Anatol Rosenfeld - Aspectos do Romantismo Alemão in Texto e Contexto

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Cole<;iio Debates Dirigida por J. Guinsburg Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, Anita Novinsky, Boris Schnaiderman, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, Maria Jose Werebe, Roberto Schwarz, Rosa Krausz, Sabato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares. Equipe de realiza<;iio: Geraldo Gerson de Souza, revisiio; Moyses Baumstein, capa; Edison Ca- zallas, trabalhos tecnicos. go{,'1 (~ 9/1 j :t c .).50 b C '7 SVE Texto!Contexto 11111111111111111111111111111

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Cole<;iio DebatesDirigida por J. Guinsburg

Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, Anita Novinsky,Boris Schnaiderman, Gita K. Ghinzberg, Haroldode Campos, Maria Jose Werebe, Roberto Schwarz,Rosa Krausz, Sabato Magaldi, Zulmira RibeiroTavares.

Equipe de realiza<;iio: Geraldo Gerson de Souza,revisiio; Moyses Baumstein, capa; Edison Ca-zallas, trabalhos tecnicos.

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Texto!Contexto

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Direitos exclusivos daEditora Perspectiva S. A.Av. Brig. Luis Antonio, 3.025Sao Paulo - 1969

Quando a alma fala, ja nao tala a alma.

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"Se que res pelletrar 110 illtimo do fisico,deixa-te illicior lias mistbios do poesia."

Por volta de 1770 eclodiu na Alemanha, estimula-do em parte por sugestoes vindas da Franc;a(Rousseau) e Inglaterra (Young, Wood, "Ossian"),o primeiro movimento "romantico" amplo da Europa.o que distingue esta corrente, que se estende ate osprimeiros anos da decada de 1780 e a qual se filiamautores como Hamann, Herder, Lenz, os jovens Goethe

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e Schiller etc., e sobretudo 0 violento impulso irracio-nalista, a luta contra a I1ustra~ao e contra os canonesc1assicistas da literatura francesa, aos quais se op6emo subjetivismo radical, a tendencia ao primitivo, a ex-pressao imediata e espontanea das em~6es, 0 empenhopelo poema e pela can~ao populares (V olkslied) e 0

genio supostamente bruto e inconsciente de Shakespeare.Desta primeira onda "romantica", um tanto rude

e informe, irradiou-se - encontrando ampla receptivi-dade - certa atitude de "dor do mundo" (0 famosoWeltschmerz de Werther). Aos jovens "genios" veiode Rousseau um pessimismo profundo no tocante a so-ciedade e a civiliza~ao modernas. Ressalta-se agora aincompatibilidade entre 0 grande indivfduo e a socie-dade; 0 violento impeto dos jovens poet as burguesescontra a sociedade do absolutismo alemao transforma--se em 6dio a sociedade em geral. 0 homem geniale fatalmente condenado a definhar no carcere do mun-do: este tema iria tornar-se um dos motivos mais cons-tantes do romantismo europeu posterior, sem que fossecentral para 0 romantismo alemao propriamente dito.

o movimento esboc,:adonao se sabia "roma-ntico",embora aquela altura 0 termo ja passasse a ser usadoem acepc,:iio favoravel para caracterizar paisagensagrestes, solitarlas, selvagens e me1anc6licas, tendoperdido seu sentido inicialmente pejorativo, qualificati-vo que fOra dos romances barrocos, her6ico-galantes,ridicularizados pelo seu teor fantastico, quimerico eaventureiro. Os jovens "genios" nem sequer sabiamque participavam de um movimento que os historia-dores da literatura alema mais tarde iriam chamar deSturm und Drang (Tempestade e Impeto). Muito me-nos podiam saber que iriam ser c1assificados, bem maistarde, por alguns historiadores ocidentais, como "pre--romanticos" .

No entanto, foi principalmente este movimentoque repercutiu no exterior de um modo vigoroso, atra-

yeS de obras goethianas como 0 romance. Os padeci-mentos do jovem Werther, 0 drama medieval Goetzvon Berlichingen e um fragmento do que mais tardeiria ser 0 Fausto, para nao falar da pe~a Os bandoleiros,de Schiller. Poucos anos depois, porem, Goethe eSchiller tomaram rumos bem diversos, procurando su-perar os arroubos anarquicos da f!lse juvenil, atravesde uma disciplina severa, sob a inspira~ao da arte gre-ga. Tornaram-se, segundo a conceitua~iio alema, clas-sicos tanto no sentido valorativo como estilfstico dotermo. Pelo menos de 1785 a 1805 - ana da mortede Schiller - seguiam uma linha que se aproxima datradi~ao classica, embora enriquecida pelas experienciasda juventude.

Para 0 exterior, no entanto, continuavam a serprincipalmente os autores das obras mencionadas. Deacordo com isso se formou a imagem do romantismoalemao e, em parte, do romantismo universal. Na me-dida em que este ultimo sofreu influencias alemas, estasprovinham principalmente do Sturm und Drang - mo-vimento que ate hoje nao e considerado na Alemanhacomo propriamente romantico. Madame de Stael, con-quanta mantivesse posteriormente contatos diretos comautenticos romanticos alemaes, nao desmentiu, ao contra-rio refor~ou no seu livro De I'Allemagne, esta imagemunilateral. Mesmo um crftico culto como Walter Pater-que pela distancia hist6rica ja poderia estar mais beminformado - dec1arou ainda em 1889 que 0 movimen-to romantico alemao alcanc,:ou 0 apogeu com 0 Goetz(1774) de Goethe. 0 mesmo critico ingles julga 0

Fausto a maior obra da literatura romantica. £stegrande drama tem as suas rafzes sem duvida noSturm und Drang. Entretanto, na sua elabora~ao pro-longada (quase ate a morte de Goethe, em 1832), ul-trapassou de longe estas rafzes' e dificilmente pode serfiliado a qualquer "escola" literaria. Eudo C Mason,conhecido anglicista e germanista ingles, afirma com

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boas raz6es que 0 romantismo ingles - mais ou menossimultaneo ao alemao - tern, em certos aspectos, maisafinidade com 0 Sturm und Drang do que com 0 ro-mantismo alemao propriamente dito. "Na medida emque no romantismo alemao permanecem e se desenvol-vem impulsos do Sturm und Drang, ele coincide maisou menos com 0 romantismo ingles; na medida, porem,em que toma rumos novos, proprios, esotericos e sutis,ele se diferencia fundamentalmente do romantismo in-gles. Por isso, os leitores ingleses reconhecem 0 espe-cificamente 'romantico', no sentido deles, muito maisnas obras do Sturm und Drang (como Goetz e Fausto)do que em obras do verdadeiro romantismo alemao" 1.

