionei Históriada Psicologia. Ao mesmotempo, já era assistente da fa-culdade do Estado e na Uni-versidade do Brasil. Na uni-versidade federal, eu comeceiem 1948, como professor dePsicologia. Na Universidadedo Estado, comecei como in-terino, em 1950. E fiquei in-terino até 1970. Fiz duas do-cências livres e até hoje eusou o único livre docente com

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mento de Psicologia na facul-dade. O curso foi fundado naFaculdade Nacional de Filo-sofia e fui chefe de departa-mento de 64 até 67, quando afaculdade se extinguiu. Já noInstituto de Psicologia, doqual deveria ser o diretor, masnão consegui por razões po-líticas, só mesmo em 79. Em1949, eu publiquei umamonografia sobre Behavio-rismo, em homenagem aoNilton Campos, que haviafeito o concurso em 1948.Depois, eu criei, no Institutode Psicologia, o Boletim doInstituto no qual escrevi mui-tos artigos. O Instituto de Psi-cologia foi o herdeiro do La-boratório de Psicologia daColônia de Engenho de Den-tro. Na verdade, ele foi cria-do por volta de 1932. Em1937, ele já fazia parte do Mi-nistério da Saúde; só em1939 é que ele foi incor-porado à Universidade doBrasil.

(EP): Quem trabalhava naColônia, na época?

(AGP): O Nilton Campos,que era psiquiatra, foi discí-pulo do Waclav Radecki.Logo que terminou o curso,ele foi para o Engenho de

Dentro, a Colônia dos Psico-patas, como o Engenho deDentro era conhecido. Naépoca em que ele trabalhou lá,o Engenho era dirigido pelogrande higienista GustavoRiedel. E foi Gustavo Riedelque pensou em montar umlaboratório de pesquisas psi-cológicas para ajudar aquelespsiquiatras que estivesseminteressados em fazer pesqui-sas sobre os doentes mentaisda colônia. Ele pensou emcriar esse laboratório e, porsorte, encontrou o WaclavRadecki, que havia sido as-sistente do Claparède.Radecki era professor naUniversidade Livre de Varsó-via e chefe do LaboratórioExperimental de Cracóvia.Ele veio para o Brasil comoimigrante e foi para o Paraná,onde há uma colônia polone-sa muito grande. Ele era gran-de violoncelista e até chegoua montar um quarteto de cor-das no Paraná. Uma vez veioao Rio, entrou no sebo e viuum livro de Psicologia de umprofessor do Instituto de Edu-cação. Achou interessantíssi-mo. Então ele procurou con-tato com esse professor, queera o Lourenço Filho. E oLourenço terminou indican-do o Waclav Radecki para a

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chefia do laboratório. Ele foicontratado para lecionar e fa-zer pesquisas. Depois disso,foi à Europa comprar equipa-mentos de pesquisa e conse-guir verbas para a fundação,o que ocorreu em 1925. Eraum homem muito habilidoso;fez muitos aparelhos de ma-deira, servindo à pesquisa.Foi ele, inclusive, quem rea-lizou a primeira grande pre-paração dos psicólogos quetrabalharam na primeira sele-ção de pilotos de aviação. Aprimeira aplicação de Psico-logia nas Forças Armadas.Daí se iniciou a relação entreo antigo Laboratório e o Ins-tituto de Psicologia, no qualo Laboratório se converteu.

(EP): Como Radecki deu se-qüência a esse trabalho?

(AGP): Ele deu um curso so-bre Psicologia Geral paramédicos, militares, com oobjetivo de prepará-los pararealizar, sob a direção dele, asprovas na seleção de aviado-res. Era um curso interessan-tíssimo, com capítulos magis-trais. Mas o fato é que se es-tabeleceu uma ligação entrea Aeronáutica e o Instituto dePsicologia. Em 1953, elesquiseram realmente introdu-

zir a cadeira de Psicologia noscursos de formação do Esta-do Maior. Eles convidaram oNilton Campos, que era o as-sistente principal do WaclavRadecki. O Nilton Camposera muito doente e, na últimahora, não pôde lecionar. Foiaí que me chamaram. E, derepente, fui jogado para dar ocurso. Acontece que gosta-ram muito e, de 1953 até1968, eu dei cursos. Depoisdisso, durante anos, utiliza-ram apenas o meu manual dePsicologia Aplicada ao Tra-balho. Na verdade, era quaseum curso de Psicologia Soci-al, que incluía temas como li-derança, disciplina, propa-ganda e também seleção. En-tão continuou a relação entreo Instituto de Psicologia e aAeronáutica.

(EP): E com o Exército, nãohavia nenhum contato?

(AGP): Nessa época, aindanão. O contato ocorreu quan-do eu fui convidado para serum dos fundadores do CEPE- Centro de Estudos do Pes-soal do Exército, onde eutambém dei aulas. Mas de-pois começaram a estória queeu era contra os militares, deque era um subversivo.

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(EP): O senhor teve muitosproblemas com os militares?

(AGP): A chamada Revolu-ção quase acabou comigo.Sofri várias punições na uni-versidade porque eu não pu-nia ninguém O Passarinhomandou abrir um processocom três membros, presididopor um embaixador. Um de-les estava querendo que eufosse punido mesmo, mas osoutros dois sempre estavama meu favor. Por sorte, eu ga-nhei de dois a um. Na verda-de, não encontraram nada queme incriminasse. Achavamque eu era muito liberal à sub-versão no Instituto de Psico-logia.

(EP): Exigiam que o senhorpunisse os estudantes?

(AGP): É. Na época, eu co-ordenava o curso de Psicolo-gia e não poderia punir al-guém que pedia melhores au-las, porque eu concordavacom os alunos. Quem podepunir um aluno que se recusaa assistir aulas de baixa qua-lidade? Quem pode punir umaluno que está apenas solici-tando o que é uma obrigaçãoda universidade? Então, eusempre pedia tempo para dar

uma solução política; paranão desmoralizar o professor.Eu sabia que se tivesse qual-quer outra atitude, a puniçãoera certa em cima deles. Naverdade, quem mandava erao agente de segurança. Mas,felizmente, depois de muitosmeses, até curso de Fenome-nologia ele fez. Fui acusadode ser fenomenologista, por-que a Fenomenologia eraconsiderada um disfarce domarxismo. O gestaltismotambém era considerado umdisfarce do marxismo. Entãoo agente tomou aulas parasaber o que era isso. Bem,depois que terminou o inqué-rito, não ficou provada nemuma palavra contra mim.Mas, de qualquer modo, euatravessei uma fase difícil,apesar de ter sido durante 17anos professor da Escola daAeronáutica, onde introduzium curso de Psicologia Soci-al, de 1953 até 1970. Fui atécondecorado pelo presidenteCastelo, em 1964. Depoiscomeçaram rumores de queeu assinara protestos contra asviolências cometidas pelospoliciais militares, pelas For-ças Armadas. Isso quando in-vadiram o Campus da PraiaVermelha, espancaram eprenderam estudantes. Eu, de

