Althusser Louis Ideologia e Aparelhos Ideologicos de Estado

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 BIBLIOTECH. UNIVERSAL PRESENÇA Louis Althusser IDEOLOGIA E APARELHOS iDEOÜGieês DO ESTADO EDITORIAL PRESENÇA/MARTINS FONTES

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  • ! BIBLIOTECH. UNIVERSAL PRESENA Louis Althusser

    IDEOLOGIA E APARELHOS i D E O G i e s DO ESTADO

    EDITORIAL PRESENA/MARTINS FONTES

  • Ttulo original IDEOLOGIE ET APAREILS IDEOLOGIQUES D'ETAT Copyright by La Pense Traduo de Joaquim Jos de Moura Ramos

    Reservados todos os direitos para a lngua portuguesa Editorial Presena, L.da Rua Augusto Gil, 35-A 1000 LISBOA

  • IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOLGICOS DE ESTADO1

    'i (Notas para uma investigao)

    i O presente texto constitudo por dois extractos de um estudo em curso. O autor no quis deixar de os intitular Notas para uma investigao. As ideias expostas devem ser consideradas apenas como intro-duo a uma discusso. (N.D.R.).

  • I

    Li.

  • SOBRE A REPRODUO DAS CONDIES DA PRODUO

    Precisamos agora de delimitar algo que ape-nas entrevimos na nossa anlise, quando fal-mos da necessidade de renovao dos meios de produo para que a produo seja possvel. Trata-se apenas de uma indicao de passagem. Vamos agora consider-la por si mesma.

    Como Marx dizia, at uma criana sabe que se uma formao social no reproduz as con-dies da produo ao mesmo tempo que produz no conseguir sobreviver um ano que seja 1. A condio ltima da produo portanto a reproduo das condies da produo. Esta

    i Carta a Kugelmann, 11-7-1868, (Lettres sur le le Capital Ed. Sociales, p. 229).

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  • pode ser simples (reproduzindo apenas as condies da produo anterior) ou alargada (aumentando-as). Por agora, deixemos de parte esta ltima distino.

    Que ento a reproduo das condies da produo?

    Vamos entrar num domnio que nos ao mesmo tempo muito familiar (a partir do Liyro II do Capital) e singularmente desconhe-cido. As evidncias tenazes (evidncias ideol-gicas de tipo empirista) do ponto de vista da produo, isto , do ponto de vista da simples prtica produtiva (ela prpria abstracta em relao ao processo de produo), esto de tal maneira embutidas na nossa conscincia quo-tidiana, que extremamente difcil, para no dizer quase impossvel, elevarmo-nos ao ponto de vista da reproduo. No entanto, fora deste ponto de vista, tudo permanece abstracto (mais que parcial: deformado) no s ao nvel da produo como, e principalmente, da simples prtica.

    Tentemos examinar as coisas com mtodo. Para simplificar a nossa exposio, e se

    considerarmos que toda a formao social re-leva de um modo de produo dominante, pode-mos dizer que o processo de produo pe em

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  • movimento foras produtivas existentes em (dans et sous) relaes de produo definidas.

    Donde sc segue que, para existir, toda a formao social deve, ao mesmo tempo que pro-duz, e para poder produzir, reproduzir as condi-es da sua produo. Deve pois reproduzir:

    1) as foras produtivas, 2) as relaes de produo existentes.

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  • I

  • REPRODUO DOS MEIOS DE PRODUO

    Hoje, todos reconhecem (inclusive os eco-nomistas burgueses que trabalham na contabi-lidade nacional ou os tericos maicro-econo-mistas modernos), porque Marx imps esta demonstrao no Livro II do Capital, que no h produo possvel sem que seja assegurada a reproduo das condies materiais da pro-duo : a reproduo dos meios de produo.

    Qualquer economista, que neste ponto no se distingue de qualquer capitalista, sabe que, ano aps ano, preciso prever o que deve ser substitudo, o que se gasta ou se usa na produ-o: matria-prima, instalaes fixas (edif-cios), instrumentos de produo (mquinas), etc. Dizemos: qualquer economista = a qualquer capitalista, pois que ambos exprimem o ponto de vista da empresa, contentando-se com comen-

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  • tar simplesmente os termos da prtica finan-ceira da empresa.

    Mas sabemos, graas ao gnio de Quesnay que foi o primeiro a levantar este problema que entra pelos olhos dentro, e ao gnio de Marx que o resolveu, que no ao nvel da empresa que a reproduo das condies mate-riais da produo pode ser pensada, porque no na empresa que ela existe nas suas con-dies reais. O que se passa ao nvel da em-presa um efeito, que d apenas a ideia da necessidade da reproduo, mas no permite de modo algnm pensar-lhe as condies e os mecanismos.

    Um simples instante de reflexo basta para nos convencermos disto: o Sr. X, capitalista que na sua fiao produz tecidos de l, deve reproduzir a sua matria-prima, as suas m-quinas, etc. Ora no ele que as produz para a sua produo mas outros capitalistas: um grande criador de carneiros australiano, o Sr. Y..., o dono de uma grande metalurgia, o Sr. Z..., etc, etc..., os quais devem por sua vez, para produzir estes produtos que condicionam a reproduo das condies da produo do Sr. X..., reproduzir as condies da sua prpria produo e assim indefinidamente em pro-

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  • pores tais que, no mercado nacional quando no no mercado mundial, a procura em meios de produo (para a reproduo) possa ser satisfeita pela oferta.

    Para pensar este mecanismo que vai dar a uma espcie de fio sem fim, preciso seguir o processo global de Marx, e estudar princi-palmente as relaes de circulao do capital entre o Sector I (produo dos meios de pro-duo) e o Sector II (produo dos meios de consumo) e a realizao da mais-valia, nos Livros II e III do Capital.

    No entraremos na anlise desta questo. Basta-nos ter mencionado a existncia da ne-cessidade de reproduo das condies mate-riais da produo.

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  • REPRODUO DA FORA DE TRABALHO

    Contudo, h uma coisa que de certo modo no pode ter deixado de espantar o leitor. Falmos da reproduo dos meios de produo, mas no da reproduo das foras produ-tivas. Portanto, no falmos da reproduo daquilo que distingue as foras produtivas dos meios de produo, ou seja, da reproduo da fora de trabalho.

    Se a observao do que se passa na empresa, em particular o exame da prtica financeira, das previses de amortizao-investimento, nos pde dar uma ideia aproximada da existncia do processo material da reproduo, entramos agora num domnio sobre o qual a observao do que se passa na empresa se no totalmente, pelo menos quase inteiramente cega, e por uma razo de peso: a reproduo da fora de

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  • trabalho passa-se essencialmente fora da em-presa.

    Como assegurada a reproduo da fora de trabalho ?

    assegurada dando fora de trabalho o meio material de se reproduzir: o salrio. O salrio figura na contabilidade de cada em-presa, como capital mo de obra1 e de modo algum como condio da reproduo material da fora de trabalho.

    No entanto assim que ele age, dado que o salrio representa apenas a parte do valor produzida pelo dispndio da fora de trabalho, indispensvel reproduo desta: entendamos, indispensvel reconstituio da fora de trabalho do assalariado (ter casa para morar, roupa para vestir, ter de comer, numa palavra poder apresentar-se amanh cada amanh que Deus dao porto da fbrica); acrescen-temos: indispensvel alimentao e educa-o dos filhos nos quais o proletrio se repro-duz (em x exemplares: podendo x ser igual a 0, 1, 2, etc....) como fora de trabalho.

    i Marx forneceu a este propsito um conceito cien-tifico: o de capital varivel.

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  • Lembremos que esta quantidade de valor (o salrio), necessrio reproduo da fora de trabalho, determinado no pelas necessi-dades de um S. M. I. G. biolgico, mas pelas necessidades de um mnimo histrico (Marx sublinhava: preciso cerveja para os oper-rios ingleses e vinho para os proletrios fran-ceses) portanto historicamente varivel.

    Indiquemos tambm que este mnimo du-plamente histrico pelo facto de no ser defi-nido pelas necessidades histricas da classe operria reconhecidas pela classe capitalista, mas pelas necessidades histricas impostas pela luta de classes proletria (luta de classes dupla: contra o aumento da durao do tra-balho e contra a diminuio dos salrios).

    Porm, no basta assegurar fora de tra-balho as condies materiais da sua reprodu-o, para que ela seja reproduzida como fora de trabalho. Dissemos que a fora de trabalho disponvel devia ser competente, isto , apta a ser posta a funcionar no sistema complexo do processo de produo. O desenvolvimento das foras produtivas e o tipo de unidade his-toricamente constitutivo das foras produtivas num momento dado produzem o seguinte resul-tado: a fora de trabalho deve ser (diversa-

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  • mente) qualificada e portanto reproduzida como tal. Diversamente: segundo as exign-cias da diviso social-tcnica do trabalho, nos seus diferentes postos e empregos.

    Ora, como que esta reproduo da quali-ficao (diversificada) da fora de trabalho assegurada no regime capitalista? Diferente-mente do que se passava nas formaes sociais esclavagistas e feudais, esta reproduo da qualificao da fora de trabalho tende (tra-ta-se de uma lei tendencial) a ser assegurada no em cima das coisas (aprendizagem na prpria produo), mas, e cada vez mais, fora da produo: atravs do sistema escolar capi-talista e outras instncias e instituies.

    Ora, o que se aprende na Escola? Vai-se mais ou menos longe nos estudos, mas de qual-quer maneira, aprende-se a ler, a escrever, a contar, portanto algumas tcnicas, e ainda muito mais coisas, inclusive elementos (que po-dem ser rudimentares ou pelo contrrio apro-fundados) de cultura cientfica ou literria directamente utilizveis nos diferentes lugares da produo (uma instruo para os operrios, outra para os tcnicos, uma terceira para os engenheiros, uma outra para os quadros supe-

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  • riores, etc.). Aprendem-se portanto saberes prticos (ces savoir fawe).

    Mas, por outro lado, e ao mesmo tempo que ensina estas tcnicas e estes conhecimentos, a Escola ensina tambm as regras dos bons costumes, isto , o comportamento que todo o agente da diviso do trabalho deve observar, segundo o lugar que est destinado a ocupar: regras da moral, da conscincie cvica e pro-fissional, o que significa exactamente regras de respeito pela diviso social-tcnica do tra-balho, pelas regras da ordem estabelecida pela dominao de classe. Ensina tambm a bem falar, a redigir bem, o que significa exacta-tamente (para os futuros capitalistas e para os seus servidores) a mandar bem, isto , (soluo ideal) a falar bem aos oper-rios, etc.

    Enunciando este facto numa linguagem mais cientfica, diremos que a reproduo da fora

  • os agentes da explorao e da represso, a fim de que possam assegurar tambm, pela palavra, a dominao da classe dominante.

    Por outras palavras, a Escola (mas tam-bm outras instituies de Estado como a Igreja ou outros aparelhos como o Exrcito) ensinam saberes prticos mas em moldes que asseguram a sujeio ideologia dominante ou o manejo da prtica desta. Todos os agentes da produo, da explorao e da re-presso, no falando dos profissionais da ideo-logia (Marx) devem estar de uma maneira ou de outra penetrados desta ideologia, -para desempenharem conscienciosamente a sua tarefa quer de explorados (os proletrios), quer de exploradores (os capitalistas), quer de auxiliares da explorao (os quadros), quer de papas da ideologia dominante (os seus fun-cionrios), etc....