Com certas precau<;6es pode-se aplicar isso tambemao romantismo frances. 0 romantismo alemao propria-mente dito assemelha-se em certos tra<;os hem mais aosdesenvolvimentos posteriores da literatura europeia, li-gados a Baudelaire, ao simbolismo e a decadence lite-niria do fin du siecle.

Com isto nao se pretende negar que ha, num sentidogeral, certo espirito comum impregnando tanto 0 Sturmund Drang, como 0 romantismo alemao. Num sentidoainda mais geral - alias tao geral que este sentido perdequase 0 sentido - Rene Wellek, adotando urn angulo"ocidental", acredita poder considerar Goethe e Schillertout court como romanticos, "apesar das suas faces clas-sicistas e do seu gosto classicista"2. Pondo de ladoeste conceito muito vago, pode-se dizer que tanto 0

Sturm ulld Drang como 0 romantismo tern tendenciasanticlassicas, opondo-se aos seus canones em geral eem particular ao seu equilibrio, propor<;ao, ordem, har-monia, objetividade, pondera«ao, disciplina e visao apo-linea. Mas no que se refere as afirma<;6es positivas janao se pode dizer com a mesma seguran<;a que 0 ro-

(1) Deutsche und Englische Romantik, Gottingen, 1959.(2) Kon!rontatiollen, Francfort, 1964.

mantismo alemao propriamente dito exalte a expansaoviolenta de paix6es e afetos e 0 impeto irracionalista. Avisao melancolico-noturna nao e tipica de todos osgrupos romanticos, 0 impulso dionisiaco e apenas mo-mento parcial de urn desejo maior de harmon'ia e 0

individualismo e subjetivismo anarquicos n~o imperamem todos os desenvolvimentos do romantismo alemaoque se imp6e lentamente, a partir de 1796, e se extin-gue por volta de 1830.

De urn modo geraJ, a concep<;ao do genio, tantodos Sturmer und Draenger como dos romantIcos, des-loca 0 centro gravitacional do pensamento estetico. 0que agora importa na indaga<;ao ja nao e tanto a obra(e sua aprecia<;ao) quanta 0 poeta e 0 ato criativo. 0classicismo considera 0 poeta como servidor da obra,elaborada segundo regras eternas e destinada a certosfins - principalmente de ordem moral e catartica, demodo a se tornar util e agradavel, segundo a formulade Horacio. Ia aos romanticos tende a importar maisa auto-expressao da subjetividade do poeta. A verda-de poetica nao e mais obtida pela "imita<;ao da natu-reza" e sim pela "sinceridade" e "autenticidade" daauto-expressao. A obra, antes valida enquanto objetoperfeito, vale agora sobretudo enquanto revela<;ao daverdade intima do criador. A ."perfei~ao" e nocivana medida em que suprime a sinceridade e espontanei-dade. Todavia, certos grupos de romanticos acredi-tam atingir precisamente pela auto-expressao a umaverdade objetiva: a proje<;ao do mundo intimo "cons-titui" a verdade profunda do universo exterior, a se-melhan<;a das teses expressionistas. A imagina<;ao"transcendental" e condi<;ao criativa de realidades es-senciais. Mas esse "objetivismo" e de fato uma formavelada de urn subjetivismo radical. "0 Nao-Eu (0mundo) e 0 simbolo do Eu e serve para a autocom-preensao do Eu" (Novalis ) .

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Essa tendencia ao subjetivismo liga-se a uma nova_concepc;aodo indivfduo. 0 individualismo racionalistae liberal da Ilustrac;ao e do tipo "mecanicista": baseia--se na razao, essencia comum a todos os seres huma-nos. Na medida, porem, em que a razao nao e con-siderada valor supremo, realc;ando-se as fOr<;as emo-cionais e a sensibilidade impondenivel do homem, comotais subjetivas e de irredutivel variedade, 0 individua~lismo tende a tornar-se "organicista": a igualdade es-sencial, verificavel somente atraves de operac;oes ana-lfticas de abstrac;ao, e negada, ou, pelo menos, deixa

. rde ser valorizada em sentido positive; em contraparti-da e acentuada a singularidade da pessoa concreta, in-separavel do contexto historico e nacional. Ao pensa-mento totalizador do Sturm und Drang repugna a ana-lise racional que, pondo de lado a plenitude inefaveldo individuo, realc;a 0 que e comum em todas as va-riac;oes. 0 que agora se destaca e 0 todo concreto, in-tegrado no seu ambiente e determinado por variaveisbiologicas e etnico-historicas que 0 tornam' inconfundf-vel. A valorizac;ao positiva dessa unidade implica naliteratura 0 abandono dos canones chissicos que visamacentuar 0 tipico. Agora, bem ao contrario, tende-sea ressaltar 0 caracteristico, categoria importante dopensamento romantico que freqiientemente conduz aocaricatural e grotesco.

A concepc;ao exposta relaciona-se com 0 "organi-cismo" hist6rico de Herder, visivel ainda nas especula-c;oes de Oswald Spengler. Cada povo passa por fasesde crescimento vegetativo semelhantes, mas todas assuas manifestac;6es sociais e culturais variam de acordocom 0 espfrito ou a "alma" peculiar dos povos que sediferenciam conforme a variac;ao dos fatores geografi-cos, clima, genio etnico etc. Influenciado pela Scienzanuova (1730) de G. Vico, 0 pensamento historicista eorganicista de Herder, ao acentuar a peculiaridade ve-getativa de cada povo, recusa a imposic;ao de leis ~

canones esteticos universais. A obra-de-arte e, em simesma, uma totalidade organica, froto do organismomaior da cultura. Por isso nao pode ser "fabricada"segundo regras exteriores e estranhas.

De tais concepc;oes irradiou-se toda uma tradic;aoromantic a que iria estimular as ciencias hist6ricas, lin-gilisticas e juridicas nos inicios do seculo XIX e moldarpoderosamente as ideias de Hegel, Bachofell eNietzsche.

