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  • Revista do SELL v. 4, no. 1

    ISSN: 1983-3873

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    CINEMA E CANO: ANLISE DIALGICA DE ACROSS THE UNIVERSE

    CINEMA AND SONG: DIALOGICAL ANALYSIS OF ACROSS THE UNIVERSE

    Nicole Mioni Serni UNESP - Araraquara

    RESUMO: Esta pesquisa reflete acerca do filme musical Across the Universe (2007), de Julie Taymor em sua arquitetnica (forma, estilo e contedo) a partir dos estudos do Crculo Bakhtin, Mededev, Volochinov. O gnero cinema e o gnero cano encontram-se em constante dilogo no gnero cinema musical, e especificamente, no corpus aqui trabalhado, as canes inseridas no filme so todas compostas pela banda britnica The Beatles. As relaes dialgicas reconhecidas nesta pesquisa buscam analisar como o filme Across the Universe incorpora as canes de The Beatles e de que maneira o musical dialoga com a letra de cada cano e com cada situao em que so interpretadas no filme. Sob a abordagem dialgica do Crculo a analise do filme em questo possibilita reconhecer o gnero cinema como caracterstico por ser composto por outros gneros que a ele se incorporam, como em Across the Universe, em que gneros como cano e dana so parte da construo do gnero cinema musical. PALAVRAS-CHAVE: cinema; dilogo; cano; musical; gnero. ABSTRACT: This research reflects about the musical movie Across the Universe (2007), by Julie Taymor in its architectonic (form, style and content) from the studies of the Circle Bakhtin, Medvedev, Volochinov. The cinema genre and the song genre are in constant dialogue in the cinema musical genre, and specifically, in the corpus here studied, the songs within the movie are all composed by the british band The Beatle. The dialogical relations recognized in this research aim to analyze how the movie Across the Universe incorporates the songs from The Beatles e how the musical dialogues with the lyrics of each song and with each situation in which they are sang in the movie. The dialogical studies from the Circle make it possible to recognize the cinema genre as typically composed by other genres, that are incorporated, such as in the movie Across the Universe, in which song genre and dance genre are part of the construction of the musical movie genre. KEYWORDS: cinema; dialogue; song; musical; genre.

    Tomadas iniciais: Introduo

    O presente trabalho reflete sobre a especificidade do filme musical tendo como

    foco principal a sua constituio intergenrica (a importncia da cano ou mesmo da

    msica na composio do filme). O estudo do gnero cinema, a partir do dilogo

    intergenrico e tambm interdiscursivo com a msica e a cano, possui como objeto

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    delimitado o filme Across the Universe (2007), que possui em sua construo apenas

    canes da banda britnica The Beatles.

    Estudar o dilogo no interior da construo do cinema, que possui, em sua

    composio, outros gneros (msica, cano, dana, fotografia etc), relevante para o

    estudo dos gneros discursivos (no caso da pesquisa aqui desenvolvida, calcado na

    abordagem dialgica do Crculo Bakhtin, Medvedev, Volochinov) e para a compreenso

    de como o cinema (enquanto gnero discursivo) constitui-se, necessariamente, de outros

    gneros.

    O filme pode ser inserido dentro do gnero cinema e tambm pode se subdividir

    em tipos especficos. O filme musical um tipo e investigar como sua arquitetnica

    composta a preocupao central deste trabalho. A escolha por este tipo de filme

    apareceu em funo do questionamento acerca de como ocorre a sua constituio, uma

    vez que existe a presena marcante de um outro gnero (a cano) em seu interior, como

    elemento essencial de sua arquitetnica. Assim, o interesse pelo objeto desta pesquisa se

    estabeleceu por sua intergenericidade e acredita-se que Across the Universe seja um

    bom exemplo de constituio desse tipo de filme, uma vez que, mais que trilha sonora, as

    canes de The Beatles presentes na trama so parte essencial do filme em si (objeto do

    prprio tema).

