Angel Vianna Umabiografia Da Danca Contemporanea

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    Angel Vianna:Uma Biografia da Dana Contempornea

    Por

    Ana Vitria Silva Freire

    _________________________________________

    Dissertao Apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em Educao Fsica daUniversidade Gama Filho

    Como Requisito Parcial Obteno doTtulo de Mestre em Educao Fsica

    Fevereiro, 2004

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    Angel Vianna:Uma Biografia da Dana Contempornea

    Ana Vitria Silva Freire

    Apresenta a Dissertao

    Banca Examinadora

    ______________________________________Prof. Dr. Antonio Jorge G. Soares

    - Orientador -

    _______________________________________Prof. Dr. Lamartine Pereira DaCosta

    ______________________________________Prof. Dr Julieta Calazans

    Fevereiro/2004

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    Aos meus filhos, Anastcia e Jos,a quem espero despertar o desejo dapesquisa e amor profisso.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu marido Amin, por me encorajar sempre na minha profisso.Ao meu orientador Antnio Jorge Soares, pela credibilidade eincentivo.

    Ao Prof. Jos Geraldo do C. Salles pela sua co-orientao e dedicaosensvel ao meu projeto.

    Ao Prof. Lamartine Pereira DaCosta pela sua visibilidade, sempreapontando alm.

    Prof. Julieta Calazans pela sua disponibilidade e exemplo degenerosidade no meio acadmico.

    amiga e colega Andra Bergallo, por mostrar que a persistncia amelhor ferramenta contra o desnimo.

    Aos depoentes, Ilka Nazar, Dulce Aquino, Letcia Teixeira, AlsniaBernardes e Regina Vianna, entre outros tanto significativos, pelacontribuio dos seus relatos e memria, apontando sempre um novoolhar.

    A Andra Chiesorin e Vernica Prates pela ajuda significativa na buscados registros e fotos e sua documentao.

    A Angel Vianna pelo exemplo de transformao e dedicao integral vida e arte. Aqui segue um pouco do meu reconhecimento eadmirao.

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    Freire, Ana Vitria Silva (2004). Angel Vianna: Uma Biografia da DanaContempornea. (Dissertao de Mestrado). Rio de Janeiro.PPGEF/UGF.

    Orientador: Prof. Dr. Antonio Jorge G. Soares

    RESUMO

    O presente trabalho teve como prioridade resgatar, pelo vis damemria / histria oral, parte da trajetria de vida de umapersonalidade da dana brasileira, Angel Vianna. Paralelamente, outrospersonagens e acontecimentos importantes da histria da dana sotrazidos cena, auxiliando a preencher parte da lacuna que se verificana historiografia da dana no Brasil. A pesquisa, coleta de dados eposterior anlise crtica confirmam o pioneirismo de Angel Vianna nombito da educao da dana no Brasil, bem como sua importantecontribuio na formao de profissionais atuantes em diversossegmentos sociais e na implantao de frentes inovadoras de trabalhosartsticos, educacionais e teraputicos. Tendo se tornado, atravs deuma prxis historicamente construda, conhecedora profunda dasquestes que envolvem o corpo, Angel Vianna continua hoje, aos 76anos de idade, voltando-se para novas experincias com o mesmo viode quem est comeando a aprender. Da se deduz que a presentepesquisa no ser a nica a abordar a trajetria pessoal e profissionaldessa pioneira do movimento de expresso corporal no Brasil eprimeira pessoa a receber a titulao de Notrio Saber em Dana pelaUniversidade Federal da Bahia. Outros estudos, de universidades einstituies de pesquisa da dana, certamente procuraro explorarnovos ngulos e aprofundar o conhecimento sobre vida e obra dessapersonalidade singular: a Mestra Angel Vianna.

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    Freire, Ana Vitria Silva (2004). Angel Vianna: A biography of thecontemporary dance. (Master Program Dissertation). Rio de Janeiro.PPGEF/UGF.

    Advisor: Prof. Dr. Antonio Jorge G. Soares

    ABSTRACT

    The priority of this work is to rescue by means of memory/oral historypart of the life story of a Brazilian dance personality, Angel Vianna. Atthe same time other important characters and events in the history ofdance are brought forward, helping to fulfill part of the void found in theBrazilian dance historiography. The research, collection of data, andposterior critical analysis confirm how Angel Vianna was a pioneer inthe dominion of dance education in Brazil. They also confirm herimportant contribution to the training of professionals who function invarious social segments, and the implantation of innovating fronts forartistic, educational, and therapeutic work. Having acquired through ahistorically constructed praxis a profound knowledge of matters relatedto the body, Angel Vianna, who is now 76, continues to apply herself tonew experiences with the same energy of someone who is justbeginning to learn. Therefore you may conclude this current researchwill not be the only one having as subject the personal and professionalstory of this pioneer of the Brazilian body expression movement, thefirst person to ever achieve a title of Notorious Knowledge in Danceby Federal University of Bahia. Universities and dance researchinstitutions will certainly endeavor to explore new angles and deepenthe knowledge on the life and work of this single character: MasterAngel Vianna.

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    SUMRIO

    Pgina

    Lista de fotos ....................................................................................................

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    INTRODUO: UM PONTO FIXO NUM MUNDO QUE SE MOVE .............. 1

    CAPTULOS

    I. O BERO DA SUA FORMAO: MINAS GERAIS .............................. 15

    1.1 - A Gerao Complemento .............................................................

    25

    1.2 - A Escola Klauss Vianna ...............................................................

    30

    1.3 - O Bal Klauss Vianna ...................................................................

    34

    II. A PRIMEIRA VIAGEM DE MINAS GERAIS PARA A BAHIA ............... 42

    2.1 - Salvador e a UFBA .......................................................................

    42

    2.2 - Clssico x Moderno: a conquista de um espao .......................

    48

    2.3 - Angel projeta Klauss ....................................................................

    52

    III. DA CHEGADA NO RIO DE JANEIRO E OS DESAFIOS ...................... 57

    3.1 - A Expresso Corporal ..................................................................

    59

    3.2 - Trajetos e projetos de Angel Vianna ...........................................

    64

    3.3 - O Grupo Teatro do Movimento ....................................................

    71

    3.4 - Rainer Vianna e a gentica se replicando ..................................

    78

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    IV. DAS ESCOLAS FACULDADE ANGEL VIANNA ............................... 83

    4.1 - O primeiro curso de formao .....................................................

    83

    4.2 - A Escola Angel Vianna..................................................................

    86

    4.2.1 - Atividades e projetos da escola de ensino mdio ............... 91

    Grupo de dana de cadeiras de rodas ............................

    91

    4.3 - A Faculdade Angel Vianna .......................................................... 95

    4.3.1 - Projetos de extenso da faculdade ....................................... 98

    O Trabalho Social ............................................................

    98

    V. A MESTRA ANGEL VIANNA E SUA PERSPECTIVA PEDAGGICA.. 106

    CONCLUSO ......................................................................................... 115

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................... 119

    BIBLIOGRAFIAS ...................................................................................

    122

    Videografias ..........................................................................................

    124

    Lista de Fotos Pg.

    Foto 1Carlos Leite e Angel, Belo Horizonte, 1953 ............................................... 16

    Foto 2Angel com 5 anos de idade, Belo Horizonte 1933 .....................................

    17

    Foto 3 Angel participando de um desfile de moda, Belo Horizonte 15/07/1950 18

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    Foto 4Escultura p de Bailarina Belo Horizonte ...............................................

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    Foto 5Escultura Cabea - Belo Horizonte .............................................................

    20

    Foto 6 Primeira coreografia danada por Angel, no Ballet de Minas Gerais.Coreografia Odalisca de Carlos Leite, Belo Horizonte, 1950 ................

    22

    Foto 7 Ballet de Minas Gerais. Coreografia Silfides de Carlos Leite, BeloHorizonte, 1951 .............................................................................................

    23

    Foto 8Casamento de Angel e Klauss Vianna, Belo Horizonte, 29/06/1955 ....... 24

    Foto 9

    Angel e Klauss, Belo Horizonte em 1957 ...................................................

    28Foto 10

    Klauss dando aula, Belo Horizonte, 1960 ...................................................

    32

    Foto 11 Ballet Klauss Vianna. Coreografia O Caso do Vestido de KlaussVianna. Angel (em p), Belo Horizonte, 1960 ............................................ 36

    Foto 12 Ballet Klauss Vianna, Coreografia Arabela a Donzela e o Mito deKlauss Vianna. Angel (4 da esquerda para a direita), Belo Horizonte,1958 .............................................................................................................. 36

    Foto 13 Ballet Internacional Nina Verchinina. Coreografia: El Amor Brujo.Angel (centro) ao lado de Nina (lado esquerdo de Angel). TeatroMunicipal do Rio de Janeiro, 1957 ..............................................................

    37Foto 14 Ballet Internacional Nina Verchinina. Coreografia Ballet Romntico,

    Angel Vianna (centro). Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 1957 .......... 38

    Foto 15 Ballet Klauss Vianna. Coreografia Concerto Barroco de KlaussVianna. Angel (na extrema direita). Belo Horizonte, 1957 ........................ 39

    Foto 16 Angel ensaiando a coreografia O Caso do Vestido. BKV, BeloHorizonte, 1959 ............................................................................................ 41

    Foto 17Angel e Klauss, Rio de Janeiro, 05/06/1974 .............................................. 54

    Foto 18 Aula de expresso corporal na academia Tatiana Leskova, Rio deJaneiro, 1966 ............................................................................................... 60

    Foto 19 Aula de expresso corporal da academia Tatiana Leskova, Rio deJaneiro, 1966 ................................................................................................ 67

    Foto 20GTM, Coreografia Domnio Pblico de Oscar Araz, MAM-RJ, 1996 ....

    73

    Foto 21 Grupo Teatro do Movimento, Coreografia Mal Aria B de AngelVianna, Rio de Janeiro, 1979 ...................................................................... 76

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    Foto 22 Grupo Teatro do Movimento, Coreografia Construo de AngelVianna, Rio de Janeiro, 1978 .......................................................................

    76

    Foto 23Rainer Vianna, coreografia As Mos, 1984 ................................................

    79

    Foto 24 Coreografia, Movimento Cinco-Mulher de Rainer Vianna. Angel(direita) e Neide Neves (esquerda). Teatro Villa Lobos, Rio de Janeiro,1987 ............................................................................................................... 80

    Foto 25 Klauss, Angel, Rainer, Tain (filha de Rainer) e Neide Neves (esposa).1990 ............................................................................................................... 82

    Foto 26 Angel na peca de Teatro Rosa Tatuada, Direo de Carlos Ripper,Teatro Glria, Rio de Janeiro, 1985 ............................................................ 101

    Foto 27 Angel, Solo Inscrito, coreografia, Paulo Caldas, Dana Brasil - RJ,1999 ............................................................................................................... 103

    Foto 28 Solo Angel Simplesmente Angel, coreografia Angel Vianna, ConfortDana, SP:1997..............................................................................................