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fato, assinei e depois presididuas reuniões de protesto.Naquela época, quem protes-tasse ou quem não rezassepela cartilha deles, era puni-do. Apesar disso, tive meu li-vro - Manual de PsicologiaAplicada adotado, adotadoaté 1970. Depois disso, nun-ca mais fui convidado paranada. Nem para entrar na es-cola. Apesar de ter grandesamigos militares, de nada adi-antava. Em 1964, como eudisse, fundei o curso de Psi-cologia na universidade. Em64 já estava funcionando ocurso na Faculdade Nacionalde Filosofia, não no Institutode Psicologia. O Instituto dePsicologia era um órgão com-plementar, de apoio às cadei-ras de Psicologia Geral e Psi-cologia Educacional, dadasnos cursos de Filosofia e dePedagogia, respectivamente.A cadeira de Psicologia Ge-ral era dada pelo Nilton Cam-pos e a cadeira de PsicologiaEducacional pelo LourençoFilho.

(EP): Foi nessa época que osenhor esteve no Rio Gran-de do Norte?

(AGP): Foi. Em 1963, eu eraassistente do Nilton Campos.

Neste ano, o Nilton, que jáestava muito doente, faleceu,e eu assumi interinamente acátedra. Um dia, fui procura-do por um aluno do Rio Gran-de do Norte, o presidente dodiretório dos estudantes. Nãome lembro do nome dele, sólembro que depois ele se tor-nou deputado federal.

(EP): João Faustino. Hoje ésuplente de deputado federale já foi secretário de Educa-ção e diretor da Escola Téc-nica Federal.

(AGP): Pois é, ele me convi-dou para fazer umas confe-rências lá em Natal. Em 15dias recebi passagem e, euque nunca tinha voado, fiqueiterrivelmente amedrontadocom a viagem. Naquela épo-ca era muito tempo de vôo,lembro até que o avião era daPanair. Cheguei em Natal denoite e foi uma surpresa , nãotinha nenhum hotel, em 1963.Foi a primeira viagem que eufiz para dar um curso. Eu jáhavia viajado para aprovarcursos de Psicologia, peloConselho Federal, mas estafoi a única vez que recebi umconvite de um diretório aca-dêmico. Fiquei encantadocom Natal, com a atividade

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intensa no plano da Educa-ção, as escolas “De-pé-no-chão-também-se-aprende-a-ler”, do Djalma Maranhão edo Paulo Freire. Lembro daenorme quantidade de profes-sores de São Paulo que esta-vam visitando o interior doEstado. Eu fiquei encantadocom Djalma Maranhão, o tra-balho que ele estava fazendo;depois eu soube que ele foiviolentamente varrido pelaRevolução. Fiquei encantadocom o que assisti naquele mo-mento, com as aulas à noite,as barracas de palha, todomundo tendo aula, umadedicação. Eu achei que o RioGrande do Norte era todo umalição de como se deveria fa-zer Educação. E pensei, se is-so estivesse acontecendo emtodo o país, como seria mui-to importante para o Brasil.

(EP): O senhor tem muitaspublicações. O senhor utili-za um método para sistema-tizar os conteúdos?

(AGP): Desde cedo comeceia publicar. Primeiro publiqueiPsicologia da Percepção eAprendizagem. Percepção eRealidade, foi o segundo li-vro. Na verdade, foram fru-tos dos cursos que eu fui dan-

do na Psicologia. Eu tenho ohábito de fazer roteiros deaula, dava os cursos com eles;depois, transformar em livroera fácil. Comunicação e Lin-guagem foi o primeiro cursode Psicolingüística dado noBrasil, em 1966. E o livro saiuem 70, com o prefácio do pro-fessor Lourenço Filho. De-pois eu publiquei 53 verbetesna Enciclopédia Mirador In-ternacional, com mais de 500laudas. Publiquei ainda Lin-guagem, Personalidade e Te-rapia e Introdução à Histó-ria da Psicologia Contempo-rânea. Este último teve umimpacto muito grande. Certaocasião, encontrei em Ribei-rão Preto, José Aparecido,que hoje é um grande pesqui-sador em Psicologia da Per-cepção, especialmente emPsicofísica. Ele me mostrouum recorte que havia retira-do de uma revista americanacom um vasto elogio à minhaHistória da Psicologia. Curi-oso é que foi feito por umperuano que estudava na Ale-manha, com o maior histori-ador da Psicologia da Alema-nha. Ele até ficou surpresoporque, conforme registrou,era o primeiro livro de Histó-ria da Psicologia com um ca-pítulo sobre Fenomenologia.

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Estava estarrecido porqueimaginava que só na Alema-nha dessem importância à Fe-nomenologia. Por causa dis-so, recebi uma carta de umgrande historiador americano,pedindo que eu remetesse umexemplar. Ele ficou entusias-mado e me convidou para par-ticipar de um congresso queestava preparando para ser re-alizado em 1967, na Alema-nha. Lá, havia um institutopara o estudo da modernaHistória da Psicologia, comum grande simpósio em ho-menagem a Fechner, porqueexatamente se deu na épocado centenário da morte dele.Ele queria que eu fizesse umaapresentação, mas eu estudeimuito Fechner, nos cursos dePsicologia e Filosofia, e nasaulas de Psicologia, em fun-ção das críticas que foram fei-tas por Bergson. Então, elesugeriu que eu escrevesse so-bre isso. Eu acatei; elaboreium trabalho sobre Bergson e assuas críticas a Fechner. Foi umasurpresa, descobri que entre ospresentes, ninguém conheciaBergson. Descobri tambémque, em geral, os alemães nãoestão muito atualizados como que se faz na França. Elesdão muito mais importânciaao que se produz na Inglater-

ra ou na Itália. Depois, recebimuita correspondência meperguntando sobre as obras deBergson. Escrevi ainda Intro-dução da Psicologia Contem-porânea, Motivação e Apren-dizagem e História das Idéi-as Psicológicas. Esse últimofoi um livro a pedido doZahar. Ele havia publicadoum outro livro (A História daPsicologia) e, posteriormen-te, descobriu que os autoreshaviam copiado o livro deMax Wertheimer. Ele ficoumuito chateado e foi obriga-do a retirar o livro de circula-ção. Então, me pediram queeu escrevesse. E eu escrevi ra-pidamente, estava com tudona cabeça, era ir para a má-quina e bater. Na verdade, eraexatamente o curso que eu,durante 15 anos, dei na Fa-culdade Nacional de Filoso-fia, apenas com uma introdu-ção da História da Ciência,que em geral pouca gente es-tuda. Um pouco de história daciência é absolutamente neces-sário. Depois, escrevi sobre 4ou 5 processos cognitivos, umresumo sobre Percepção, Lin-guagem, Motivação e Aten-ção, e fiz um estudo sobre in-trodução à PsicologiaCognitiva, em 1984. Em1987, publiquei Cognitivis-