    A obra cinematogrfica em questo demonstra como as formas tpicas de

    enunciados de outros gneros so incorporadas sua genericidade e lhe alteram as

    caractersticas (cf. VOLOSHINOV, 1976; BAKHTIN, 2003). O trabalho com a anlise do

    gnero cinema e do tipo musical permite o estudo das formas de incorporao de

    diferentes genericidades pelo cinema, pois o filme selecionado como objeto desta

    pesquisa traz em seu interior a cano como outro gnero que, mais que incorporado,

    define um tipo especfico de filme (o musical). A importncia do presente trabalho se

    encontra na contribuio que se pretende realizar para o entendimento da formao de

    gneros a partir da relao com outros gneros, como concebe Bakhtin (idem). Conforme

    para Bakhtin literatura e romance so reconhecidos como gneros, este trabalho

    considera cinema e filme tambm como gneros. O filme Across the Universe pode ser

    reconhecido como um tipo especfico de filme, o musical, sendo a principal peculiaridade

    deste tipo a presena da cano na construo da narrativa, como elemento constitutivo

    do filme musical.

    As variaes no interior da formao dos gneros demonstram que o gnero no

    uma forma fixa, mas algo sujeito a alteraes as mais diversas, havendo, naturalmente,

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    graus maiores e menores de liberdade do sujeito, entendido como mediador entre o

    socialmente possvel e o efetivamente realizado e cujo papel varia conjunturalmente, nos

    termos de suas circunstncias especficas. Se, para o Crculo russo, os gneros so

    relativamente estveis, tem-se de considerar tanto sua estabilidade (tipificao) quanto a

    possibilidade de sua variao, que gera outros tipos ou mesmo outros gneros, dada a

    relatividade dos gneros discursivos, que podem ser pensados em sua arquitetnica e

    nas esferas de atividade que so compostos e circulam.

    A cano, gnero presente essencialmente no musical, j pode ser considerada

    como intergenrica, ou seja, constituda por outros gneros, uma vez que letra e msica

    so necessrias para a existncia da cano. O gnero letra e o gnero msica fazem

    parte da caracterizao especfica do gnero cano. Mesmo que separadamente letra e

    msica sejam gneros com suas caractersticas particulares, quando se unem constroem

    o gnero cano. a partir deste dilogo (letra e msica) que a constituio da cano

    pode ser considerada como intergenrica. A composio do cinema, assim como a

    cano, intergenrica, pois possui relaes entre gneros como parte essencial da sua

    produo. A cano, aqui considerada como um gnero, elemento constitutivo do filme

    escolhido, sua presena de extrema importncia na formao do tipo musical.

    O conceito de dilogo, conforme discutido pelo filsofo russo, basilar teoria

    analtica proposta pelo Crculo e transparece em sua ideia de discurso, pois este se

    constitui de liames com outros discursos, que o influenciaram a ser concretizado da

    maneira que foi ou que, a partir dele, concretizar-se-o. Um enunciado sempre provocar

    outro enunciado que, por sua vez, gerar outros, todos em relao dialgica.

    Essa relao dialtico-dialgica da interao verbal, em que um enunciado

    construdo pressupondo um outro que o negue ou confirme ilustrada por Bakhtin como

    um embate, uma arena onde se confrontam os valores sociais contraditrios (BAKHTIN,

    1992, p. 14). Esses valores apresentam-se marcados no enunciado (por meio da

    adjetivao, da ironia, das figuras de linguagem, entre outros elementos). Por isso, o

    enunciado a arena onde as ideologias se concretizam.

    O dilogo se estabelece entre discursos e sujeitos, uma vez que a interao verbal

    no necessita da palavra escrita para acontecer, mas sim de um enunciado, da expresso

    de um sujeito inserido em um contexto especfico:

    O dilogo, no sentido estrito do termo, no constitui, claro, seno uma das formas, verdade que das mais importantes, da interao verbal. Mas

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    pode-se compreender a palavra dilogo num sentido mais amplo, isto , no apenas como a comunicao em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicao verbal, de qualquer tipo que seja. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p. 109)

    Se um discurso sempre proferido por algum e direcionado a outro, o dilogo,

    ento, essa relao que se estabelece entre o discurso que se faz, que se espera que

    seja respondido ou que, ao se afirmar, negue outro enunciado.

    No corpus desta pesquisa, os dilogos ocorrem, principalmente, entre o filme

    musical e as canes de The Beatles nele incorporadas, assim como a situao histrica

    vivida pela banda britnica dialoga com a poca dos Estados Unidos retratada na obra

    cinematogrfica. Ainda que, obviamente, existam outros dilogos no discurso em anlise,

    deve-se levar em conta que dilogos existentes num dado enunciado no podem ser

    esgotados, principalmente ao se considerar a concepo de dilogo do Crculo, adotada

    nesta pesquisa.