    105

    Foto 29Angel Vianna, Rio de Janeiro, 1999 ............................................................

    106

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    INTRODUO UM PONTO FIXO NUM MUNDO QUE SE MOVE *

    A necessidade de se falar de uma trajetria artstica no est

    contida somente no reconhecimento de grandes feitos, tambm no

    desfiar silencioso e cotidiano de horas e horas de dedicao a pensar e

    a fazer arte, passo a passo. Essa voz se faz necessria e urgente,

    sobretudo em se tratando da histria da dana, devido ao atraso

    historiogrfico 1 a que foi relegada a dana como expresso artstica.

    Um dos motivos do atraso historiogrfico da dana pode ser

    fruto do aspecto sagrado, dos mitos e das interdies a que o corpo foi

    * Ziff, P.apud Bourdieu (2001:186).1 Apesar de o primeiro registro de dana ser do ano de 1588, sob o ttulo deOrchesographie Tratado em Forma de Dilogo para que todas as pessoas possamfacilmente aprender as prticas honestas dos exerccios da dana , este documentoapenas tentava reproduzir, sem sucesso, os movimentos de dana, que na pocaainda no eram codificados. O primeiro tratado nessa direo foi de 1661, um registrode prtica mais sistematizada, que chamou-se: Premiere Acadmie Royal de Danse,na Frana; mas este tambm no conseguiu ser elaborado, pois para tanto foiconvocado um grupo de 13 padres que, segundo a histria, s bebiam. A Igreja,naquele perodo, valorizava a domesticao do movimento para manter o CorpoReprimido, o Corpo Fechado e o Corpo Vestido, e o ballet das cortes pareciauma sada muito inteligente para tal questo. A segunda tentativa data de 1669 coma Premiere Acadmie Royal du Musique, quando se institui a primeira escola dedana na Frana; onde comea-se a codificar e sistematizar o ensino da dana.

    Existem tratados da Idade Mdia onde a dana consta como expresso artstica semtcnica constituda, mas estes tentavam retratar as danas das cortes, danaspopulares levadas aos sales da nobreza pela classe burguesa que estava searistocratizando, e nesse momento se afastando das suas origens para que, comseus bons modos, polidos e domesticados, serem aceitos nas cortes dos senhoresfeudais.

    O nascimento do ballet (que significa pequeno baile) aconteceu de fato na Itlia, noperodo renascentista, e foi levado corte de Luz XIV por sua esposa italianaCatarina de Mdice. Por isso seu primeiro nome, Ballet Classique De La Reine,quando a Frana assume esta manifestao como smbolo da politesse e a tornaquase uma obrigatoriedade na vida dos nobres.

    Para maior aprofundamento da histria do ballet, ver: Caminada (1999).

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    relegado em nossa civilizao. Noutra direo, o atraso tambm pode

    ter ocorrido em funo da dificuldade de registro devido sua natureza

    efmera: at recentemente, no tnhamos instrumentos para registrarcoreografias e os irreplicveis gestos que acabam ao fim de cada

    espetculo.

    Foi s no sculo XX, com o surgimento do cinema, que a dana

    passou a ter os registros de suas imagens. At este perodo, a memria

    da dana era apenas impressa ou oral. A partir dos anos 1970, o

    coregrafo vanguardista norte-americano Merce Cunninghram realizou

    experincias em torno do grafismo dos movimentos 2 e combinaes de

    seqncias para composies coreogrficas, explorando

    irrestritamente as possibilidades de escrita e criao via computao,

    com o seu programa live forms. 3 No live forms a dana ensaia seus

    primeiros passos na tentativa de ter um registro concreto das suas

    obras. Laban 4 j havia tentado uma forma de registro Labanotation ,

    que no atraiu adeptos pela complexidade e por ser um modelo pouco

    econmico.

    Hoje, pesquisadores da dana j desenvolvem, junto s suas

    instituies acadmicas, projetos de dana e tecnologia com afinalidade no s de agregar valor a essa linguagem, mas, sobretudo,

    2 Grafismo do movimento na dana: l-se desenho do movimento no espao.3 Ver Merce Cunningham - Fifty Years ; a obra mais completa sobre o coreogrfonorte-americano, escrita por David Vaughan, pesquisador que acompanha h mais de30 anos o desenvolvimento da Cunningham Dance Foundation em New York.4 Rodolf Laban (1879-1958), danarino, coregrafo, mestre de ballet e terico. austro-hngaro e alemo. Pesquisador incansvel do corpo e do desempenho em cena,Laban atua em vrias frentes tericas, estabelecendo princpios filosficos, estudos

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    para encontrar formas de melhor decodificar e registrar o sistema

    dana.

    A histria da dana, assim como toda a histria da arte, contada a partir de seus expoentes, das grandes personalidades que

    resistem e sobrevivem justamente por fazer-nos ouvir suas potentes

    vozes. Sujeitos que dialogam com o mundo atravs da sua arte;

    arteses do belo, comunicadores de idias corporais, construtores de

    sonhos, idealizadores, ora glorificados como gnios, ora considerados

    loucos, como ocorreu com Nijinski. 5

    Desde que foi codificada na corte do rei Luz XIV, na Frana, a

    dana e toda a sua evoluo foi passada oralmente, seja nos estdios

    de ensaios, pelos diretores, professores, coregrafos ou ensaiadores 6,

    seja nos sagues dos teatros, por seu pblico leigo e especialista.

    Todo o sistema, filosofia, estticas, tendncias, linguagem e

    repertrios, foram escritos e impressos no corpo e repassados para

    corpos nos estdios de dana, transformando-se em espetculos. O

    pblico experimenta e sabe apenas do produto esttico apresentado no

    espetculo, mas no conhece os caminhos que os artistas percorrem

    em torno das leis do movimento, o teatro total abrangendo Dana-Som-Palavra, ecodificou um sistema de notao para a dana: a Kinetogragraphie ou Labanotation.5 Vaslav Nijinski (1889-1950), bailarino russo, principal solista dos ballets russes dodiretor Serge de Diaghilev, onde mais tarde, por incentivo do prprio Diaghilev,comea a coreografar, mostrando tanto talento quanto irreverncia. Suas obras,expressivamente abstratas, causam grande inquietao para a poca, pois fugiam danarrativa teatral dos libretos clssicos. Por esse motivo, somado ao seutemperamento explosivo, Nijinski, incompreendido, foi considerado louco.6 Ensaiadores: profissionais encarregados de acompanhar os ensaios da companhia,para que todos os erros e defeitos encontrados nas coreografias sejam corrigidos,bem como fazer com que os bailarinos, aps vrias repeties, interpretem e dancem

    cada vez melhor seus trabalhos.

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    em seu processo de criao; no conhece seu ponto de partida, a

    experincia que tiveram com seus mestres, suas parcerias, a formao

    e construo de sua esttica, a projeo e disseminao das suasidias, que podem ou no interferir na tradio da dana.

    A dana deve ser mais que o palco. O movimento da dana se

    materializa nas rotineiras e interminveis aulas. Quem no do meio da

    dana deve achar estranho o fato de uma bailarina profissional fazer

    assiduamente aulas de bal, alm dos exaustivos ensaios. Observe-se

    que est a a base para que os coregrafos pesquisem a fundo seus

    temas, antes de compor suas obras: s um corpo bem treinado fsica e

    esteticamente pode fornecer o terreno para a materializao das

    imagens coreogrficas. Os professores de tcnica 7 necessitam, por

    esta razo, entender no apenas seu instrumental sobre as tcnicas do

    bal moderno e clssico, mas dominar fatores e limites fisiolgicos e

    psicolgicos do corpo humano.

    Uma das possibilidades de fazer histria no campo da dana

    acompanhar as trajetrias de vida dos artistas, mas no s dos

    grandes coregrafos ou bailarinos. Podemos fazer histria tambm a

    partir do registro das companhias, bem como dos relatos de pessoasque no atuaram diretamente no palco, resgatando as memrias

    subterrneas. 8

    7 Denominao dos professores que atuam como treinadores corporais, seja emrelao s tcnicas do bal clssico ou da dana moderna.8

    Sobre memria oficial e memria subterrnea, ver Pollack (1989).

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    A dana construda tambm por produtores, curadores,

    crticos, iluminadores, cengrafos, msicos, ensaiadores etc. Todos

    esses personagens so dignos construtores da histria; em tese, suasbiografias poderiam servir ao historiador para reconstruir uma

    perspectiva de poca ou um determinado contexto cultural. Uma vida

    inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existncia

    individual concebida como uma histria, o relato dessa histria,

    escreve o poeta francs Guy de Maupassant (citado do Pierre Bourdieu,

    2001: 183). Nessa direo, Bourdieu ressalta: a questo dos

    mecanismos sociais que favorecem e autorizam a experincia comum

    da vida como unidade e como totalidade (2001:185).

    por esse vis histrico que tambm pode ser resgatada a

    memria da dana. Muitos personagens j se foram, com suas

    experincias e suas histrias. Certamente aqueles que ficaram,

    souberam de alguma forma deixar seu legado inscrito em corpos, em

    memrias, ou tiveram a sorte de ter suas vidas relatadas em livros,

    mesmo que o objetivo no fosse traar seu movimento artstico no

    mundo, e sim a curiosidade sobre suas excentricidades pessoais.

    No Brasil, pouco ou quase nada se escreveu sobre essespioneiros. No entanto, muitos desses personagens, geralmente

    advindos de outras culturas, ainda vivem e continuam a fazer histria

    no movimento da dana no Brasil. 9 O problema da falta de registro

    9 Como pioneiros, todos estrangeiros, dos principais centros de dana do Brasil,podemos citar: 1- na Bahia, o movimento da dana comea pela implantao da

    primeira faculdade de dana da Amrica Latina, em 1956, na Universidade Federal da

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    histrico escrito se acentua ainda mais quando pensamos nos

    brasileiros que aqui foram formados, construram, fizeram e fazem a

    histria da dana no Brasil.Hoje, no Brasil, mais precisamente na cidade do Rio de Janeiro,

    uma dessas personalidades, que pode ser considerada pioneira e

    autora do movimento da dana contempornea, completa 53 anos de

    vida profissional ininterrupta: Maria ngela Abras Vianna (Angel

    Vianna), brasileira, mineira de Belo Horizonte, um dos exemplos vivos

    que traz como marca do seu trabalho o fazer dirio inquebrantvel, o

    fazer, como ela mesma sentencia, fazendo.