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mo, Consciência e Compor-tamento Político. Em 1988,História e Psicologia. Nestelivro, faço referência à impor-tância do tempo em Psicolo-gia, o longo tempo e o tempobreve em Psicologia. Falotambém de diferentes temas.Não sei se é nesse livro quetenho um trabalho sobre Psi-cologia Existencial, as basesdo pensamento existencial,fundamentalmente baseadonas idéias de Jean Wahl, ogrande nome na divulgação dopensamento existencial naFrança, o grande historiadorda Psicologia Existencial. Em1990, publiquei Filosofia daMente; em 1992, História daPsicologia no Rio de Janeiro.Depois escrevi Freud, as Ci-ências Humanas e a Filoso-fia. E, ultimamente, Introdu-ção à Psicologia Política. Aotodo, são 14 livros publica-dos, além da monografia so-bre Behaviorismo e do manu-al de Psicologia aplicada àsForças Armadas. E, no mo-mento, eu estou preparandodois livros: Psicologia daReligião e Filosofia Moral.Isso porque recentemente fuiconvidado para a aula inau-gural na Escola da Magis-tratura do Rio de Janeiro. Eujá havia sido convidado em

1992 para uma jornada sobreÉtica para Juízes. Queriamque abrisse a jornada e eu fiza conferência inicial. Falei so-bre o conceito de Ética, mos-trando a impressão que eu ti-nha de que, no exercício damagistratura, o indivíduo quetem em suas mãos o destinode um outro, em termos decondená-lo ou absolvê-lo,deve viver um estado de an-gústia muito grande. E quemnão vive esta angústia, nãotem condições de ser juiz. Avivência, a experiência da an-gústia, tem de ser uma con-dição fundamental para todoaquele que tem nas mãos odestino de um ser humano.Nesta conferência, estava pre-sente um professor de SãoPaulo, o diretor da escola demagistratura paulista, e elepediu para editar um livro,que saiu em São Paulo pelaRevista dos Tribunais, com otítulo de Ética através dostempos.

(EP): Fale-nos um pouco so-bre seu interesse em Filoso-fia da Religião?

(AGP): Meu interesse poressa área é antigo. Fui discí-pulo do homem que, a meuver, foi a maior cabeça filo-

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sófica que nós tivemos: padrePenido. Muita gente pensaque falar sobre Filosofia daReligião é fazer apologia dareligião. Não é. Recentemen-te, fui à Inglaterra e li um li-vro sobre Filosofia da Reli-gião, de um professor ameri-cano. Esse livro me causouum impacto muito grande.Um livro absolutamente cé-tico. É uma crítica no sentidokantiano, uma crítica aos fun-damentos da religiosidade, daexperiência religiosa, do mis-ticismo.

(EP): O senhor estudou como padre Penido?

(AGP): Ele foi meu profes-sor de Filosofia. Ele era bra-sileiro, mas quando estava es-tudando em Friburgo, naSuíça, foi contratado pela Es-cola Nacional de Filosofia doRio para ensinar Filosofia eacabou ensinando PsicologiaReligiosa. Penido lembravamuito o papa Pio XXII: ma-gro, seco, quase não sorria,muito fechado. Um professorfantástico e brilhantíssimo. Eele era encantado porBergson, que foi o filósofoque eu mais estudei na facul-dade. Em 1932, Bergson es-creveu um belíssimo livro

sobre religião e moral: Lesdeux sources de la morale etde la réligion. Nesse livro, elefecha praticamente sua obra.Ele foi muito coerente, egrande parte desta obra foidedicada não à moral, mas àreligião. Inclusive, um belocapítulo sobre misticismo.Ele tinha um grande entusi-asmo pela experiência místi-ca.

(EP): O Professor Penidoaceitava o misticismo?

(AGP): O Penido criticavamuito os críticos do misticis-mo, inclusive Pierre Janet,que considerava os místicospsicastênicos. E dele ouvi oargumento que mais me im-pressionou: quando um atle-ta se dispõe a marcar um re-corde olímpico, almeja a me-dalha de ouro, é submetido aum treinamento exaustivo,tem um objetivo, uma moti-vação para o seu desempe-nho. Isso é dignificante, o serhumano a descobrir os seuslimites. Mas se alguém faztudo isso com o objetivo dese aperfeiçoar moralmente,deve ser um doente mental.Essa era a tese do Pierre Janet.Eu sempre me interessei poresse tema por causa do

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Penido. O Penido escreveuuma obra maravilhosa, emfrancês: La consciencereligieuse. Considero a maisbrilhante da Psicologia naárea da religião, embora nun-ca tenha sido traduzida parao português. Ele deu um cur-so maravilhoso na Suíça, in-clusive, eu tenho me aprovei-tado muito quando falo nes-se assunto.

(EP): Em síntese, o que foiesse curso?

(AGP): Penido divide o es-tudo da experiência religiosaem três grandes etapas: des-de o momento em que o indi-víduo se converte, passandopelo momento em que é sub-metido a uma série de práti-cas ascéticas para aperfeiço-ar-se moralmente e, final-mente, o momento em quechega ao misticismo, que é aexperiência religiosa semigreja. Há um trabalho domaior pensador polonês vivo- hoje com 70 anos, chamadoKolakowski. Ele foi o maiorexpositor do marxismo. Elefoi membro do partido comu-nista na Polônia mas rompeucom o partido, foi expulso eteve de sair da Polônia. En-tão, foi para a Inglaterra, tor-

nou-se professor na Univer-sidade de Oxford. Tambémlecionou na Universidade deYale, em Chicago. Ele temuma variedade imensa deobras. Uma delas sobre Filo-sofia da Religião, dividida emtrês capítulos: o Deus daOdisséia de Leibniz, o Deusdos Racionalistas de Descar-tes e o Deus dos Místicos.Neste livro, com 800 páginas,ele estuda estas três concep-ções de Deus. Ele fala sobreos místicos do século XVIII,que estão convencidos dapossibilidade de contato dire-to com Deus; dispensam aigreja, a hierarquia eclesiás-tica, convivem com Deus,sem necessidade dos padres,bispos. Por isso, são cristãossem igreja. Eles eram muitofreqüentes no século XVII,quando houve a grande Re-forma de Calvino e Lutero.Eu me lembro da análise fei-ta, quando li a peça deBernard Shaw sobre SantaJoana d’Arc, mostrando queela não foi queimada viva pormotivos religiosos, mas mo-tivos políticos. No momentoem que ela dispensava a Igre-ja, estava ameaçando a Igre-ja, e ao antecipar-se à Refor-ma se antecipava também aosmísticos, que pretendiam ser

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cristãos sim, mas sem igreja.Mas, ao mesmo tempo, essecontato direto com Deus, como poder máximo, implicavauma crítica terrível ao Feuda-lismo. Então, as razões polí-ticas fizeram com que ela fos-se queimada viva.