    Cenrio e Fotografia: Fundamentao terica

    Sob a perspectiva terica escolhida para este trabalho, os estudos do Crculo

    Bakhtin, Medvedev, Volochinov, a questo do dilogo se encontra no centro do

    entendimento de todas as outras concepes que sero aqui discutidas. a partir e por

    meio do dilogo que os estudos do Crculo refletem sobre o conceito, por exemplo, de

    enunciado. Para Bakhtin, todo enunciado est ligado a outros, aqueles proferidos

    anteriormente e aqueles que a partir deste se formaro. As relaes entre enunciados

    criam uma espiral de ligaes entre eles, ininterrupta, sempre em processo, ampliando-

    se, segundo Ponzio A compreenso do signo uma compreenso ativa, pelo fato de que

    requer uma resposta, uma tomada de posio, nasce de uma relao dialgica e provoca

    uma relao dialgica: vive como resposta a um dilogo. (2011, p. 187)

    esta essncia dialgica do discurso, estudada pelo Crculo, que permeia a

    anlise da obra cinematogrfica escolhido, este conceito discutido, segundo Bakhtin:

    O dilogo, por sua clareza e simplicidade, a forma clssica da comunicao verbal. Cada rplica, por mais breve e fragmentria que seja, possui um acabamento especfico que expressa a posio do locutor, sendo possvel responder, sendo possvel tomar, com relao a essa rplica, uma posio responsiva. (1997, p. 294)

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    Para o filsofo russo o dilogo a interao verbal em sentido amplo, pois a

    comunicao se constri no apenas em voz alta, na interao face a face, mas tambm

    por meio daquilo que no foi dito, do se encontra na memria, do que se espera que seja

    respondido e do que de fato se responde. Ao considerar o conceito de dilogo do Crculo

    como a relao que se d entre discursos, ressalta-se que essa relao no

    necessariamente acontece entre enunciados que se constituem num mesmo momento

    histrico ou entre enunciados que j aconteceram, mas tambm entre enunciados que

    ainda esto por vir, ou seja, o dilogo ocorre a partir do que se diz, do que foi dito e do

    que se espera que seja dito, enfim, engloba todo o processo da comunicao verbal.

    Para analisar o corpus escolhido torna-se necessrio tambm o estudo dos

    gneros discursivos. Sob o ponto de vista do Crculo o estudo dos gneros envolve

    diversos outros conceitos importantes, sem os quais a compreenso de gnero no se

    forma. Para Bakhtin os gneros discursivos surgem sempre em uma dada esfera, um

    campo de atividade daquele gnero, assim como todo gnero possui, segundo o filsofo

    russo, uma forma, um estilo e um contedo especficos. Os gneros possuem

    caractersticas semelhantes que nos levam a reconhec-los e atribu-los a algum campo

    de conhecimento da humanidade, no entanto eles tambm possuem traos nicos, a cada

    ato de cada gnero, em sua composio, surgem mudanas, renovaes, e desta

    maneira os estudos do Crculo consideram os gneros no apenas na sua estabilidade,

    mas principalmente na sua mobilidade, no seu carter instvel.

    Certas caractersticas podero levar os sujeitos a reconhecerem cada gnero como

    tal, no entanto estas qualidades no devem ser consideradas como exigncia para a

    denominao de um certo gnero, ou seja, no existe uma frma em que um enunciado

    deve sempre se encaixar para se tornar um gnero, mas sim atos nicos que, a cada

    enunciao, podero (re)formular novos gneros, com seus nuances e tons prprios:

    Evidentemente, cada enunciado particular individual, mas cada campo de utilizao da

    lngua elabora seus tipos relativamente estveis de enunciados, os quais denominamos

    gneros do discurso. (BAKHTIN, 2003, p.262) Desta maneira, para Bakhtin os gneros

    so relativamente estveis, pois deve-se considerar tanto sua estabilidade

    (particularidades em comum) e instabilidade (renovaes e reconstrues no interior do

    prprio gnero).