    A reproduo da fora de trabalho tem pois como condio sine qua non, no s a repro-duo da qualificao desta fora de traba-lho, mas tambm a reproduo da sua sujeio ideologia dominante ou da prtica desta ideologia, com tal preciso que no basta dizer: no s mas tambm, pois conclui-se que nas formas e sob as formas da sujeio

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  • ideolgica que assegurada a reproduo da qualificao da fora de trabalho.

    Mas aqui reconhece-se a presena eficaz de uma nova realidade: a ideologia.

    Aqui vamos introduzir duas observaes. A primeira para fazer o balano da nossa

    anlise da reproduo. Acabmos de estudar rapidamente as for-

    mas da reproduo das foras produtivas, isto , dos meios de produo por um lado, e da fora de trabalho por outro lado.

    Mas ainda no abordmos a questo da reproduo das relaes de produo. Ora esta questo uma questo crucial da teoria mar-xista do modo de produo. No a abordar uma omisso terica pior, um erro poltico grave.

    Portanto, vamos abord-la. Mas, para isso, precisamos uma vez mais de fazer um grande desvio.

    A segunda nota que, para fazer este des-vio, precisamos de mais uma vez levantar o nosso velho problema: que uma sociedade?

  • INFRAESTRUTURA E SUPERESTRUTURA

    J tivemos ocasio1 de insistir sobre o carcter revolucionrio da concepo marxista do todo social naquilo que a distingue da totalidade hegeliana. Dissmos (e esta tese apenas retomava as proposies clebres do materialismo histrico) que Marx concebe a estrutura de qualquer sociedade como consti-tuda pelos nveis ou instncias, articula-dos por uma determinao especfica: a in-fraestrutura ou base econmica (unidade das foras produtivas e das relaes de pro-duo), e a superestrutura, que comporta em si mesma dois

  • dico-poltico (o direito e o Estado) e a ideolo-gia (as diferentes ideologias, religiosas, moral, jurdica, poltica, etc.).

    Alm do interesse terico-pedaggico (que ilustra a diferena que separa Marx de Hegel), esta representao oferece a vantagem terica capital seguinte: permite inscrever no disposi-tivo terico dos seus conceitos essenciais aquilo a que chammos o seu ndioe de eficcia res-pectivo. Que quer isto dizer?

    Qualquer pessoa pode compreender facil-mente que esta representao da estrutura de toda a sociedade como um edifcio que comporta uma base (infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois andares da superestrutura, uma metfora, muito precisamente, uma me-tfora espacial: uma tpica1. Como todas as metforas, esta sugere, convida a ver alguma coisa. O qu? Pois bem, precisamos isto: que os andares superiores no poderiam man-

    i Tpica, do grego topos: lugar. Uma tpica repre-senta, num espao definido, os lugares respectivos ocu-pados por esta ou aquela realidade: assim o econmico est em baixo (a base) a superestrutura por cima.

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  • ter-se (no ar) sozinhos se no assentassem de facto na sua base.

    A metfora do edifcio tem portanto como objectivo representar a determinao em l-tima instncia pelo econmico. Esta metfora espacial tem pois como efeito afectar a base de um ndice de eficcia conhecido nos clebres termos: determinao em ltima instncia do que se passa nos andares (da superestru-tura) pelo que se passa na base econmica.

    A partir deste ndice de eficcia em ltima instncia, os andares da superestrutura encontram-se evidentemente afectados por ndi-ces de eficcia diferentes. Que tipo de ndice?

    Podemos dizer que os andares da superes-trutura no so determinantes em ltima ins-tncia, mas que so determinados pela base; que se so determinantes sua maneira (ainda no definida), so-no enquanto determinados pela base.

    O seu ndice de eficcia (ou de determina-o), enquanto determinada pela determinao em ltima instncia da base, pensado na tradio marxista sob duas formas: 1 h uma autonomia relativa da superestrutura em relao base; 2 h uma aco m. retorno da superestrutura sobre a base.

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  • Podemos portanto dizer que a grande van-tagem terica da tpica marxista, portanto da metfora espacial do edifcio (base e superes-trutura) simultaneamente o facto de fazer ver que as questes de determinao (ou de ndices de eficcia) so capitais; mostrar que a base que determina em ltima instncia todo o edifcio; e, por via de consequncia, obrigar a levantar o problema terico do tipo de eficcia derivada prpria superestru-tura, isto , obrigar a pensar o que a tradio marxista designa sob os termos conjuntos de autonomia relativa da superestrutura e aco de retorno da superestrutura sobre a base.

    O inconveniente maior desta representao da estrutura de qualquer sociedade pela met-fora espacial do edifcio evidentemente o facto de ela ser metafrica: isto , de per-manecer descritiva.

    Mas a partir daqui, parece-nos desejvel e possvel representar as coisas de outro modo. preciso que nos entendam: no recusamos de modo algum a metfora clssica, visto que por si s ela nos obriga a ir alm dela. E no vamos alm dela, para a rejeitar como caduca. Gostaramos apenas de tentar pensar o que ela nos d na sua forma descritiva.

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  • Pensamos que a partir da reproduo que possvel e necessrio pensar o que caracteriza o essencial da existncia e natu-reza da superestrutura. Basta colocarmo-nos no ponto de vista da reproduo para que se esclaream algumas das questes cuja exis-tncia a metfora do edifcio indicava sem lhes dar uma resposta conceptual.

    A nossa tese fundamental que s poss-vel colocar estas questes (e portanto respon-der-lhes) do ponto de vista da reproduo.

    Vamos analisar brevemente o Direito, o Estado e a ideologia a partir deste ponto de vista. E vamos mostrar simultaneamente o que se passa do ponto de vista da prtica e da pro-duo por um lado, e por outro, da reproduo.

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  • O ESTADO

    A tradio marxista peremptria: o Es-tado explicitamente concebido a partir do Ma-nifesto e do 18 do Brumrio (e em todos os textos clssicos ulteriores, sobretudo de Marx sobre a Comuna de Paris e de Lenine sobre o Estado e a Revoluo) como aparelho repressivo. 0 Estado uma mquina de represso que .permite s classes dominantes (no sculo XIX classe burguesa e classe dos proprietrios de terras) assegurar a sua dominao sobre a classe operria para a submeter ao processo de extorso da mais--valia (quer dizer, explorao capitalista).

    O Estado ento e antes de mais aquilo a que os clssicos do marxismo chamaram o aparelho de Estado. Este termo compreende: no s o aparelho especializado (no sentido

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  • estrito) cuja existncia e necessidade reconhe-cemos a partir das exigncias da prtica jur-dica, isto a polcia os tribunais as pri-ses; mas tambm o exrcito, que (o proleta-riado pagou esta experincia com o seu sangue) intervm directamente como fora repressiva de apoio em ltima instncia quando a polcia, e os seus corpos auxiliares especializados, so ultrapassados pelos acontecimentos; e acima deste conjunto o chefe do Estado, o governo e a administrao.

    Apresentada sob esta forma, a teoria mar-xista-leninista do Estado capt o essencial, sem dvida. O aparelho de Estado que define o Estado como fora de execuo e de interven-o repressiva, ao servio das classes domi-nantes, na luta de classes travada pela bur-guesia e pelos seus aliados contra o proleta-riado de facto o Estado, e define de facto a funo fundamental deste.

    DA TEORIA DESCRITIVA A TEORIA

    No entanto, tambm aqui e semelhana do que fizemos notar a propsito da metfora do edifcio (infraestrutura e superestrutura),

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  • esta apresentao da natureza do Estado per-manece descritiva.

    Como vamos empregar vrias vezes este adjectivo (descritivo) e, para evitar qualquer equvoco, impe-se uma breve explicao.

    Quando dizemos, falando da metfora do edifcio, cu falando da teoria marxista do Estado, que so concepes ou representaes descritivas do seu objecto, no pretendemos com isso critic-las. Pelo contrrio, pensamos que as grandes descobertas cientficas no podem evitar passar pela fase a que chama-remos de uma teoria descritiva. Fase essa que seria a primeira fase de toda a teoria, pelo menos no domnio que nos ocupa (o da cincia das formaes sociais). Como tal, poder-se-ia e segundo cremos deve-se at encarar esta fase como uma fase transitria, necessria ao desenvolvimento da teoria. Ins-crevemos o seu carcter transitrio na nossa expresso: teoria descritiva assinalando, na conjuno dos termos que empregamos, o equi-valente a uma esipcie de contradio. Com efeito, o termo de teoria briga decerto modo com o adjectivo descritiva que lhe est aposto. Muito precisamente, isto quer dizer: 1) que a teoria descritiva de facto, sem d-

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  • vida possvel, o comeo sem retorno da teoria, mas 2) que a forma descritiva em que a teo-ria se apresenta exige, precisamente pelo efeito desta contradio, um desenvolvimento da teoria que ultrapassa a forma da descrio.

    Precisemos o nosso pensamento, voltando ao nosso objecto presente: o Estado.

    Quando dizemos que a teoria marxista do Estado, de que dispomos, permanece em parte descritiva, isto significa antes de mais que esta teoria descritiva , sem dvida possvel, o prprio comeo da teoria marxista do Estado, e que este comeo nos d o essen-cial, isto , o princpio decisivo de todo o desen-volvimento ulterior da teoria.

    Diremos com efeito que a teoria descritiva do Estado correcta, dado que podemos per-feitamente fazer corresponder definio que ela d do seu objecto a imensa maioria dos factos observveis no domnio a que ela se refere. Assim, a definio do Estado como Estado de classe, existente no aparelho de Estado repressivo, esclarece de uma maneira fulgurante todos os factos observveis nas di-versas ordens da represso sejam os seus dom-nios quais forem: dos massacres de Junho de 48 Comuna de Paris, do sangrento Domingo

    U

  • de Maio de 1905 em Petrogrado, da Resis-tncia, de Charonne, etc.... s simples (e rela-tivamente andinas) intervenes de uma ceta-fiura que probe a Religiosa de Diderot ou uma pea de Gatti sobre Franco; ela esclarece Uxlas as formas directas ou indirectas de explo-rao e de extermnio das massas populares (as guerras imperialistas); ela esclarece a subtil dominao quotidiana em que est brutalmente presente, por exemplo nas formas da demo-cracia poltica, aquilo a que Leniaie chamou depois de Marx, a ditadura da burguesia.

    Contudo, a teoria descritiva do Estado representa uma fase da constituio da teoria

  • acumulao dos factos sob a definio do Estado, se multiplica a sua ilustrao, no faz avanar realmente a definio do Estado, isto , a sua teoria cientfica. Toda a teoria descri-tiva corre pois o risco de bloquear o desen-volvimento, no entanto indispensvel, da teoria.

    por isso que julgamos indispensvel, para desenvolver esta teoria descritiva em teoria, isto , para compreendermos mais profunda-mente os mecanismo do Estado e do seu fun-cionamento, acrescentar alguma coisa defi-nio clssica do Estado como aparelho de Estado.