    Angel era inicialmente o nome que seu pai queria ter colocado na

    filha. Por esta razo, esta denominao foi logo assumida: Angel

    Abras. Entretanto, a composio Angel Vianna ocorreu aps o seu

    casamento com o amigo e bailarino Klauss Vianna.

    Angel pode ser considerada a principal replicadora do movimento

    da dana-terapia e expresso corporal no Brasil. Junto com o seu

    companheiro de vida e mestre, Klauss Vianna (1928-1992), ela

    atravessa cinco dcadas de sua vida construindo e solidificando uma

    Escola.A trajetria de vida de Angel Vianna, desde os seus primeiros

    passos em sua terra natal, esteve comprometida com a educao. Mas,

    Bahia, fundada pela polonesa Yanka Rudzka; 2- em So Paulo, em 1940 criada aEscola Municipal de Bailados, com o matre de ballet tcheco Vaslav Veltecheck; 3- noRio de Janeiro, Maria Oleneva dirige a primeira escola oficial de bailados no TeatroMunicipal em 1927. Para uma viso bailarina russa da companhia de Anna Pavlova,

    historiogrfica completa da dana na Bahia, ver Robatto e Mascarenhas (2002).

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    para construir uma escola preciso, antes de qualquer infra-estrutura,

    idias. Embora Angel em nossos dias se confunda com a Faculdade e

    Escola de Dana que recebe seu nome, primeiro falarei das idias queauxiliaram a gestar sua instituio educacional, elaboradas em grupos

    de teatro, de dana, de terapeutas, de msicos, de poetas etc. A

    proposta central era fornecer experincias que dessem a esses atores

    sociais um melhor acesso a seu prprio corpo.

    Angel comea a traar sua trajetria como pensadora,

    educadora e pioneira na formulao de conceitos no campo, aceitando

    os corpos, suas necessidades e diferenas, e fazendo dessas

    diferenas seu instrumental para provocar expressividade.

    Pontuarei aqui aspectos da sua vida e eventos que justificam

    colocar nossa personagem como uma pensadora da arte e uma chave

    de acesso histria da dana no Brasil. No decorrer desta pesquisa,

    personagens e acontecimentos importantes da histria da dana sero

    trazidos cena para cruzar com a trajetria de Angel, auxiliando a

    preencher parte da lacuna que identifico na historiografia da dana no

    Brasil. Estarei concentrada nas realizaes que determinaram e

    estruturaram o olhar contemporneo de Angel Vianna.Angel teve como bero de sua formao artstica a msica, a

    escultura e a dana, paralelamente tendo como referncias os mestres

    inspiradores: Chopin, Guignard e Klaus Vianna. So personagens que

    permaneceram presentes em toda a trajetria, em todas as suas obras.

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    Nossa personagem desejava atingir a perfeio e o absoluto

    dessas trs artes, e delas diz: Com o piano aprendi a ouvir, a escultura

    me deu a percepo do ttil pelo volume das formas, e a dana aperceber o espao. 10 Como se pode perceber, desde o comeo estava

    patente a noo de multidisciplinaridade que acompanha toda sua

    obra.

    Reconhece desde muito jovem a existncia de corpos

    especiais e a necessidade de se ter um olhar especial para com

    esses corpos. O trabalho com pessoas portadoras de necessidades

    especiais comeou ainda em Belo Horizonte, onde, sempre curiosa,

    estudou com importantes profissionais do universo teraputico:

    Roberto Freire (psicanalista) e Norma Jatob ( expert em psicodrama), e

    acabou por fundar um curso de Recuperao Motora e Terapia atravs

    da Dana. Deste curso saiu formada a coregrafa Teresa Taquechel,

    que, incentivada por Angel, criou uma companhia de dana com

    cadeiras de rodas: a Pulsar Cia de Dana. Angel une a msica terapia

    (Musicaterapia), lecionando no Conservatrio de Msica do Rio de

    Janeiro.

    Em sua caminhada pelo Brasil, Angel saiu de Belo Horizonte efoi para Salvador a convite de Rolf Gelewsky, na poca diretor da

    Escola de Dana da Universidade Federal da Bahia. Seu trabalho foi

    atuar como bailarina no Grupo de Dana Contempornea (GDC) da

    Escola, e lecionar, junto com Klauss, aulas de ballet , com uma

    10

    Entrevista realizada pela autora com Angel Vianna, na Escola e Faculdade Angel

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    metodologia inovadora, focada na anatomia do corpo e na livre

    expresso de cada bailarino. O pressuposto era respeitar a

    autenticidade de cada aluno, segundo seu depoimento. Da unio deAngel e Klauss Vianna surgiram vrios projetos conforme veremos ao

    longo desta pesquisa.

    Na passagem pela Bahia, Angel e Klauss tiveram a

    oportunidade de aprofundar tanto os seus conhecimentos sobre a

    anatomia e fisiologia humanas, quanto reforar sua admirao pela

    cultura brasileira (popular e erudita), foco recorrente em todos os

    trabalhos artsticos desses criadores.

    No Rio de Janeiro, Angel e Klauss comearam a desencadear

    um forte movimento no mundo do teatro e da dana, que foi

    denominado Expresso Corporal. 11 Desenvolvida a partir de corpos

    com pouco conhecimento de suas possibilidades fsicas, o movimento

    visa o desenvolvimento artstico, a abertura e conscincia para novas

    possibilidades de trabalhar os corpos, levando em conta a estrutura

    psicofsica, a fragmentao gestual e corporal, para uma melhor

    Vianna, Rio de Janeiro em 25/09/2002.11 No entramos na questo da originalidade conceitual do termo. Sabemos que omovimento das prticas corporais foram surgindo a partir do sculo XX por seusexpoentes: Frederick Matthias Alexander (Inglaterra,1869), Moshe Feldenkrais(Rssia,1904), Gerda Alexander (Alemanha, 1908), Franoise Mzires (Frana,1910),entre outros, e seus discpulos Jacques Lecoc (Frana) e Patrcia Estolkoi(Argentina). O prprio Klauss esteve na escola de Patrcia Estolkoi em Buenos Airesalgumas vezes para realizar cursos, e alguns anos mais tarde Angel a convidou paravir ao Brasil dar cursos em encontros do corpo que promoveu no Rio de Janeiro,como o 1 Encontro Internacional do Corpo e da Dana. Assim, assumimos osconceitos que Angel e Klauss Vianna nomeiam como seu prprio movimento no

    campo da dana.

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    organizao do todo. 12 Este trabalho rendeu prmios de teatro e a

    reformulao de conceitos estticos em cena, experimentados a partir

    dos anos 1980 por grandes nomes da dramaturgia brasileira, comoMarlia Pra, Jos Wilker e o diretor de teatro Jos Renato, entre tantos

    outros artistas do teatro e do cinema.

    Angel e Klauss Vianna desenvolveram mtodos de trabalho

    fsico para atores e bailarinos, elaborando passo a passo o que hoje

    conhecido, aplicado e divulgado nos meios acadmicos e escolas de

    arte sob o rtulo de Tcnica Klauss Vianna (Tavares, 2002).

    Angel no s uma educadora da dana. Ela rapidamente

    ocupa andares, reforma casas, assume espaos pblicos ou privados

    para colocar a dana e sua pedagogia em lugar de destaque. Todos os

    espaos que ela ocupa so pensados e adaptados arquitetonicamente

    para a tarefa que se prope. Sua primeira escola, ainda em Belo

    Horizonte, no segundo andar de sua casa, virou rapidamente um centro

    de referncia da dana em Minas Gerais, e certamente de l cresceu o

    desejo de expanso. Em 1975, com a ajuda do secretrio de Cultura do

    Rio, Paulo Afonso Grizolli, que tambm deu o nome ao espao cultural,

    inaugurado o Centro de Pesquisa Corporal Arte e Educao, maistarde renomeado Centro de Estudos do Movimento e Artes Espao

    12 O ballet clssico visa trabalhar o corpo do bailarino na sua integrao; noconjunto da forma fsica e esttica que se d a sua harmonia. Na dana moderna, pelaprpria evoluo histrica, o homem fragmentado tanto fsica comoemocionalmente. A dana moderna passa ento a focar o corpo fragmentadamente,priorizando o trabalho das partes separadamente, assim como ocorreu com asespecializaes que se fizeram necessrias nas reas de sade; na Medicina, por

    exemplo.

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    Novo, e tambm popularmente conhecido como Corredor Cultural do

    Rio de Janeiro, por aglutinar toda gama de expresses artsticas:

    msicos, atores, pintores, poetas, fisioterapeutas, massagistas,psiclogos, terapeutas corporais e outros profissionais que buscavam

    uma maior compreenso do universo artstico da dana.

    Essa mesma instituio teve seu nome trocado e transformou-

    se, ao longo de vinte anos, na Escola Angel Vianna e na Faculdade

    Angel Vianna. Oficialmente a Escola foi implantada em 1983, e a

    Faculdade em 2001. J em 1985, a escola de dana passou a oferecer

    formao em nvel de segundo grau tcnico, com os cursos de

    formao de bailarinos, recuperao motora e terapia atravs da dana.

    Em 2001 se deu um novo passo, criando-se a faculdade de dana, com

    o curso de Licenciatura e Bacharelado em Dana.

    Na Escola desenvolveram-se projetos, corpos foram

    reestruturados 13, sonhos viraram realidade, verdades foram

    reveladas, mitos foram desmistificados, pesquisas 14 foram realizadas e

    o conhecimento evoluiu, segundo os depoimentos dos alunos e das

    pessoas que direta ou indiretamente participaram desse processo

    formativo.Personagens que hoje contribuem para a histria da dana no

    Brasil saram desses espaos e ocupam direes de companhias de

    13 Refiro-me estruturao de corpos que nada ou pouco tem de conhecimentotcnico, fsico-postural; reestruturao no sentido de dar mais conhecimento,ferramentas para se obter um corpo mais harmnico dentro da sua estrutura fsica.14 No pesquisa acadmica, mas sim pesquisa de movimento ou esttica no mundo

    da dana.

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    dana e escolas. So professores, crticos, coregrafos, bailarinos,

    terapeutas corporais, atores, pesquisadores, video-artistas,

    ensaiadores, espectadores e amantes da dana. Pessoas queencontraram em Angel a confiana para se embrenharem nesse

    labirinto artstico, que s vezes, mesmo sem terem conscincia da

    histria de Angel na dana, rapidamente aprendem a reconhecer nela

    autoridade e um caminho para o autoconhecimento. Ela se tornou um

    ponto fixo que traduz movimento para o mundo.