    Para o Crculo uma obra s se torna real quando toma a forma de determinado

    gnero. (MEDVIEDEV, 2012, p.193) E o cinema, que ser visto a partir desta

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    perspectiva, como gnero no interior deste trabalho. Assim como o filme, que se encontra

    dentro do cinema, ser aqui considerado tambm gnero.

    O conceito de gnero conforme discutido por Bakhtin no segue a ideia de que

    existem caractersticas (pr)existentes nas quais um determinado enunciado deve se

    encaixar para ento ser enquadrado como determinado gnero. Para o Crculo os

    gneros no so apenas um conjunto de fatores em comum, como se os requisitos para a

    existncia de cada gnero surgissem antes do prprio, mas sim um olhar contemplativo

    de um sujeito que (re)cria e responde ao dialogar com uma realidade, e a partir deste ato

    se (re)formar um gnero. Conforme Medvedev:

    O artista deve aprender a ver a realidade com os olhos do gnero. possvel entender determinados aspectos da realidade apenas na relao com determinados meios de sua expresso. Por outro lado, os meios de expresso podem ser aplicados somente a certos aspectos da realidade. O artista no encaixa um material previamente dado no plano preexistente da obra. O plano da obra lhe serve para revelar, ver, compreender e selecionar o material. (2012, p.199)

    Para Bakhtin os gneros so construes relativamente estveis, dentro da

    mobilidade ou no do prprio gnero, porm, para que um enunciado seja analisado

    como gnero nesta pesquisa torna-se necessrio o esclarecimento acerca do

    reconhecimento de uma dada construo como gnero. Para que um enunciado seja

    considerado gnero discursivo Bakhtin aponta trs marcas que todo gnero possui: forma,

    estilo e contedo.

    Na forma so pensadas as diversas maneiras como as construes aparecem,

    enquanto no estilo e no contedo transparecem, respectivamente, o sujeito autoral e o

    tema. O estudo da constituio dos gneros discursivos, conforme o filsofo russo, leva

    sempre em considerao a singularidade de cada gnero em particular (forma

    composicional; material/contedo/tema; estilo-marca identitria, que pode ser do autor ou

    do prprio gnero).

    O estilo no algo pessoal, autoral, ou seja, este tipo de estudo no se prende

    justificativas de relaes entre o enunciado e seu autor, sujeito da vida. Caractersticas

    pessoais de um sujeito no justificam seu discurso ou estilo como sujeito de linguagem, o

    autor. Segundo Brait, cada esfera conhece gneros apropriados a suas especificidades.

    A esses gneros correspondem determinados estilos. (2010, p. 89.)

    Quanto concepo de esfera, para o Crculo:

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    a noo de esfera da comunicao discursiva (ou da criatividade ideolgica, ou da atividade humana, ou da comunicao social, ou da utilizao da lngua, ou simplesmente ideologia) compreendida como um nvel especfico de coeres que, sem desconsiderar a influncia da instncia socioeconmica, constitui as produes ideolgicas, segundo a lgica particular de cada esfera/campo. (GRILLO, 2010, p. 143)

    O conceito de esfera, para o filsofo russo, leva em considerao a produo,

    circulao e recepo de um gnero em particular. A produo seria um dado projeto,

    enquanto a circulao seria a maneira como ele circula, em qual esfera, j na recepo

    considera-se o pblico, ou seja, a demanda deste projeto. A esfera tambm um dado

    campo de conhecimento, como por exemplo, a esfera de um sujeito pode o levar a agir de

    certa maneira, tica ou no naquele determinado campo. A tica, deste modo, no

    compreendida de maneira kantiana, universal, mas sim constituda de acordo com o lugar

    do sujeito. Segundo Grillo a esfera ou campo um conceito importante para as pesquisas

    em gneros discursivos, uma vez que a relao de um texto com outros da mesma

    espcie passa pela sua insero em determinado domnio cultural, adquirindo um modo

    prprio de refratar a realidade em seus diversos aspectos. (2010, p. 156.)

    No estudo dos gneros discursivos a esfera de atividade pensa sobre onde um

    gnero ou discurso atua e onde nasce, de onde ele se alimenta e qual o seu contexto,

    uma vez que todo discurso acontece num espao e tempo especficos, vindos de algum

    sujeito em especial. Da mesma maneira que o gnero est no social, ele nasce numa

    esfera de atividade.

