Althusser - A Querela Do Humanismo II

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    A querela do humanismo (II) *

    Louis Althusser

    Gostaria agora de abordar o exame de um certo nmero de problemas reais que a

    ruptura de Marx com o Humanismo terico colocou em dia. Esse exame no concernir

    apenas Marx, mas, como to logo se compreender, a maioria dos argumentos tericos

    ressaltados pela maioria dos meus crticos.

    O que pode fundamentar essa aproximao ? A retomada, por um certo nmero

    de modernos Humanistas, das prprias noes que Marx teve de afastar do campo de

    sua reflexo como inmeros obstculos epistemolgicos : O Homem, o GneroHumano, o indivduo, o sujeito, etc ... Para cortar qualquer equvoco (a experincia

    prova que, sob tal perspectiva, as precaues tomadas nunca so suficientes), devemos

    estar perfeitamente esclarecidos sobre as bases desse exame, seus ttulos, e seu objeto.

    O exame ao qual vou proceder um exame puramente terico. No proponho

    examinar a natureza e a funo social do Humanismo como ideologia, nem, portanto,

    questionar o direito existncia do Humanismo como ideologia. Proponho-me

    apenas examinar, do ponto-de-vista terico, os ttulos em nome dos quais os idelogosdo Humanismo terico (o jovem Marx, nossos modernos, etc.) pretendemfazercom

    que noes ideolgicas como o Homem, o Gnero Humano, etc. desempenhem um

    papel terico. , portanto, do ponto de vista terico, e apenas desse ponto-de-vista, que

    vou tratar dessas noes como obstculos epistemolgicos diversos.

    Devo acrescentar duas precises importantes.

    Quem diz obstculo avana um conceito que no tem sentido seno em funo

    de uma metfora terica que se pode formular aproximadamente de maneira seguinte. A

    * Este texto foi publicado na Frana aps a morte de Louis Althusser e aparece, agora, pelaprimeira vez em portugus. Crtica Marxista completa, com esta publicao, um trabalho deedio iniciado h dois anos. De fato, embora este texto seja um trabalho que se sustenta sozinho,ele pode ser visto como a segunda parte do texto A querela do humanismo que publicamos emCrtica Marxista n. 9 de resto, foi assim que que a edio francesa das obras pstumas deAltusser situou o texto que agora publicamos. Ver Louis Althussercrits Philosophiques et

    Politiques, Paris, Edies Stock/Imec, 1995. Convm recordar que Althusser examinou, no textoque publicamos no n. 9 de nossa revista, a trajetria da problemtica humanista nas obras dejuventude e de maturidade de Marx. Como j fizemos na parte anterior, conservamos as notas de

    rodap da edio francesa. A traduo de Laurent de Saes.

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    teoria esta engajada em uma via que ela deve percorrer para atingir o conhecimento de

    seu objeto, ou de seus objetos reais. Ora, em dado momento, essa via est obstruda por

    um obstculo, que impede a teoria de avanar na direo de seu objeto, e de atingi-lo. Ametfora do obstculo epistemolgico significa portanto duas coisas :

    1. a teoria choca-se com um obstculo, que o impede de avanar ; 2. Esse obstculo

    obstrui uma via, e esconde objetos que esto de algum modo atrs dele. Afastar o

    obstculo livrar a via, e perceber os objetos que ele escondia. H portanto entre o

    obstculo e a via (ou os objetos) uma relao dupla : uma relao, de um lado, de

    contrariedade, mas tambm, de certo modo, de afinidade, difcil de definir, mas certa.

    No qualquer obstculo que obstrui qualquer via, ou esconde qualquer objeto. A

    histria das teorias o demonstra : H uma certa relao entre o modo de tratar (de

    afastar) o obstculo, portanto a natureza do obstculo, e a via que ele obstrui, ou os

    objetos que ele esconde.

    Nesse comentrio, apenas avano uma posio, que desenvolverei mais tarde, e

    que concerne um dos dois aspectos da funo da ideologia : sua funo de aluso,

    investida em sua funo de iluso. porque ela sempre, de certo modo, alusiva na

    prpria forma da iluso que ela impe, que uma noo ideolgica, obstculo

    epistemolgico do ponto-de-vista terico, possui alguma afinidade com problemas reais

    que ela reconhece desconhecendo-os. No farei nada mais do que aplicar essa teoria da

    aluso-iluso, ou do reconhecimento-desconhecimento da ideologia, aos obstculos

    epistemolgicos dos quais trataremos. Por a poderemos fazer aparecer, quando o caso,

    os problemas tericos reais que dissimulam os obstculos epistemolgicos, afastando-os

    de nossa via.

    Segunda preciso. O trabalho de deslocamento do obstculo ao qual vamos nos

    entregar no , na maioria dos casos, um verdadeiro trabalho de produo terica, mas

    um simples trabalho de repetio crtica. No essencial, e ao menos em princpio, o

    trabalho j est feito, por Marx. Contentar-nos-emos em retom-lo. E se, sobre um

    ponto ou dois, podemos nos encontrar no caso de ter de afastar um obstculo que o

    prprio Marx no tinha tido a ocasio de afastar, no essencial no nos encontraremos na

    situao prpria cincia viva (revelar e afastar um obstculo epistemolgico oculto).

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    Teremos apenas de repetir a operao de Marx, e, se possvel, de comentar algumas de

    suas conseqncias.

    Uma vez bem definidos esses princpios de mtodo, podemos engajar-nos agora

    nesse exame, que vai nos conduzir a identificar os obstculos epistemolgicos que as

    noes do Humanismo terico opem posio e soluo cientfica dos problemas

    reais ; a identificar esses problemas reais, e a pensar as condies tericas de sua

    posio e de sua soluo.

    Tanto diante desses obstculos epistemolgicos quanto diante desses problemas

    reais, nossas anlises vo tratar da maioria das crticas, das objees ou das questes que

    me foram endereadas no debate sobre o Humanismo.

    No tratarei todos os problemas reais em questo na dialtica dos obstculos

    epistemolgicos e dos problemas reais, mas, a grosso modo, aqueles que interessam

    diretamente o materialismo histrico, deixando para mais tarde o essencial dos

    problemas que concernem o materialismo dialtico.

    Sob tal perspectiva, eis o tema geral que vai servir de guia a nossas anlises.