2. Duas Gerar;oes.

Boa parte das tendencias apontadas, quase todastfpicas do Sturm und Drang, nao deixam de ser acata-das por muitos circulos do romantismo alemao propria .•,mente dito. '£ste, ao anunciar-se nos ultimos anos doseculo XVIII, ja surge como "escola" autoconsciente, aprimeira a adotar como bandeira dos "modernos" 0 ter-mo "romantico". Mal duas decadas separam os pri-meiros romanticos dos seus. antecessores pre-romanti-cos a quem tanto devem. Contudo, comportam-se comose nao tivessem existido ou, quando se referem a eles,o fazem muitas vezes com desprezo, superioridade ouescarnio. Trata-se de uma nova gerac;ao, nascida compoucas excec;oes na decada de 1770, ao passo que amaioria dos Sturmer und Draeng"ernascera entre 1744e 1759. As novas gerac;oes nao costumam apreciar asimediatamente anteriores. Ha, todavia, razoes maissubstanciais para 0 pouco aprec;o dos romanticos. Nosvinte anos decorridos entre 0 impacto principal destese as primeiras manifestac;oes daqueles, 0 espfrito alemaoatingira tao grande maturidade e produzira tanto noterreno literario e filos6fico que os herdeiros se defron-tavam com uma constelac;ao inteiramente diversa dospredecessores (deixando de lado a situac;ao totalmentemodificada depois da Revoluc;ao Francesa). Os pre--romanticos crescera~ numa paisagem espiritual rela-

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tivamente pobre, amp!amente ocupada por epigonosfracos do cJassicismo frances. Desde entao houveraquase duas decadas de desenvolvimento cJassicista, dedisciplinac;ao severa e dolorosa, de rigorosas criticas deGoethe e Schiller a sua propria fase pre-romantica. Sur-giram grandes obras de tendencia cJassica e, principal-mente, as obras filosoficas de Kant, de influencia in-calculavel sobre os romanticos. Seguira-se uma espan-tosa atividade especulativa de alto nivel, desdeReinhold, Schulze e Maimon ate Bardili, Jacobi, Fichtee Schelling. 0 proprio Schiller, baseado sobretudo emKant, elaborara, neste interim, uma teoria estetica decunho chissico na qual, ao mesmo tempo, negara e su-blimara os seus inicios pre-romanticos; esteticd queincJuia todo urn esquema filosofico do desenvolvimen-to da consciencia humana. Por mais que escarneceS-Sem de Schiller, os romanticos sentiam-se fascinadospor sua filosofia estetico-cultural e historica. Os seusgrandes ensaios exerCeram uma influencia ate hoje oaosuficientemente reconhecida na elaborac;ao do pensa-mento de Hegel, particularmente da sua Fenomenolo-gia do Espirito e da sua Estetica.

Os romanticos, portanto, nao saD pioneiros, comoos Seus antecessores, e sim herdeiros de' uma das maisextraordimirias florescencias do espirito alemao. Nadatern do titanismo faustico dos "genios originais". Lon-ge esHio de exaltar 0 primitivismo rude e 0 "naturis-mo" violento dos antecessores que se exprimiam numalinguagem tosca, excJamativa, cheia de anacolutos eelipses, supostamente reflexo "automatico" das fOrc;asinconscientes que lhes ditariam as irrupc;oes semi-arti-culadas. Os romanticos de modo algum querem "vol-tar" a natureza; querem avanc;ar ate ela, depois deassimilado todo 0 processo civilizatorio. "£ isso que seexprime na extraordinaria formula de Novalis, na utopiaparadoxal da Crian~a ironica. Reconhece-se nestaideia, sem dificuldade, uma palavra de Schiller: "Elas

(as crianc;as) SaD 0 que nos lomos; elas SaD 0 quenos devemos tornar a ser. Fomos natureza, como elas,e a nossa cultura deve reconduzir-nos, no caminho darazao e da liberdade, a natureza" - isto e, a umanatureza em que se encontram integradas as conquis-tas do desenvolvimento. Da mesma forma, quandoFriedrich Schlegel diz: "Em todo born poema tudodeve ser proposito e tudo instinto", nega tanto 0

Sturm und Drang quanto a Ilustrac;ao, para chegar auma sintese dialetica que reflete toda a filosofia esteti-ca de Kant e Schiller. Na sua Critica do Juizo Kantdissera: "A bela arte deve parecer natureza, por maisque saibamos tratar-se de arte". Com intuito evidentede escandalizar e de distanciar-se do emocionalismo pre--romantico, F. Schlegel -- urn dos chefes principaisdo primeiro romantismo - decJara: "Para poder es-crever bem sobte urn assunto, nao se deve mais tel' in-teresse por ele. . . Enquanto 0 artista inventa e sesente entusiasmado, encontra-se, pelo menos para acomunicac;ao, em estado iliberal". Mesmo Novalis -urn dos maiores poetas da primeira onda romantica -afirma: "Comec;o a amar a sobriedade ... " ou "ao poe-ta sao necessarios senso calma e atento. .. nenhumapaixao em sentido pleno" e mesmo "fria serenidade".

Tais afirmac;oes afiguram-se paradoxais quandoproferidas por romanticos. Mas e evidente que os doisSchlegel (Friedrich e August Wilhelm), Novalis, Tieck,os Brentano,' Arnim, Eichendorff, E. T. A. Hoffmannetc., nao podem voltar simplesmente ao pre-romantis-mo. Tern de distanciar-se do que ja fora vivido, criti-cado e superado por Goethe e Schiller; nao podem re-petir 0 estouro irracional que, no ambiente de extremarequinte intelectual da elite de Weimar e Jena, nestaatmosfera de grandes poetas e filosofos, Se afigura im-possive! e mesmo ridiculo. Nao podem mais ser pri-mitivos embora possam, talvez, amar 0 que nao sao.Segundo a famosa classificac;ao de Schiller, ja nao po-