    Diante dos dados at aqui apresentados, a questo que nos

    move desvendar parte do movimento da dana contempornea 15 no

    Brasil a partir da biografia e trajetria de vida de Angel Vianna. O

    estudo nesta direo visa, via unidade-sujeito, rastrear o percurso de

    Angel e sua repercusso no ambiente da dana, ambiente este que se

    replica em diversos segmentos socioculturais movimentos artsticos,

    educacionais, polticos e filosficos, nos fazendo vislumbrar, pela

    perspectiva do mundo interior de um sujeito, de sua subjetividade, a

    simultnea transformao social sua volta. Tal perspectiva, conforme

    15 Dana contempornea existem vrias abordagens em torno do movimentocontemporneo nas artes. Dependendo do segmento, eles possuem caractersticas eelementos prprios que sinalizam sua esttica, afinados com o momento histrico,poltico e social da sua poca. A dana contempornea, diferente do que aconteceucom as linguagens anteriores, no se deu atravs de ruptura com o estilo anterior,como a dana clssica, que rompeu com o estilo das danas populares, e a moderna,que rompeu com a clssica, negando seus valores e esttica. Na danacontempornea aceita-se a diversidade e a singularidade dos corpos como conceito epressuposto de sua esttica. Mudou-se o foco, a espacialiadade passou daverticalidade para a horizontalidade, exigiu-se mais tnus de seus bailarinos no lugarde uma magreza esquia, a autoria das obras passou a ter valor fundamental na cena,o singular e o especfico, bem como a fragmentao dos temas e dos movimentosrespondem necessidade de um discurso mais preciso e rpido, acompanhando aera tecnolgica em que vivemos. Como perodo histrico, a dana contempornea

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    assinala Vanessa Barros (2001:2), Permite apreender as articulaes

    recprocas entre os fenmenos objetivos, as determinaes

    inconscientes e a experincia subjetiva. Alm disso, abre-nos ouniverso do sentido que o real adquire para os sujeitos.

    Um estudo biogrfico sobre Angel Vianna se torna relevante na

    medida em que atravs dele poderemos revelar parte da histria da

    dana contempornea no Brasil. Assim, realizei um rastreamento em

    artigos, revistas e livros de dana, o que me levou a aferir que pouco

    ou quase nada se tem registrado acerca do seu movimento, apesar de

    nos ltimos cinco anos terem se intensificado as homenagens em

    torno de Angel. 16 Os argumentos elaborados nestas linhas iniciais e as

    grandes lacunas que temos na historiografia da dana no Brasil

    justificam o estudo de carter biogrfico empreendido neste trabalho.

    A histria oral uma tcnica de investigao que pode trazer

    tona o processo social e o conhecimento do passado, repassado e

    revalidado pela inteligncia crtica, ativa e viva na memria dos

    personagens, pois, conforme Barros (2001:2), Cada vida humana se

    revela como sntese de uma histria social. Atravs de sua prtica, o

    est dentro do ps-modernismo, que nasce a partir dos anos de 1970, chegando atos dias atuais. Ver movimento da dana no ps-modernismo (Silva: 2000).16 Exposies de fotografias, programas de tv, palestras em seminrios de dana eeducao, convites para a bailarina Angel Vianna voltar a danar, a realizao de umgrande encontro em So Paulo resgatando o trabalho de Klauss Vianna e,conseqentemente de Angel Vianna, e, mais recentemente o recebimento da titulaode Notrio Saber que corresponde ao grau de doutor primeiro primeiro ttulo dadoa uma artista na rea de dana pela Escola de Dana da UFBA, escola pioneira naAmrica Latina, com 48 anos de existncia. E a homenagem da medalha da Ordem doMrito Cultural, dada pelo ento Presidente da Repblica, Fernando Henrique

    Cardoso, em cerimnia realizada no Palcio do Planalto, em Braslia, no ano de 1999.

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    sujeito singulariza em seus atos a universalidade de uma estrutura

    social.

    Como fontes, utilizei documentos escritos e filmografados(programas e documentrios de tv), jornais, releases de programas de

    espetculo, fotografias, cartas, artigos de livros e revistas, e o arquivo

    pessoal de Angel. Tambm acompanhei durante um ano as aulas da

    professora Angel em seus cursos livres, com a inteno de observar

    mais uma dimenso do seu fazer pedaggico. Isto foi facilitado pelo

    fato de eu ser, desde 2001, professora da Faculdade Angel Vianna.

    Alm dessas fontes, colhi dados realizando diversas entrevistas

    com Angel. Tambm entrevistei pessoas ligadas a ela: diretores,

    coregrafos, bailarinos, alunos, ex-alunos, colaboradores eventuais,

    equipe tcnica e administrativa do ncleo Escola Angel Vianna e

    Faculdade Angel Vianna.

    No decorrer de dois anos de pesquisa, constru um dirio de

    campo. A partir desses registros, a pesquisa passou para outra etapa,

    relacionada organizao sistemtica dos dados levantados. Na

    seqncia, trabalhei com o cruzamento das fontes e dos depoimentos

    relatados.

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    CAPTULO I

    O BERO DE SUA FORMAO: MINAS GERAIS

    Danar bal clssico para mim no era to simples, eu soumuito mais para o expressionismo do que o romntico nadana. Mas eu acho que a base, e a gente tem que entenderque raiz raiz, a histria a histria, e essa tem de serlembrada com carinho, principalmente o mestre! . 17

    Angel teve como mestre em sua formao na dana o professor

    de bal clssico Carlos Leite (1914-1994) 18, natural de Porto Alegre, que

    foi do Rio de Janeiro para Belo Horizonte, em 1948, para ministrar aulas

    na Unio Nacional de Estudantes (UNE) a convite do Diretrio Central

    dos Estudantes (DCE). Carlos Leite, ao coreografar e dirigir o Ballet da

    Juventude, em 1947, teria causado uma importante impresso em

    Angel. Para ela, Carlos Leite era o pioneiro da dana clssica em Belo

    Horizonte, e ainda hoje continua sendo sua grande referncia:

    Uma coisa marcou muito profundamente a minha histriacom Carlos Leite. A rigidez dele no impediu nem um poucode deixar uma coisa muito profunda, que o amor dana eo respeito profisso 19

    17 Fala de Angel Vianna, retirada do vdeo-documentrio do evento Frum prticareflexiva A Dana na Universidade, realizado na Unicamp pelo departamento deArtes Corporais, em novembro de 2000 . 18 Carlos Leite fez sua formao em dana nas Escolas de Danas Clssicas do Riode Janeiro, vindo logo a ser primeiro bailarino do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.Fundou, ainda no Rio, o Ballet da Juventude, onde trabalhou como bailarino e diretorde cena ao lado do coregrafo Igor Schwezoff, diretor artstico da companhia.19 Entrevista realizada pela autora com a Angel Vianna, na Faculdade Angel Vianna,Rio de Janeiro em 25/09/2002.

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    Foto 1 - Carlos Leite e Angel, Belo Horizonte, 1953.

    Filha de Libaneses, Angel encontrou muita resistncia para

    estudar dana. Escondida do pai, Nicolau Elias Abras, comerciante

    bem sucedido em Belo Horizonte, mas com o apoio da me,

    Margarida Abras, dona-de-casa, Angel deu seus primeiros passos na

    dana aos 12 anos de idade, com uma bailarina que chegou em Belo

    Horizonte acompanhando o marido, maestro na Orquestra Sinfnica de

    Minas. Esta bailarina (Angel no lembra seu nome) abriu um estdio de

    dana, mas, sua permanncia na capital mineira foi de apenas 6 meses,

    perodo em que Angel freqentou suas aulas.

    Foi aluna dedicada e estudiosa do Colgio Santa Maria at os 15

    anos de idade. Era uma escola em regime de internato, para meninas,

    como prezava a tradio libanesa, segundo as palavras de Angel.

    Estudou ainda msica com Francisco Masferrer, italiano

    radicado em Minas Gerais, que foi seu professor particular de piano.

    Apaixonada por Chopin, seguiu seus acordes com o afinco e

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    determinao de quem busca o perfeito. Estudava desde pequena, pois

    na sua famlia estudar piano tambm fazia parte da tradio familiar, de

    forma que ela e seus trs irmos20

    tiveram que aprender a tocar. Mas opiano ainda no lhe era suficiente como forma de expresso; faltava-

    lhe algo mais. Irrequieta, como era sua caracterstica, buscava outras

    formas de expressividade.

    Foto 2 - Angel com 5 anos de idade, Belo Horizonte 1933.

    20

    Violeta Abras, Nicolau Abras Filho e Wadia Alice Abras.

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    Angel foi freqentar um curso livre na Escola de Belas Artes de

    Guignard 21, aos 15 anos de idade, e l pde descobrir as formas, a

    perspectiva, apurar o olhar e o tato junto aos ouvidos apurados pelamsica. Teve como professores em 1954: Misabel Pedrosa na gravura,

    Sanso Castelo Branco no desenho, Frans Weissmann na escultura e o

    prprio Guignard em pintura. Este levava suas turmas para passear

    nos parques de Belo Horizonte, para que pudessem pintar a natureza,

    conforme relatou Angel.

    Foto 3 - Angel participando de um desfile de moda, Belo Horizonte15/07/1950.

    21 Artista plstico, Alberto da Veiga Guignard, passa a dirigir em 1944 a Escolinha doParque em Belo Horizonte, introduzindo os movimentos concretistas e neo-concretistas. Esta escola agruparia em seu entorno a juventude mineira interessadaem arte moderna (vila, 1997:192). Destacaram-se como referncias do meioartstico das belas-artes seus alunos: Amilca de Castro, Ione Fonseca, Mrio Silsio e

    Sara vila, entre outros.

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    no mais caminhou sem tentar uni-las: So as trs artes que procurei

    juntar na minha experincia profissional. 23 Observe-se que esta uma

    tpica racionalizao elaborada por Angel na construo de suaidentidade. A memria na construo das identidades dos indivduos

    sempre seletiva, aglutinadora, dando ao passado o sentido que o

    presente necessita.

    Ao sair do Colgio Santa Maria, no ano de 1943, passou a

    estudar num colgio misto: o Colgio Padre Machado. L conheceu

    Klauss Vianna, que at se casarem, 10 anos depois, seria seu grande

    amigo durante 10 anos e responsvel pelo seu envolvimento

    profissional com a dana.

    Nessa poca s existia em Belo Horizonte uma professora de

    ballet clssico, Natlia Lessa 24, que, segundo Angel, colocava meninas

    de 4 anos de idade para danar com sapatilhas de ponta, o que ela

    achava feio e perigoso .