(EP): Então seu tema atualé Filosofia e Religião?

(AGP): É, mas obviamentenão é só isso. Tenho grande in-teresse também em História daFilosofia, Ética e Política. In-clusive, recentemente, profericonferência sobre a História daFilosofia no Rio de Janeiro.

(EP): O senhor tem tambémum interesse pela Fenome-nologia.

(AGP): Eu tenho uma gran-de base em Fenomenologia.Enquanto aluno na faculdade,trabalhei muito, dei aulas. Fuium bom especialista emMerleau-Ponty, que é umadas figuras mais importantesda Fenomenologia. Ele vin-culou a Fenomenologia à Fi-losofia Existencial, emborasejam coisas que a gente te-nha de separar sempre.

(EP): Então o senhor ques-tiona essas terminologias,Psicologia FenomenológicaExistencial, Psicologia Hu-manista Existencial?

(AGP): Apesar de se falarmuito freqüentemente emPsicologia Fenomenológica eExistencial, eu sempre fuicontra isso. Uma coisa é aPsicologia, a Fenomenologiae o método fenomenológicoe outra coisa é a FilosofiaExistencial. Tem-se de fazerlogo uma distinção que é fun-damental: de um lado a Filo-sofia Existencial e, de outro,o Existencialismo. A diferen-ça está em que, quando se falaem Existencialismo, se estápensando em uma correnteque trabalhou praticamentecom a natureza humana; éuma antropologia. Por exem-plo o existencialismo deSartre, Jaspers, Marcel, quesão centrados no estudo doHomem, na existência huma-na, no problema da liberda-de, da escolha, etc. A Filoso-fia Existencial é fundamen-talmente Heiddeger e aquelesque o seguiram. O que carac-teriza a Filosofia Existencialé o fato de que ela se utilizada experiência humana, maso objetivo dela não é estudar

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o ser humano; é um objetivoontológico (estudar o ser), enão antropológico (estudar ohomem). Mas, como eu que-ro alcançar o ser e o único serque pode dar um depoimentoé o ser humano, então se co-meça pela Antropologia. Maso objetivo não é o ser huma-no. O objetivo é discutir oproblema do ser, da naturezado ser e dos entes. Por outrolado, uma terceira caracterís-tica importante é que a Filo-sofia Existencial nunca usouo método fenomenológicocomo Husserl o concebeu, enem poderia usá-lo exata-mente.

(EP): Por que?

(AGP): Porque o que carac-teriza o método fenomenoló-gico em Husserl é o descar-tamento total dos aspectosexistenciais para se concen-trar nos aspectos essenciais,na essência. Ele está interes-sado na essência do ser. Issofaz com que, quando se falaem método fenomenológico,se pense principalmente nométodo tal como Husserl oempregou, com aquelas redu-ções contínuas. Agora, nocaso de Heiddeger, quandoele fala em método fenome-

nológico, o método dele foiprogressivamente se afastan-do, e depois, não tinha maisnada a ver com o de Husserl.E ele, inclusive, critica mui-to aquela preocupação exces-siva, que deixava os alunosentediados de tanto queHusserl falava em redução.

(EP): Então são duas cor-rentes?

(AGP): Sim. Há a PsicologiaExistencial e a PsicologiaFenomenológica. Nos cursosde Merleau-Ponty, a gente vêque o trabalho foi muito como conceito de existência mes-mo, até no sentido da tradi-ção de Kierkegaard. O pri-meiro nome é mesmoKierkegaard e nós temosmesmo que estudá-lo porquehá pelo menos 16 teses fun-damentais para caracterizar asua contribuição. Uma delasé que enquanto em todos osanimais a espécie é mais im-portante que o indivíduo, naespécie humana, o indivíduoé mais importante que a es-pécie. É a exaltação do indi-víduo, e essa exaltação é re-almente que cada um de nósé único, não tem outro igual.E a nossa individualidade étão importante que, como diz

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um grande nefrologista fran-cês, você transplanta um rime o rim é rejeitado; é como sevocê dissesse: “ou a minhaindividualidade é preservadaou eu prefiro a morte”. Isso émuito bonito, porque o sujei-to rejeita, e só podemos im-pedir a rejeição, se enfraque-cemos o sistema de defesa doindivíduo, o sistema imuno-lógico. Aí o sujeito aceitaqualquer coisa, mas perde aindividualidade.

(EP): No seu texto “Repen-sando a Psicologia”, o se-nhor coloca a Psicanálise noâmbito da Psicologia, con-trariando as idéias de mui-tos psicanalistas.

(AGP): Neste trabalho, eufalo da necessidade de acabarcom esta estória de que a Psi-canálise não tem nada a vercom a Psicologia. É precisosalientar que a Psicologia nãotem unidade. O que caracte-riza a Psicologia é o fato delamobilizar muitas metodolo-gias: quando se fala em Psi-canálise, mobiliza-se umametodologia hermenêutica,quando se fala em PsicologiaExperimental, mobiliza-seuma metodologia positiva;uma metodologia fenomeno-

lógica, quando se fala emgestaltismo, uma concepçãorealmente fenomenológica,não existencial. Então achouma estupidez separar a Psi-canálise da Psicologia. O queeu discuto é a impossibilida-de de unificação da Psicolo-gia.

(EP): E quanto as críticas aogestaltismo?