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dem ser "ingenuos" como teriam sido os gregos, povode consciencia integra que ignorava as dicotomias daconsciencia moderna e representava 0 "instinto genialdo paraiso". A poesia ingenua opoe-se, segundo Schiller,a "poesia sentimental" de poetas que, tendo deixadode ser natureza, aspiram a se-lo de novo, saudosos daharmonia e unidade perdidas. Mas enquanto Schilleracredita na possibilidade de urn novo equilibrio poeti-co, manifesto na "forma viva" da obra perfeita, os ro-manticos, embora almejando tambem uma harmoniaulterior, tendem a acentuar as fragmenta<;oes e antino-mias modernas. f'. como se desejassem esgom-las, le-yando 0 esfacelamento as ultimas conseqiiencias. Pre-ferem 0 excesso, 0 movimento que oscila entre os ex-tremos, neste anseio de progressao infinita ate uma uni-dade totaJizadora que abarque todos os elementos emchoque. "A poesia romantica e poesia universal pro-gressiya. Seu fim nao e somente 0 de tornar a reuniros generos separados da poesia e relaciona-la com afilosofia e a retorica. Ela deve tambem misturar oufundir poesia e prosa, genialidade e critica, poesia ar-tistica e poesia natural" (F. Schlegel). A mobilidadeinfinita dos modernos nao se coaduna com a classicaobra perfeita que separa os generos e por for<;ase auto-limita. Dai tambem 0 cunho fragmentario, muitasvezes minusculo, improvisado de tantas obras roman-ticas (fenomeno tipico tambem na musica). A grandeordem classica ja nao existe. A nova, a futura "inge-nuidade" deve passar pela dialetica da reflexao senti-mental; ela deve ser sintese de antiteses. A Crian~aironica de Novalis antecipa os "animais ironicos" deNietzsche - nome que 0 filosofo deu a si mesmo e aurn amigo com quem gostava de cair num linguajar po-pular, apreciando "0 gozo requintado" ao "retraduzira. propria maneira moderna e extremamente problema-tica em termos de ingenuidade".

o gozo requintado da ingenuidade - cssa atitu-de romantic a ja antecipa certa decadence dos fins doseculo XIX e muitas correntes modernas. 0 espiritoromantico tern fortes toques de uma voluptuosidade re-finada, tipica tambem da sua religiosidade muitas vezesestetizante. Nao deixa de surpreender que urn jovem"sercifico" como Novalis possa dizer: "f'. ~stranho quea associa<;ao da volupia, religiao e crueldade ja naotenha chamado, ha muito, a aten<;ao sobre a tendenciacomum as tres". Ou entao: "f'. estranho que. a razaoyerdadeira da crueldade seja a volupia". E esteaper~u: "Fervoroso bem-estar da agua - volupia docontato com a agua". Muito cedo se infiltra no circulodos jovens intelectuais certo ennui, certo sentimento devazio - talvez 0 outro lado da sua jubilosa e febrilsofistica<;ao, levada a excessos de acrobacia cerebral.A "ironia romantica", particularmente de F. Schlegel,baseia-se em parte na filosofia de Fichte; mas parecefincar uma de suas raizes na teoria de Schiller, segundoa qual 0 estado estetico (0 unico em que 0 homem e"integralmente" homem, em que, portanto, deixa deser dissociado) e urn estado ludico, de infinita dispo-nibilidade.

Ironia "e a consciencia clara da etema agilidade,do caos infinitamente pleno"; e "a forma do parado-xal"; "na mudan<;a eterna de entusiasmo e ironia" ex-prime-se uma "simetria atraente de contradi<;oes". Vmaideia e "urn' conceito aperfeic;oado ate a ironia, umasintese de antiteses absolutas, a lConstante mudan<;a,autoproduzida, de dois pensamentos em choque".Schiller, evidentemente, nao previra semelhantes conse-qiiencias da sua teoria.

Antiteses absolutas nao admitem uma sintese abso-luta, a nao ser em aproxima<;ao infinita que implicamovimento constante. ~sse oscilar entre as contradi-

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~s, diz Novalis, exige "uma versatilidade infinita dointelecto culto" que pode "retirar-se de tudo, virar e in-verter tudo, conforme quer". Um aforismo do filologoF. Schlegel: "Um homem bem livre e culto deveria po-der afirmar-se, a vontade, de um modo filosofico oufilologico, critico ou poetico, historico ou retorico, anti-go ou modemo -- bem arbitrariamente, da mesma for-ma como se afina urn instrumento, a qualquer hora eem qualquer grau". Deve sentir-se, portanto, em dis-ponibilidade ilimitada para as mais diversas tendencias.Para caracterizar alguem "e preciso ser 0 mesmo e, ape-sar disso, outro ... ". Ou entlio: "Para entender alguemque a si mesmo so entende pela metade, e preciso quese 0 entenda primeiro totalmente e melhor que ele asi mesrno e, em seguida, s6 pela metade, exatamentecomo ete a si mesmo".

o que aos romanticos fascinava era a ideia de le-var a sirnplicidade a sutileza e esta aquela para, atravesdo jogo das contradi90es, chegar a sintese da "segundainocencia" - a inocencia da can9ao popular, do lied,do conto de fadas, do mito. Mas uma unidade capazde abarcar todas as contradi90es so pode situar-se natranscendencia. Ha fervor mistico no ambiente ludi-co desses virtuoses do pensamento paradoxal. A efer-vescencia intelectual quase patologica desses ca9adoresda coincidentia oppositorum estava impregnada de umaieligiosidade, cujo teor fundamental era a "volupia dasintese" (Novalis).

Mas ha tambem, neste pensamento contraditorioque antecipa a dialctica de Hegel, urna leveza espiritualmuitas vezes levada a Jeviandade. :f: possivel, em ter-mos psicologicos, que a violenta polemica de Hegelcontra a ironia romfmtica (na Estetica) decorra desseparentesco, alias apontado por Kierkegaard ao comba-ter a "media9lio universal" do filos~fo; medi~ao des-compromissada, tipica da "cislio" romantica e nuncaseguida de uma escolha absoluta, de uma "de-cisao".

Kierkegaard via bem 0 elemento religioso nesta ironia.Ela visa negar os valores do senso comum, 0 pensamen-to filisteu, fixo, petrificado, as categorias coaguladasda realidade vulgar para, atraves do rompimento como seculo, exaltar 0 infinito. Mas quando tudo e vistosub specie ironiae, 0 oscilar permanente nao e supera-do por um verdadeiro compromisso com 0 infinito. 0proprio Schlegel percebeu a ambigtiidade da dialeticareligiosa da ironia: "A verdadeira ironia e a ironia doamor. Ela nasce do sentimento da finitude e da limi-ta9ao propria, assim como da aparente contradi9aodesse sentimento em face a ideia do infinito, inclusaem todo amor verdadeiro".