    Os obstculos epistemolgicos essenciais do sistema de base da ideologia do

    Humanismo terico (igual pretenso terica) residem nas noes seguintes, que j

    pudemos encontrar em nossas anlises anteriores :

    1. a noo de Homem (essncia ou natureza do Homem) ;

    2. a noo de espcie humana ou Gnero humano (essncia genrica do homem,

    definido pela conscincia, o corao, a intersubjetividade, etc .) ;

    3. a noo de indivduo concreto, real, etc. ;

    4. a noo de sujeito (subjetividade concreta, sujeito constituinte da relao especular,

    do processo de alienao, da Histria, etc .) ;

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    5. a noo de conscincia (por exemplo, como essncia diferencial da espcie humana,

    ou como essncia do ideolgico) ;

    6. a noo de trabalho (como essncia do homem) ;7. a noo de alienao (como exteriorizao de um Sujeito) ;

    8. a noo de dialtica (enquanto ela implicar a teleologia).

    Estas so noes de base, s quais pode-se facilmente relacionar as variantes

    atuais, cujos traos encontram-se nas objees que foram opostas tese do anti-

    humanismo terico de Marx : por exemplo, as noes derivadas de Subjetividade, de

    Sujeito ou de ato, de criao, de projeto, de transcendncia, de trabalhosocial, etc. [2].

    Lembro que a pretenso cientfica dessas noes ideolgicas consiste em

    apresentar essas noes como o que elas no podem ser : conceitos cientficos,

    permitindo colocar e resolver problemas cientficos no campo terico aberto de uma

    pesquisa cientfica produzindo descobertas. Lembro que a pretenso cientfica dessas

    noes ideolgicas de base uma impostura, que esconde sua funo real : sua funo

    ideolgica anti-cientfica. Lembro que a funo ideolgica dessas noes com pretensestericas consiste no em colocarproblemas reais, portanto em abrir o campo terico no

    qual problemas reais podem ser cientificamente colocados, mas em impor de antemo,

    sob a fico de problemas sem contedo cientifico, solues j prontas, que no so

    solues tericas, mas o simples enunciado terico de solues prticas, sociais,

    existindo no estado de fato consumado, ou a consumar, em uma sociedade de classe, e

    respondendo aos problemas da luta de classe econmica, poltica e ideolgica dessa

    sociedade.

    Esquematicamente, as noes filosficas em questo no so seno a transcrio,

    com pretenses tericas, de um estado de fato existente, dependendo em ltima instncia

    da relao de fora na luta das classes : tomadas de partido ideolgicas, em favor de

    valores polticos, morais e religiosos, e atravs deles, em favor de certas instituies

    polticas, em favor de certos preconceitos da moral e da religio, em favor do preconceito

    da moral e da religio.

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    Longe, portanto, de abrir o campo terico no qual poderiam ser colocados

    problemas reais, essas noes ideolgicas, que por essncia so apenas a transcrio

    terica de solues sociais de fato, tm por funofecharde antemo o campo que elasfingem abrir, portanto proibir toda colocao de um problema real, e, feito isso, toda

    descoberta pertinente. Diderot havia claramente visto a essncia da ideologia quando

    declarava que acreditaria na teologia quando lhe mostrassem suas descobertas.

    Poderamos, sem ironia, pedir a todos os que hoje defendem e assumem essas

    noes ideolgicas deformadas, que se dispusessem a nos mostrar quais so as

    descobertas cientficas que as filosofias do Homem, do Sujeito (sob todas suas

    metamorfoses, incluindo a Fenomenologia), do Ato, do Trabalho, da Praxis, da

    Alienao, etc., trouxeram ou provocaram em qualquer domnio que seja ; quais

    pesquisas suas miraculosas categorias fecundaram. Basta estar um pouco a par do que

    acontece atualmente nas Cincias Humanas, onde essas categorias encontram seu

    domnio de eleio, para constatar no somente a esterilidade total, mas tambm os

    efeitos retrgrados de sua interveno. Longe de fazer avanar as disciplinas s

    quais elas se interessam , essas ideologias filosficas procuram apenas digeri-las e

    coloc-las a servio apologtico das grandes Causas das quais elas so as serviais. a

    razo pela qual a atualizao dos problemas reais no somente a ltima de suas

    preocupaes, mas aquilo que elas tm precisamente por funo proibir.

    Deve-se, portanto, afastar, aps t-los identificado, esses obstculos

    epistemolgicos, para liberar a via que eles obstruem, e liberar em seguida o campo

    terico onde podem ento ser identificados, colocados e examinadosproblemas reais.

    Quais problemas reais podemos descobrir por trs das noes do humanismo

    terico, revogadas na sua impostura e na sua pretenso terica ? Cito os problemas

    essenciais, em correlao com os obstculos epistemolgicos principais que lhes

    correspondem.

    1. Problema da definio da espcie humana ou da diferena especfica que distingue as

    formas de existncia da espcie humana das formas de existncia das espcies

    animais (obstculos : as noes de essncia genrica do homem, de conscincia, etc.)

    ;

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    2. Problema da estrutura das formaes sociais (obstculos : as noes de Homem, de

    essncia genrica do Homem, de corao ou de intersubjetividade, de conscincia,

    de Sujeito, etc.) ;3. Problema da dialtica da histria como processo sem sujeitos (obstculos : as

    noes de Homem, de Gnero, de sujeito, de alienao, de dialtica-teleolgica) ;

    4. Problema das formas da individualidade (obstculos : as noes de Homem, de

    Gnero, de indivduo, de sujeito, de concreto, etc.) ;

    5. Problema da natureza do ideolgico (obstculos : as noes de Homem, de

    conscincia, de subjetividade, etc.).

    Cada um desses problemas reais dito problema real em um sentido preciso,

    que se deve compreender bem.

    Esses problemas no so ditos reais no sentido empirista do termo : como se

    bastasse abrir os olhos para identific-los - como se tivesse, em toda eternidade,

    bastado abrir os olhos para identific-los. A maioria de nossos bons Humanistas no

    cessa de invocar magicamente o real que para eles o concreto, a vida, mais

    rica e mais fervilhante que todos os conceitos, para op-lo religiosamente teoria,que, como cada um sabe, desde uma expresso clebre que, por ter sua verdade, pode

    tambm servir para cobrir todas as dimenses, sempre cinza. No desse real a

    que tratamos, mas do real cientfico, que - Marx o demonstrou com firmeza - no

    tem nada a ver com o concreto ou o real das evidncias da vida cotidiana, dadas e

    impregnadas das evidncias da ideologia.