    O ESSENCIAXi DA TEORIA MARXISTA DO ESTADO

    Precisemos antes de mais um ponto impor-tante: o Estado (e a sua existncia no seu aparlho) s tem sentido em funo do poder de Estado. Toda a luta de classes poltica gira em torno do Estado. Quer dizer: em torno da deteno, isto , da tomada e da conservao do poder de Estado, por uma certa classe, ou por uma aliana de classes ou de fraces de classes. Esta primeira preciso obriga-nos por-tanto a distinguir o poder de Estado (conser-

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  • vao do poder de Estado ou tomada do poder de Estado), objectivo da luta de classes poltica ipor um lado, e o aparelho de Estado por outro lado.

    Sabemos que o aparelho de Estado pode permanecer intacto, como o provam as revolu-es burguesas do sculo XIX em Frana (1830, 1848) ou os golpes de Estado (o Dois de Dezembro, Maio de 1958) ou as quedas do Estado (queda do Imprio em 1870, queda da I5." Repblica em 1940), ou a ascenso poltica da pequena burguesia (1890-95 em Frana), etc., sem que o aparelho de Estado seja afec-tado ou modificado por este facto: pode perma-necer intacto apesar dos acontecimentos pol-ticos que afectam a deteno do poder de Kwtado.

    Mesmo aps uma revoluo social como a d 1917, uma grande parte do aparelho de Kstado permaneceu intacta aps a tomada do poder de Estado pela aliana do proletariado

  • maneira explicita a partir do 18 do Brumrio e das Lutas de classes em Frana de Marx.

    Para resumirmos sobre este ponto a teoria marxista do Estado, podemos dizer que os clssicos do marxismo sempre afirmaram: 1) o Estado o aparelho repressivo de Estado; 2) preciso distinguir o poder de Estado do aparelho de Estado; 3) o objectivo das lutas de classes visa o poder de Estado e, conse-quentemente, a utilizao feita pelas classes (ou aliana de classes ou de fraces de classes), detentoras do poder de Estado, do aparelho de Estado em funo dos seus objectivos de classe; e 4) o proletariado deve tomar o poder de Estado para destruir o ajparelho de Estado burgus existente, e, numa primeira fase, subs-titu-lo por um aparelho de Estado completa-mente diferente, proletrio, depois em fases ulteriores, iniciar um processo radical, o da destruio do Estado (fim do poder de Estado e de todo o poder de Estado).

    Deste ponto de vista, e por conseguinte o que ns nos proporamos acrescentar teoria marxista do Estado, j figura nela. Mas parece-nos que esta teoria, assim completada, permanece ainda ean parte descritiva embora

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  • comporte j elementos complexos e diferen-ciais cujo funcionamento e jogo s podem ser compreendidos mediante o recurso a um apro-fundamento terico suplementar.

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  • OS APARELHOS IDEOLGICOS DE ESTADO

    O que preciso acrescentar teoria mar-xista do Estado ipois outra coisa.

    Devemos agora avanar com prudncia num terreno onde, de facto, os clssicos do marxismo nos precederam h longo tempo, mas sem ter sistematizado, sob uma forma terica, os progressos decisivos que as suas experincias e os seus mtodos e processos (dmarches) implicaram. As suas experincias o mtodos permaneceram de facto no terreno da prtica poltica.

    De facto, na sua prtica poltica, os cls-sicos do marxismo trataram o Estado como uma realidade mais complexa do que a defini-o que dele se d na teoria marxista do listado, mesmo completada como a apresen-tmos. Na sua prtica reconheceram esta com-

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  • plexidade, mas no a exprimiram numa teoria correspondente \

    Gostaramos de tentar esboar muito esque-maticamente esta teoria correspondente. Para esse fim, propomos a tese seguinte.

    Para se avanar na teoria do Estado, indispensvel ter em conta, no s a distino entre poder de Estado e aparelho de Estado, mas tambm outra realidade que se situa manifestamente do lado do aparelho (repres-sivo) de Estado, mas no se confunde com ele. Designaremos esta realidade pelo seu conceito: os aparelhos ideolgicos de Estado.

    Que so os aparelhos ideolgicos de Estado (AIE) ?

    No se confundem com o aparelho (repres-sivo) de Estado. Lembremos que na teoria

    i Segundo o que conhecemos, Gramsci foi o nico que se aventurou nesta via. Teve a ideia singular de que o Estado no se reduzia ao aparelho (repressivo) de Estado, mas compreendia, como ele dizia, certo n-mero de instituies da sociedade civil: a Igreja, as Escolas, os sindicatos, etc. Gramsci no chegou infeliz-mente a sistematizar estas instituies que permanece-ram no estado de notas perspicazes, mas parciais (cf. Gramsci: Oeuvres Coi-sies, Ed. Sociales, pp. 290-291 (nota 3), 293, 295, 436. Cf. Lettres de Prison, Ed. Socia-les, p. 313.

  • marxista, o Aparelho de Estado (AE) com-preende: o Governo, a Administrao, o Exr-cito, a Polcia, os Tribunais, as Prises, etc., que constituem aquilo a que chamaremos a partir de agora o Aparelho Repressivo de Estado. Repressivo indica que o Aparelho de Estado em questo funciona pela violncia, pelo menos no limite (porque a represso, por exemplo administrativa, pode revestir for-mas no fsicas).

    Designamos por Aparelhos Ideolgicos de Estado um certo nmero de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituies distintas e especializadas. Pro-pomos uma lista emprica destas realidades que, claro, necessitar de ser examinada por-menorizadamente, posta prova, rectificada e reelaborada. Com todas as reservas que esta exigncia implica, podemos desde j considerar como Aparelhos Ideolgicos de Estado as ins-tituies seguintes (a ordem pela qual as enun-ciamos no tem qualquer significado parti-cular) :

    O AIE religioso (o sistema das diferentes Igrejas),

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  • o AIE escolar (o sistema das diferentes escolas pblicas e particulares),

    o AIE familiar 1, o AIE jurdico 2, o AIE poltico (o sistema poltico de

    que fazem parte os diferentes partidos), o AIE sindical, o AIE da informao (imprensa, rdio-

    -televiso, etc.), o AIE cultural (Letras, Belas Artes,

    desportos, etc.).

    Dissemos: os AIE no se confundem com o Aparelho (repressivo) de Estado. Em que consiste a diferena?

    Num primeiro momento podemos observar que, se existe um Aparelho (repressivo) de Estado, existe uma pluralidade de Aparelhos ideolgicos de Estado. Supondo que ela existe,

    1 A Famlia desempenha manifestamente outras funes para alm das de um AIE. Intervm na repro-duo da fora de trabalho. E, segundo os modos de produo, unidade de produo e (ou) unidade de consumo.

    2 O Direito pertence simultaneamente ao Apare-lho (repressivo) de Estado e ao sistema dos AIE.

    u

  • a unidade que constitui esta pluralidade de AIE num corpo nico no imediatamente visvel.

    Num segundo momento, podemos constatar que enquanto o aparelho (repressivo) de Es-tado, unificado, pertence inteiramente ao dom-nio pblico, a maioria dos Aparelhos Ideol-gicos de Estado (na sua disperso aparente) releva pelo contrrio do domnio privado. Pri-vadas so as Igrejas, os Partidos, os sindicatos, as famlias, algumas escolas, a maioria dos jornais, as empresas culturais, etc., etc....

    Por agora deixemos de parte a nossa pri-meira observao. Mas o leitor no deixar de relevar a segunda para nos perguntar com que direito podemos considerar como Apare-lhos Ideolgicos de Estado instituies que, na sua grande maioria, no possuem estatuto pblico, e so pura e simplesmente instituies privadas. Como Marxista consciente que era, Gramsci j salientara esta objeco. A distin-o entre o pblico e o privado uma distino interior ao direito burgus, e vlida nos dom-nios (subordinados) em que o direito burgus exerce os seus poderes. O domnio do Estado escapa-lhe porque est para alm do Direito: o Estado, que o Estado da classe dominante, no nem pblico nem privado, pelo con-

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  • trrio a condio de toda a distino entre pblico e privado. Podemos dizer a mesma coisa partindo agora dos nossos Aparelhos Ideo-lgicos de Estado. Pouco importa que as ins-tituies que os realizam sejam pblicas ou privadas. O que importa o seu funciona-mento. Instituies privadas podem perfeita-mente funcionar como Aparelhos Ideolgicos de Estado. Uma anlise um pouco mais pro-funda de qualquer dos AIE seria suficiente para provar o que acabmos de dizer.

    Mas vamos ao essencial. O que distingue os AIE do Aparelho (repressivo) de Estado, a diferena fundamental seguinte: o Aparelho repressivo de Estado funciona pela violncia, enquanto os Aparelhos Ideolgicos de Estado funcionam pela ideologia.

    Podemos precisar rectificando esta distin-o. Diremos de facto que qualquer Aparelho de Estado, seja ele repressivo ou ideolgico, funciona simultaneamente pela violncia e pela ideologia, mas com uma diferena muito importante que impede a confuso dos Apare-lhos Ideolgicos de Estado com o Aparelho (repressivo) de Estado.

    que em si meismo o Aparelho (repressivo) de Estado funciona de uma maneira massiva-

  • mente prevalente pela represso (inclusive f-sica), embora funcione secundariamente pela ideologia. (No h aparelho puramente repres-sivo). Exemplos: o Exrcito e a Polcia funcio-nam tambm pela ideologia, simultaneamente para assegurar a- sua prpria coeso e repro-duo e pelos valores que projectam no exterior.

    Da mesma maneira, mas inversamente, deve-mos dizer que, em si mesmos, os Aparelhos Ideolgicos de Estado funcionam de um modo massivamente prevalente pela ideologia, em-bora funcionando secundariamente pela re-presso, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta seja bastante atenuada, dissimu-lada ou at simblica. (No h aparelho pura-mente ideolgico). Assim a escola e as Igrejas educam por mtodos apropriados de sanes, de excluses, de seleco, etc., no s os seus oficiantes, mas as suas ovelhas. Assim a Fam-lia... Assim o Aparelho IE cultural (a cen-sura, para s mencionar esta), etc.

    Ser til referir que esta determinao do duplo funcionamento (de maneira prevalente, de maneira secundria) pela represso e pela ideologia, consoante se trata do Aparelho (re-pressivo) de Estado ou dos Aparelhos Ideo-lgicos de Estado, permite compreender o facto

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  • de constantemente se tecerem combinaes muito subtis explcitas ou tcitas entre o jogo do Aparelho (repressivo) do Estado e o jogo dos Aparelhos Ideolgicos de Estado? A vida quotidiana oferece-nos inmeros exemplos disto que preciso estudar em pormenor para irmos mais alm da simples observao.