Embora Schlegel tivesse querido atingir, atravesda ironia, a maxima objetividade - aquele olhar quepaira acima de tudo - libertara precisamente a pro-pria subjetividade, ao julgar tudo vaidade, menos 0proprio genio. 0 sujeito torna-se, na ironia radical(transformada em atitude existencial), "negativamentelivre". K. F. Solger, 0 filosofo da ironia contempo-raneo dos romanticos, disse que 0 olhar que paira acimade tudo, aniquila tudo. Nao admira, pois, que tenhasido n9 drculo romantico que surgiu 0 termo "niilis-mo"; niilismo muito cedo tambem vislumbrado porTieck na manifesta9ao radical do tedio. Hegel, porsua vez, censura que a ironia transforma tudo em apa-rencia; pois 0 artista puro nlio se compromete, sente-selivre de todos os la90s e todos os interesses substanciais.o fundamento desta atitude seria a filosofia de Fichte,segundo a qual 0 "Eu" (transcendental) produz todosos conteudos morais e religiosos. Neste caso "eu soudona e mestre acima de tudo, pois tudo e meu pro-duto ... " Daf tudo se tomar mera aparencia que podeser negada pelo mesmo eu que tudo produziu.

Por mais unilateral que seja a polemica de Hegel,e com muita perspicacia que apontou a ironia comoraiz do "saudosismo" romantico (Sehnsuchtigkeit: 0

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termo alemao, no entanto, abrange nao so a nostalgiado passado, da inocencia e integridade perdidas, e simtambem 0 anseio por urn progresso infinito, por umanova idade de ouro, superior a passada) . Para 0

homem ironico se desfazem todos os interesses, vistonao haver nenhum valor que resista. Ern dado momen-to, porem, 0 individuo passa a almejar 0 contato obje-tivo corn a realidade substancial, sem entretanto sercapaz de abandonar a sua subjetividade solitaria parapenetrar na "coisa", como 0 homem religioso ou mo-ral, que se desfaz da subjetividade para "entrar na ver..dade". Nesse saudosismo estetico, 0 individuo fixa-senum certo prazer morbido. Os romanticos, de fato,tiraram uma satisfac;ao "voluptuosa" da insatisfac;ao."Pois como na saudade, ambos, individuo e coisa, estaoligados, ha neste estado solitario certa satisfac;ao, masao mesmo tempo nenhum verdadeiro aproximar-se dacoisa. .. Temos aqui a alma ern solidao consigo mes-ma, nao queremos agir. .. trata-se de uma doenc;a efraqueza do espirito. . . "

A. W. Schlegel, 0 irmao de Friedrich, exprimiuisto em termos mais positivos na sua famosa definic;aodo romantismo: "A poesia dos antigos era a da posse,a nossa e a da saudade (e anseio); aquela se ergue,firme, no chao do presente; esta oscila entre recorda-c;ao e pressentimento. 0 ideal grego. .. era a concor-dia e 0 equilibrio perfeitos de todas as forc;as; a har-monia natural. Os novos, porem, adquiriram a cons-ciencia da fragmenta9ao interna que torna impossiveleste ideal; por isso a sua poesia aspira a reconciliaros dois mundos em que nos sentimos divididos, 0 espi-ritual e 0 sensivel, fund indo-os de urn modo indisso-luvel. .. Na arte e poesia gregas manifesta-se a unida-de original e inconsciente de forma e conteudo; na no-va, procura-se a interpenetrac;:ao mais intima de ambos,enquanto ao mesmo tempo permanecem opostos. Aque-la soluciona a sua tarefa, chegando a perfeic;ao; esta,

so pela aproximac;ao pode satisfazer 0 seu anseio doinfinito. . . ".

Nao hli, talvez, descric;ao melhor de certos aspec-tos do espirito romantico do que a de Hegel, acirnaexposta. Empolgados por um sentimento efusivo ejubiloso de liberdade, de "sublime insolencia", os jo-yens romfmticos brincam com todos os valores, ironi-zando por vezes os proprios anseios religiosos. Naosem razao foram comparados a acrobatas e prestidigi-tadores que, danc;ando na corda bamba, se servem decosmovis6es como se fossem peloticas, sempre amea-c;ados pela queda no abismo. Ensaiam com audacia 0

saIto mortal do espirito, ora com rCde - e neste casoa Igreja Catolica lhes presta servic;os uteis - ora semrede - e 0 resultado e por vezes a loucura ou 0 su'i-cidio. Ha algo de "satanico" na atitude desses roman-ticos - no seu niilismo, nos seus chistes, no seu mis-ticismo por vezes libertino e no seu saudosismo dilace-rado de fusao, integridade e identidade. Grac;as a estesaudosismo se tornaram descobridores, andarilhos e pe-regrinos espirituais, conquistadores de mundos longin-quos - mundos hist6ricos, ex6ticos, folcl6ricos. Masenquanto buscavam na distancia do tempo ou do espa-C;O a unidade e inocencia, realc;avam ao mesmo tempoo esfacelamento, a fragmentac;ao, 0 homem-espelho,desdobrado em reflexos, 0 homem-mascara, 0 duplo, 0

s6sia, 0 homem que vendeu a alma, 0 homem que ven-deu a sombra e perdeu a estabilidade, a raiz, a "patria",exilado que e da unidade paradisiaca.

o iconoclasmo virtuoso dos romanticos tem algode festivo, algo de "saturnalias litenirias" (Novalis).Nao e sem razao que F. Schlegel atribui a sata - "fa-vorito dos poetas e fil6sofos alemaes" - "arbitrarie-dade incondicional", sobretudo 0 prazer de "aniquilar,confundir e seduzir". 0 riso ironico que ressoa nes-sas orgias cerebra is e povoado de diabinhos, sedutoressem d6vida, mas tambem destrutivos. Baudelaire iria

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dizer que a risada nasce na ideia da propria superio-ridade: "uma ideia satflOica - se jamais houve algu-ma". Mas Baudelaire sabia tambem que no eeo darisada "freme a ang(Jstia". 0 "rir infernal" iria seruma obsessao romantica, de E. T. A. Hoffmann a Hugoe aos posteros.