    Esses problemas so reais porque colocados como reais no campo terico

    conquistado pelo longo trabalho terico que resultou no estado presente do conhecimento

    cientfico. Falamos portanto da realidade terica de problemas tericos, que pertencem

    como tais ao processo de conhecimento, e aparecem como tais apenas no seio do

    processo de conhecimento, em funo do estado histrico dado dos conceitos tericos

    que constituem a problemtica de uma teoria.

    Evidentemente, os problemas (tericos) reais produzidos pelo processo de

    conhecimento concernem realidades que existem independentemente do processo de

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    conhecimento, e pertencem ao processo real ; e essa compatibilizao constitui

    justamente o efeito de conhecimento produzido pelo processo de conhecimento.

    Essa distino explica o que o empirismo incapaz de explicar : transformaodaposio dos problemas, e a transformo dos objetos de conhecimento no processo de

    conhecimento, isto , a apario de novos objetos at a no vistos. O empirismo pensa

    que o conhecimento uma viso : ele incapaz de explicar a apario de novos objetos

    no campo de viso, e portanto o fato de que esses novos objetos no eram vistos

    anteriormente. Ele no v que a viso do que se v na cincia depende do aparelho

    da viso terica, portanto da histria das transformaes da teoria no processo de

    conhecimento. O que chamamos de problemas reais depende portanto da realidade do

    processo de conhecimento, de seu aparelho de viso terica atual, de seus critrios

    tericos de realidade A realidade , no sentido preciso no qual ns a fazemos intervir,

    uma categoria do prprio processo de conhecimento.

    O mesmo ocorre com a categoria de problema, na expresso : problema real.

    Na acepo corrente, o termo problemas designa todo tipo de dificuldade. Todo o

    mundo tem seus problemas - a histria tambm, os partidos comunistas tambm. A

    esse ttulo, todos os problemas so reais, concretos, como tantos obstculos sobre

    os quais chocam-se todos os projetos do mundo. Deve-se recusar esse sentido vago,

    amplo demais, e confuso, para definir a acepo precisa na qual a empregamos.

    Nem toda dificuldade , do ponto-de-vista cientfico, um problema. problema

    cientfico apenas uma dificuldade identificada no campo terico da pesquisa cientfica, e

    suscetvel de ser colocada como problema. A posio de uma dificuldade como

    problema deve ser compreendida em um sentido preciso, que se pode descrever

    utilizando a metfora espacial da posio. Colocar um problema encontrar, no campo

    da teoria existente, o lugar preciso que seu de direito para poder ser pensado e

    tratado como problema. Atribuir-lhe seu lugar , ao mesmo tempo, identific-lo e

    cham-lo pelo seu nome. Atribuio de lugar, identificao e enunciao andam juntas.

    Essas trs operaes conjuntas no so possveis seno pelo recurso aos conceitos

    tericos constitutivos do campo terico existente. Colocar um problema portanto

    atribuir-lhe seu lugar, dar-lhe seu nome, etc ..., pelo confronto da dificuldade assinalada e

    dos conceitos constituindo o campo da teoria que permitia essa descoberta.

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    Esse confronto no resulta sempre na possibilidade de colocar toda dificuldade

    encontrada sob forma de problema : h dificuldades que permanecem no estado de

    dificuldades, que no se pode colocar como problemas : elas subsistem no estado deresduos. Fala-se mais freqentemente nesse caso de problemas sem soluo : a

    expresso no justa. Seria melhor falar de dificuldades que no se pode colocar sob a

    forma de problemas, quando o arsenal dos conceitos cientficos existentes no permite

    ainda a posio rigorosa das dificuldades sob a forma de problemas. Advm tambm

    disso que certos problemas podem ser colocados teoricamente sem que se disponha por

    isso de todos os instrumentos tericos requisitados para produzir sua soluo. So

    problemas (provisoriamente) sem soluo. Advm disso enfim que certos problemas

    so colocados (e mesmo resolvidos) de modo prtico sem serem colocados e

    resolvidos de modo terico : o caso daquilo que podemos chamar de invenes

    prticas, adiantadas com relao s solues (descobertas) tericas correspondentes. A

    prtica poltica oferece-nos vrios exemplos notveis disso.

    Todos esses problemas relativos s condies da posio das dificuldades

    como problemas mereceriam ser, eles mesmos, colocados corretamente : a tarefa da

    filosofia.

    Disse o suficiente para me fazer compreender. Quando falo dos problemas reais

    enumerados que podemos descobrir atrs dos obstculos epistemolgicos das noes da

    ideologia Humanista, fao aluso a problemas cientficos no sentido forte, isto , a

    dificuldades que podem ser o objeto de uma atribuio de lugar, de uma identificao e

    de um enunciado em funo dos conceitos tericos da cincia, no seu estado presente :

    no caso em questo, em funo dos conceitos existentes no materialismo histrico. Cada

    um desses problemas pode portanto constituir, de direito, o objeto de uma teoria.

    Veremos que dentre esses problemas reais, dos quais dei a lista, alguns podem ser

    colocados rigorosamente em condies que permitem enunciar o princpio de sua

    soluo, sob reserva de um srio trabalho de pesquisa terica. Mas outros, em

    contrapartida, podem ser somente colocados de maneira justa, na espera de elementos

    tericos dos quais ainda no dispomos para poder planejar sua soluo.

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    Primeiro problema : a definio da espcie humana. [3]

    Para poder enunciar esse problema, para tomar sua exata medida cientfica, bem

    como para apreciar em seguida sua importncia ideolgica e filosfica, deve-se comearpor afastar o obstculo epistemolgico que probe seu acesso.

    Esse obstculo epistemolgico articula-se a uma noo sobrecarregada de

    determinaes ideolgicas, em razo mesmo da funo que ela continua, aps sculos, a

    assumir nas lutas ideolgicas atuais, a favor ou contra a religio e o idealismo, a favor ou

    contra o materialismo.

    Para conceber bem a natureza desse obstculo epistemolgico no estado em que

    Marx o encontrou, antes de afast-lo de sua via, necessrio voltar a Feuerbach : sua

    concepo do Gnero Humano ou da essncia genrica do Homem.