    Foi por interferncia do filho de um amigo da famlia, em quem

    seu pai confiava, que Angel pde freqentar as aulas de bal do

    professor Carlos Leite, na UNE. interessante ressaltar que no perodo

    23 Entrevista realizada pela autora com a Angel Vianna, na Faculdade Angel Vianna,Rio de Janeiro em 19/12/2003.24 Natlia Lessa, mineira e pioneira no ensino da dana em Minas Gerais, fundou seuprimeiro curso livre em 1934. Iniciou seus estudos em Educao Fsica, aonde no anoseguinte veio a lecionar. Usava a dana livre como linguagem para o aprendizado desuas alunas, e mesmo no tendo um currculo de formao tradicional em dana, suacarreira como professora de ginstica, de dana e coregrafa durou at o fim da suavida, em 1985, somando um total de 51 anos de trabalho dedicado educao atravsda dana.

    Consta ainda, em pesquisa feita por Alvarenga (2002), que Seu maior mrito que,a partir de seu lugar na ginstica, ela conseguiu introduzir socialmente a dana na

    capital, rompendo preconceitos e pudores (p.97).

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    Foto 7 - Ballet de Minas Gerais. Coreografia Silfides de CarlosLeite, Belo Horizonte, 1951.

    A relao afetiva que j vinha sendo cultivada entre ela e Klauss

    possivelmente foi determinante no seu real envolvimento com a dana.

    Angel admite que seu encantamento maior pela dana se deu

    por influncia das mos de Klauss. Foram essas mos tambm que a

    levaram a viver uma outra grande experincia na vida: a do amor.

    Me fascinam as mos, a parte mais ligada ao nosso crebro,o crtex cerebral. Ns dois estvamos indo visitar umacolega que estava grvida, e estvamos descendo o viadutoda floresta. Interessante que, andando, andando, os dedosmindinhos se tocaram. Ento, aqueles dois dedinhos no sesoltaram, e eu acho muito importante falar que a grande

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    sensao foi o dedo mindinho. Foi muito bonito, porque agente no mais conseguiu soltar aqueles dedinhos, nem eu,nem ele. No nos olhamos, s o dedo. O dedo dava asensao de todo o amor que iniciava. 28

    Foto 8 - Casamento de Angel e Klauss Vianna, BeloHorizonte, 29/06/1955.

    Angel e Klauss faziam parte da primeira turma do Ballet de

    Minas Gerais, junto a Dcio Otero, Emil Dotti, Dulce Beltro, Hilda

    Hermany, Sigrid Hermany, Astrid Hermany, Marlene e Marilene Martins

    (a ltima veio a ser a principal responsvel pela continuidade da dana

    28 Entrevista realizada pela autora com a Angel Vianna, na Faculdade Angel Vianna,

    Rio de Janeiro em 25/09/2002.

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    moderna em Belo Horizonte) 29 e outros, que hoje Angel considera

    referncias da dana brasileira, mesmo sendo quase annimos.

    Angel lembra que Belo Horizonte ensaiava os primeiros passosrumo desconstruo do cdigo esttico tradicional europeu, com

    seus padres sociais, polticos e culturais, ainda quando era recente

    entre ns a divulgao da dana clssica e de seu mtodo, trazido da

    Europa como uma possibilidade de expresso artstica profissional.

    Com Angel e Klauss Vianna, que buscavam experincias expressivas e

    autorais mais afinadas com a nossa cultura, foi criado em 1959 o Ballet

    Klauss Vianna, que trazia uma nova leitura da dana no panorama da

    poca.

    1.1 - A Gerao Complemento

    Nos anos 50 do sculo XX, em Belo Horizonte, artistas de vrios

    segmentos uniram-se em defesa da modernidade da arte, insatisfeitos

    com o caminhar lento e descompassado dos resultados artsticos da

    29 Marilene Martins, apelidada Nena, amiga da famlia Vianna, bailarina, professora,coregrafa mineira, e diretora do Grupo Trans-Forma Grupo Experimental de Dana,de onde saiu os futuros criadores (famlia Pederneiras) do conceituado Grupo Corpo,companhia reconhecida internacionalmente. Personalidade marcante nodesenvolvimento da dana mineira, por mostrar a diversidade de caminhos tericos eprticos que a dana pode abarcar. Aluna, bailarina e assistente de dois mestres dadana vanguardista no Brasil, Klauss Vianna e Rolf Gelewsky, Nena se destacoucomo assistente de Klauss a partir do momento em que ele fundou o Ballet KlaussVianna. Ela d continuidade trajetria e ideais artsticos de Angel e Klauss,formando uma nova gerao de artistas criadores. Defensora da dana livre eespontnea, agregou valores tcnicos, metodolgicos e filosficos em seu trabalho

    como educadora e diretora de um importante centro educacional de dana brasileiro.

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    poca. Este sentimento era tambm fruto da instabilidade na poltica

    cultural, e devia ser efeito tardio do movimento modernista da dcada

    de 1920.Este movimento em Minas Gerais chamou-se Gerao

    Complemento, e representava um ncleo do pensamento vanguardista

    da poca, reconhecendo as idiasunidades de liberdade,

    individualidade, nacionalismo, ruptura e mesmo continuidade como

    suas bandeiras. Nessa perspectiva, artistas e intelectuais da poca,

    como Silviano Santiago, Theotonio dos Santos, Ivan ngelo e Ezequiel

    Neves, entre outros, fundaram em fevereiro de 1956 a revista literria

    Complemento a revista da nova gerao (Alvarenga, 2002).

    Segundo a bailarina e psicloga Lcia Helena Monteiro

    Machado, que escreveu um livro intitulado A filha da pacincia na

    poca da Gerao Complemento (2001), o grupo militava a favor de

    uma maior valorizao da produo individual e livre, buscando assim,

    no seu caminho autoral, uma expresso mais focada no seu tempo e

    menos arraigada ao conservadorismo dos anos anteriores. Tinham

    como guru Jacques do Prado Brando, jornalista, escritor e poeta

    mineiro.Fizeram parte dessa brigada de vanguarda nomes hoje de peso

    internacional em diversos segmentos artsticos, como: na msica

    operstica, o maestro Isaac Karabitchevisky e a soprano Maria Lcia

    Godoy; no teatro, Jonas Bloch, Joo Marschner, Jota Dangelo e Carlos

    Denis Machado; na rea de crtica de cinema, pelo Centro de Estudos

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    Cinematogrficos (CEC), atuaram Jacques do Prado Brando, Cyro

    Siqueira, Maurcio Gomes Leite, entre outros; e, finalmente na rea de

    dana, Angel e Klauss Vianna, rompendo com os padres estticos atento em voga na cidade desde a chegada do mestre de bal clssico

    Carlos Leite, bem como Marilene Martins.

    Fica claro que esse grupo que impulsionou as artes mineiras

    entre o final dos anos 1950 e o incio dos anos 1960 (at

    aproximadamente 1963) tinha como ideal a liberdade de expresso e

    sua autoria, sendo impregnado pela multidisciplinaridade, pois ali

    estavam reunidos artistas de vrios meios, acadmicos, autodidatas,

    amadores e profissionais, vidos por renovao, questionando o

    passado, atentos ao presente e visando o futuro da arte e da cultura.

    O movimento apesar de nascer em Minas Gerais propagou-se

    por outros pases, pois, com a crise cultural por que passou o Brasil

    nesse perodo histrico 30, a maioria desses jovens saiu em busca de

    lugares onde sua produo artstica tivesse mais reconhecimento e

    onde pudessem ser contagiados por outras culturas. Belo Horizonte,

    naquele momento, tornou-se pequena para a expanso dos ideais

    fomentados no seio da Gerao Complemento. A alternativa seriabuscar outros espaos, outros territrios que pudessem absorver

    essas novas discusses. Como lembra Angel, ramos todos jovens e

    30

    Crise provocada pelo golpe militar de 1964.

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    vidos por conhecer mais, saber mais, testar nossos valores, afirmar

    nossos ideais e trabalhar muito, muito 31

    Foto 9 - Angel e Klauss, Belo Horizonte em 1957.

    Angel recorda ainda dos encontros desse grupo, que de 15 em

    15 dias reunia-se na sua casa para almoar e discutir as questes emtorno do movimento cultural da poca e seu futuro.

    Para a dana, os anos 1940 e 1950 foram um marco histrico no

    Brasil. Pois at ento no existiam escolas, academias, grupos e

    companhias profissionais ou amadoras. A fundao da Escola de

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    Entrevista realizada pela autora com a Angel Vianna, na Faculdade Angel Vianna,

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    Dana da Universidade Federal da Bahia, em 1956, pelo reitor Edgar

    Santos, primeiro curso universitrio de dana da Amrica Latina,

    representou um grande passo para o futuro da educao profissionalda dana. J nos eixos Rio de Janeiro e So Paulo, a dana se

    oficializou a partir da formao de cursos livres e companhias

    fundadas por instituies governamentais, como o caso no Rio de

    Janeiro, com a bailarina Maria Oleneva, que dirigiu em 1940 a primeira

    escola de bailados do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e onde at

    hoje existe sua companhia oficial de ballet clssico. Em So Paulo

    aconteceu o mesmo, em 1940, com a implantao da Escola Municipal

    de Bailados, sob a direo do matre Veltcheck. 32

    Como podemos verificar, o movimento de implantao da dana

    cnica no Brasil se deu quase que simultaneamente nos principais

    eixos culturais do Pas: Rio de Janeiro, So Paulo, Bahia e Minas

    Gerais. Da mesma forma aconteceu com a dana moderna, introduzida

    por bailarinos que viveram experincias no exterior com companhias

    oficiais ou centros de dana reconhecidos. Em So Paulo uma dessas

    pioneiras a coregrafa brasileira Chinita Ullmann, aluna de Mary

    Wigmann, representante maior da dana expressionista alem. No Riode Janeiro se destacou Nina Verchinina, ex-bailarina russa, que residiu

    a maior parte da sua vida na Europa, vindo a se naturalizar brasileira na

    dcada de 1970. 33 No Nordeste, especialmente em Salvador, por

    Rio de Janeiro em 25/06/2003.32 Ver a Nota n. 9.33

    Para conhecer a vida e obra de Nina Verchinina, ver Cerbino (2003).

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    influncia da Segunda Grande Guerra, chegaram Yanka Rudzka e Rolf

    Gelewsky, alems que fundaram na Bahia o curso de dana da UFBA,

    j comentado, levando para essa instituio a sua bagagem de danaexpressionista alem.

    Foi nesse contexto histrico que Angel e Klauss Vianna

    iniciaram seus movimentos de ruptura com a esttica da dana

    clssica, assumindo uma linguagem contempornea e tornando-se

    assim importantes personagens da cena artstica brasileira.