    Bakhtin tambm analisa os gneros em dois grupos: primrios e secundrios.

    Conforme o filsofo russo:

    Os gneros discursivos secundrios (complexos romances, dramas, pesquisas cientficas de toda espcie, os grandes gneros publicsticos, etc.) surgem nas condies de um convvio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) artstico, cientfico, sociopoltico, etc. (BAKHTIN, 2003, p.263)

    Os gneros surgem, desta maneira, um partir do outro, conforme os estudos do

    Crculo, Machado afirma que: Para Bakhtin, os gneros discursivos sinalizam as

    possibilidades combinatrias entre as formas da comunicao oral imediata e as formas

    escritas. Gneros primrios e secundrios so, antes de mais nada, misturas. (2010, p.

    161) Os gneros primrios seriam, desta forma, aqueles do cotidiano, mais ligados vida,

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    enquanto os gneros secundrios esto mais conectados a arte e as construes mais

    complexas, no to espontneas quanto os gneros primrios.

    Ao se refletir sobre a ligao imprescindvel existente entre arte e vida a partir dos

    estudos do Crculo, pode-se pensar o fazer artstico em dilogo permanente com o social,

    de onde surge. Afinal, a arte e a vida seguem em constante conexo, pois A arte,

    tambm, imanentemente social; o meio social extra-artstico [...] encontra resposta

    direta e intrnseca dentro dela. (VOLOCHINOV, Mimeo, s/d p.2)

    No texto Discurso na vida e discurso na arte, de 1926, encontra-se a discusso

    de que, para a compreenso do enunciado1 potico, torna-se necessrio o estudo do

    enunciado tambm fora de seu contexto artstico. Volochinov afirma que, para analisar o

    discurso na arte, precisamos antes analisar em detalhes certos aspectos dos enunciados

    verbais fora do campo da arte enunciados da fala da vida e das aes cotidianas,

    porque em tal fala j esto embutidas as bases, as potencialidades da forma artstica.

    (idem, p.4). Ao afirmar que nas aes cotidianas se encontram as potencialidades da

    forma artstica, este autor do Crculo reflete sobre tal relao a partir e por meio do

    conceito bakhtiniano de gnero discursivo, pois assim como coexistem, de maneira

    dependentemente dialgica, vida e arte, coexistem os gneros primrios e secundrios.

    O estudo do artstico e, no caso especfico dos principais estudos do Crculo, o

    estudo do discurso literrio, revela-se tambm como um estudo do social, da vida, pois,

    apesar de no serem a mesma coisa, encontram-se em dilogo. A construo literria

    refigurao do social e o artstico refigurao da vida, como comenta Ponzio: Os

    diferentes significados ideolgicos, cognitivos, polticos, morais, filosficos, entram na

    construo potica [...] na finalidade do ser figurado, e toda a organizao da obra se faz

    em funo dessa figurao. (2010, p. 142)

    Por mais que vida e arte estejam interligadas e tenham uma relao dialgica, no

    podem ser consideradas a mesma coisa, pois a arte (re)figurao da vida, e apesar do

    discurso artstico ter sido construdo a partir e por meio do social, sua ligao com ele no

    o torna idntico. Na arte, o discurso simboliza, representa, reinterpreta e (re)constri a

    vida, de maneira a dialogar com o social.

    O filme Across the Universe, como j foi descrito no incio do trabalho, um

    musical que possui em sua trama apenas canes da banda britnica The Beatles dos

    1 Enunciado aqui compreendido como toda forma de interao verbal, de maneira ampla, considerando-se os

    enunciados da comunicao no necessariamente entre textos escritos.

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    anos sessenta. As canes inseridas no filme dialogam com o contexto dos msicos bem

    como apresentam caractersticas musicais de revisitao destas, tpicas do momento

    histrico de produo do filme, e se encaixam no discurso do sujeito que as interpreta no

    enredo. As canes e as situaes escolhidas para serem cantadas, em cada momento

    especfico do filme, acontecem em relaes dialgicas, entre os sujeitos e as letras das

    canes, entre as canes e a situao pela qual as personagens passam no musical.