4. A Remitiza~iio do Mundo.

As relac;:oesentre a ironia romantica e a filosofiade Fichte, apontadas por Hegel de urn modo urn tan-to malevolo, sem duvida existem, embora 0 severo mo-ralismo do fil6sofo nada tenha de romantico e muitomenos de ironico. 0 sistema fichtiano e uma tentativade superar 0 dualismo e certas contradic;:oes do pensa-~ento kantiano, atraves da derivac;:aodo mundo a par-tIr de urn principio espiritual uno, chamado "Eu".£sse Eu transcendental, produtor de toda a realidade,nao deve ser confundido com os "eus" individuais daspessoas empiricas. Principio fundamental, este Eu sub-jaz as consciencias individuais, como entidade ativa ,pura, livre, absoluta. No fundo de todos nos habitaesta essencia divina. acessivel a nossa "intuic;:ao inte-lectual".

hsse Eu, que e puro ato, vontade moral (nao avontade irracional de Schopenhauer), produz 0 "Nao--Eu" (toda a multiplicidade dos fenomenos) segundomoldes da "imaginac;:ao produtora", alias inconsciente.Longe de ser fantasia arbitraria e quimerica, atua se-gundo categorias "transcendentais", isto e, aprioristi-cas, sobre-individuais. Por atuar sem reflexo conscien-te (isto e, sem que notemos a sua atividade), 0 mundodas representac;6es criado por ela se afigura autonomo,independente da nossa consciencia. Nao se confunda,de resto, 0 termo kantiano "transcendental" com 0 ter-mo "transcendente". tste ultimo refere-se ao supra--sensivel, ao reino inacessivel a nossa experiencia, ao

passo que aquele designa as formas basicas da cons-ciencia, merce das quais se constitui a experiencia; for-mas, portanto, que saD condic;:oesde toda a experienciapossivel, isto e, no sentido de Fichte, condic;:6esdo pro-prio mundo. Portanto, 0 Eu absoluto cria 0 Nao-Eusegundo tais formas ou categorias, limitando-se assimpela contraposic;:ao de uma realidade aparente, a fimde poder atuar (moralmente) contra tais resistenciasauto-impostas. 0 Eu, eterna vontade atuante, op6e asi mesmo barreiras para poder supera-Ias, para poderatuar e lutar contra 0 mundo, impondo a sua liberdademoral em face das leis da natureza. Decantar dentrode si 0 Eu infinito e a aspirac;:aoeterna do homem em-pirico, limitado pelas necessidades naturais impostaspela produc;:aodo Eu absoluto. Atraves do esforc;:omo-ral incessante, 0 homem temporal deve procurar tor-nar-se 0 que no fundo desde sempre e: Eu puro, livre,divino. Torna-te 0 que es - liberta-te de tudo que tealienou do teu verdadeiro ser. 0 processo desse aper-feic;:oamentoe dessa decantac;:ao e, necessariamente, in-finito. "Para 0 intimo vai 0 misterioso caminho", diriaNovalis. "Em nos, ou em parte nenhuma, esta a eter-nidade ... " Talvez se entenda dai 0 sentido mais pro-fundo da ironia romantica, pondo de lado 0 pathosmoral da filosofia de Fichte. Desfazendo, num movi-mento dialetico incessante, todas as aparencias empiri-cas, a ironia exprime 0 atuar puro de uma subjetivi-dade que, dissociando-se em cada instante dos "eus"que sucessivamente se tornam sujeitos fixos ao fixa-rem um objeto, se mantem livre de qualquer determi-nac;:ao. Neste saber do saber do objeto, neste retrocessodinamico, resvalando entre posic;:ao e negac;:ao, nesteconstante desdobramento agil do atuar puro, yOU de-cantando e superando a tensao eterna entre Eu empi-rico e Eu infinito; tensao que Fichte, embora desejosode eliminar as antinomias de Kant, reintroduzira noamago da propria consciencia.

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Na literatura, a ironia - longe de ser apenas re-curso retorico - torna-se assim atitude fundamental.Criando a obra-de-arte, 0 autor a objetiva, distanciando--se dela e do proprio eu empenhado no ato da cria-<rao;em novo ato criativo introduz dentro da obra estemesmo ato de distanciamento, e assim sucessivamente.o resultado niio sera decerto uma bela obra classica,mas em compensa<rao sera sem dlivida "interessante"(nova categoria estetica introduzida por F. Schlegel).A obra sera "aberta", experimental, e incluira na suaestrutura 0 proprio processo de sua cria<rao.

E obvio que particularmente os conceitos da ima-gina<rao produtora inconsciente - verdadeira criadorado mundo - e da intui<raointelectual (negada por Kant)exerceram profunda influencia sobre os romanticos. SeNovalis fala de "poesia transcendental" ou F. Schlegelde "bufonaria transcendental" a ideia e que 0 genio oupoeta (donos da intui<rao intelectual) penetram e par-ticipam da imagina<rao produtora do Eu absoluto, tor-nando-se por sua vez "produtores", merce do espiritochistoso da ironia ou da visao onirica ou mesmo daalucina<rao. Gra<ras a esta participa<rao revelam ou ateconstituem mundos mais verdadeiros, mais poetico-fi-losofico-cientfficos do que os da experiencia ordinaria,mediante formas apriorlsticas mais essenciais do que asdo senso comum. 0 poeta (da mesma forma que 0

fi1osofo) reconhece no Nao-Eu (isto e, no mundo) aestrutura da propria intimidade - pois tudo e espiritopara 0 idealismo radical de Fichte. Ao poeta 0 mun-do torna-se transparente. A realidade nao somente serevela a ele mas passa a ser, na sua verdade profunda,proje<raoe cria<rao magicas da imagina<rao transcenden-tal do genio, a semelhan<ra do que um seculo depoisfoi sustentado pelo idealismo radical dos expression is-tas. "0 mundo exterior nada e senao 0 mundo intimoelevado a um estado secreto" (Novalis) . "0 reino dafantasia e a propria realidade, mas na sua existencia

essencial e mais elevada" (K. F. Solger). Por isso, apoesia transcendental e, na expressao de Novalis, 0

"absolutamente real... Quanto mais poetico, tantomais real". Poesia e aqui "poiesis" no sentido literal- criadora de realidades. 0 artista torna-se, por assimdizer, dono das leis da produr;ao mundanal, usurp an-do-as da imaginar;ao produtora de Fichte. A partir daientende-se 0 "idealismo magico" de Novalis - 0 domi-nio do espirito sobre 0 mundo fisico, criar;ao que edo espirito. Magia e 0 estado de genialidade absolutaem que dominamos 0 proprio. corpo e 0 mundo exter-no, podendo transfigura-Ios a nosso bel-prazer. Taisopini6es sobre a poesia transcendental, especie de con-dir;ao da possibilidade nao so do conhecimento profun-do da realidade (para variar uma formula de Kant)mas ate da propria realidade profunda, representam evi-dentemente uma distorr;ao do pensamento de Fichte.Mas correspondem exatamente as teses de Baudelairesegundo as quais a imaginar;ao "cria um novo mundocom os materiais que reline e ordena segundo regras,cuja origem s6 pode ser encontrada nas profundezasda alma. . . Visto ter criado 0 mundo - ... - e justoque tambem 0 domine. .. A imaginar;ao e a rainha daverdade".