(AGP): A preocupação dosgestaltistas foi sempre em de-tectar a essência da percep-ção. Eles fizeram as práticasda redução; eles procederamexemplarmente porque quan-do Wertheimer estudou a per-cepção, não estava preocupa-do com as influências emo-cionais, influências derivadasda personalidade, nada disso.Eles deixaram tudo isso delado. E a crítica de que elesfizeram uma Psicologia semsujeito, feita pela New Lookin Perception, por Postman epor todos que integraram essemovimento, foram injustas.Portanto, não é verdade queeles fizeram uma Psicologiasem sujeito. Eles deram mui-ta importância ao fator“setting”, ao fator atitude dosujeito. Agora, o que eles dei-xaram de lado foi o seguinte:

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não interessa estudar a influ-ência dos fatores emocionais- sem dúvida eles existem -mas essa influência não ésubstantiva; ela é puramenteadjetiva. Se eu quero saber oque é a percepção; a mim in-teressa pegar a percepção noestado de pureza total e, nes-se estado, posso deixar delado as influências emocio-nais, influências históricas,etc.

(EP): O senhor se referiu àfalta de unidade na Psicolo-gia? Essa é uma caracterís-tica transitória na Psicolo-gia?

(AGP): Eu não vejo saída,continuo achando que nós te-mos de conviver com umadiversidade de enfoques mui-to grande, até porque o serhumano é um ser que foi mui-to bem visto por AugustoComte. Comte tem uma ob-servação extremamente im-portante, que pouca gentefala. Quando ele escreveu oCurso de Filosofia Positiva,por volta de 1836, dizia quea Psicologia científica, a Psi-cologia positiva, na verdadenão existe: passa-se da Bio-logia para a Sociologia. Apa-rentemente ele negava a

cientificidade da Psicologia,mas ele dizia que talvez a Psi-cologia pudesse ser fundadacom base nas idéias daGalton: a Frenologia. Nãoque ele acreditasse naFrenologia, mas pela primei-ra vez, alguém dizia coisasque podiam ser submetidas averificação e rejeitadas. Acientificidade estaria exata-mente nisso: a possibilidadede verificação. Em 1851, elefaz uma série de afirmaçõessobre a Psicologia. Diz quePsicologia científica aindanão está fundada; no dia quefor fundada, ela terá de ser, enão poderá deixar de ser, se-não fundada na Biologia einspirada na Sociologia, querdizer, no estudo do ser huma-no. Você pode dar uma ênfa-se muito grande em aborda-gens neurocientíficas, abor-dagens biológicas, mas nãopode esquecer que tudo quan-to você faz, tudo quanto vê,pensa, está sob a influência dacultura, da linguagem. Da lin-guagem exprimindo a cultu-ra, sendo ao mesmo tempoum obstáculo, porque a cul-tura ao cunhar a linguagem,cunha de tal maneira, quevocê vê apenas aquilo para oqual a cultura tem palavras.Então, desde aí, você tem

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uma divisão da Psicologia. AHistória da Psicologia não foioutra: de um lado a Psicolo-gia Social, e de outro, a Psi-cologia Biológica. Quando sefala de uma Psicologia Bio-lógica, pensa-se numa Psico-logia totalmente dominadapela metodologia das ciênci-as físicas naturais. Mas aítambém cabe uma outra di-visão: você pode descobrirque o corpo não é um corpoqualquer, ele está dominadopela mente, que é um produ-to emergencial. Surge emer-gentemente a partir do mo-mento que ela emergente-mente surge e passa a domi-nar o corpo. Então, não pos-so estudar o corpo como umobjeto qualquer, tenho de es-tudar o corpo próprio, talcomo eu experimento, e euexperimento não como umacoisa, mas como algo que étotalmente diferente do resto.Então, já há uma divisão e adivisão permanece. Quandoos neurocientistas se debru-çam procurando as bases damemória no cérebro, estão fa-zendo algo que é científico,mas quando se estuda a me-mória do ponto de vista soci-al, também é ciência pura,mas a metodologia é outra.Então, pensar na unidade da

Psicologia é, a meu ver, difí-cil de conseguir, embora te-nha sido sonho dospositivistas.

(EP): E, dentro desta disper-são toda do conhecimento,do saber psicológico, como osenhor vê o aparecimentodessas abordagens corpo-rais, místicas?

(AGP): Essa é outra coisaque é importante, eu tenhoum trabalho, chama-se Auto-matismo e Subjetividade; euescrevi inspirado em Pascal.Pascal tem dois pensamentosextraordinários: ele mostraque eu posso alterar a menteatravés do corpo e posso al-terar o corpo através da men-te. Ele é dualista cartesiano,mostra que posso desenvol-ver em você humildade, mo-déstia, através da exigênciade que você assuma determi-nadas posturas. Por exemplo,quando você se ajoelha, quan-do olha de baixo para cima,você está de certo modo sen-do levada a sentir-se inferiora quem você olha. E o ato deajoelhar é sentir humildade.Eu posso desenvolver, atravésde determinadas práticas físi-cas, uma série de mudançaspsicológicas. Mas, ao mesmo

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tempo, posso, através de mu-danças psicológicas, determi-nar efeitos totalmente diver-sos no campo físico. Foi o quefez Freud, quando trabalhavacom a histeria. Ele mostravaque o ato de falar determina-va alterações internas, ele selibertava. Catarticamente. Éum tema tipicamentepascalino, que mostra comonós encontramos em Pascaluma abordagem interessantesobre as relações do corpocom a mente.

(EP): E quanto às chamadasterapias alternativas?

(AGP): Recentemente fuiconvidado para falar sobreesse tema, pela PUC. Elestêm um centro de Teologia,uma associação de psicólogoscristãos e um centro de Fé eCiências. Pediram que eu fos-se mais cedo para ser apresen-tado aos psicólogos cristãos,e lá eu encontrei realmentemuitos terapeutas. Eram as-sociados a esse grupo de cris-tãos. Encontrei alguns quepraticavam a terapia das vi-das passadas, apesar de serum centro católico. Outrospraticavam a terapia pela ora-ção. Um crente, que estáorando para Deus com fé,

pode, pela auto-sugestão, terbenefícios terapêuticos. Des-cobri ainda que havia uma li-nha na terapia de vidas pas-sadas que diferia da outra, aque acredita realmente que oindivíduo está reencarnado.Havia lá uma mineira que in-ventou uma coisa, que me pa-receu mais inteligente. Umaterapia das vidas passadas,como se a vida não tivessesido vivida, a vida que o in-divíduo gostaria de ter vivi-do. É mais projetiva, traduzmais ou menos as caracterís-ticas de personalidade. Acheimais interessante. Mas o queme irrita muito na terapia dasvidas passadas é que o sujei-to sempre foi uma persona-gem importante do reino deLuís XVI , Luís XIV, e eu nãovejo ninguém sendo um mi-serável, um sapateiro, nin-guém tendo uma função hu-milde. Parece que o pobre jámorreu mesmo, não tem nemmesmo direito a reencarna-ção, só quem reencarna são osricos. Isso me irrita, pois é ocontrário de tudo quanto eusei de História da Psicologia,e de Psicologia histórica, oque eu aprendi em Psicologiahistórica, que não tem nada aver com História da Psicolo-gia.