    Cmera em ao: Anlise de Across the Universe

    A partir daqui sero discutidas cenas do filme musical que demonstrem os dilogos

    entre gneros e as movimentaes que levam significados de dentro para fora e do

    exterior para o interior da obra cinematogrfica. As anlises escolhidas para compor esta

    parte no buscam fazer um recorte que exclua a totalidade do filme e pense apenas em

    partes, mas sim exemplificar as intergenericidades do corpus e contribuir para uma

    reflexo acerca da obra cinematogrfica em sua totalidade.

    As relaes com a temtica da poca da guerra fria permeiam a narrativa do filme

    como um todo. O dilogo entre as canes, suas letras e os momentos em que so

    interpretadas no interior do filme escolhido tambm traz referenciaes externas ao filme,

    como a figura do Tio Sam, famoso desenho que chamava os jovens norte-americanos a

    fazer parte do exrcito. A frase padro desta figura, em ingls, diz Eu quero voc (I want

    you). Uma das canes dos Beatles interpretada no filme tem o mesmo ttulo: I want

    you. A letra da cano diz I want you (eu quero voc)/ I want you so bad (eu quero voc

    tanto)/ its driving me mad (est me deixando louco)/, a letra desta cano est inserida

    em um momento do filme em que Max obrigado a se apresentar para alistamento no

    exrcito. A cena em questo muito expressiva na totalidade do filme, pois as opinies e

    foras controversas em relao guerra do Vietn so uma constante ao longo da

    narrativa do musical.

    Esta cano interpretada no momento em que a personagem chamada Max, do

    sexo masculino, comparece ao exrcito por obrigao, aps receber a carta que ele

    acabou queimando. A figura do Tio Sam aparece ao mesmo tempo em que a cano

    interpretada, dando assim voz ao desenho, que canta I want you para os jovens

    americanos:

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    Fig.01 Cena do filme em que a figura canta.

    A voz representada pela figura (e pela interpretao da letra da cano) do Tio

    Sam dialoga com a voz do capitalismo, ou at mesmo a voz dos EUA e seu governo, que

    na poca qual o filme se refere, de fato buscava cativar os jovens para se alistarem,

    levando-os, desta maneira, a ajudar nas questes polticas do pas, mais especificamente,

    a guerra no Vietn.

    Na sequncia desta cano no filme a personagem adentra o local em que far o

    alistamento para o exrcito e logo aparecem figuras de soldados homens-bonecos, todos

    se movendo em sincronia e entoando a letra de I want you.

    Fig.02 Cena em que aparecem as figuras dos soldados.

    A movimentao e a coreografia dos militares nesta cena, alm de dialogar com a

    letra da cano, que deseja ter os jovens no exrcito, faz referncia disciplina e

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    obedincia exigida no meio militar, pois os soldados cantam e danam em passos

    sincronizados e precisos.

    Ainda em dilogo com a frase Eu quero voc os soldados tambm demonstram o

    poder de hierarquizao que todo o exrcito e a prpria figura do Tio Sam exercem

    sobre os jovens norte-americanos que so obrigados a se alistar e a servir o seu pas,

    tornando-se assim, inferiores s vontades dos militares.

    Fig.03 Cena em que os militares dominam os jovens.

    A dana que at ento mostrava os militares em movimentos conjuntos recebe a

    participao dos jovens, fragilizados, com pouca roupa, conforme parte do processo

    exigido no alistamento. Ao longo da coreografia ritmada a partir das frases: Eu quero

    voc, Eu quero voc tanto, Est me deixando louco, os jovens se mantm sempre

    abaixo dos soldados, dialogando com a questo da superioridade e da dominao por

    parte do exrcito. A presso exercida pelo meio militar no contexto do filme e da poca

    que ele retrata figurativizada pelos soldados nesta cano.

    Ao final da cano a letra repete a frase Shes so heavy (ela to pesada) e

    revela os mesmos jovens do alistamento em um outro cenrio, de aparncia mais rida e

    no habitada, como um cenrio de guerra. Enquanto os futuros militares cantam Ela

    to pesada a esttua da liberdade aparece, sendo carregada por todos eles.

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    Fig.04 Cena em que a esttua carregada.