Todavia, se 0 Eu absoluto de Fichte exerceu gran-de influencia sobre os romanticos, a sua sensibilidadese afinava ainda mais com a filosofia da "Identidade"de Schelling. Identidade e unidade sao os principiosfundamentais de um movimento, cujos expoentes ansia-yam por superar os dilaceramentos da civilizar;ao mo-derna. A partir do principio metaflsico de Schellingorigina-se tanto 0 reino da natureza (espirito incons-ciente) como 0 reino humano da historia (espirito cons-ciente). Na Identidade tem seu fundamento 0 logicoe 0 alogico. a necessidade (natureza) e a liberdade(espirito). 0 seu simbolo perfeito e 0 Belo que reu-ne e supera todas as dicotomias. 0 principio da Iden-

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tidade, como coincidentia oppositorum de todas as an-tinomias, exerceu fascinio imenso sabre os romanticos.Estimulou-Ihes a tendencia ao mito (em que se mani-festa a unidade original entre homem e universo, antesdo cataclismo esquizoide que alienou 0 homem do uni-verso, segundo a palavra do expressionista G. Benn)e ao misticismo (atraves do qual se procura recuperara unidade perdida, desfazendo 0 pecado original daindividuac;ao) .

Nem a razao teorica nem a pnitica podem chegara supcraC;aodas suas antinomias inerentes. A conscien-cia cientifica nunca alcanc;a a ultima meta e a tensaomoral entre ser e dever-ser e infinita. Tampouco Mreconciliac;ao entre os dois dominios, 0 da ciencia (do-minio das leis naturais) e 0 da moral (dominio da li-berdade exigida pelo imperativo do dever). Somentena obra-de-arte todas as tens6es saD superadas. Se-"gundo Schelling (que nisso segue Kant), ela medeiaentre a natureza e a cultura, reune 0 ideal e 0 real, es-pirito e vida, 0 infinito e 0 finito. A obra-de-arte faztransparecer 0 absoluto na limitac;ao da sua forma sen-sivel-concreta, particularmente quando se mantem"aberta", fragmentaria, romantic a (formulas semelhan-tes, em ultima analise platonicas, foram depois adota-das por Hegel). Na obra-de-arte coincidem tambemJ iberdade e necessidade porque ela reline - como jadisse F. Schlegel - proposito e'instinto. Deste modoSchelling tornou-se 0 primeiro filosofo a exaltar a arte-- em lugar da logica - como organon de toda filo-sofia verdadeira, visto ela se afigurar simbolo do abso-luto, da Identidade.

Schelling desenvolveu em particular a filosofia danatureza, transformada no sistema fichtiano em meroproduto do Eu. A natureza, de que tem uma visao or-ganicista e teleologica, e espirito inconsciente, pre-his-toria do espirito consciente, manifesto na historia hu-mana. Nela vive um "espirito de gigante", mas como

que petrificado, lutando para romper as correntes dalei natural. E este mesmo espirito que, galgando ni-veis cada vez mais elevados, acaba por "chegar a si"e dar conta de si mesmo na consciencia humana. Afilosofia da natureza descreve a Iliada desse espirito,a sua peregrinac;ao no exilio e 0 retorno final a patriada Identidade, pressentido em vis6es escatologicas dahistoria humana. Na arte, 0 espirito consciente reco-nhece a sua propria imagem, transparecendo atraves doveu sensivel que cobre os meandros do mundo. "Aoespirito que chama aparece este mesmo espirito" (No-valis). "Medico transcendental", 0 poeta torna-se,merce da sua intuic;ao e imaginac;ao, "redentor da na-tureza" (Novalis). A arte, ao contrario da opiniaodos antigos, e superior a natureza porque acrescenta aconsciencia ao inconsciente. Por isso ela nao deve."imitar a natureza"; e esta que deve adaptar-se a arte,pois encontra nela sua verdade. Ao que a naturezabalbucia, a poesia da expressao articulada. Toda afilosofia do jovem Schelling e de fato urn mito.

o idealismo magico de Novalis e parte integraldessa remitizac;ao da natureza, tipica, alias, da buscado mito de quase todos os romanticos. "Que vem a sertoda a bela mitologia senao expressao hieroglffica, natransfigurac;ao da fantasia e do amor?" (F. Schlegel).o "poeta magus", descifrando os misteriosos hier6gli-fos da natureza, redescobre-lhe a vida profunda sabrea qual passa a exercer 0 seu poder. Em todos os niveisdo universo encontra relac;6es simpateticas, afinidades"quimicas" - correspondencias que tanto a Novaliscomo a Baudelaire se revelam sob 0 toque da vara ma-gica da analogia. As obras dos romanticos, particular-mente de Novalis e E.T.A. Hoffmann, estao repletasde "correspondencias", ressaltadas por sinestesias etransform adas em Leitmotive particularmentt: de sua

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novel1stica povoada de eotes fabulosos e sobrenaturais.Urn dos Leitmotive do romance Heinrich van Ofter-dingen (Novalis) e a famosa "flor azul" (que se tor-nou sfmbolo da saudade romantica). variada nas cor-respondencias com luzes azuladas, rochas azuis e si-nestesias audio-visuais. E urn e 0 mesmo espfrito ma-nifestando-se na variac;ao de fenomenos corresponden-tes. "0 mundo nada e senao urn tropus universaldo espfrito, uma imagem simbolica dele." Para estavisao mitica 0 conto de fadas se torn a 0 "canon dapoesia". Num conto de fadas autentico "tudo deveser maravilhoso, misterioso, desconexo - tudo anima-do. 0 conto de fadas e, no fundo, imagem onfrica -sem nexo - ensemble de coisas e eventos maravi-lhosos. Tais contos saD sonhos daquek torrao patrioque se encontra em toda a parte e em parte ne-nhuma ... " (Novalis).