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(EP): O que é a Psicologiahistórica?

(AGP): É uma corrente nocampo da Psicologia, que es-tuda como os processos men-tais se alteram com o tempo.Os gregos não inventaram arazão, mas o tipo de razão, erealmente, a função do tem-po altera não só o corpo, masa mente, e os processos tam-bém se alteram com o tempo.Mas, voltando à sua outrapergunta, o que me impressi-ona é que as chamadas tera-pias das vidas passadas igno-ram a Nova História: a His-tória colocada não do pontode vista dos reis, das classesmais poderosas e dos grandesgenerais, mas a história dopovo. Na História tradicional,o povo não era lembrado, eestas terapias repetem isso.

(EP): E quanto às aborda-gens esotéricas?

(AGP): Eu acho essa preocu-pação em buscar o Oriente,que é uma fuga de nossa cul-tura para outra, é sempre ex-pressiva de um certodesajuste. Quem leu As duasfontes da moral, de Bergson,sabe que os místicos hindusnão atingiram um grande ní-

vel; os poucos místicos quealcançaram um maior nívelforam posteriores a Cristo, jáforam, de certo modo, influ-enciados pela tradição cristã.Por outro lado, na Grécia hou-ve misticismo. O ofismo foium produto do culto de Deus,de Dionísio. O ofismo trans-formou-se em pitagorismo.Os gregos, pelaracionalidade, superaram atradição mística e converte-ram-se numa tradição real-mente racional. E com issonão tiveram misticismo. Osgrandes místicos foram oscristãos porque, apesar dosjudeus terem um sistema mís-tico, com grandes profetas,foram muito marcados pelonacionalismo. Os judeus nun-ca fizeram proselitismo, oscristãos é que fizeramproselitismo. Os cristãos de-sejam que o cristianismo sejacada vez mais numeroso, quevenha mais gente para a cris-tandade, mas os judeus se fe-charam, é uma religião naci-onal. Então, o cristianismo,sendo uma religião universal,teve um nível de alcance mai-or. Isso dito pelo próprioBergson, que era judeu. Naépoca da perseguição nazis-ta, Bergson estava com febrede 40 graus, com pneumonia,

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quando soube que todos osjudeus estavam sendoconclamados a se inscreve-rem num registro de judeus,para serem possivelmenteperseguidos. Ele se levantouda cama e, em pleno inverno,colocou-se para ser registra-do como judeu, embora já ti-vesse se convertido ao cato-licismo. Isso mostra que, na-quele momento de dificulda-de, ficar ao lado da antiga li-gação religiosa que ele man-tivera era o mais importante.Mostra o vínculo com suacultura. Então, buscar no Ori-ente uma orientação melhora que nós temos no Ociden-te, acho que é uma fuga dacultura, um desajuste. Nãovejo nada de melhor que sepossa ter do lado de lá. Há atéum trabalho de Max Weber,que é fantástico. O Weber écontra o historicismo, que éa doutrina da história que éregida por leis. Por ela, po-deríamos prever o rumo dahistória. Ele era contra e nosmostra que realmente a pre-visão histórica é impossível,porque o que prevalece nahistória são os fatos banais;os dados contigentes, que têmefeitos incríveis, que alteramqualquer predição. Ele chamaatenção para o fato de que a

nossa cultura é eminentemen-te grega por um fato extrema-mente banal. Nossa culturateria sido, com todos os mo-tivos mais relevantes, umacultura religiosa, do tipopersa. Mas não foi porquehouve uma batalha banalíssi-ma, pequeníssima, insignifi-cante, uma batalha de mara-tona, no desfiladeiro dasTermópilas, quando 300 gre-gos derrotam o exército persa.E derrotando o exército persa,eles impediram que os persasfizessem na Grécia o que fi-zeram em todas as colôniasque eles conseguiram domi-nar no Oriente. Ou seja, elesestabeleciam ligações com areligião dominante e impu-nham a religiosidade, o quepermitia a eles o domíniomais fácil. Na Grécia, quemvenceu foi a razão, e a cultu-ra que nós herdamos foi a gre-ga.

(EP): Freqüentemente faz-se uma ligação entre as idéi-as de Freud e Marx. Qual éa origem desta associação?

(AGP): Realmente é muitofreqüente esta ligação entreFreud e Marx. Porque Marxfoi o primeiro a fazer umacrítica a Descartes, na medi-

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da em que Descartes conside-rava que o mundo pode nãoexistir, mas eu existo. Se euduvido, eu penso. Eu possoduvidar do mundo, o mundopode ser um sonho, uma alu-cinação. Ainda que seja umsonho ou uma alucinação,existe aquele que sonha e vivea alucinação, que sou eu. En-tão, a minha consciência éalguma coisa que constituium ponto de partida. E Marxdizia que existe uma falsaconsciência; mostrou que aconsciência pode fraudar, er-rar. Ele trabalhou muito como conceito de falsa consciên-cia no sentido de que eu, porexemplo, não sei quais osmotivos pelos quais possaagir desta ou daquela forma.O operariado usava motivosque não eram dele, motivosque eram exatamente da clas-se dominante. Aí está umexemplo de falsa consciência,de uma ideologia pejorativa,negativa, aquela que faz comque eu sustente como vanta-joso para mim, um determi-nado motivo que me leva aagir, e que, na verdade, é omotivo que só interessa àque-les que dominam a situaçãosocial. Então, Marx foi umdos que trabalhou muito comisso. Recentemente escrevi

um artigo sobre Lenin eFreud, no qual discuto um tra-balho que Lenin escreveu em1902: O que fazer”. Leninsustentava a tese de que ooperariado perdeu a força re-volucionária porque um ope-rariado que vive no sistemamarcado epistemologicamen-te por certas categorias im-postas pela classe dominantenão pode senão pedir aumen-tos de salário. Então um PTsó poderia, segundo Lenin,aspirar e reivindicar aumentode salário, nunca poderia pen-sar na eliminação do sistemaassalariado. Para isso serianecessário alguém que pudes-se pensar sem as categoriasque dominam o sistema; sóalguém de fora. Ele introduza idéia de que somente al-guém de fora, que não sejacontaminado pelas categori-as lógicas e epistemológicasdo sistema, é capaz de jogarabaixo este sistema. Ele ima-ginou que isso fosse trabalhopara o Partido Comunista,arregimentando intelectuaisdesvinculados do sistema eque poderiam ter liberdadepara pensar outras categorias.E foi isso que inspirouMarcuse, quando ele imagi-nou que o operariado tinhaperdido força revolucionária,

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embora com uma ascensãomuito grande no primeiromundo, mas ele tinha de jo-gar muito com a possibilida-de de que a sociedade pode-ria ser modificada peloshippies, no final dos anos 60.Exemplo disso é o filme “Umestranho no ninho”, um filmetipicamente marcusiano, em-bora pouca gente tenha per-cebido isso. O momento quemarcou é quando o JackNicholson tenta levantar, nãosei se é um cofre, para jogarcontra os grades e se libertar,mas não consegue. Quemconsegue é um índio, alguémde fora do sistema. De outracultura, não contaminado pe-las categorias ideológicas do-minantes. Isso é tipicamentemarcusiano.