    A teoria do Gnero humano serve, em Feuerbach, para fundamentar a

    intersubjetividade concreta (o Eu-Tu) que atua em sua obra, ao mesmo tempo, como

    Sujeito transcendental e Sujeito Numenal ; serve para fundamentar a teoria especular do

    Horizonte absoluto onde o homem encontra no seus Objetos os reflexos de sua Essncia ;

    serve para pensar a Histria, distribuindo o Gnero Humano em todos os indivduos

    passados, presentes e futuros - ela portanto o nome desse Futuro do qual o presente

    tem perpetuamente necessidade como suplemento para compensar seu vazio terico ; ela

    serve enfim para representar o corao, a natureza comunitria (do) Homem, que

    desenha de antemo a figura utpica do comunismo. Mas, para voltarmos ao nosso tema,

    a noo de Gnero Humano serve tambm para fundamentar a velha distino

    espiritualista do privilgio do homem sobre todo o reino natural.

    A espcie humana, diz Feuerbach, no uma espcie como as outras, ela deve ser

    dita Gnero, pois ela a espcie de todas as espcies, a espcie universal, no sentido

    estrito do termo, a espcie que, diferentemente das outras (porco-espinho, liblula,

    rododendro) no tem por objeto um mundo finito, uma minscula poro do Universo,

    mas o prprio Universo na sua totalidade. O que um modo desarmante de dar ao

    Horizonte absoluto da espcie humana as dimenses do Universo, subjetividade da

    espcie humana os atributos da objetividade, enfim, de retomar a velha tese da

    especificidade da espcie humana comoRazo.

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    Mas quem diz Razo, diz, naturalmente, na boa tradio idealista, conscincia. A

    espcie humana , para Feuerbach, Gnero, e no simples espcie, porque ela a nica

    espcie no mundo que pode tomar-se a si mesma por objeto. O porco-espinho bem temseus mritos, e seu horizonte (o de seu Umwelt) , mesmo quando atravessa estradas

    [4], bem limitado - mas o pobre animal no possui o privilgio de fazer de sua espcie

    seu objeto. Ele a vive, mas, como se sabe desde Pascal, dela nadasabe. O Homem sabe

    quem ele , pois pertence a um Gnero que tem esse privilgio imediato de fazer de sua

    espcie seu objeto : a conscincia essa presena imediata do Gnero no indivduo.

    Conscincia de todo gnero, se ouso dizer, mas naturalmente (pois est a o ponto

    quente), antes de tudo, conscincia moral (e moral, em Feuerbach, significa religiosa).

    A noo de Gnero Humano tem portanto por funo no, pensar, evidentemente,

    mas declararpura e simplesmente esses Grandes Princpios do Idealismo (podem ser,

    dependendo de sua modalidade, os do idealismo crtico), que em Feuerbach so os do

    idealismo espiritualista (religioso) : o Homem esse ser excepcional que tem por

    atributos o Universal, a Razo, a Conscincia (racional, moral e religiosa) e o Amor.

    Como se v, quando se trata dos Grandes Princpios, est fora de questo detalhar ou

    fornecer provas. Sua Declarao basta ; o Humanismo terico no suspeita que haja a

    um problema. Para ele, so Solues Estabelecidas, em toda eternidade.

    No nos surpreenderemos, nessas condies, com a extrema importncia

    ideolgica da questo de definio da espcie humana, naquilo que a distingue das

    espcies animais. Essa questo serviu durante muito tempo sob formas abertas, e serve

    ainda maciamente sob formas transpostas, como campo de disputa simblica onde se

    decide (na medida em que ele se decide) o destino da ideologia religiosa e moral ; antes

    de tudo o destino da religio, das Instituies (as Igrejas e seus poderes) e dos grandes

    Interesses polticos que a eles esto ligados (no fim das contas, relaes de dominao de

    classe).

    Seria um erro crer que essa questo perdeu algo de sua virulncia ideolgica no

    dia em que a Igreja perdeu poderes, diante do desenvolvimento das cincias da natureza,

    da vida, e do Homem (paleontologia humana, etc.). Simplesmente, a explorao

    ideolgica dessa questo mudou de formas e de ponto de aplicao : na filosofia, de um

    lado, e na cincia, de outro.

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    1.Na Filosofia, essa questo diretamente assumida pelo idealismo espiritualista,

    sob uma forma grosseira e visvel, mesmo quando a filosofia espiritualista tenta integrar,

    interpretando-os em seu proveito, os resultados obtidos pelas cincias da vida. Bastapensar no bergsonismo e no teilhardismo e, j que se deve falar disso, nos ecos que essa

    ideologia espiritualista da matria, da vida e da sociedade pode encontrar at em certos

    meios marxistas. Mas essas formas grosseiras, filosoficamente descredenciadas, no

    devem nos dissimular as formas mais suts sob as quais a prpria filosofia crtica no fez

    mais do que retomar por sua conta a grande Diviso que interessa tantos Interesses, isto ,

    j que dividir reinar, tantos Reinos.

    Sem voltar at a Distino kantiana entre a Natureza e a Liberdade, que domina

    ainda de longe a Fenomenologia, e finalmente se v despejada na problemtica

    heideggeriana do Ser e do Sendo, consideremos antes a forma sob a qual essa herana

    espiritualista retomada pela filosofia das Cincias do Homem. Reencontramo-la em

    pessoa na grande distino idealista entre as cincias da Natureza e as Cincias do

    Homem. Ela se manifesta por exemplo na teoria diltheyana [5] da diferena entre a

    explicao (Cincias da Natureza) e a compreenso (Cincias do Homem). Ela

    manifesta tambm na famosa questo do objeto de direito da dialtica, muito

    precisamente na questo da legitimidade/ilegitimidade de uma Dialtica da Natureza.

    A tese do privilgio exclusivamente humano (ou histrico) da dialtica (cf.

    Sartre, etc [6]) , bem como a tese da especificidade irredutvel da forma de

    intelegibilidade dos fatos humanos (compreenso, descrio fenomenolgica, e outras

    variantes hermenuticas), manifestam a permanncia ideolgica da tomada de partido

    espiritualista em favor do privilgio religioso da Natureza e da Destinao do Homem.

    sobre o fundo dessa luta ideolgica que tomam todo seu sentido a tese materialista

    marxiana da Unidade epistemolgica de todas as Cincias, sejam elas da Natureza ou do

    Homem, e a tese da Dialtica da Natureza.

    A esse nvel, devem-se tomar essas teses pelo que elas so : tomadas de partido

    ideolgicas no domnio da filosofia, isto , ao mesmo tempo, a refutao radical das

    tomadas de partido idealistas-espiritualistas (refutao das virtudes privilegiadas da

    compreenso, da descrio, da hermenutica etc. - refutao da no-dialeticidade

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    da Natureza), e a afirmao de contra-teses, exigindo uma verdadeira converso na

    definio e na posio dos problemas em causa no debate.