    Esta observao obre-nos a via da com-preenso do que constitui a unidade do corpo aparentemente dispar dos AIE. Se os AIE funcionam de maneira massivamente preva-lente pela ideologia, o que unifica a sua diver-sidade precisamente este funcionamento, na medida em que . a ideologia pela qual funcio-nam sempre unificada apesar das suas con-tradies e da sua diversidade, na ideologia dominante, que a da classe dominante... Se quisermos considerar que em princpio a classe dominante detm o poder de Estado (de uma forma franca ou, na maioria das vezes, por meio de Alianas de classe ou de fraces de classes), e dispe portanto do Apa-relho (repressivo) de Estado, podemos admitir que a mesma classe dominante activa nos Aparelhos ideolgicos de Estado. claro, agir por leis e decretos no Aparelho (repressivo) de Estado e agir por intermdio da ideologia

    Jf8

  • dominante nos Aparelhos ideolgicos de Estado so duas coisas diferentes. Ser preciso entrar no pormenor desta diferena, mas ela no poder esconder a realidade de uma profunda identidade. A partir do que sabemos, nenhuma classe pode duravelmente deter o poder de Es-tado sem exercer simultaneamente a sua hege-monia sobre e nos Aparelhos Ideolgicos de Estado. Dou um nico exemplo e prova: a preo-cupao lancinante de Lenine de revolucionar o Aparelho ideolgico de Estado escolar (entre outros) para permitir ao proletariado sovi-tico, que tinha tomado o poder de Estado, asse-gurar o futuro da ditadura do proletariado e a passagem ao socialismo \

    Esta ltima nota permite-nos compreender que os Aparelhos Ideolgicos de Estado podem ser no s o alvo mas tambm o local da luta de classes e por vezes de formas renhidas da luta de classes. A classe (ou a aliana de classes) no poder no domina to facilmente

    i Num texto pattico datado de 1937, Kroupskaa cor,ta a histria dos esforos desesperados de Lenine e daquilo que ela considera como o seu fracasso chemin parcouru).

    *

  • os AIE como o Aparelho (repressivo) de Es-tado, e isto no s porque as antigas classes dominantes podem durante muito tempo con-servar neles posies fortes, mas tambm por-que a resistncia das classes exploradas pode encontrar meios e ocasies de se exprimir neles, quer utilizando as contradies existen-tes (nos ATE), quer conquistando pela luta (nos AIE) posies de combate \

    Resumamos as nossas notas.

    i O que aqui dito rapidamente, da luta de classes nos Aparelhos Ideolgicos de Estado, est evi-dentemente longe de esgotar a questo da luta de classes.

    Para abordar esta questo preciso ter presente no esprito dois princpios.

    O primeiro princpio foi formulado por Marx no Prefcio Contribuio: Quando se consideram tais perturbaes (uma revoluo social) preciso distin-guir sempre entre perturbao material que se pode constatar de uma maneira cientificamente rigorosa das condies de produo econmicas, e as formas jur-dicas, polticas, religiosas, artsticas ou filosficas nas quais os homens tomam conscincia deste conflito e o levam at ao fim. Portanto, a luta de classes exprime-se e exerce-se nas formas ideolgicas e assim tambm nas formas ideolgicas dos AIE. Mas a luta

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  • Se a tese que propusemos fundamentada, somos conduzidos a retomar, embora precisan-do-a num ponto, a teoria marxsta clssica do Estado. Diremos que por um lado preciso dis-tinguir o poder de Estado (e a sua deteno por...) e o Aparelho de Estado por outro lado. Mas acrescentaremos que o Aparelho de Es-tado compreende dois corpos: o corpo das instituies que representam o Aparelho re-pressivo de Estado, por um lado, e o corpo das instituies que representam o corpo dos Aparelhos Ideolgicos de Estado, por outro lado.

    Mas, se assim , no podemos deixar de colocar a questo seguinte, mesmo no estdio,

    de classes ultrapassa largamente estas formas, e porque as ultrapassa que a luta das classes explora-das pode tambm exercer-se nas formas dos AIE, portanto virar contra as classes no poder a arma da ideologia.

    E isto em virtude do segundo princpio: a luta de classes ultrapassa os AIE porque est enrai-zada em qualquer outra parte que no na ideologia, na infraestrutura, nas relaes de produo que so relaes de explorao e que constituem a base das relaes de classe.

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  • muito sumrio, das nossas indicaes: qual exactamente a medida do papel dos Aparelhos Ideolgicos de Estado? Qual pode ser o fun-damento da sua importncia? Noutros termos, a que corresponde a funo destes Aparelhos Ideolgicos de Estado, que no funcionam pela represso, mas pela ideologia?

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  • SOBRE A REPRODUO DAS RELAES DE PRODUO

    Podemos agora responder nossa questo central que permaneceu em suspenso durante longas pginas: como assegurada a reprodu-o das relaes de produo?

    Na linguagem da tpica (infraestrutura, superestrutura), diremos: , em grande parte assegurada 1 pela superestrutura, jurdico-pol-tica e ideolgica.

    Mas visto que considermos indispensvel ultrapassar esta linguagem ainda descritiva,

    i Em gTande parte. Porque as relaes de produ-o so primeiro reproduzidas pela materialidade do processo de produo e do processo de circulao. M m no se pode esquecer que as relaes ideolgicas esto imediatamente presentes nestes mesmos processos.

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  • diremos: , em grande parte, assegurada pelo exerccio do poder de Estado nos Aparelhos de Estado, no Aparelho (repressivo) de Estado, por um lado, e nos Aparelhos Ideolgicos de Estado, por outro lado.

    Poderemos agora reunir o que foi dito ante-riormente nos trs sublinhados seguintes:

    1) Todos os Aparelhos de Estado funcio-nam simultaneamente pela represso e pela ideologia, com a diferena de que o Aparelho (repressivo) de Estado funciona de maneira massivamente prevalente pela represso, en-quanto os Aparelhos Ideolgicos de Estado fun-cionam de maneira massivamente prevalente pela ideologia.

    2) Enquanto o Aparelho (repressivo) de Estado constitui um todo organizado cujos diferentes membros esto subordinados a uma unidade de comando, a da poltica da luta de classes aplicada pelos representantes pol-ticos das classes dominantes que detm o poder de Estado, os Aparelhos Ideolgicos de Es-tado so mltiplos, distintos, relativamente autnomos e susceptveis de oferecer um campo objectivo a contradies que exprimem,

    5h

  • sob formas ora limitadas, ora extremas, os efeitos dos choques entre a luta de classes capi-talista e a luta de classes proletria, assim como das suas formas subordinadas.

    3) Enquanto a unidade do Aparelho (re-pressivo) de Estado assegurada ipela sua organizao centralizada unificada sob a direc-o dos representantes das classes no poder, executando a politica de luta de classes das classes no poder, a unidade entre os dife-rentes Aparelhos Ideolgicos de Estado asse-gurada, na maioria das vezes em formas con-traditrias, pela ideologia dominante, a da classe dominante.

    Tendo em conta estas caractersticas, pode-mos ento representar a reproduo das rela-es de produo1 da maneira seguinte, se-gundo uma espcie de diviso do trabalho: o papel do Aparelho repressivo de Estado consiste essencialmente, enquanto aparelho re-pressivo, em assegurar pela fora (fsica ou

    i Na parte da reproduo para que contribuem o Aparelho repressivo de Estado e os Aparelhos Ideol-gicos de Estado.

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  • no) as condies polticas da reproduo das relaes de produo que so em ltima anlise relaes e explorao. No s o aparelho de Estado contribui largamente para se reprodu-zir a ele prprio (existem no Estado capitalista dinastias de homens polticos, dinastias de mi-litares, etc.), mas tambm e sobretudo, o apa-relho de Estado assegura pela represso (da mais brutal fora fsica s simples ordens e interditos administrativos, censura aberta ou tcita, etc.), as condies polticas do exerccio dos Aparelhos Ideolgicos de Estado.

    So estes de facto que asseguram, em grande parte, a prpria reproduo das rela-es de produo, escudados no aparelho repressivo de Estado. aqui que joga massi-vamente o papel da ideologia dominante, a da classe dominante que detm o poder de Estado. por intermdio da ideologia domi-nante que assegurada a harmonia (por vezes precria) entre o aparelho repressivo de Estado e os Aparelhos Ideolgicos de Es-tado, e entre os diferentes Aparelhos Ideol-gicos de Estado.

    Somos assim conduzidos a encarar a hip-tese seguinte, em funo da prpria diversidade dos Aparelhos Ideolgicos de Estado no seu

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  • papel nico, porque comum, da reproduo das relaes de produo.

    Enumermos nas formaes sociais capita-listas contemporneas, um nmero relativa-mente elevado de aparelhos ideolgicos de Estado: o aparelho escolar, o aparelho reli-gioso, o aparelho familiar, o aparelho poltico, o aparelho sindical, o aparelho de informao, o aparelho cultural, etc.

    Ora, nas formaes sociais do modo de produo servagista (normalmente dito feu-dal), observamos que, se existe um aparelho repressivo de Estado nico, formalmente muito semelhante, a verdade que no s a partir da Monarquia absoluta, como a partir dos primei-ros Estados antigos conhecidos, ao que ns conhecemos, o nmero dos aparelhos ideolgicos de Estado menos elevado e a sua individuali-dade diferente. Observamos por exemplo que na Idade Mdia a Igreja (aparelho ideolgico de Estado religioso) acumulava muitas das funes hoje atribudas a vrios aparelhos ideolgicos de Estado distintos, novos em relao ao pas-sado que evocamos, em particular funes esco-lares e culturais. A par da Igreja existia o Aparelho Ideolgico de Estado familiar que desempenhava um papel considervel em com-

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  • parao com o que desempenha hoje mas for-maes sociais capitalistas. Apesar das adern-cias, a Igreja e a Famlia no eram os nicos Aparelhos Ideolgicos de Estado. Existia tam-bm um Aparelho Ideolgico de Estado poltico (as Cortes, o Parlamento, as diferentes faces e Ligas polticas, antepassados dos partidos po-lticos modernos e todo o sistema poltico das Comunas francas e, depois, das Cidades). Exis-tia tambm um poderoso Aparelho Ideolgico de Estado pr-sindical, arriscando esta expres-so forosamente anacrnica (as poderosas confrarias dos mercados, dos banqueiros e tam-bm as associaes dos companheiros, etc.). At a Edio e a Informao conheceram um desenvolvimento incontestvel, assim como os espectculos, primeiro, parte integrante da Igreja e depois cada vez mais independentes dela.

    Ora, no perodo histrico pr-capitalista, que examinamos a traos largos, absoluta-mente evidente que existia um Aparelho Ideo-lgico de Estado dominante, a Igreja, que concentrava no s as funes religiosas mas tambm escolares, e uma boa parte das fun-es de informao e de cultura. No por acaso que toda a luta ideolgica do sculo XVI

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  • ao sculo XVin, a partir do primeiro impulso dado pela Reforma, se concentra inuma luta anticlerical e anti-religiosa; no por acaso, em funo da prpria posio dominante do Aparelho Ideolgico de Estado religioso.

    A Revoluo francesa teve antes de mais por objectivo e resultado fazer passar o poder de Estado da aristocracia feudal para a bur-guesia capitalista-comercial, quehrar em parte o antigo aparelho repressivo de Estado e subs-titu-lo por um novo (ex. o Exrcito nacional popular), mas tambm atacar o aparelho ideolgico de Estado n. 1: a Igreja. Dai a constituio civil do clero, a confiscao dos bens da Igreja e a criao de novos aparelhos ideolgicos de Estado para substiturem o apa-relho ideolgico de Estado religioso no seu papel dominante.