    1.2 - A Escola Klauss Vianna

    Foi no ano de 1955 que Angel, casada com Klauss, mudou-se

    para a casa onde Klauss vivia com sua av, em Belo Horizonte. Uma

    casa grande, de dois andares, cercada por um jardim, localizada Rua

    Bias Forte 164, que se transformou num estdio de dana. Visando no

    quebrar a rotina da casa, com a ajuda financeira do pai Angel manda

    construir uma escada de acesso externo para o segundo andar, para

    que o estdio se tornasse independente. A desconfiana inicial do paide Angel foi quebrada quando ele percebeu a seriedade do

    compromisso assumido pela filha. Narra Angel que, inclusive, ao

    perceber a organizao do seu projeto, o pai resolveu perdoar parte da

    dvida.

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    Foto 10 - Klauss dando aula, Belo Horizonte, 1960.

    Observemos que na fala de Angel, Eu podia ter colocado

    academia, mas nunca gostei, parece uma coisa descompromissada,

    pode-se ver o papel ativo e construtor da saga dessa famlia que se

    construiu na e para dana.

    Neste espao Angel e Klauss comeam a lecionar suas aulas de

    ballet clssico. No comeo, a maioria dos alunos eram amigos dos

    Vianna e poucos eram os que podiam pagar pelas aulas. Todavia, a

    estrutura pedaggica das aulas inclua, alm da tcnica do ballet clssico, outros elementos tcnicos e criativos presentes

    minuciosamente nas aes, gestos e movimentos. Enquanto a dana

    clssica considerou o movimento total, Klauss focava isoladamente

    cada segmento corporal com um maior interesse pela estrutura ssea e

    articular no desenvolvimento dos gestos, a necessidade de um

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    despertar do corpo para a aula, a conscincia da coluna vertebral no

    trabalho postural, o respeito anatomia de cada indivduo e o olhar

    reflexivo sobre o que se faz e se pratica em sala de aula. Sua atitudepedaggica sempre se pautou na limpeza dos excessos, para minimizar

    os gestuais superficiais dos bals e trejeitos de seus mestres:

    [] os mestres de dana estrangeiros que aqui se radicarame ensinaram, trouxeram, cada um, o estilo de sua escola. Osalunos, nossos bailarinos, herdaram de cada um dos mestresque frequentaram os defeitos, os cacoetes, as qualidades.Temos timos elementos dentro de uma grande variedadesde escolas. Mas, por isso mesmo, falta-nos expressoprpria, falta um sentido nossa dana. 35

    A partir desses conceitos vivenciados e desenvolvidos por

    Angel e Klauss, se deflagra o movimento contemporneo em Minas

    Gerais, e mais tarde no Rio de Janeiro, tornando-os referncias da

    construo da dana contempornea brasileira.

    Devido forte ligao de Angel com a msica, como ela gosta

    de assinalar, esta arte tem relevncia em sua pedagogia, faz parte da

    sua estrutura de ensino. A msica um contedo programtico nas

    suas escolas.

    Desde a Escola Klauss Vianna, em Belo Horizonte, a teoriamusical era pea importante para a formao do bailarino,como a busca de novos caminhos de pesquisa e pensar essatcnica, sentir essa tcnica, perceber essa tcnica de outrasmaneiras. 36

    35 Entrevista de Klauss Vianna ao jornal ltima Hora: em Belo Horizonte, 1960. Trechoretirado da dissertao de Mestrado de Alvarenga (2002:117).36 Entrevista realizada pela autora com a Angel Vianna, na Faculdade Angel Vianna,Rio de Janeiro em 25/06/2003.

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    1.3 - O Ballet Klauss Vianna

    O Ballet Klauss Vianna foi fundado em 1959 por Angel e Klauss

    Vianna, a partir dos excelentes resultados com sua Escola. O grupo

    surgiu da necessidade de criao artstica do Klauss: o ensino longe

    dos palcos no atendia s suas demandas de expresso. Ele propunha

    para a dana cnica cdigos menos rgidos para o bailarino, criando

    uma dana com um perfil mais brasileiro.

    No Ballet Klauss Vianna (BKV), Angel atuava como principal

    assistente de coreografia, primeira bailarina e coregrafa. Angel

    intitulava-se como cobaia do Klauss, pois em todas as suas criaes

    era primeiro com ela que ele experimentava suas idias.

    No seu repertrio, o BKV apresentou os seguintes trabalhos

    coreografados por Klauss Vianna; Dom Quixote (1957), Sute

    Clssica(1958), Arlequim e Arabela, a Donzela e o Mito (1959), O

    Caso do Vestido, Divertissiment, Composio, Concerto

    Barroco e Neblina de Ouro (1960), Cobra Grande (1961), Egmont

    e Marlia de Dirceu (1962). Angel e Klauss coreografaram juntos:

    Apache (1959), A Face Lvida (1960) e Sutes de Danas Antigas

    (sc. XV) (1962). Variaes (1961) foi coreografada somente por

    Angel Vianna, e Delrio (1961) pelo bailarino Denis Gray. Suas peas

    traziam em seus temas e produo, desde o figurino, alguns assinados

    por Angel: Cobra Grandee Egmont at o cenrio, msica, texto, o

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    universo cultural brasileiro, instaurando um novo movimento na dana

    em Minas Gerais, que at ento s assistia linguagem clssica,

    mesmo em trabalhos com ttulos nacionais. Mas a dana moderna deKlauss Vianna no traz apenas a valorizao dos nossos temas; ela

    traz tambm adequao, segundo os depoimentos de Angel, aos

    corpos tipicamente brasileiros.

    Juntos, ns achvamos que precisvamos conhecer melhoro corpo. Ento, de que maneira? Estudando, claro, aliteratura mineira e a brasileira em todas as reas. A partir dasurgiu o grupo de dana Klauss Vianna, que foi a grandepesquisa. Onde tudo se iniciou, foi l em Belo Horizonte. 37

    Esses conceitos de corpos tipicamente brasileiros e temas

    nacionalistas afloraram no cerne da Gerao Complemento, o grupo de

    jovens intelectuais e artistas no qual Angel e Klauss estavam inseridos.

    Eles se portavam como sonhadores de um futuro mais claro, filtrado

    por nossas lentes, e no mais contentes em manter o olhar passivo de

    um povo colonizado que assume a civilizao europia como a forma

    certa e ideal de ser e estar. De fato, Angel credita parte do seu

    pensamento influncia que tiveram do grupo Gerao Complemento.

    37

    Idem.

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    Foto 11 - Ballet Klauss Vianna. Coreografia O Caso do Vestidode Klauss Vianna. Angel (em p), Belo Horizonte, 1960.

    Foto 12 - Ballet Klauss Vianna, Coreografia Arabela a Donzela e oMito de Klauss Vianna. Angel (4 da esquerda para a direita), Belo

    Horizonte, 1958.

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    Durante o perodo em que atou no Ballet Klauss Vianna, Angel

    deu um pequeno intervalo, para aceitar o convite da bailarina e

    coregrafa Nina Verchinina, para fazer parte da CompanhiaInternacional Nina Verchinina no ano de 1957 no Rio de Janeiro,

    danando os trabalhos: Ballet Romntico, Amor Brujo,

    Divertissement, Eslavnica e Sute Coreogrfica, apresentados

    no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Angel no seguiu com a

    Companhia em sua turn internacional, retornando a Belo Horizonte,

    pois com a doena repentina de Klauss, conseqncia do acmulo de

    trabalho na Escola e Ballet Klauss Vianna, tantos os alunos, quantos os

    bailarinos no tinham como dar continuidade s suas atividades.

    Foto 13 - Ballet Internacional Nina Verchinina. Coreografia: ElAmor Brujo. Angel (centro) ao lado de Nina (lado esquerdo de Angel).Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 1957.

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    Foto 14 - Ballet Internacional Nina Verchinina. Coreografia BalletRomntico, Angel Vianna (centro). Teatro Municipal do Rio de Janeiro,

    1957.

    Em 1962, Angel participou com o Ballet Klauss Vianna do

    Primeiro Encontro de Escolas de Dana, em Curitiba, promovido por

    Pascoal Carlos Magno 38, com o intuito de discutir questes em torno da

    dana brasileira. Nesse encontro, representantes da dana atuantes no

    Brasil, apresentaram seus trabalhos e suas tendncias, que iam do

    clssico ao moderno, tais como: Rene Gumiel, Yanka Rudska,

    Eugnia Feodorova, Rolf Gelewsky e Angel e Klauss Vianna com a

    coreografia: Marlia de Dirceu, abrangendo assim um panorama vasto

    dos expoentes da dana brasileira.

    38 Pascoal Carlos Magno. Foi Adido Cultural do Brasil na Inglaterra, Mecenasapaixonado por artes, crtico de arte, tinha grande prestgio poltico e desenvolveuvrios projetos artsticos no Brasil: fundou o Teatro do Estudante no Rio de Janeiro;criou a Aldeia do Arcozelo, no interior do estado do Rio de Janeiro, um lugar dedescanso para os artistas; entre outras excentricidades, construiu um teatro dentro

    da sua casa, no Rio de Janeiro, que existe at hoje, porm desativado.

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    Foto 15 - Ballet Klauss Vianna. Coreografia Concerto Barroco deKlauss Vianna. Angel (na extrema direita). Belo Horizonte, 1957.

    Depoimentos de bailarinos que l estiveram na poca, como a

    bailarina Eliana Caminada, Dulce Aquino e outros, revelam o impacto

    do trabalho junto ao pblico:

    Fiquei impressionada com o tipo de trabalho que elesfaziam, eu vindo do ballet clssico e vendo toda aqueleritmo, aquela coordenao motora, era um trabalho maisrtmico do que danado, mas era muito forte. 39

    Foi por intermdio desse encontro que Angel e Klauss

    receberam o convite do Rolf Gelewsky para levarem seu trabalho para a

    Escola de Dana da Universidade Federal da Bahia, onde Klauss

    atuaria como professor de ballet clssico, e Angel como bailarina do

    grupo de dana da Universidade, que era dirigido e coreografado por

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    Rolf, ento diretor da Escola de Dana. Segundo Angel, Rolf teria

    ficado impressionado com a fora e a autenticidade do trabalho dos

    Vianna no encontro de Curitiba.A deciso de ir para a Bahia foi difcil, segundo Angel, pois teriam

    que deixar em Belo Horizonte, onde estavam tendo uma trilha de

    sucesso e ascenso profissional, os 600 alunos que freqentavam sua

    Escola, bem como amigos e familiares. Mas acho que se a

    oportunidade e o caminho mudam, ciclo de vida; vai, parte, tem de

    ir.40 A itinerncia foi marca da juventude dos Viannas.

    39 Entrevista realizada pela autora com Eliana Caminada, bailarina, professora deballet clssico, pesquisadora, crtica de dana e escritora, no Rio de Janeiro, em21/01/2004.40 Fala de Angel Vianna, retirada do vdeo-documentrio do evento Frum prticareflexiva A Dana na Universidade, realizado na Unicamp pelo departamento deArtes Corporais, em novembro de 2000 .