    Pudemos ver isso a respeito da Dialtica da Natureza. No um acaso se a teseda Dialtica da Natureza [7] passou de Hegel para o marxismo, e se essa questo , ainda

    hoje, uma das pedras de toque absolutas da tomada de partido materialista em filosofia.

    A tese de uma Dialtica da Natureza era indispensvel teoria hegeliana da Histria,

    como teoria da Histria no antropolgica : ela indica no contexto hegeliano (que

    permanece marcado, na teleologia do processo de alienao, pelo espiritualismo) que a

    dialtica no comea com o Homem, e que a Histria , a esse ttulo, um processo sem

    sujeito. em virtude do privilgio religioso da Espcie Humana que toda dialtica da

    Natureza desaparece em Feuerbach : pela mesma razo terica fundamental, tampouco

    pode haver Dialtica da Natureza nos Manuscrits de 1844, nem em LIdeologie

    Allemande, onde a histria total ou parcialmente antropolgica. No um acaso se a

    tese da Dialtica da Natureza aparece luz do dia no marxismo com a luta de Engels

    contra o espiritualismo de Dhring [8], que restaurava o privilgio religioso da espcie

    humana.

    Mas essa retomada, justificada, da Dialtica da Natureza, que numerosos

    marxistas modernos, e no quaisquer uns , condenam com uma incrvel leveza, no tem

    apenas uma funo ideolgica . Ela est ligada, por razes epistemolgicas que se podem

    certamente perceber, categoria filosfica fundamental sobre a qual se apoia Le Capital

    : a categoria de processo sem sujeito. A afirmao da tese da Dialtica da Natureza

    desempenha portanto no apenas um papel ideolgico (contra o espiritualismo, a favor

    do materialismo) ; ela desempenha tambm um papel epistemolgico positivo : contra a

    categoria de processo de alienao de um sujeito, a favor da categoria de processo sem

    sujeito.

    A tese de uma Dialtica da Natureza concerne menos, na sua forma presente, o

    que existe de dialtico na Natureza (domnio aberto investigao cientfica e

    epistemolgica) do que o que se passa na cincia da Histria, de um lado, e o que se

    passa no ponto de juno das Cincias da Natureza e das Cincias Humanas de outro. A

    esse triplo ttulo, ideolgico, filosfico e cientfico, ela , ainda hoje, e por muito tempo o

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    ser, uma tese mestra do marxismo, sobre a qual nenhuma concesso terica possvel,

    sem cair no idealismo e no espiritualismo.

    Tal o objeto da disputa ideolgica e filosfica do qual a questo da definiodiferencial da espcie humana o campo.

    2. Mas o debate tomou tambm, desde a apario das cincias da vida (em

    particular desde Darwin), a forma de um debate ideolgico-cientfico no prprio terreno

    das cincias, muito precisamente na fronteira da cincia da vida e da cincia da historia.

    Estariam as cincias que tm por objeto essa fronteira, em condies de demonstrar a

    existncia de uma continuidade material, na evoluo das espcies, entre as espcies

    animais e a espcie humana ? Pois o espiritualismo encontra, como se pensa, um

    argumento de peso no que ele considera como o fato de uma descontinuidade

    irredutvel, que ele explora ento sem tardar para fins religiosos. Evidentemente,

    vantajoso tirar dele a possibilidade de usar esse argumento. Donde a importncia

    ideolgica, em funo da luta ideolgica definida pelos termos do espiritualismo

    existente, das descobertas cientficas sobre a natureza da fronteira entre as espcies

    animais e a espcie humana.

    Mas, seria cair em uma estranha ingenuidade crer essa questo resolvida ; o

    espiritualismo estar nesse caso sem recursos. Sabemos que ele at capaz de tomar a

    dianteira, e de digerir toda descoberta cientfica que comprometesse radicalmente, no

    plano cientfico, as histrias da Gnese : veja-se a operao apologtica de Teilhard.

    Na realidade, o espiritualismo, como toda ideologia, no somente se lixa para a cincia,

    mas ele feito para isso : ele tem sempre por funo digeri-la, quaisquer que sejam os

    resultados. No se pe fim a uma ideologia confinando-a no terreno cientfico, pela

    boa razo de que no no terreno cientfico que cresce uma ideologia, mas no terreno

    das relaes de classe, e de seus efeitos. Os dias podem ser radiantes para o

    espiritualismo, mesmo aps Darwin e as recentes descobertas da paleontologia humana

    [9].

    Gostaria de insistir sobre este ponto, pois, quando os marxistas caem nessa

    ingenuidade a respeito dos fundamentos do espiritualismo, no somente eles se enganam

    sobre o alcance dos efeitos ideolgicos definitivos que eles esperam das descobertas

    cientficas sobre a questo crucial da definio da espcie humana, mas, o que muito

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    mais grave, eles nem sempre se protegem da contaminao ideolgica que provocada

    freqentemente pelo contato com as argumentaes ideolgicas do adversrio. Quando

    se obrigado a seguir o adversrio em seu prprio terreno (a ideologia), raro que sesaia ileso, a menos que se esteja fortemente armado do ponto-de-vista terico.

    Precisamente, no nos faltam exemplos recentes nos quais vemos marxistas,

    no satisfeitos de se apoiarem nas Recentes Descobertas cientficas da paleontologia

    humana, usarem-nas para refutar os argumentos do espiritualismo tradicional, sem se dar

    conta de que, ao pr precipitadamente as Recentes Descobertas a servio de uma

    ideologia Humanista, mesmo que batizada marxista, caem infalivelmente no

    espiritualismo moderno.

    Fao aluso seguinte situao precisa. Descobertas recentes questionaram a tese

    darwiniana clssica (escndalo para o qual o espiritualismo alertava) da descendncia

    simiesca do homem. Est, aparentemente, provado que o ancestral do homem no o

    rebento mais evoludo das raas da linhagem simiesca, que o sinal pertinente da

    humanidade no o volume do crebro (tese materialista mecanista, alis ainda infestada

    de traos espiritualistas, pois quem diz crebro, diz razo ou conscincia, etc.).