(EP): No seu texto “Acercado corpo máquina e do cor-po próprio”, o senhor discu-te o outro lado do dualismocartesiano. A consciência, amente pode fraudar. E o cor-po?

(AGP): O conceito de corpoé muito importante. Os psi-canalistas só falam em corpoerógeno, o aspecto sexual.Nesse trabalho, eu falo de umcorpo como sendo não meu;

eu não tenho um corpo, eusou um corpo. Há uma dife-rença muito grande aí. A mi-nha experiência é de eu souum corpo. As dificuldades dalinguagem, os limites da lin-guagem, fazem com que eume refira a mim mesmo comotendo um corpo. Essa é umainfluência da tradição dua-lista. O meu corpo e a minhamente. Então eu sou platôni-co, todos nós somos platôni-cos, temos uma dívida aqui eninguém consegue se libertardela em relação a Platão. Agrande contribuição de Des-cartes foi apresentar o corpocomo uma máquina. E issofoi de um certo modo aceitoaté pela medicina do séculoXIX. A idéia é a de que, as-sim como se substitui umapeça de um carro, tambémpode-se substituir uma peçade um corpo humano. Comuma diferença: o automóvelpode se sustentar com qual-quer peça, o corpo humanonão. O corpo humano repele.Por outro lado, a idéia de má-quina está presente por influ-ência do Iluminismo. É a ra-cionalização do trabalho, aidéia de divisão do trabalhoem atividades elementares detal maneira que o indivíduose automatiza. E isso foi cri-

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ticado genialmente porChaplin em “Tempos Moder-nos”, quando ele passa o tem-po todo repetindo movimen-tos. Então todo o processo docapitalismo industrial no sé-culo XIX se inspirou em Des-cartes e inspirou-se na racio-nalização do trabalho, no fun-do transformando o trabalha-dor numa máquina. Corres-ponde, de um lado, à linha fi-losófica com Descartes e, deoutro lado, a linha social coma racionalização do trabalho,transformando o Homemnuma máquina. E, obviamen-te, quando Marx fez a grandecrítica do capitalismo, ele es-tava tentando libertar o serhumano dessa condição. E,em princípio, todo psicólogoindustrial, que faz PsicologiaIndustrial tem de trabalharmuito com isso. Mas, infeliz-mente, em geral, os psicólo-gos que se dedicam à Psico-logia do Trabalho ficam intei-ramente integrados ao Siste-ma, porque falta a eles a for-mação em História Social.Eles não têm nenhuma visãode História Social.

(EP): E por que ocorre isso?É um problema de formação?

(AGP): Eu tenho uma razãomuito simples. Vou tomar

meu próprio exemplo. A pri-meira cadeira que eu dei naminha vida, em 1940, no iní-cio da minha carreira, foi so-bre História Econômica. Hojeestou com 56 anos de sala deaula. Eu me lembro até hoje,dei um curso sobre economiapré política - a economia dosprimitivos, em que eu me uti-lizava muito dos antropólo-gos, depois eu discutia a eco-nomia grega, que não conhe-cia a propriedade privada,conhecia a propriedade fami-liar, e com as revoluções, astentativas de implantar naGrécia a reforma agrária. De-pois, eu estudava a economiaitaliana romana, depois a eco-nomia medieval, com o sis-tema feudal, com o sistemadas corporações de ofício, ea origem progressiva do sis-tema capitalista, através daevolução das cidades, asquais tiveram que ultrapassaras muralhas que as cercavam,e tudo quanto estivesse foradas muralhas, fugia ao con-trole das corporações e, con-seqüentemente, permitia aeconomia de mercado. Foi aíque começou o capitalismo.E depois do capitalismo,Marx, com o estudo do capi-talismo industrial, comercial,financeiro e o imperialismo.Foi um curso que eu dei de

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1940 até 1945, dava a visãohistórica. Então, eu acho quea falta de formação em His-tória Social impede a visãohistórica dos psicólogos e osintegra ao Sistema.

(EP): Que outras disciplinasseriam importantes na for-mação do psicólogo do tra-balho?

(AGP): Acho o estudo daHistória do Trabalho impres-cindível. O estudo históricodo trabalho é uma coisalindíssima, porque nós temosduas grandes influências so-bre a nossa cultura: a influ-ência judaico-cristã e a influ-ência grega. Infelizmente,prevalece na área cultural, ainfluência grega. A influênciajudaica ficou principalmentelimitada à área religiosa; agrande influência foi a grega.E o conceito de trabalho quenos foi transmitido pela tra-dição judaico-cristã é o traba-lho como pena, pelo pecadooriginal. O homem pecou,então, vai ganhar a vida como suor do rosto, a mulher vaiparir com dor e a serpente vairastejar por toda eternidade.É uma idéia de punição terrí-vel que recebemos da tradi-ção judaica, o trabalho como

uma maldição, um castigo.Na tradição grega, o trabalhoera escravo, mas não era aescravidão que nós conhece-mos depois da descoberta daAmérica; era a escravidão dosprisioneiros de guerra, quepoderiam ser intelectuais,príncipes e até nobres. Erampresos e transformados emescravos para o trabalho. Naverdade, em Platão, nas Leis,já há um pequeno texto, co-mentado até por Marcuse, noqual ele diz que o trabalhopode ser perfeitamenteerotizado, o trabalho pode seralgo realizado com grandeprazer, com um imenso pra-zer. É a possibilidade de queo trabalho seja uma coisamuito agradável. E eu penseique esta pudesse ser uma tesenotável de Claparède.Claparède escreveu um textonotável sobre trabalho e jogo,no qual ele mostra que o tra-balho nas suas formas supe-riores identifica-se perfeita-mente com o jogo e, só nasformas inferiores, é que ele sedivide. O jogo é sempre ale-gre, e o trabalho, nas formasinferiores, é escravo, é puni-ção. Por exemplo, o jogo dexadrez é terrível, no sentidode levar o sujeito à exaustãoe, entretanto, é um jogo ex-

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tremamente agradável. O tra-balho é tão agradável que oindivíduo esquece de jantarou almoçar. Se ele está envol-vido no tema que o está en-cantando, se ele está tendoinsights, ele não quer nem serperturbado.