    Naturalmente, as coisas no andaram por si: como prova, temos a Concordata, a Restau-rao e a longa luta de classes entre a aristo-cracia fundiria e a burguesia industrial ao longo de todo o sculo XIX pelo estabeleci-mento da hegemonia burguesa nas funes outrora desempenhadas pela Igreja: ante de mais, na Escola. Podemos dizer que a burgue-sia se apoiou no novo aparelho ideolgico

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  • de Estado poltico, democrtico-par lamentar, criado nos primeiros anos da Revoluo, em seguida restaurado aps longas e violentas lu-tas, durante alguns meses em 1848, e durante dezenas de anos aps a queda do Segundo Imprio, a fim de travar a luta contra a Igreja e de se apoderar das funes ideolgicas desta, numa palavra, no s para assegurar a sua hegemonia poltica, mas tambm a sua hege-monia ideolgica, indispensvel reproduo das relaes de produo capitalistas.

    J por isso que nos julgamos autorizados a avanar a Tese seguinte com todos os riscos que isso comporta: pensamos que o Aparelho Ideolgico de Estado que foi colocado em posi-o dominante nas formaes capitalistas ma-duras, aps uma violenta luta de classes poltica e ideolgica contra o antigo Aparelho Ideolgico de Estado dominante, o Aparelho Ideolgico escolar.

    Esta tese pode parecer paradoxal, se ver-dade que para toda a gente, isto , na repre-sentao ideolgica que a burguesia pretende dar a si prpria e s classes que ela explora, parece evidente que o Aparelho Ideolgico de Estado dominante nas formaes sociais capi-talistas no a Escola, mas o Aparelho Ideo-

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  • lgico de Estado poltico, isto , o regime de democracia parlamentar nascido do sufrgio universal e das lutas dos partidos.

    E no entanto, a histria, mesmo recente, mestra que a burguesia pde e pode muito bem viver com Aparelhos Ideolgicos de Estado polticos diferentes da democracia parlamentar: o Imprio, n. 1 e n. 2, a Monarquia da Carta (Lus XVIII e Carlos X), a Monarquia parla-mentar (Lus Filipe), a democracia presiden-cialista (de Gaulle), para s falar da Frana. Em Inglaterra, as coisas so ainda mais mani-festas. Neste pas a Revoluo foi particular-mente bem sucedida do ponto de vista burgus, visto que, de maneira diferente da Frana, em que a burguesia, alis devido falta de viso da pequena nobreza, teve de aceder a deixar-se levar ao poder custa de jornadas revolucionrias, camponesas e ple-beias, que lhe custaram terrivelmente caro, a burguesia inglesa conseguiu compor com a Aristocracia e partilhar com ela a deteno do poder de Estado e a utilizao do aparelho de Estado durante muito tempo (paz entre todos os homens de boa-vontade das classes dominantes!) Na Alemanha as coisas so ainda mais manifestas, visto que foi sob um

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  • apareljio ideolgico de Estado poltico em que os Junkers imperiais (smbolo Bismark), o seu exrcito e a sua polcia, lhe serviam de escudo e de pessoal dirigente, que a burguesia fez a sua entrada estrondosa na histria, antes de atravessar a repblica de Weimar e de se confiar ao nazismo.

    Cremos portanto ter fortes razes para pen-sar que, por detrs dos jogos do seu Aparelho Ideolgico de Estado poltico, que estava boca de cena, o que a burguesia criou como Aparelho Ideolgico de Estado n. 1, e portanto dominante, foi o aparelho escolar, que de facto substituiu nas suas funes o antigo Aparelho Ideolgico de Estado dominante, isto , a Igreja. Podemos at acrescentar: o duo Escola-Fam-lia substituiu o duo Igreja-Famlia.

    Porque que o aparelho escolar de facto o aparelho ideolgico de Estado dominante nas formaes sociais capitalistas e como que ele funciona?

    Por agora, basta dizer:

    1. Todos os Aparelhos Ideolgicos de Es-tado, sejam eles quais forem, concorrem para um mesmo resultado: a reproduo das rela-

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  • es de produo, isto , das relaes de explo-rao capitalistas.

    2. Cada um deles concorre para este resultado nico da maneira que lhe prpria. O aparelho poltico sujeitando os indivduos ideologia poltica de Estado, a ideologia demo-crtica, indirecta (parlamentar) ou di-recta (plebiscitria ou fascista). O aparelho de informao embutindo, atravs da imprensa, da rdio, da televiso, em todos os cidados, doses quotidianas de nacionalismo, chauvi-nismo, liberalismo, moralismo, etc. O mesmo acontece com o aparelho cultural (o paipel do desporto no chauvinismo de primeira ordem), etc. O aparelho religioso lembrando nos ser-mes e noutras grandes cerimnias do Nasci-mento, do Casamento, da Morte, que o homem no mais que cinza, a no ser que saiba amar os seus irmos at ao ponto de oferecer a face esquerda a quem j o esbofeteou na direita. O aparelho familiar..., etc.

    3. O concerto dominado por uma parti-tura nica, perturbada de quando em quando por contradies (as dos restos das antigas classes dominantes, as dos proletrios e das

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  • suas organizaes): a partitura da ideologia da classe actualmente dominante, que integra na sua msica os grandes temas do Huma-nismo dos Grandes Antepassados, que fizeram antes do Cristianismo o Milagre grego, e de-pois a Grandeza de Roma, a Cidade eterna, e os temas do Interesse, particular e geral, etc. Nacionalismo, moralismo e economismo.

    4. Contudo, neste concerto, h um Apa-relho Ideolgico de Estado que desempenha incontestavelmente o papel dominante, embora nem sempre se preste muita ateno sua msica: ela de tal maneira silenciosa! Tra-ta-se da Escola.

    Desde a pr-primria, a Escola toma a seu cargo todas as crianas de todas as classes sociais, e a partir da Pr-Primria, inculca--Ihes durante anos, os anos em que a criana est mais vulnervel, entalada entre o apa-relho de Estado familiar e o aparelho de Estado Escola, saberes prticos (des savoir faire) envolvidos na ideologia dominante (o francs, o clculo, a histria, as cincias, a literatura), ou simplesmente, a ideologia dominante no estado puro (moral, instruo cvica, filosofia). Algures, por volta ~>os dezasseis anos, uma

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  • enorme massa de crianas cai na produo: so os operrios ou os pequenos camponeses. A outra parte da juventude escolarizvel con-tinua: e seja como for faz um troo do cami-nho para cair sem chegar ao fim e preencher os postos dos quadros mdios e pequenos, empregados, pequenos e mdios funcionrios, pequeno-burgueses de toda a espcie. Uma ltima parte consegue aceder aos cumes, quer para cair no semi-desemprego intelectual, quer para fornecer, alm dos intelectuais do traba-lhador colectivo, os agentes da explorao, (capitalistas, managers), os agentes da repres-so (militares, polcias, polticos, administra-dores) e os profissionais da ideologia (padres de toda a espcie, a maioria dos quais so laicos convencidos).

    Cada massa que fica pelo caminho est praticamente recheada da ideologia que con-vm ao papel que ela deve desempenhar na sociedade de classes: papel de explorado (com conscincia profissional, moral, cvica, nacional e apoltica altamente desenvol-vida); papel de agente da explorao (saber mandar e falar aos operrios: as relaes humanas), de agentes da represso (saber mandar e ser obedecido sem discusso ou

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  • saber manejar a demagogia da retrica dos dirigentes polticos), ou profissionais da ideo-logia (que saibam tratar as conscincias com o respeito, isto , com o desprezo, a chan-tagem, a demagogia que convm, acomodados s subtilezas da Moral, da Virtude, da Trans-cendncia, da Nao, do papel da Frana no mundo, etc.).

    claro, grande nmero destas Virtudes contrastadas (modstia, resignao, submisso, por um lado, cinismo, desprezo, altivez, segu-rana, categoria, capacidade para bem-falar e habilidade) aprendem-se tambm nas Famlias, nas Igrejas, na Tropa, nos Livros, nos filmes e at nos estdios. Mas nenhum Aparelho Ideo-lgico de Estado dispe durante tanto tempo da audincia obrigatria (e ainda por cima gratuita...), 5 a 6 dias em 7 que tem a semana, razo de 8 horas por dia, da totalidade das crianas da formao social capitalista.

    Ora, atravs da aprendizagem de alguns saberes prticos (savoir-faire) envolvidos na inculcao massiva da ideologia da classe domi-nante, que so em grande parte reproduzidas as relaes de produo de uma formao social capitalista, isto , as relaes de explo-rados com exploradores e de exploradores com

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  • explorados. Os mecanismos que reproduzem este resultado vital para o regime capitalista so naturalmente envolvidos e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente rei-nante, visto que uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante: uma ideolo-gia que representa a Escola como um meio neutro, desprovido de ideologia (visto que... laico), em que os mestres, respeitosos da conscincia e da liberdade das crianas que lhes so confiadas (com toda a con-fiana) pelos pais (os quais so igual-mente livres, isto , proprietrios dos filhos) os fazem aceder liberdade, moralidade e responsabilidade de adultos pelo seu prprio exemplo, pelos conhecimentos, pela literatura e pelas suas virtudes libertadoras.

    Peo desculpa aos professores que, em con-dies terrveis, tentam voltar contra a ideo-logia, contra o sistema e contra as prticas em que este os encerra, as armas que podem encontrar na histria e no saber que ensi-nam. Em certa medida so heris. Mas so raros, e quantos (a maioria) no tm sequer um vislumbre de dvida quanto ao trabalho que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, pior, dedicam-se inteira-

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  • mente e era toda a conscincia realizao desse trabalho (os famosos mtodos novos!). Tm to poucas dvidas, que contribuem at pelo seu devotamento a manter e a alimentar a representao ideolgica da Escola que a torna hoje to natural, indispensvel-til e at benfazeja aos nossos contemporneos, quanto a Igreja era natural, indispensvel e gene-rosa para os nossos antepassados de h sculos.

    De facto, a Igreja hoje foi substituda pela Escola no seu papel de A-parelho Ideolgico de Estado dominante. Est emparelhada com a Famlia como outrora a Igreja o estava. Podemos ento afirmar que a crise, de uma profundidade sem precedentes, que por esse mundo fora abala o sistema escolar de tan-tos Estados, muitas vezes conjugada com uma crise (j anunciada no Manifesto) que sacode o sistema familiar, adquire um sentido poltico, se considerarmos que a Escola (e o par Escola--Famlia) constitui o Aparelho Ideolgico de Estado dominante, Aparelho que desempenha um papel determinante na reproduo das re-laes de produo de um modo de produo ameaado na sua existncia pela luta de clas-ses mundial.

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  • A PROPSITO DA IDEOLOGIA

    Ao avanarmos o conceito de Aparelho Ideolgico de Estado, quando dissemos que os AIE funcionavam pela ideologia, invocmos uma realidade sobre a qual preciso dizer umas palavras: a ideologia.

    Sabe-se que a expresso: a ideologia, foi forjada por Cabanis, Destutt de Tracy e pelos seus amigos, que lhe atriburam por objecto a teoria (gentica) das ideias. Quando, 50 anos mais tarde, Marx retoma o termo, d-lhe, a partir das Obras de Juventude, um sentido totalmente diferente. A ideologia passa ento a ser o sistema das ideias, das representaes, que domina o esprito de um homem ou de um grupo social. A luta ideolgico-poltica que Marx desencadeou nos seus artigos da Gazeta Renana depressa o confrontariam com esta

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  • realidade, e obrdg-lo-iam a aprofundar as suas primeiras intuies.