    Parece, ao contrrio, que o ancestral da linhagem humana seja um ser de

    desenvolvimento cervical modesto, mas que apresenta essa particularidade distintiva de

    se manter reto sobre suas pernas, com as mos livres, e de fabricar ferramentas

    rudimentares em condies que se pode razoavelmente presumir no individuais, mas

    gregrias. V-se desde logo o interesse que essa descoberta pode representar para o

    materialismo histrico. O materialismo histrico tem por objeto a natureza das formas de

    existncia histrica prprias espcie humana : a saber, a estrutura das formaes

    sociais, como condio da produo e da reproduo das condies de produo dos

    meios materiais de existncia dos homens. As Recentes Descobertas permitiriam

    preencher a lacuna separando as sociedades humanas atuais das origens animais da

    espcie humana, j que, desde as origens, a espcie humana estaria constituda de seres

    vivendo junto e produzindo rudimentos de ferramentas.

    Os marxistas no deixaram de relacionar essas descobertas com um texto famoso

    de Engels (Dialtica da Natureza) sobre a distino que separa a espcie humana das

    espcies animais mais evoludas, ou seja, o trabalho, e sobre o papel do trabalho na

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    criao da humanidade da espcie humana [10]. Marx j havia marcado essa diferena

    especfica em Le Capital, retomando a frmula de Franklin definindo o homem como

    um toolmaking animal[11].As Recentes Descobertas so de um incontestvel interesse ideolgico, cientfico

    e filosfico, mas deve-se precisar o sentido e os limites desse interesse.

    Do ponto-de-vista ideolgico, elas tornam mais difcil a tarefa do apologeta

    espiritualista, que no pode mais usar to demagogicamente o argumento da derriso,

    clamando contra o escndalo darwiniano (o smio !) junto ao senso comum,

    lisongeado em sua religio pela idia reconfortante de que o homem, em toda decncia,

    no poderia ser o filho de um macaco. Mas pode-se confiar na ideologia espiritualista :

    ele recair sempre sobre os seus proprios ps, pois, como toda boa ideologia, ele no os

    tem.

    Do ponto de vista cientfico, as Recentes Descobertas so de um interesse

    indiscutvel. Mas elas no contribuem em absolutamente nada para o contedo

    conceitual do materialismo histrico, que no esperou nem Darwin, nem os modernos

    paleontlogos, para constituir-se e desenvolver-se, e que no pode esperar aprender nada,

    sobre os problemas fundamentais do desenvolvimento de sua teoria, de sua revelao.

    Que o homem seja um toolmaking animal, vivendo em grupo, que o trabalho

    transforma a natureza humana, j eraa uma hiptese corrente desde o sculo XVIII,

    mas ela permaneceu totalmente estril : o materialismo histrico dele no se originou.

    Como sabemos, ele foi produzido a partir de outras premissas, bem diferentes. Alis,

    o que esperar da soluo cientfica de um problema-fronteira desse tipo para o

    contedo cientfico de uma disciplina que tem por objeto verdadeiras formaes sociais, e

    no esses grupos que esto verdadeiramente separados das formaes sociais, estudadas

    pelo materialismo histrico, por uma profunda diferena qualitativa ? Problema-fronteira

    : dever-se-ia ainda demonstrar que a fronteira de que se trata realmente a fronteira

    entre as leis biolgicas e ecolgicas, de um lado, e as leis sociais da histria, que

    propriamente fazem a histria humana, de outro ; e no uma fronteira ainda interior ao

    domnio pr-histrico, isto , ainda submetida s leis bio-ecolgicas, e no sociais. Sobre

    esse ponto, a questo est longe de estar resolvida.

    a

    Contrariamente ao que diz Suret-Canale.

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    Do Ponto-de-vista filosfico, essas descobertas tm um interesse muito maior.

    Elas constituem de fato, num ponto preciso, o ato de revogao de uma concepo

    gentica do processo da evoluo, portanto de uma ideologia evolucionista da gnese.Elas propem uma imagem da dialtica totalmente diferente da dialtica teleolgica do

    evolucionismo, que apenas o hegelismo do pobre : uma dialtica de mutaes no

    genticas.

    No entanto, o que vemos ns ? Certos marxistas se jogam sobre essas descobertas

    para fazer delas um uso ideolgico que, mesmo estando dirigido contra certos

    argumentos do espiritualismo, abrem um longo caminho para um novo espiritualismo : o

    do Humanismo terico. A noo sobre a qual se decide a sorte dessa empresa ideolgica

    , seja a noo de trabalho (a essncia do Homem o trabalho), seja a noo, mais

    marxista na aparncia, mas, na verdade equivalente, de trabalho social. A operao

    ideolgica que gostaria de denunciar simples. Ela consiste em dar uma nova largada

    no Humanismo terico, reativando a noo ideolgica de trabalho, sobre o fundo do

    complexo terico seguinte : Essncia do Homem = trabalho (ou trabalho social) =

    criao do Homem pelo Homem = Homem Sujeito da Histria == Histria como

    processo tendo o Homem (ou o trabalho humano) como Sujeito. Tudo se passa como

    se as Recentes Descobertas da paleontologia humana fossem assim o sinal verde para

    uma retomada do Humanismo terico.

    Como os que professam essa ideologia espiritualista no esto necessariamente

    conscientes das implicaes de sua argumentao, e como sua argumentao atribui-se o

    benefcio terico de expresses de ressonncia marxista, indispensvel entrar em alguns

    detalhes.

    Suret-Canale [12] me desculpar por cit-lo. Mas sua argumentao vai nos

    esclarecer, na medida mesmo em que ela pe em relao explcita as descobertas recentes

    e os Manuscrits de 1844.

    Portanto, o que ainda errneo ou insuficiente nos Manuscrits de 1844 o

    carter filosfico (especulativo) do procedimento.

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    Creio que tambm o pensamento de Althusser. Mas sua interpretao parece

    rejeitar como ideolgica, isto , especulativa e errnea, a prpria concepo de uma

    essncia universal do homem, ou, se quiserem, para falar em linguagem comum, de umadefinio geral da espcie humana, seja ela qual for.

    Uma tal rejeio seria injustificada, como toda rejeio teoria geral no

    benefcio exclusivo de tal cincia particular ou de tais leis cientficas tomadas parte

    (procedimento corrente do positivismo ).

    H na definio geral do homem dos Manuscritos de 1844 um fundo

    perfeitamente vlido. Eu diria at que essa definio do homem pelo trabalho social

    uma das descobertas fundamentais de Marx, sem a qual tudo o que se seguir, a teoria

    dos modos de produo, a anlise do capitalismo, no teria sido concebvel. Ele no

    renunciar a ela jamais ; pelo contrrio, ele a desenvolver (por exemplo, no primeiro

    tomo do Capital [13] mostrando o que distingue fundamentalmente o homem do

    animal) : Engels far o mesmo naDialectique de la Nature.