(EP): É essa sua experiên-cia pessoal com o trabalho?

(AGP): Felizmente, eu tenhoessa experiência de trabalho.Eu trabalho muito, escrevomuito, mas escrevo comenorme prazer e fico felizquando eu termino um artigo.É como se eu tivesse tiradouma loteria. Quando eu tenhoidéias que me parecem origi-nais, eu me sinto assim comoagraciado com presentes quenão têm preço. Mas, paraisso, é importante que a gen-te estude a História do Tra-balho, o trabalho na IdadeMédia, na Idade Moderna, osignificado da divisão do tra-balho, tudo isso fez com queo homem perdesse a visão doconjunto e se sentisse real-mente infeliz, porque nãochega a produzir nada quepossa ter sentido. Mas, aomesmo tempo, eu chamoatenção para o fato de que sealguém é um bom marcenei-

ro, mas trabalha numa loja,numa fábrica, trabalha 8 ho-ras, e quando vai para casa,vai para o fundo do quintalpara fazer os móveis de casa,isso pode ser algo muitoprazeroso. É um prazer por-que ele é um artista, e um ar-tista não se cansa porque eleestá sendo profundamente be-neficiado pelo ato de criação.Mas isso não se estuda emPsicologia do Trabalho. Ge-ralmente como é dada é umacadeira triste, e o tema é real-mente lindo. Seria necessárioque se estudasse o conceito detrabalho com a visão filosó-fica e histórica para se com-preender a própria atuação dopsicólogo. Por exemplo, umacoisa que me irrita é o empre-sário dizer: eu garanto 5.000empregos, dou 5.000 empre-gos, sou importante porqueforneço empregos. A formu-lação está errada, ele não dá,ele precisa de 5.000 trabalha-dores para que ele possa rea-lizar o que está querendo.Mas ele inverte e dá a impres-são que ele é que está doan-do, quando na verdade o atode produção é coletivo, a re-partição que é injusta. A in-justiça começa no momentoem que se divide o apurado,mas o ato de produção é ab-

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solutamente um ato de natu-reza social; é sempre funda-do num processo cooperati-vo. Está todo mundo traba-lhando, inclusive, o própriodono da empresa também tra-balha. No fim, o operário ga-nha um salário vil, o saláriomínimo, e o empresário ficacom quase tudo. A questão éque não se olha para o outrocom fraternidade, que foi agrande descoberta da Revo-lução Francesa. A liberdadeé incompatível com a igual-dade, só deixando de sê-la,pela fraternidade.

(EP): E, de modo geral,como o senhor vê a questãodo ensino e da pesquisa emPsicologia na academia, nasuniversidades?

(AGP): Cada vez mais achoque o ensino está totalmenteerrado. Quando eu começoum curso, peço aos alunosque não acreditem em nadado que eu vou dizer. Peçoapenas que tomem aquilocomo um estímulo para o es-tudo, mas não acreditem emnada, pois se tudo que eu dis-sesse fosse verdadeiro, nãohaveria História da Ciência.A História da Ciência é umahistória de erros, que se cor-

rigem continuamente e, aomesmo tempo, uma lição demodéstia. Estudar História daCiência é ser modesto, é per-ceber que todas as chamadasVerdades, que foramengrandecidas, de repente fo-ram jogadas abaixo. Nós vi-vemos numa cultura centradana importância das respostas- e as respostas são decora-das. Às vezes, numa sala deaula, ninguém pensa, o pen-samento é a coisa mais rara.Nietzsche tem uma frase ma-ravilhosa: “na Alemanha jánão se pensa mais. Repete-se”. A verdade é que quandodigo que não se pensa numasala de aula, é porque o pro-fessor está ensinando um fal-so problema, porque ele co-nhece o resultado, então paraele não é um problema. E osalunos não escolheram aque-le problema, não o descobri-ram. Estão ali atendendo auma solução, aprendendouma solução; o que é impor-tante é a solução, é aprendera solução. Quando mais im-portante do que qualquer so-lução que se aprenda, é a im-portância da pergunta. Porquea pergunta revela uma moti-vação epistêmica, revela que,de repente, você viu algumacoisa e se espantou; exige

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uma resposta, uma explica-ção, uma resposta. Por exem-plo, na medida em que a cri-ança faz perguntas e o adultoresponde, ela vai diminuindoa freqüência de perguntas.Quando ela se converte numadulto, não faz mais pergun-tas, ela repete respostas dadaspelo professor em sala deaula. O professor, por sua vez,ouviu do seu professor aque-las respostas. Ele repete aqui-lo, a segunda geração repetenovamente, a terceira geraçãorepete e realmente o ato deperguntar é raro. Eu costumodizer que o bom professor éaquele que, quando sai da salade aula, sai sabendo mais, elenão se limitou a repetir. É pre-ciso que a aula seja um mo-mento para pensar e o profes-sor pense também que estejaali, humildemente, paraaprender um pouco mais. Àsvezes, o aluno faz uma per-gunta e o professor não dáatenção, e aquela pergunta erarealmente importante. É pre-ciso valorizar a pergunta. Naárea da pós-graduação,estamos dominados pelacompulsão à repetição. E issoé uma prática mundial. Quan-

do você entra no mestrado, aprimeira providência é encon-trar um professor para aorientação. O professor diz,então, que só orienta se for naárea dele, e a área dele é a áreado professor que o orientou.O professor que o orientoutrabalha nessa área tambémporque foi orientado poralguém dessa área. O queocorre é que todo mundo estárepetindo, trabalhando compequenas variáveis, mas nomesmo problema. Oimportante no mestrado é oaluno ter coragem de dizer:“eu gostaria de estudar isto,isto é que me interessa”, e oprofessor dizer: “eu não sei,mas vamos estudar juntos”.Ele tem muito mais estudo,muito mais disponibilidadede leitura que o aluno, então,ele pode ajudar, mesmo quenunca tenha feito um traba-lho naquela área. Ele vai es-tudar junto com o aluno eambos vão aprender e progre-dir.

(EP): Muito obrigado porsua entrevista.

(AGP): Eu é que agradeço.