    O dilogo com a letra da cano fica mais explcito a partir da apario da esttua

    da liberdade, pois desta maneira ela se torna o fardo pesado que eles so obrigados a

    carregar. Ao cantarem Ela to pesada a referencia estatua est visvel, porm a

    simbologia e a representao que esta figura leva consigo tambm transparecem o

    dilogo com todo o pas e o governo norte-americano. Aquela que to pesada no

    precisa ser apenas a esttua, mas sim toda a obrigao, a exigncia e falta de opo que

    os jovens encontram na idade de se alistarem, eles carregam o fardo do dever de servir,

    querendo ou no.

    Na ltima cena da cano, como uma espcie de encerramento da ideia e dos

    dilogos promovidos pela cano e pela sequencia de situaes a personagem em foco

    aparece embalada e carimbada, ou seja, registrada como produto, como objeto do

    exrcito ao qual foi obrigada a se alistar.

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    Fig.05 Cena em que o homem vira produto.

    Todo o desejo e necessidade de ter os jovens no alistamento militar so resumidos

    nesta cena final, uma vez que a cano I want you (eu quero voc) foi explorada em

    dilogos com embates de valores e demonstrao de domnio do exrcito sobre o jovem

    norte americano, que neste encerramento, passa a pertencer explicitamente ao governo.

    Esta cano dos Beatles nas cenas que foram discutidas cumpre os propsitos de

    relaes entre a experincia vivida pela personagem, em particular, e o enredo do filme,

    como um todo. O rock e a rebeldia da banda britnica dos anos sessenta dialoga com o

    posicionamento dos ideais das personagens do musical que se envolvem na causa contra

    a guerra. As canes dos Beatles foram compostas como respostas aos acontecimentos

    mundiais da sua poca, e nesta cena do musical Across the Universe a cano I want

    you revisitada e resignificada no mesmo contexto histrico (poca da guerra fria),

    porm com o estilo e a forma de um gnero diferente, o cinema, e um tipo especfico, o

    musical.

    Quando a cena de Max no alistamento finalizada a cmera passa para o

    apartamento em que ele mora com outros colegas, entre eles, uma jovem chamada

    Prudence. Na cena posterior a cano da banda britnica dos anos sessenta intitulada

    Dear Prudence ser interpretada.

    Na trama do filme a cano Dear Prudence, assim como I want you, demonstra o

    carter de significao nica a cada enunciao, quando a mesma cano

    (aparentemente) interpretada, colocada como enunciado concreto, em lugares e tempos

    diferentes, de maneira a criar significados novos e singulares. Dear Prudence comea a

    ser interpretada para que as personagens pudessem estabelecer comunicao com uma

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    moa em especfico, chamada Prudence. A jovem, trancada em um pequeno quarto, se

    recusa a sair, ento seus colegas iniciam a cano Dear Prudence. O dilogo inicial se d

    pelo nome da personagem e o ttulo da cano, que diz querida Prudence que ela

    deve sair para brincar e ver os cus ensolarados.

    A letra da cano segue sendo interpretada pelas personagens como um contato

    de encorajamento para que a personagem Prudence saia de seu enclausuramento.

    Quando os trs amigos da personagem entoam look around (olhe sua volta) o cenrio

    em volta deles se torna um cu azul. Enquanto as personagens repetem around round

    ( sua volta, volta) a cmera gira em torno dos jovens, dialogando com as palavras dos

    intrpretes da cano por meio do seu movimento.

    Fig.06 Cena em que o fundo se torna um cu azul.

    A partir da transformao do cenrio no prprio cu azul do qual a cano fala

    Prudence deixa o quarto em que estava trancada. A tomada seguinte aparece como uma

    fuso do cu que invadiu o cenrio com um cu real, em que Prudence aparece, j fora

    da casa.

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    Fig.07 Cena em que Prudence se encontra fora do quarto.

    Nesta sequncia os mesmos jovens se encontram em uma marcha pela paz, em

    que diversas pessoas carregam placas com dizeres contra a participao dos Estados

    Unidos na guerra do Vietnam.

    Fig.08 Cena com a passeata em que os jovens se encontram.