    Poderia eu permitir-me um parntese ? Temos tanto menos razes para

    questionar essa concepo geral quanto mais ela , hoje mesmo, confirmada de modo

    incontestvel pelas descobertas da cincia, da paleontologia humana. Tudo isso bem

    recente. Data dos ltimos dez anos ... (segue um resumo das teses de Leroi-Gourhan)

    ...est demonstrado que o trabalho social, cujo ndice fornecido pela fabricao das

    ferramentas, que foi a causa original da humanizao e no o inverso ...

    Mas voltemos ao nosso tema. A definio, que Marx nos d nosManuscrits de

    1844, confirmada e enriquecida pela cincia, no pode ser colocada no mesmo plano que

    as definies especulativas e errneas (idealistas na raiz) de Feuerbach ou dos filsofos

    do Sculo XVIII que, eles, pretendem deduzir a essncia do homem da aparncia do

    indivduo burgus e pequeno-burgus de seu tempo.

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    Na medida em que a ruptura de Marx com suas concepes anteriores, em 1845,

    concerne essencialmente o carter especulativo de seu procedimento, e no sua

    concepco geral do homem, a terminologia humanismo terico - anti-humanismoterico me parece injustificada. Ela no est no centro do que essencial.

    Deixo de lado a reviso de temas que no se podem defender seriamente. O

    essencial, em uma descoberta cientfica, no a ruptura com a especulao : necessrio

    infinitamente mais do que essa simples preliminar ; caso contrrio, Feuerbach, que

    dedicou sua vida a isso, teria sido um grande sbio. O essencial em uma descoberta

    cientfica o que ela traz de novo no contedo (e no na forma : especulao ou no)

    da teoria. Estou de acordo, mesmo que com reservas extremamente fortes, que vou

    expor, em dizer que a novidade que traz a descoberta de Marx no est desvinculada do

    que pode ter de vlido, uma vez que ela j foi criada e desde que se a critique

    radicalmente, uma expresso como trabalho social. Mas eu no estou absolutamente

    de acordo : 1) em dizer que essa descoberta est contida nos Manuscrits de 1844 ; e 2)

    em designar essa descoberta pela expresso terrivelmente equvoca (quero dizer no

    marxista) de trabalho social. , no entanto, sob condio de tomar essa expresso por

    marxista que se pode defender a tese da descoberta de Marx nos Manuscrits de 1844.

    OsManuscrits de 1844 definem o Homem pelo trabalho (no rastro de Hegel e

    Smith, reunidos sob a bno da teoria de que expus os prolegmenos edificantes.). Esse

    trabalho, os Manuscritos o definem em seu ato originrio, a exteriorizao

    (feuerbachiana) das Foras essenciais do indivduo produtor. Tudo ocorre entre um

    Sujeito (o Homem trabalhando, o operrio) e seus produtos (seu Objeto). Segundo a

    definio feuerbachiana, o indivduo tem por essncia absoluta a espcie ; ele ,

    portanto, na sua prpria essncia, Gnero, e a razo pela qual o seu ato individual ,

    originariamente, um ato genrico. Da a deduo ideolgica, que os Manuscrits nos

    expem com um admirvel vigor, dos efeitos sociais desse ato originrio de

    exteriorizao - manifestao de si da Essncia humana (o indivduo sendo, enquanto

    Homem, de essncia genrica) na produo material do indivduo-operrio :

    propriedade, classes, capital, etc. O adjetivo social, na expresso trabalho social

    forjada por Suret-Canale, designa, nosManuscrits, o efeito, o fenmeno, a manifestao

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    (o em-si-para-si hegeliano) dagenericidade do Homem contida no ato originrio da

    exteriorizao-alienao da essncia do Homem, presente (no) trabalho do operrio (o

    em-si hegeliano). No h nenhuma dvida possvel, quando se l de perto osManuscrits. Tudo o que social designa no a estrutura das condies sociais, e do

    processo de trabalho, ou do processo da valorizao do valor, mas a

    exteriorizao/alienao (atravs de todas as mediaes que se queira) de uma essncia

    originria, a do Homem....

    , alis, a razo pela qual Marx pode escrever essa frmula, perfeitamente

    idealista, sobre o ato da histria universal [14], que seu ato de nascimento,

    originrio no sentido mesmo de toda filosofia da origem, isto , da essncia como

    Sujeito constituinte, onde a origem no significa as origens, isto o comeo, mas a

    essncia constituinte presente, atual, eterna, que produz, no seio de sua profundidade

    constituinte, todos os fenmenos da histria.

    Ampliemos o debate. Se a expresso trabalho social equvoca, porque nela

    o social apenas o adjetivo (nos Manuscrits, o Fenmeno, a exteriorizao, o em-si-

    para-si) de um nome que a sua essncia interior : o trabalho. Ao medir-se as

    consequncias, deve-se declarar nitidamente, mas Deus sabe contra quantas aparncias e

    quantas autoridades, que o conceito de trabalho, no equvoco que tenta constantemente

    instaur-lo como um conceito de base na teoria do materialismo histrico, no um

    conceito marxista. Muito pelo contrrio, o conceito de trabalho , ele prprio, um

    obstculo epistemolgico considervel ao desenvolvimento da teoria marxista.

    Pode-se facilmente perceb-lo a posteriori, consultando todas as ideologias do

    trabalho, todas as interpretaes idealistas do marxismo como filosofia do trabalho, que

    elas retomam os temas dos Manuscrits de 1844, ou que elas tentam constituir uma

    Fenomenologia da praxisa . Mas objetar-se- que se trata a de ideologia filosfica, e

    no do materialismo histrico, que se coloca em um outro terreno, o da cincia.

    Pois bem, falemos do materialismo histrico. Temos ento de constatar que toda

    a crtica de Marx contra a Economia Poltica clssica constitui em fazer implodir o

    conceito de trabalho recebido dos Economistas, em suprimi-lo, e em substitui-lo por

    conceitos novos, onde a palavra trabalhofigura, mas sempre conjuntamente com outras

    a

    Cf., na Itlia, a obra de Enzo Paci.

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    palavras, que conferem ao novo conceito seu sentido distintivo, que no se pode mais

    confundir com o sentido equvoco do simples conceito de trabalho.