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    Foto 16 - Angel ensaiando a coreografia O Caso do Vestido. BKV,Belo Horizonte, 1959.

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    CAPITULO II

    A PRIMEIRA VIAGEM DE MINAS GERAIS PARA A BAHIA

    2.1 - Salvador e a UFBA

    Em 1962, a Escola de Dana da UFBA, fundada em 1956 41,

    estava com seu segundo diretor e no seu sexto ano de funcionamento.

    Rolf Gelewsky, aluno de Mary Wigmann 42, vindo da Alemanha em 1960,

    convidado especialmente para dirigir a Escola e implantar o currculo

    da dana na Universidade, contava com um corpo docente ainda

    insatisfatrio para suas ambies vanguardistas. A Escola ainda no

    tinha assumido o perfil curricular de uma escola de dana moderna,

    com uma proposta diversificada e mais focada em valorizar o corpo do

    bailarino brasileiro e sua formao acadmica.

    O nome de Klauss foi levado primeiramente a Rolf por

    intermdio de Marilena Martis, a Nena (ex-aluna de Klauss em Belo

    Horizonte), que era aluna de graduao em Salvador. Nena, uma

    entusiasta, falava muito da maravilha que era o trabalho de Klauss.

    Diante da necessidade de formar um corpo docente de vanguarda, etendo comprovado o bom trabalho dos Vianna em Curitiba, Rolf os

    convidou para integrar o corpo docente da UFBA.

    41 S oficializada em 1968 como curso universitrio de graduao e licenciatura peloMinistrio da Educao.42

    Mary Wigmam, coregrafa e bailarina alem, pioneira da dana expressionista.

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    A chegada de Angel, Klauss e Rainer Vianna, seu filho nico,

    em Salvador estava repleta de expectativas. O casal convidado por Rolf

    Gelewsky pretendia no s divulgar seu mtodo de aula de balletclssico, como tambm alargar suas experincias coreogrficas com

    aquele prestigiado mestre.

    Klauss dava aulas e Angel danava no Grupo de Dana

    Contempornea - GDC da Escola de Dana da UFBA, mas perseguiam o

    sonho de conhecer cada vez mais o universo da dana: Juntos, ns

    achvamos que precisvamos conhecer melhor o corpo, diz Angel.

    Klauss implanta ali um novo olhar diante do ensino da tcnica,

    neste caso particular a clssica. Dulce Aquino, que foi sua aluna no

    curso de graduao da UFBA desde sua chegada a Salvador, relata

    qual foi o impacto causado diante do seu ensino em 1963:

    Essa coisa da conscincia corporal, de ficar na posiocorreta, na primeira posio meia hora se colocando atcomear a fazer os plis .43 Essa conscincia [] vocimagina uma aula de bal que voc comeava no cho, em1963, relaxando a musculatura coxo-femural para da subirpara a barra e comear a aula toda alongada e poder soltarmelhor sua perna? Quer dizer, era uma metodologia nova,no era uma aula de bal, a Royal, a no sei o qu... quetinham os mtodos, no ? Era algo completamente

    inovador, acho que inovador hoje, veja l ! No era bal pelobal, era essa a coisa da conscincia pelo conhecimento docorpo que dava suporte, sustentao, encaixe, porque vocestava trabalhando tal msculo. Ento, o ballet era para isso,com essa funo, a gente aprendeu ali. 44

    43 Dobrar, na terminologia do ballet clssico. o movimento mais importante dadana em geral, dobrar os joelhos para pular, caminhar, saltar, girar, etc. a alavancaque faz o corpo mover-se, bem como o exerccio preparatrio para aquecer ecomear uma aula de ballet clssico.44 Entrevista realizada pela autora com Dulce Aquino, na Escola de Dana da UFBA,

    Salvador, em 13/01/2004.

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    Em Salvador, Angel e Klauss mergulharam fundo em um

    verdadeiro caldeiro cultural, pois agora estavam diante de umuniverso artstico impregnado de cores, temperos, msicas e danas

    to exticas quanto a Me frica (expresso comum na cultura baiana),

    que ali plantou e semeou sua cultura artstica.

    Era 1963, e a Bahia era ento o plo da dana e da msica no

    Brasil.45 Angel e Klauss ainda no tinham tido contato com outros

    mestres e outras tcnicas, como a do Rodolf Laban, por exemplo.

    Estando numa universidade, local onde circulam muitas idias e

    propostas, os Vianna tiveram a possibilidade de expandir seus

    horizontes prticos e tericos. A Escola de Dana da UFBA aglutinava

    no seu projeto curricular um leque grande de matrias em torno do

    panorama da dana.

    Foi nessa passagem pela UFBA que Angel e Klauss puderam

    estudar a fundo a anatomia do corpo, carro-chefe da elaborao

    didtica dos seus trabalhos corporais, como a conscincia corporal,

    que mais tarde os levou a criar um mtodo inovador de trabalho para

    atores, bailarinos e pessoas de diversos segmentos artsticos esociais.

    Procuraram o Dr. Brochado, professor de Anatomia da

    Faculdade de Medicina da UFBA, que lecionava tambm Anatomia na

    Escola de Dana, e assistiram suas aulas junto aos graduandos.

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    Segundo Angel, ele tinha um museu particular com esqueletos

    humanos de homens, mulheres e crianas de todas as idades. Angel se

    revela em seus depoimentos ainda hoje encantada diante de tudo quepode lembrar dessa experincia; aprendeu no s sobre a anatomia do

    corpo humano, mas tambm sobre a paixo do exerccio profissional.

    Afirma que, vendo o Dr. Brochado dar aulas sobre seus esqueletos,

    certas vezes parecia que ele estava dialogando com seus modelos:

    Mas, ele me fascinava, sabe por qu? Ele no olhava para agente, sabe para quem ele dava aula? Para os esqueletos!Era interessante, eu comecei a observar, e ento percebi queeu tambm tinha uma ateno muito voltada tambm para apercepo visual. 46

    Da mesma forma Angel e Klauss (acredita ela) olhavam para os

    corpos e almas e vislumbravam as possibilidades de expresso e

    movimento. Essa entrega ao que se est fazendo, essa ateno e

    dedicao ao outro uma marca do trabalho de Angel Vianna, pois em

    todos os depoimentos coletados por mim junto aos que vivem ou

    viveram ao seu redor, todos foram unnimes quanto figura maternal e

    afetuosa da Mestra Angel Vianna em sala de aula. Essa caracterstica

    tornou-se sua marca, pois os que ali chegaram e chegam se sentem

    seguros na conduo de Angel para o autoconhecimento. A prpria

    45 Para maior conhecimento do perodo histrico vivido na Bahia nessa dcada,consultar Risrio (1995).46 Fala de Angel Vianna, retirada do vdeo-documentrio do evento Frum prticareflexiva A Dana na Universidade, realizado na Unicamp pelo departamento deArtes Corporais, em novembro de 2000 .

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    Dulce Aquino conta que ouviu Klauss falar algumas vezes que ele

    prprio de vez em quando, assistia s aulas da Angel, pois sempre

    tinha o que aprender.47

    Em Salvador, Angel lembra ainda dos seus encontros com

    artistas baianos como Carib, Mrio Cravo, Gnero Augusto e Tadashi

    Kaminagai; este ltimo apaixonou-se por Angel, e ela chegou a posar

    para cinco dos seus quadros. Angel guarda em seu apartamento no Rio

    de Janeiro uma dessas telas, bem como objetos de cermica mineira e

    obras de arte, recordaes vivas da sua passagem cheia de encontros

    na Bahia.

    Foi l tambm que Angel conheceu o crtico de arte Wilson

    Rocha, amigo inseparvel que a levou para conhecer os seus museus,

    igrejas, mercados, terreiros, bares, rodas de capoeira, escolas e teatros

    da Bahia, artistas consagrados como Pierre Verger e Pancetti, e a fazer

    loucuras, como danar num cemitrio:

    Dancei at num cemitrio para satisfazer o seu desejo, faziagrand jett 48 de um tmulo para o outro e dizia para osmortos: Eu no estou pisando na sua sepultura, eu estoudanando para voc 49

    Ainda na Escola de Dana da UFBA, Angel pde trabalhar com

    Rolf Gelewski, e com ele experimentou uma nova linguagem tcnica e

    47 Entrevista realizada pela autora com Dulce Aquino, na Escola de Dana da UFBA,Salvador, em 13/01/2004.48 Grande salto, na terminologia do ballet clssico.

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    coreogrfica. Com o GDC, Angel danou em mais um dos encontros de

    dana organizados por Paschoal Carlos Magno, desta vez em Braslia.

    Segundo Alsnia Bernardes50

    , em seu depoimento sobre o evento,Angel pde vivenciar a sua verdadeira expresso gestual com uma

    linguagem expressionista.

    Quem a viu danar diz ter visto uma fora expressiva muito

    grande no palco. Seu corpo, apesar de pequeno e magro, traduzia uma

    energia intensa e seu rosto sempre apresentou traos marcadamente

    fortes e expressivos.

    Dulce Aquino, sua colega de dana no GDC, diz que Angel era

    uma tima bailarina, com forte base tcnica vinda do clssico,

    adaptando-se rapidamente s exigncias do coregrafo Rolf, que era

    metdico e preciso nas suas criaes para dana contempornea.

    Angel e Klauss moraram em Salvador no mesmo alojamento de

    Rolf Gelewiski. Certamente essa aproximao os tornou mais prximos

    em idias, projetos e conceitos artsticos, pois, segundo Dulce, os trs

    passavam noites estudando, conversando e trocando idias sobre

    dana:

    Era caracterstica comum dos trs gostar de estudar,estavam sempre aprendendo, pesquisando, estudando, e

    49 Fala de Angel Vianna retirada do roteiro para documentrio de sua vida,patrocinado pela Bolsa de Pesquisa da RioArte no ano de 1999/2000 por Sylvia Palma, jornalista e ex-aluna do curso de formao da EAV de 1996 a 1998.50 Entrevista realizada pela autora com Alsnia Bernardes na Faculdade Angel Vianna,

    Rio de Janeiro, em 20/07/2003.

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    isso para ns, alunos, era muito interessante: ver queprofessor tambm estuda, se atualiza. 51

    Angel freqentou ainda as aulas de forma, espao e msicadadas por Rolf, e com ele pde conhecer tambm a tcnica de Laban.

    Aprofundou-se no sistema e esquema de ensino de Laban, que ainda

    hoje uma das suas referncias, alm de servir de modelo para

    diversas instituies de ensino do corpo para bailarinos e atores. Angel

    mantm at hoje, no quadro curricular de suas escolas, o ensino da

    teoria e da tcnica de Laban.