    No entanto, deparamo-nos neste ponto com um paradoxo espantoso. Tudo parecia levar Marx a formular uma teoria da ideologia. De facto, a Ideologia Alem oferece-nos, antes dos Manuscritos de 44, uma teoria explcita da ideologia, mas... no marxista (e prov-lo--emos em breve). Quanto ao Capital, se con-tm muitas indicaes para uma teoria das ideologias (a mais visvel: a ideologia dos economistas vulgares), no contm propria-mente esta teoria, a qiual depende em grande parte cie uma teoria da ideologia em geral.

    Gostaria de correr o risco de propor um esboo esquemtico desta teoria da ideologia em geral. As teses de que vou partir no so, claro, improvisadas, mas s podem ser de-fendidas e experimentadas, isto , confirmadas ou rectificadas, atravs de estudos e anlises aprofundados.

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  • A IDEOLOGIA NO TEM HISTRIA

    Primeiro que tudo, uma palavra para expor a razo de princpio que me parece, se no fundamentar, pelo menos autorizar o projecto de uma teoria da ideologia em geral, e no o de uma teoria das ideologias particulares, que exprimem sempre, seja qual for a sua forma (religiosa, moral, jurdica, poltica), posies de classe.

    Ser sem dvida necessrio desenvolver uma teoria das ideologias consideradas no duplo aspecto acima indicado. Veremos ento que uma teoria das ideologias repousa em ltima anlise na histria das formaes sociais, por-tanto na dos modos de produo combinados nas formaes sociais e da histria das lutas de classes que nelas se desenvolvem. Neste sen-tido, claro que no se pode formular uma teoria das ideologias em geral, pois que as

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  • ideologias (definidas sob a dupla relao que indicamos acima: regional e de classe) tm uma histria, cuja determinao em ltima instncia se encontra, como evidente, fora das ideologias em si, embora dizendo-lhes res-peito.

    Todavia, se posso definir o projecto de uma teoria da ideologia em geral, e se esta teoria de facto um dos elementos de que dependem as teorias das ideologias, isso implica uma proposio aparentemente paradoxal que enun-ciarei nos seguintes termos: a ideologia no tem histria.

    Como se sabe, esta frmula figura numa passagem da Ideologia Alem. Marx enuncia-a a propsito da metafsica que, segundo diz, tal como a moral, no tem histria (subenten-dido: e as outras formas da ideologia).

    Na Ideologia Alem, esta frmula figura num contexto francamente positivista. A ideo-logia ento concebida como pura iluso, puro sonho, isto , nada. Toda a sua realidade est fora de si prpria. pensada como uma cons-truo imaginria cujo estatuto exactamente semelhante ao estatuto terico do sonho nos autores anteriores a Freud. Para estes auto-res, o sonho era o resultado puramente imagi-

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  • nrio, isto , nulo, de resduos diurnos, apre-sentados numa composio e inuma ordem arbi-trrias, por vezes invertidas, numa palavra, na desordem. Para eles, o sonho era o ima-ginrio vazio e nulo construdo arbitraria-mente, ao acaso, com resduos da nica reali-dade cheia e positiva, a do dia. Tal , na Ideo-logia Alem, o estatuto exacto da filosofia e da ideologia (pois que nesta obra a filosofia a ideologia por excelncia).

    A ideologia comea por ser, segundo Marx, uma construo imaginria, um puro sonho, vazio e vo, constitudo pelos resduos diur-nos da nica realidade plena e positiva, a da histria concreta dos indivduos concretos, materiais, produzindo materialmente a sua existncia. nesta perspectiva que, na Ideolo-gia Alem, a ideologia no tem histria, dado que a sua histria est fora dela, est onde existe a nica histria possvel, a dos indiv-duos concretos, etc. Na Ideologia Alem, a tese segundo a qual a ideologia no tem his-tria portanto uma tese puramente negativa pois que significa smultaneamente:

    1. a ideologia no naxia enquanto puro sonho (fabricado no se sabe por que potn-

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  • cia: sabe-se apenas que ela provm da aliena-o da diviso do trabalho, o que taanbm uma determinao negativa).

    2. a ideologia no tem histria, o que no quer de maneira nenhuma dizer que no tenha histria (pelo contrrio, uma vez que apenas o plido reflexo, vazio e invertido, da histria real), mas ela no tem histria prpria.

    Ora a tese que eu gostaria de defender, retomando formalmente os termos da Ideolo-gia Alem (a ideologia no tem histria), radicalmente diferente da tese positivista--historicista da Ideologia Alem.

    Porque, por um lado, creio poder sustentar que as ideologias tm uma histria prpria (embora esta histria seja determinada em ltima instncia pela luta de classes); e, por outro lado, que a ideologia em geral no tem histria, no num sentido negativo (a sua his-tria est fora dela) mas num sentido absolu-tamente positivo.

    Este sentido positivo, se verdade que prprio da ideologia o ser dotada de uma estrutura e de um funcionamento tais, que fazem dela uma realidade no histrica, isto

    n

  • , omni-histrica, ino sentido em que esta estru-tura e este funcionamento esto, sob uma mesma forma, imutvel, presentes naquilo a que se chama a histria inteira, no sentido em que o Manifesto define a histria como a histria da luta de classes, M o , histria das socie-dades die classes.

    Para fornecer uma referncia terica, di-rei, retomando o exemplo do sonho agora na. concepo freudiana, que a proposio enun-ciada: a ideologia no tem histria, pode e deve (e de uma maneira que no tem absolu-tamente nada de arbitrrio, mas que pelo contrrio teoricamente necessria, porque exis-te uma ligao orgnica entre as duas pro-posies) ser posta em relao directa com a proposio de Freud segundo a qual o incons-ciente eterno, isto , no tem histria.

    Se eterno no quer dizer transcendente a toda a histria (temporal) mas omnipresente, trans-histrico, portanto imutvel na sua forma ao longo da histria, retomarei, palavra por palavra, a expresso de Freud e direi: a ideo-logia eterna como o inconsciente. E acres-centarei que esta aproximao me parece teoricamente justificada pelo facto de que a eternidade do inconsciente tem uma certa

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  • relao com a eternidade da ideologia em geral.

    assim que me julgo autorizado, pelo menos presuntivamente, a propor uma teoria da ideologia em geral, no sentido em que Freud formulou uma teoria do inconsciente em geral.

    Para simplificar a expresso, e tendo em conta o que se disse sobre as ideologias, pas-samos a empregar o termo ideologia para designar a ideologia em geral, de que disse que no tem histria ou, o que equivalente, que eterna, isto omnipresente, sob a sua forma imutvel, em toda a histria ( = hist-ria das formaes sociais compreendendo clas-ses sociais). Provisoriamente, limito-me de facto s sociedades de classes e sua histria.

    7 6

  • A IDEOLOGIA UMA REPRESENTAO DA RELAO IMAGINARIA DOS INDIVDUOS COM AS SUAS CONDIES DE EXISTNCIA

    Para abordar a tese central sobre a estru-tura e o funcionamento da ideologia, proponho duas teses: uma negativa e outra positiva. A primeira refere-se ao objecto que repre-sentado sob a forma imaginria da ideologia, a segunda refere-se materialidade da ideo-logia.

    Tese 1: A ideologia representa a relao imaginria dos indivduos com as suas con-dies reais de existncia.

    De uma maneira geral, diz-se da ideologia religiosa, da ideologia moral, da ideologia jur-dica, da ideologia poltica, etc., que so con-cepes do mundo. E claro que se admite, a menos que se viva uma destas ideologias

    77

  • como a verdade (por exemplo, se se acreditar em Deus, no Dever ou na Justia, etc.), que a ideologia de que se fala ento de um ponto de vista crtico, ao examin-la como um etn-logo examina os mitos de uma sociedade pri-mitiva, que estas concepes do mundo so na sua grande parte imaginrias, isto , no correspondentes realidade.

    Contudo, embora admitindo que elas no correspondem realidade, portanto que cons-tituem uma iluso, admite-se que fazem aluso realidade, e que basta interpret-las para reencontrar, sob a sua representao imagin-ria do mundo, a prpria realidade desse mundo (ideologia = iluso / aluso).

    Existem diferentes tipos de interpretao, dos quais os mais conhecidos so o tipo meca-nicista, corrente no sculo XVIII (Deus a representao imaginria do Rei real), e a interpretao hermenutica, inaugurada pe-los primeiros Padres da Igreja e retomada por Feuerbach e pela escola teolgico-filosfica nele inspirada, por exemplo o telogo Barth, etc. (Para Feuerbach, por exemplo, Deus a essncia do Homem real). Afirmo o essencial dizendo que, sob a condio de interpretar a transposio (e a inverso) imaginria da

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  • ideologia, chega-se concluso de que na ideo-logia os homens se representam sob uma forma imaginria as suas condies de exis-tncia reais.

    Esta interpretao deixa infelizmente em suspenso um pequeno problema: porque pre-cisam os homens desta transposio imagi-nria das suas condies reais de existncia, para se representarem as suas condies de existncia reais?

    A primeira resposta, a do sculo XVIII, prope uma soluo simples: a culpa dos Padres e dos Dspotas. Foram eles que for-jaram as Belas Mentiras para que, julgando obedecer a Deus, os homens obedecessem de facto aos padres ou aos Dspotas, na maior parte das vezes aliados na sua impostura, os Pa-dres ao servio dos Dspotas ou vice-versa, se-gundo as posies polticas dos ditos tericos. Existe portanto uma causa para a transposio imaginria das condies de existncia real: esta causa a existncia de um pequeno grupo de homens cnicos, que assentam a sua domi-nao e a sua explorao do povo numa representao falseada do mundo que inven-taram para subjugar os espritos, dominando a imaginao destes.

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  • A segunda resiposta (a de Feuerbach, reto-mada a par e passo por Marx nas Obras de Juventude) mais profunda, isto , igual-mente falsa. Tambm ela procura e encontra uma causa para a transposio e para a defor-mao imaginria das condies de existncia reais dos homens, numa palavra, para a aliena-o no imaginrio da representao das condi-es de existncia dos homens. Esta causa j no so os Padres ou os Dspotas, nem a ima-ginao activa destes e a imaginao passiva das suas vtimas. Esta causa a alienao material que reina nas condies de existncia dos prprios homens. assim que, na Questo Judaica e noutros escritos, Marx defende a ideia feuerbachiana segundo a qual os homens se fazem uma representao alienada ( = ima-ginria) das suas condies de existncia por-que estas condies de existncia so em si alienantes (nos Manuscritos de 44- porque estas condies so dominadas pela essncia da sociedade alienada: o trabalho alienado).

    Todas estas interpretaes tomam portanto letra a tese que pressupem, e em que repou-sam, a saber, que o que reflectido na repre-sentao imaginria do mundo, presente numa

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  • ideologia, so as condies de existncia dos homens, isto , o seu mundo real.

    Ora, retomo aqui uma tese que j formu-lei : no so as condies de existncia reais, o seu mundo real, que os homens se represen-tam na ideologia, mas a relao dos homens com estas condies ide existncia que lhes representada na ideologia. esta relao que est no centro de toda a representao ideol-gica, portanto imaginria, do mundo real. nesta relao que est contida a causa que deve dar conta da deformao imaginria da representao ideolgica do mundo real. Ou melhor, para deixar em suspenso a linguagem da causa, convm formular a tese segundo a qual a natureza imaginria desta relao que fundamenta toda a deformao imaginria que se pode observar em toda a ideologia (se no se viver na verdade desta).