    Como as personagens cantam em um espao e tempo diferentes da cena anterior

    a frase Dear Prudence ganha novo sentido na marcha de protesto, pois Prudence

    dialoga com o sentido de prudncia, e no mais apenas com a personagem do filme. A

    querida Prudence que precisa abrir seus olhos, sair para brincar e olhar sua volta se

    torna a prpria prudncia, que no enxerga os danos da guerra, que se encontra perdida

    em um momento de violncia como aquele ao qual a passeata se refere.

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    Conforme as discusses a partir das cenas do filme, a anlise dialgica do cinema

    configura um campo frtil para se pensar os estudos dos gneros, bem como a anlise do

    filme musical como tipo especfico do gnero cinema. Alm disso, esta pesquisa tambm

    pode contribuir para se pensar dilogos como constituintes de dado tipo ou gnero

    discursivo, no apenas entre filmes e canes, mas tambm entre os discursos e temas

    internos e externos ao mesmo gnero ou a gneros distintos que, incorporados de

    determinada maneira, podem ou no revelar peculiaridades intergenricas, num

    movimento dialgico de entrada e sada simultnea e constante do enunciado

    selecionado como objeto pesquisado. E isso que configura o carter dialgico, tal qual

    concebido por Bakhtin e seu Crculo, conforme assinala Stam (que se refere-se,

    especificamente, ao cinema):

    Esse conceito multidimensional e interdisciplinar do dialogismo, se aplicado a um fenmeno cultural como um filme, por exemplo, referir-se-ia no apenas ao dilogo dos personagens no interior do filme, mas tambm ao dilogo do filme com filmes anteriores, assim como ao dilogo de gneros ou de vozes de classes no interior do filme, ou ao dilogo entre as vrias trilhas (entre a msica e a imagem, por exemplo). Alm disso, poderia referir-se tambm ao dilogo que conforma o processo de produo especfico (entre produtor e diretor, diretor e ator), assim como s maneiras como o discurso flmico conformado pelo pblico, cujas reaes potenciais so levadas em conta. (1992, p. 34)

    De acordo com Stam, o gnero cinema, e no caso desta pesquisa, o filme musical,

    proporciona dilogos como respostas ao que se assiste e ao que se conhece, ao que j

    existia antes do filme e o que ser feito aps sua produo, circulao e recepo, sem

    esgotar assim, as possibilidades de crescimento da espiral que se desenha a partir do

    movimento dialgico. Pensar como essa espiral se configura a partir do filme musical

    Across the Universe o propsito deste trabalho.

    Cenas em fade-out: Consideraes finais

    Os dilogos aqui comentados no esgotam as possibilidades de discusso no

    interior do corpus, mas ilustram o seu carter intergenrico, uma vez que para a

    construo deste gnero (filme, tipo musical), a cada cena, foram utilizados diversos

    gneros. Conforme comentado, nos estudos de Bakhtin, os gneros discursivos so

    compreendidos como relativamente estveis, pois se encontram em movimento, ou seja,

    no existe gnero acabado, fechado, mas em processo de acabamento. Da mesma

    maneira a anlise de Across the Universe no busca finalizar um acabamento para este

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    gnero, mas sim estudar as particularidades do corpus, como exemplar do gnero cinema

    musical, com seus dilogos e relaes, sempre em movimento.

    Referncias ACROSS THE UNIVERSE. Julie Taymor. Revolution Studios. 2007. 1 DVD.

    BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. So Paulo:

    Hucitec, 1992.

    BAKHTIN. M. M. (1929). Problemas da Potica de Dostoievski. So Paulo: Forense, 1997.

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    GRILLO, S. C. Esfera e campo. In BRAIT, B. (org.). Bakhtin outros conceitos-chave. So

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    MEDVIEDEV, P. N. O mtodo formal nos estudos literrios: introduo a uma potica

    sociolgica. So Paulo: Contexto, 2012.

    PONZIO, A. L. A revoluo bakhtiniana. So Paulo: Contexto, 2008.

    ___. Encontro de palavras: o outro no discurso. So Carlos: Pedro e Joo Editores, 2010.

    STAM, R. Bakhtin: da teoria literria cultura de massa. Traduo de Helosa Jahn. So

    Paulo: tica, 1992 (Srie Temas, Vol. 20).

    VOLOCHINOV/BAKHTIN. Discurso na vida e discurso na arte. Mimeo. s/d.

    THE BEATLES. Dear Prudence. The Beatles. London: EMI Studios.1968.

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