    Salvador foi muito especial em todos os pontos de vista,no s como bailarina, mas trazer daquela escola o quefaltava em mim e no Klauss e na nossa pesquisa. Foi ondens ouvimos falar pela primeira vez de Laban, RodolfLaban. 52

    2.2 - Clssico x Moderno: a conquista de um espao

    Naquele perodo histrico, anos 1960, sobretudo no Brasil, a

    dana estava passando por transformaes de ordem ideolgica. De

    um lado, a tribo dos bailarinos clssicos, na sua avassaladora

    maioria fiis aos seus cnones e ensinamentos quase imutveis, no

    podendo contaminar-se com outros elementos. Do outro lado, a tribo

    51 Entrevista realizada pela autora com Dulce Aquino, na Escola de Dana da UFBA,Salvador, em 13/01/2004.

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    dos bailarinos modernos, rompendo com qualquer dogma

    estabelecido, descartando os ensinamentos do clssico por fazerem

    mal ao corpo. Poe exemplo, era comum nesta tribo pensar que aposio endeors (aberta) das pernas, fazia mal anatomicamente ao

    corpo do bailarino e prejudicava sua estrutura.

    em meio a esse movimento de negao da dana clssica que

    Angel e Klauss chegam a Salvador, na poca era considerada a cidade

    bero da dana moderna do Pas. Eles desmistificam o ensino e a

    aplicabilidade do ballet clssico, levando os alunos a um outro

    entendimento de como usar corretamente a tcnica, sem agredir o

    corpo. Mesmo antes do seu envolvimento com as teorias de Laban,

    Angel e Klauss ensinavam as posies endeors, mas indicando as

    partes do movimento e a musculatura mais solicitada em cada

    fragmento do movimento completo.

    Renovar os conceitos tcnicos de forma criativa era uma

    bandeira para os artistas da poca. A tcnica de ballet clssico era

    algo que se deveria jogar no lixo, segundo Dulce Aquino 53; cada um

    deveria buscar sua prpria tcnica. A busca da prpria tcnica era um

    pressuposto das pioneiras da dana expressionista alem, MaryWigmman, e da dana moderna norte-americana, Isadora Duncan

    (Garaudy,1980). Rolf, discpulo de Mary Wigmman, estava imbudo

    52 Fala de Angel Vianna, retirada do vdeo-documentrio do evento Frum prticareflexiva A Dana na Universidade, realizado na Unicamp pelo departamento deArtes Corporais, em novembro de 2000 . 53 Entrevista realizada pela autora com Dulce Aquino, na Escola de Dana da UFBA,

    Salvador, em 13/01/2004.

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    desse pensamento: cada criador tem que buscar sua prpria tcnica

    dentro dos padres anatmicos gerais e descobrir seus prprios

    mtodos e limites tcnicos e criativos.54

    Klauss, segundo DulceAquino, j tinha esse ideal autodidata, por ser um artista sensvel, culto

    e inteligente, e estar antenado com o movimento de ruptura nas

    artes, questionando seu lugar, sobretudo os valores culturais

    nacionalistas.

    Foram dois anos assim de uma importncia muito grande,primeiro em termos de uma conscincia tcnica do bal,quer dizer, da desmistificao do bal, daquela rigidezeuropia, e nisso a Angel tinha seu prprio caminhotambm, entendeu? Trabalhando com ele, mas ela tinha essacoisa dela: buscar, estudar muito 55

    No final de 1965 o Brasil vivia sob o fantasma do golpe militar

    de 1964. Foi um tempo difcil para qualquer instituio, principalmente

    as que trabalhavam com arte. Angel diz que no conseguia enxergar

    para onde expandir o trabalho coreogrfico de Klauss na Bahia, e temia

    que seu parceiro ficasse desestimulado para continuar suas pesquisas

    coreogrficas, pois na Escola j era desenvolvido o trabalho do

    conceituado coregrafo Rolf:

    que eu senti que o Klauss ia acabar no continuando otrabalho dele de pesquisa coreogrfica. E ele j tinhacomeado isso e no podia parar. Ele sentia uma

    54 Como aluna do curso da Escola de Dana da UFBA, esse pressuposto de Rolf mefoi passado, durante toda a graduao, atravs da memria de meus professores, quehaviam sido alunos deste prestigiado mestre.55 Entrevista realizada pela autora com Dulce Aquino, na Escola de Dana da UFBA,

    Salvador, em 13/01/2004.

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    necessidade muito grande de continuar a coreografia. E,como eu gosto de mudar, sou do signo de Gmeos, Mercrioe Virgem, imagine o movimento 56

    Angel decide sair da Bahia e tentar a sorte no Rio de Janeiro,

    com a cara e a coragem, deixando em Salvador grandes amigos, como

    Dulce Aquino aluna especial, amiga e mais tarde comadre, Lia Robatto,

    Marly Sarmento, Wilson Rocha, Las Salgado Ges, Vanda Soledade,

    Lucinha Mascarenhas, atores e diretores de teatro, todos presentes at

    os dias de hoje. 57

    Dulce relata que a sada dos Vianna da Escola significou

    perdas:

    Foi uma perda muito grande, muito grande, porque meioque tudo que a gente pretendia realizar no tinha realizado,como a coreografia de Klauss, por exemplo! Ento, isso foifrustrante e ao mesmo tempo um sofrimento grande, essaida deles. Mas para a minha memria isso bate muito, issofoi logo depois da revoluo, do golpe militar, ento, tudoisso est meio misturado naquela frustrao da minhagerao. Ento, foi muito frustrante, e tem a sensao dovazio misturado com a poca. Politicamente a minha gerao

    56 Fala de Angel Vianna, retirada do vdeo-documentrio do evento Frum prticareflexiva A Dana na Universidade, realizado na Unicamp pelo departamento deArtes Corporais, em novembro de 2000 . Algumas verses da histria nos falam deuma grande expectativa dos bailarinos do grupo de dana da UFBA em relao aotrabalho coreogrfico de Klauss, que acabou no acontecendo por uma possvelautocensura: por ser muito exigente e estar diante do Rolf Gelewiski, que eraconsiderado um grande coregrafo, talvez no quisesse se expor. Outras verses,como a de Dulce Aquino, ressaltam a idia de que Klauss no teve tempo suficientepara amadurecer uma proposta e apresent-la a Rolf. Mas certo que Klauss foiconvidado para a escola como professor e coregrafo. O prprio Rolf, como diretordo grupo, quando perguntado sobre o trabalho de Klauss, dizia que ia comear, maso fato que nunca comeava. A possibilidade de Rolf no ter dado acesso a Klauss descartada quando constata-se que outros coregrafos trabalharam com o grupo,ainda na gesto de Rolf.57 Fala de Angel Vianna, retirada do vdeo-documentrio do evento Frum prticareflexiva A Dana na Universidade, realizado na Unicamp pelo departamento de

    Artes Corporais, em novembro de 2000 .

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    sofreu muito, foi um golpe para a gente, um golpe no sentidode poda, de perda. 58

    2.3 - Angel projeta Klauss

    A passagem de Angel e Klauss na Bahia ficou marcado para

    ambos como o momento de grande estudo e amadurecimento

    profissional.

    Cabe ressaltar, na trajetria de Angel, o orgulho e a admirao

    que sentia pelo companheiro Klauss. Atenta ao seu progresso e

    interesse pelo caminho artstico, Angel no poupou esforos em

    incentiv-lo passo a passo na sua trajetria, pois seu crescimento

    tambm estava atrelado ao sucesso do marido. Reconhecia nele um

    homem apaixonado por sua profisso, e talentoso, entregue de corpo e

    alma ao que fazia. Curioso, levava Angel a conhecer o mundo sob

    outras perspectivas, e assim tambm a projetava como profissional.

    Relatos de amigas e companheiras de trabalho de Angel

    durante anos confirmam a minha hiptese de que Angel foi

    fundamental pela criao da imagem de Klauss Vianna no mundo da

    dana. Ela o projetou no panorama cnico, batizando seu primeiro

    58 Dulce Aquino afirma em seu depoimento que a contratao de Klauss Vianna comoprofessor da escola de dana da UFBA inclua tambm, como se divulgava na poca,criaes coreogrficas para o GDC, o que causou grande expectativa nas bailarinas.Pois Klauss tambm era visto no panorama da dana como um coregrafo de talento.Entrevista realizada pela autora com Dulce Aquino, na Escola de Dana da UFBA,Salvador, em 13/01/2004.

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    grupo de Ballet Klauss Vianna; no universo educacional, dando nome

    primeira escola de dana, ainda em Belo Horizonte, de Escola Klauss

    Vianna; bem como conduzindo-o ao Rio de Janeiro no momento emque sentiu seu projeto artstico ameaado de continuidade. Angel

    sempre sonhou e objetivou seu prprio espao, mas sem a

    necessidade de romper ou diferenciar-se da companhia ou imagem de

    Klauss.

    Dulce Aquino vai um pouco mais longe quando ressalta a

    questo do machismo vigente na poca:

    Angel trabalhava muito o nome do Klauss, mas eu acho queisso um pouco o machismo que ns mulheres cultivamos.A gente tem aquela coisa de se sentir inferior e promover ocompanheiro como estrela maior, como uma forma de sevalorizar e ser digna dele. Isso eu acompanhei. Agora: ela capaz de dar a volta por cima, porque quando Klauss morreela no desaparece, ela renasce com toda umapotencialidade que uma coisa fantstica! E tinha ainda afigura do Rainer, que era filho nico, e homem, muito ligadoao Klauss. Ento, era difcil para ela esse tringulo a [],mas ela trabalhava muito o nome dele, era Escola KlaussVianna, Bal Klauss Vianna, Mtodo Klauss Vianna, ela nose propunha a competir com ele, estava sempre ao lado,como uma companheira []. 59

    59 Entrevista realizada pela autora com Dulce Aquino, na Escola de Dana da UFBA,Salvador, em 13/01/2004.

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    Foto 17 - Angel e Klauss, Rio de Janeiro, 05/06/1974.

    Foi confirmado pela prpria Angel o esforo inicial, pela

    necessidade de aceitao da profisso de bailarina e de um marido

    bailarino, numa famlia tradicional libanesa. Todavia, no sei se posso

    interpretar o companheirismo de Angel como simples imposio do

    machismo presente em nossa cultura. De um lado, a profisso

    escolhida e assumida em sua juventude no convencional e nem

    fruto do patriarcalismo. Por outro lado, mesmo que ela e Klauss

    tenham criado rupturas com o status quo da poca, no podemos

    esquecer que eles tambm eram prod