    Falando uma linguagem marxista, se verdade que a representao das condies de existncia real dos indivduos que ocupam pos-tos de agentes da produo, da explorao, da represso, da ideologizao, da prtica cien-tfica, releva em ltima instncia das relaes de produo e das relaes derivadas das rela-es de produo, podemos dizer o seguinte:

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  • toda a ideologia representa, na sua deformao necessariamente imaginria, no as relaes de produo existentes (e as outras relaes que delas derivam), mas antes de mais a relao (imaginria) dos indivduos com as relaes de produo e com as relaes que delas deri-vam. Na ideologia, o que representado no o sistema das relaes reais que governam a existncia dos indivduos, mas a relao ima-ginria destes indivduos com as relaes reais em que vivem.

    Seindo assim, a questo da causa da de-formao imaginria das relaes reais na ideologia cai por terra, e deve ser substituda por uma outra questo: porque que a repre-sentao dada aos indivduos da sua relao (individual) com as relaes sociais que gover-nam as suas condies de existncia e a sua vida colectiva e individual, necessariamente imaginria? E qual a natureza deste ima-ginrio? Assim colocada, a questo evacua a soluo pela pandilha {clique) 1 de um

    i E propositadamente que emprego este termo muito moderno. Porque mesmo nos meios comunistas,

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  • grupo de indivduos (Padres ou Dspotas) autores da grande mistificao ideolgica, assim como a soluo pelo carcter alienado do mundo real. No prosseguimento da nossa expo-sio vamos ver porqu. Por agora, no ire-mos mais longe.

    Tese II: A ideologia tem uma existncia material.

    J aflormos esta tese quando dissemos que as ideias ou representaes, etc., de que parece ser composta a ideologia, no tinham existncia ideal, espiritual, mas material. Suge-rimos que a existncia ideal, espiritual, das ideias relevava exclusivamente de uma ideo-logia da ideia e da ideologia e, acrescen-temos, de uma ideologia do que parece funda-mentar esta concepo a partir da apario das cincias, a saber, o que os prticos das cincias se representam, na sua ideologia espontnea, como ideias, verdadeiras ou falsas. claro que, apresentada sob a forma de uma afirma-o, esta tese no demonstrada. Apenas pedi-

    a explicao de um desvio poltico (oportunismo de direita ou de esquerda) pela aco de uma pandilha (clique) infelizmente corrente.

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  • mos que lhe seja concedido, em nome do mate-rialismo, um preconceito favorvel. Desenvol-vimentos muito longos seriam necessrios para a sua demonstrao.

    A tese presuntiva da existncia no espiri-tual mas material das ideias ou outras re-presentaes, -nos de facto necessria para avanar na anlise da natureza da ideologia. Ou melhor, -nos til para esclarecer o que toda a anlise sria de uma ideologia mostra imediatamente, empiricamente, a todo o obser-vador mesmo pouco crtico.

    Dissemos, ao falar dos aparelhos ideol-gicos de Estado e das prticas destes, que cada um deles era a realizao de uma ideologia (sendo a unidade destas diferentes ideologias regionais religiosa, moral, jurdica, poltica, esttica, etc. assegurada pela soa subsun-o ideologia dominante). Retomamos esta tese: uma ideologia existe sempre num apare-lho, e na sua prtica ou suas prticas. Esta existncia material.

    claro que a existncia material da ideolo-gia num aparelho e nas suas prticas no possui a mesma modalidade que a existncia material de uma pedra ou de uma espingarda. Mas, e correndo o risco de nos chamarem neo-aristo-

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  • tlicos (note-se que Marx tinha Aristteles em grande conta), diremos que a matria se diz em vrios sentidos, ou melhor que ela existe sob diferentes modalidades, todas enrai-zadas em ltima instncia ,na matria fsica.

    Dito isto, vejamos o que se passa nos indivduos que vivem na ideologia, isto , numa representao do mundo determinada (religiosa, moral, etc.), cuja deformao ima-ginria depende da relao imaginria destes indivduos com as suas condies de existncia, isto , em ltima instncia, com as relaes de produo e de classe (ideologia = relao ima-ginria com relaes reais). Diremos que esta relao imaginria em si mesma dotada de uma existncia material.

    Ora verificamos o seguinte: Um indivduo cr em Deus, ou no Dever,

    ou na Justia, etc. Esta crena releva (para todos os que vivem numa representao ideo-lgica da ideologia, que reduz a ideologia a ideias dotadas por definio de existncia espi-ritual) das ideias desse mesmo indivduo, por-tanto dele, como sujeito possuindo uma cons-cincia na qual esto contidas as ideias da sua crena. Atravs do dispositivo conceptual perfeitamente ideolgico assim estabelecido

    85

  • (um sujeito dotado de uma conscincia em que forma livremente, ou reconhece livremente, as ideias em que cr), o comportamento (material) do dito sujeito decorre naturalmente.

    O indivduo em questo conduz-se desta ou daquela maneira, adopta este ou aquele com-portamento (prtico e, o que mais, participa em certas prticas reguladas, que so as do apa-relho ideolgico de que dependem as ideias que enquanto sujeito escolheu livremente, cons-cientemente. Se cr em Deus, vai Igreja para assistir Missa, ajoelha-se, reza, confessa-se, faz penitncia (antigamente esta era material no sentido corrente do termo) e naturalmente arrependesse, e continua, etc. Se cr no Dever, ter comportamentos correspondentes, inscritos nas prticas rituais, conformes aos bons costu-mes. Se cr na Justia, submeter-se- sem discusso s regras do Direito, e poder at protestar quando estas so violadas, assinar peties, tomar parte numa manifestao, etc.

    Em todo este esquema verificamos portanto que a representao ideolgica da ideologia obrigada a reconhecer que todo o sujeito, dotado de uma conscincia e crendo nas ideias que a sua conscincia lhe inspira e que aceita livremente, deve agir segundo as

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  • suas ideias, deve portanto inscrever nos actos da sua prtica material as suas prprias ideias de sujeito livre. Se o no faz, as coisas no esto bem.

    De facto, se no faz o que deveria fazer em funo daquilo em que acredita, porque faz outra coisa, o que, sempre em funo do mesmo esquema idealista, d a entender que tem ideias diferentes das que proclama, e que age segundo essas outras ideias, como homem quer inconsequente (ningum mau volun-tariamente), quer cnico ou perverso.

    Em qualquer dos casos, a ideologia da ideo-logia reconhece portanto, apesar da sua defor-mao imaginria, que as ideias de um sujeito humano existem nos seuis actos, ou devem exis-tir nos seus actos, e se iisto no acontece, em-presta-lhe outras ideias correspondentes aos actos (mesmo perversos) que ele realiza. Esta ideologia fala dos actos: ns falaremos de actos inseridos em prticas. E faremos notar que estas prticas so reguladas por rituais em que elas se inscrevem, no seio da existncia material de um aparelho ideolgico, mesmo que se trate de uma pequenssima parte deste aparelho: uma missa pouco frequentada numa capela, um enterro, um pequeno desafio de

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  • futebol numa sociedade desportiva, um dia de aulas numa escola, uma reunio ou um meesting de um partido poltico, etc.

    Devemos dialctica defensiva de Pascal a maravilhosa frmula que nos vai permitir inverter a ordem do esquema nocional da ideo-logia. Pascal diz aproximadamente o seguinte: Ajoelhai-vos, mexei os lbios como se fosseis rezar, e sereis crentes. Inverte portanto escan-dalosamente a ordem das coisas, trazendo, como Cristo, no a paz, mas a diviso, e alm disso, o que muito pouco cristo (porque ai daquele que provoca escndalo!), o escndalo. Bem--aventurado escndalo que, por desafio jan-senista, o leva a falar uma linguagem que designa a realidade em pessoa.

    Vamos deixar Pascal aos seus argumentos de luta ideolgica no seio do aparelho ideol-gico de Estado religioso do seu tempo. Reto-maremos uma linguagem mais directamente marxista, se pudermos, pois entramos em dom-nios ainda mal explorados.

    Diremos portanto, considerando apenas um sujeito (tal indivduo), que a existncia das ideias da sua crena material, porque as suas ideias so actos materiais inseridos em

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  • prticas materiais, reguladas por rituais mate-riais que so tambm, definidos pelo a/parelho ideolgico material de que relevam as ideias desse sujeito. Os quatro adjectivos imateriais inscritos na mossa proposio devem ser afecta-dos de modalidades diferentes: a materialidade de uma deslocao para ir misisa, de um ajoelhar, de um gesto de sinal da cruz ou de mea culpa, de uma frase, de uma orao, de uma contrio, de uma penitncia, de um olhar, de um aperto de mo, de um discurso verbal externo ou de um discurso verbal interno (a conscincia) no uma nica e mesma materialidade. Deixamos em suspenso a teoria da diferena das modalidades da materialidade.

    Nesta apresentao invertida das coisas, no estamos perante uma inverso, pois constatamos que algumas noes desaparece-ram pura e simplesmente da nossa nova apre-sentao, enquanto outras subsistem e novos termos aparecem.

    Desapareceu: o termo ideias. Subsistem: os termos sujeito, conscincia,

    crena, actos. Aparecem: os termos prticas, rituais, apa-

    relho ideolgico.

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  • No se trata portanto de uma inverso (salvo no sentido em que se diz que um go-verno ou um copo foram derrubados [renver-ss]), mas de uma remodelao (de tipo no ministerial) bastante estranha, dado que obte-mos o seguinte resultado:

    As ideias desapareceram enquanto tais (enquanto dotadas die uma existncia ideal, espiritual), na medida em que ficou claro que a existncia destas se inscrevia nos actos das prticas reguladas pelas rituais definidos em ltima instncia por um aparelho ideolgico. Surge assim que o sujeito age enquanto agido pelo seguinte sistema (enunciado na sua ordem de determinao real): ideologia exis-tindo num aparelho ideolgico material, pres-crevendo prticas materiais, reguladas por um ritual material, as quais (prticas) existem nos actos materiais de um sujeito agindo em conscincia segundo a sua crena.

    Mas esta apresentao mostra que conser-vmos as noes seguintes: sujeito, conscincia, crena, actos. Desta sequncia, extramos j o termo central, decisivo, de que tudo depende: a noo de sujeito.

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  • E enunciamos ento as duas tesas con-juntas :

    1 - S existe prtica atravs e sob urna ideologia;

    2 S existe ideologia atravs do sujeito e para sujeitos.

    Podemos agora regressar nossa tese central.

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  • A IDEOLOGIA INTERPELA OS INDIVDUOS COMO SUJEITOS

    Esta tese serve para explicitar a nossa ltima proposio: s existe ideologia pelo sujeito e para sujeitos. Entenda-se: s existe ideologia para sujeitos concretos, e esta desti-nao da ideologia s possvel pelo sujeito: entenda-se, pela categoria de sujeito e pelo seu funcionamento.

    Com isto pretendemos dizer que, mesmo que ela s aparea sob esta denominao (o sujeito) aquando da instaurao da ideologia burguesa, e sobretudo aquando da instaurao da ideo-logia jurdica \ a categoria de sujeito (que

    i Que toma a categoria jurdica de sujeito de direito para fazer dela uma noo ideolgica: o ho-mem por natureza um sujeito.