Os lados mais noturnos e demonfacos dessa remi-tizac;ao se manifestam particularmente na obra deE. T. A. Hoffmann que tanta influencia exerceu sabreBaudelaire e os posteros. Na sua obra, 0 aniquila-mento fantasmagorico da realidade empfrica se produzconstantemente, quer pela passagem a urn mundo ideal,quer pela deformac;ao grotesca da realidade vulgar. Osbons e maus espfritos de urn mundo onfrico e espectralrepetem e ecoam a fragmentac;ao e desarmonia do mun-do real. Em muitos dos seus contos e faci! descobrir 0

motivo biogratico do leal e meticuloso funcionariodiurno e do boemio noturno da roda dos "Irmaos Se-rapion", com os quais empreendeu 0 "caminho paradentr~", a descida aos abismos do universo, ao mundomineral dos mineiros, onde os aguarda a rainha das pro-fundezas. No entanto, !lao e proposito deste trabalhoinvestigar os complexos fatores biograticos, psicosso-ciais e politicos que contribufram para a cristalizac;aodo movimento romantico.

5. Presenfa Ronulntica.

Neste esboc;o foram apresentados apenas algunsaspectos do romantismo alemao, caracterfsticos sobretu-do da sua fase inicial. Foi destacada principalmente ateoria romantica, atraves de numerosos textos dealguns dos maiores representantes. do movimento. 0exposto sugere analogias interessalltes entre 0 romantis-1110 alemao e 0 simbolismo. Aoque tudo indica, taisanalogias nao SaDapenas meras coincidencias ou "cor-respondencias" oriundas de fontes teos6ficas e neo-platonicas comuns. Resultam em parte de influen-cias diretas. A repercussao de Hoffmann e conhecida;mais recentemente, porem, foi comprovado tambemo forte influxo de Novalis 3, que com outros roman-ticos, foi difundido na Franc;a a partir de 1841 naRevue des Deux Mondes por urn amigo de Ge-rard de Nerval. 0 elo principal foi naturalmenteR. Wagner, fdolo dos simbolistas. 0 Leitmotiv e aobra sintetica, total, 0 Gesamtkunstwerk do dramamusical, saD ideias romantica~, tfpicas do seu an-seio de fusao e unidade a que tambem se associa asinestesia. "Musica. artes plasticas e poesia saD sino-nimos." "Musica e poesia saD mais ou menos a mesmacoisa, irmanadas como boca e ouvido." Tais opini6esde Novalis, que tambem se empenhava pela "uniaolivre" de recitativo, declamac;ao e canto no "plano maisalto do drama" se refletem na epoca simbolista naRevue Wagnerienne. Os romanticos viviam literal-ralmente numa orgia de sinestesias. Tieck pede quese "pense atraves de sons e se fac;a musica atraves depalavras e ideias ... ". As flautas - numa de suas pe-c;as - se gabam do seu "espfrito azul-celeste". A. W.Schlegel que, hem antes de Rimbaud, atribui as diver-sas vogais cores precisas, declara numa carta: "Dever--se-iam aproximar as artes e buscar transic;6es de uma

(3) Wemer Vordtriede. Novalis und die franzoesischenSymbo/isten. Stuttgart, 1963.

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a outra. Estatuas talvez se transformem em quadros,quadros em poemas, poemas em musica e, quem sabe,urn dia uma formosa ml\sica sacra talvez se erga noar, transfigurada em templo". f'. visivel neste trechoo desprestigio total do classicismo que separara nitida-mente as artcs (e, dentro das artes, os generos).

Tanto no expressionismo (manipulac;ao livre deelementos da realidade para exprimir e constituir, trans-cendentalmente, uma "realidade essencial") como nosurrealismo (cxaltac;ao do sonho) reencontramos mui-tos elementos romanticos e, alias, tambem do Sturmund Drang ("escrita automatica", "drama de farra-pos"). Certas id6ias do romantismo (a ironia como ati-tude fundamental, a elaborac;ao da teoria do simbolo)tornaram-se hoje dominio comum na investigac;ao lite-raria. Tambem passaram a ser patrimonio comum dapoesia moderna muitas concepc;6es antecipadas porNovalis: a "serenidade fria" do poeta que e "ac;o puro,duro como seixo", a ideia de que a fantasia tern 0 di-reito de "projetar caoticamente as imagens", de a poesiaser "construc;ao", "algebra e magia" , de que a lin-guagem poetica e autonoma, sem func;ao comunicativa,"operando" como ~se fosse "com formulas matematicasque constituem urn mundo por si e brincam apenasconsigo mesmas"; de que 0 poema, tornado hermetico,visa apenas aos iniciados, exprime apenas "relac;6espsiquicas musicais" e tende a ser "mera sonoridade,mesmo sem sentido e nexo", apresentando "fragmentosdas coisas mais diversas" (veja-se dadaismo e surrea-lismo; montagens e colagens). Ficamos surpreendidosao tomar conhecimento destas antecipac;6es geniais deNovalis. Alguns romanticos, possivelmente, ficariamencantados se hoje se defrontassem com urn poema con-creto: a fusao de uma arte temporal (poesia) comuma arte espacial (grafica) inspirar-lhes-ia numerososaforismos sobre a "correspondencia" e "afinidade qui-mica" entre as artes.

INFLU:f:NCIAS ESTf'.TICASDE SCHOPENHAUER

Comparado com Kant ou Hegel, Schopenhauer seafigura hoje urn filosofo menor. 1:, inegavel a presen-c;a da epistemologia kantiana, na teoria modern a dasciencias naturais, c do pensamento hegeliano, na teo-ria da historia e na antropologia filosofica dos nossosdias. Em face da atualidade persistente desses doispensadores, a influencia de Schopenhauer parece hojeinsignificante.

Entretanto, se e dificil "notar", nos nossos dias,o influxo do autor de 0 Mundo como Vontade e Re-presentariio, isso decorre em parte da onipresenc;a doseu pensamento. Determinadas tendencias e teorias