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  • pode funcionar sob outras denominaes: por exemplo em Plato, a alma, Deus, etc.) a categoria constitutiva de toda a ideologia, seja qual for a determinao desta (regional ou de classe) e seja qual for a sua data hist-rica dado que a ideologia no tem histria.

    Dizemos: a categoria de sujeito constitu-tiva de toda a ideologia, mas ao mesmo teimpo e imediatamente acrescentamos que a cate-goria de sujeito s constitutiva de toda a ideologia, na medida em que toda a ideologia tem por funo (que a define) constituir os indivduos concretos em sujeitos. neste jogo de dupla constituio que consiste o funciona-mento de toda a ideologia, pois que a ideologia no mais que o seu prprio funcionamento nas formas materiais da existncia deste fun-cionamento.

    Para se compreender bem o que segue, con-vm sublinhar que tanto o autor destas linhas, como o leitor, so sujeitos, portanto sujeitos ideolgicos (proposio tautolgica), isto , que o autor como o leitor destas linhas vivem espontaneamente ou naturalmente na ideo-logia, no sentido em que dissemos que o homem por natureza um animal ideolgico.

    H

  • Que o autor, enquanto escreve estas linhas de um discurso que se pretente cientfico, esteja completamente ausente, como sujeito, do seu discurso cientfico (porque todo o dis-curso cientfico por definio um discurso sem sujeito; no existe Sujeito da cincia a no ser numa ideologia da cincia), outra questo que por agora deixaremos de lado.

    Como dizia admiravelmente S. Paulo, no Logos (entenda-se: na ideologia), que temos o ser, o movimento e a vida. Segue-se que para voc (leitor), como para mim, a categoria de sujeito uma evidncia primeira (as evi-dncias so sempre primeiras) : claro que eu e voc somos sujeitos (livres, morais, etc.). Como todas as evidncias, incluindo as que fazem com que uma palavra designe uma coisa ou possua uma significao (portanto incluindo as evidncias da transparncia da linguagem), esta evidncia de que eu e voc somos sujeitos e que esse facto no consti-tui problema um efeito ideolgico, o efeito ideolgico elementar 15. Alis, prprio da ideo-

    Os linguistas e os que, para diversos fins, uti-lizam a lingustica, deparam-se com dificuldades que

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  • logia impor (sem o parecer, pois que se trata de evidncias) as evidncias como evidncias, que no podemos deixar de 'reconhecer, e perante as quais temos a inevitvel reaco de exclamarmos (em voz alta ou no silncio da conscincia): evidente! issp! No h dvida!

    Nesta reaco exerce-se a funo de re-conhecimento ideolgico que uma das duas funes da ideologia como tal (sendo o seu inverso a funo de desconhecimento).

    Dando um exemplo altamente concreto, todos ns temos amigos que, quando nos batem porta, e quando de dentro, atravs da porta fechada, perguntamos: quem ?, respondem (pois evidente) sou eu!. De facto, reco-nhecemos que ela ou que ele. Abrimos a porta e realmente era mesmo ela. Dando outro exemplo, quando reconhecemos na rua algum do nosso (re) conhecimento, mostramos que o reconhecemos (e que reconhecemos que ele nos reconheceu) dizendo-lhe ol e aper-

    provm do facto de desconhecerem o jogo dos efeitos ideolgicos em todos os discursos inclusive nos pr-prios discursos cientficos.

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  • tando-lhe a mo (prtica ritual material do reconhecimento ideolgico da vida quotidiana, pelo menos em Frana: noutras paragens, outros rituais).

    Com esta nota prvia e estas ilustraes concretas, pretendo apenas fazer notar que eu e voc (leitor) somos sempre j sujeitos e, como tais, praticamos ininterruptamente os rituais do reconhecimento ideolgico, que nos garantem que somos efectivamente sujeitos concretos, individuais, inconfundveis e (natu-ralmente) insubstituveis. O acto de escrever a que actualmente procedo e a leitura a que voc actualmente se dedica 1 so, tambm do ponto de vista desta relao, rituais do reconheci-mento ideolgico, incluindo a evidncia com a qual se lhe pode impor (a voc) a verdade ou o erro das minhas reflexes.

    Mas o reconhecimento de que somos sujeitos e que funcionamos nos rituais prticos da vida

    i Notar: este duplo actualmente prova mais uma vez que a ideologia eterna, dado que estes dois actualmente esto separados por um intervalo de tempo; escrevo estas linhas a 6 de Abril de 1969, e elas sero lidas mais tarde, numa poca indetermi-nvel.

    t 97

  • quotidiana mais elementar (aperto de mo, o facto de voc ter um nome, o facto de saber, mesmo se o ignoro, que voc tem um nome prprio, que o faz ser reconhecido como sujeito nico, etc.) d-nos apenas a conscincia da nossa prtica incessante (etema) do reconhe-cimento ideolgico, a sua conscincia, isto , o seu reconhecimento, mas de maneira ne-nhuma nos d o conhecimento (cientfico) do mecanismo deste reconhecimento. Ora a este conhecimento que preciso chegar, se quiser-mos, embora falando na ideologia e do seio da ideologia, esboar um discurso que tente rom-per com a ideologia para correr o risco de ser o comeo de um discurso cientfico (sem sujeito) sobre a ideologia.

    Portanto, para representar porque que a categoria de sujeito constitutiva da ideolo-gia, que s existe pela constituio dos sujeitos concretos em sujeitos, vou empregar um modo de exposio particular: suficientemente con-creto para que seja reconhecido, mas sufi-cientemente abstracto para que seja pensvel e pensado, dando lugar a um conhecimento.

    Direi numa primeira frmula: toda a ideo-logia interpela os individws concretos como

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  • sujeitos concretos, pelo funcionamento da cate-goria de sujeito.

    Aqui est uma proposio que implica que distingamos, por agora, os indivduos concretos por um lado, e os sujeitos concretos por outro, embora a este nvel o sujeito concreto s possa existir assente num indivduo concreto.

    Sugerimos ento que a ideologia age ou funciona de tal forma que recruta sujeitos entre os indivduos (recruta-os a todos), ou transforma os indivduos em sujeitos (trans-forma-os a todos) por esta operao muito precisa a que chamamos a interpelao, que podemos representar-nos com base no tipo da mais banal interpelao policial (ou no) de todos os dias: Eh! voc 1.

    Se supusermos que a cena terica imagi-nada se passa na rua, o indivduo interpelado volta-se. Por esta simples converso fsica de 180 graus, torna-se sujeito. Porqu? Porque reconheceu que a interpelao se dirigia efecti-

    i A interpelao, prtica quotidiana submetida a um ritual preciso, adquire uma forma muito especial na prtica policial da interpelao, na qual o que est em causa a interpelao de suspeitos.

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  • vmente a ele, e que era de facto ele que era interpelado (e no outro). A experincia prova que as telecomunicaes prticas da interpelao so de tal maneira que, pratica-mente, a interpelao nunca falha a pessoa visada: chamamento verbal, assobio, o inter-pelado reconhece sempre que era a ele que interpelavam. Fenmeno estranho, que apesar do grande nmero dos que tm a conscin-cia tranquila, no se explica apenas pelo sentimento de culpabilidade.

    Naturalmente, para comodidade e clareza da exposio do nosso pequeno teatro terico, somos obrigados a apresentar as coisas dentro de uma sequncia, com um antes e um depois, portanto dentro de uma sucesso temporal. Indivduos passeiam. Algures (normalmente nas costas destes) ouve-se a interpelao: Eh! Pst!. Um indivduo (90 % das vezes o cha-mado) volta-se, crendo-desconfiandonsabendo que a ele que chamam, portanto reconhecendo que efectivamente ele que visado pela interpelao. Mas, na realidade, as coisas passam-se sem a mnima sucesso. A existn-cia da ideologia e a interpelao dos indivduos como sujeitos so uma nica e mesma coisa.

    Podemos acrescentar: o que assim parece

    100

  • passar-se fora da ideologia (muito precisa-mente, na rua) passa-se de facto na ideologia. O que se passa de facto na ideologia parece portanto passar-se fora dela. por isso que aqueles que esto na ideologia se julgam por definio fora dela: um dos efeitos da ideolo-gia a denegao prtica do carcter ideolgico da ideologia, pela ideologia: a ideologia nunca diz sou ideolgica. preciso estar fora da ideologia, isto , no conhecimento cientfico, para poder dizer: estou na ideologia (caso excepcional) ou (caso geral): estava na ideo-logia. sabido que a acusao de se estar na ideologia s feita relativamente aos outros, e nunca relativamente ao prprio (a menos que se seja verdadeiramente spinozista ou mar-xista, o que neste ponto corresponde exacta-mente mesma posio). 0 que equivale a dizer que a ideologia no tem exterior (a ela), mas ao mesmo tempo que apenas exterior (para a cincia e para a realidade).

    Duzentos anos antes de Marx, Spinoza explicou perfeitamente esta questo; Marx praticou-a, mas sem a explicar pormenorizada-mente. Mas deixemos este ponto, no entanto pesado de consequncias no s tericas como directamente polticas, dado que, por exemplo,

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  • toda a teoria da crtica e da autocrtica, regra de ouro da prtica da luta de classes mar-xista-leninista, dele depende.

    Portanto a ideologia interpela os indiv-duos como sujeitos. Como a ideologia eterna, vamos suprimir a forma da temporalidade na qual representmos o funcionamento da ideolo-gia e afirmar: a ideologia sempre-j interpelou os indivduos como sujeitos, o que nos leva a precisar que os indivduos so sempre-j interpelados pela ideologia como sujeitos, e nos conduz necessariamente a uma ltima propo-sio: os indivduos so sempre-j sujeitos. Portanto, os indivduos so abstractos rela-tivamente aos sujeitos que sempre-j so. Esta proposio pode parecer um paradoxo.

    Que um indivduo seja sempre-j sujeito, mesmo antes de nascer, no entanto a simples realidade, acessvel a cada um e, de maneira nenhuma, um paradoxo. Quando sublinhou o ritual ideolgico de que se rodeia a expectativa de um nascimento, esse acontecimento feliz, Freud mostrou que os indivduos so sempre abstractos relativamente aos sujeitos que eles so sempre-j. Todos sabemos quanto e como uma criana que vai nascer esperada. O que equivale a dizer muito prosaicamente,

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  • se pusermos de lado os sentimentos, isto , as formas da ideologia familiar, paternal/ma-temal/conjugal/fraternal, nas quais a criana que vai nascer esperada: est previamente estabelecido que ter o Nome do Pai, ter portanto uma identidade, e ser insubstituvel. Antes de nascer, a criana portanto sem-pre-j sujeito, designado a s-lo na e pela con-figurao ideolgica familiar especfica em que esperada depois de ter sido concebida. intil dizer que esta configurao ideolgica familiar , na sua unicidade, fortemente estru-turada, e que nesta estrutura implacvel mais ou menos patolgica (supondo que este termo tem um sentido adequado), que o antigo futuro-sujeito deve encontrar o seu lugar, isto , tornar-se o sujeito sexual (rapaz ou rapariga) que j previamente. Compreende-se que esta pr