    O conceito de trabalho se estilhaa nos seguintes conceitos : processo detrabalho, estrutura das condies sociais do processo de trabalho, fora de trabalho (e

    no trabalho), valor da fora de trabalho (e no do trabalho), trabalho concreto, trabalho

    abstrato, emprego da fora de trabalho, quantidade de trabalho, etc., etc. Todos esses

    estilhaos so apenas as formas precisas pelas quais encontra-se afastado da via da

    cincia da histria o enorme obstculo epistemolgico que constitua, para o prprio

    materialismo histrico, a noo simples, originria, de trabalho. E quando Marx fala,

    em Le Capital, do carter social do trabalho, a palavra trabalho, nessas expresses,

    no remete a um conceito de base, teoricamente primeiro, e que seria portanto, por si s,

    cientifico - o conceito de Trabalho - mas aos conceitos complexos novos dos quais dei

    uma breve enumerao.

    a razo pela qual a expresso de Suret-Canale, trabalho social, equvoca,

    sobretudo pela referncia explcita do autor aos Manuscrits de 1844, quando ele a

    comenta. Essa expresso tem, de fato, a vantagem, sobre outras expresses (como a

    essncia do homem o trabalho), de introduzir o adjetivo social, como ingrediente

    suplementar e corretivo indispensvel para designar a descoberta do trabalho. Mas

    a descoberta de Marx diz justamente respeito natureza do objeto que designado pelo

    adjetivo social : a saber, a sociedade. No se trata de um suplemento, mas do

    essencial. Essa descoberta tem ento por efeitos inverter a ordem substantivo-adjetivo

    que exprime uma relao de essncia-fenmeno perfeitamente adaptada s teses dos

    Manuscrits ; e revelar que, para pensar a natureza do trabalho, deve-se comear por

    pensar a estrutura das condies sociais (relaes sociais) de seu emprego. O trabalho

    torna-se ento fora de trabalho, emprego em um processo de trabalho submetido

    estrutura de relaes sociais, e por ela definido. A diferena especfica, que distingue

    ento as formas de existncia da espcie humana das formas de existncia das espcies

    animais, no o trabalho social, mas a estrutura social da produo e da reproduo

    da existncia das formaes sociais ; isto , as relaes sociais que comandam o emprego

    da fora de trabalho no processo de trabalho, e todos os seus efeitos.

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    V-se ento sobre qual equvoco ideolgico baseia-se todo relanamento do

    Humanismo, toda tentativa que pretenda fundar o carter humanista da teoria marxista

    no fato de que Marx fala das sociedades humanas, e no das sociedades animais. Ouento trata-se de uma banalidade, que dispensa comentrio. A esse ttulo, somos to

    humanistas quando fazemos a teoria da Historia humana quanto seramos ... mecanistas

    quando escrevssemos um tratado de mecnica geral, ou ... religiosos quando

    elaborssemos uma teoria da religio. Isso no srio. Em contrapartida, o que serio,

    mas ento a seriedade de uma impostura, produzir, como conceito diferencial que

    distingue as formas de existncia das sociedades humanas das formas de existncia das

    sociedades animais, um conceito sobre o equvoco, bem como as associaes com que se

    joga a seguir (trabalho, trabalho social) para assentar sobre suas ressonncias morais

    uma interpretao terico-Humanista da cincia ou da filosofia marxista.

    Mais uma vez, eu no quero com isso dizer que o problema das origens da espcie

    humana no seja um problema cientfico, e que ele no interesse, de certa forma, o

    materialismo histrico. Certo que uma teoria cientfica materialista da paleontologia

    humana importa ao materialismo histrico, porque ela suprime toda uma srie de libis

    para as ideologias espiritualistas da histria, que no cessamos de opor ao materialismo

    histrico. Mas o materialismo histrico se constituiu sem contar com a base cientifica

    dos resultados da paleontologia humana moderna ( faz apenas dez anos que ...) e Le

    Capital foi concebido um certo nmero de anos antes da Dialectique de la Nature,

    portanto antes do famoso texto de Engels sobre a diferena que separa o homem do

    macaco [15]. Se ele dispensar isso, porque o seu objeto autnomo vista dos

    resultados da paleontologia humana e pode ser tratado como tal numa forma

    perfeitamente independente.

    Mas deve-se ir ainda mais longe. Se, como nos ser reconhecido , o

    relanamento do Humanismo terico to pouco fundado nas Recentes Descobertas da

    paleontologia quanto podem ser fundadas sobre ela as elucubraes do primeiro Teilhard

    que se apresente (e que no ter dificuldades em digerir, em uma empresa

    apologtica da mesma inspirao, as famosas Descobertas) ; se essa retomada do

    Humanismo terico se explica em ultima instncia por razes que tm tudo a ver com a

    conjuntura poltica, e muito pouco com o rigor cientfico, resta que deve-se ir ao fundo

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    das coisas, e perguntar-se por quais razes, no somente polticas, mas tambm tericas,

    marxistas srios (no estou falando de trues) podem ceder to facilmente a essa

    tentao. Pois estou convencido de que, no seu caso, no se trata apenas de uma questode conjuntura poltica, mas tambm e sobretudo de convico terica.

    Vamos portanto raiz dessa convico, que se unifica com a sua representao

    das exigncias do materialismo.

    Volto, apenas brevemente, s vantagens ideolgicas das Recentes Descobertas.

    Elas tm por funo preencher um vazio na concepo do mundo materialista.

    Preenchendo esse vazio, elas fornecem a prova de que o mundo contnuo, e que

    entre a materialidade da vida e a existncia humana no existe essa descontinuidade da

    transcendncia onde vm se encaixar as palavras mestras da religio, mas a unidade da

    prpria materialidade. Isto importante. Mas deve-se ver que , sob a preocupao de

    preencher um vazio (onde se precipita a ideologia) pode, ainda agora, se introduzir

    uma outra preocupao, que no deixa de estar relacionada com algumas das palavras

    mestras da ideologia religiosa.

    , de fato, bastante notvel que os vazios pelos quais interessa-se bem

    particularmente a ideologia religiosa so os vazios das Origens, que no so seno a

    miudezas do grande Vazio da Origem. A Origem do Homem, a Origem da Vida, etc.,

    so para a ideologia religiosa apenas exemplares, dentre cem outros, da Origem do

    Mundo, isto , da Criao. No nos surpreenderemos, seja dito de passagem, se alguns,

    justamente a propsito das origens do Homem, falarem espontaneamente a linguagem da

    criao [16]. Recusaremos seu exemplo como no pertinente, concordo de bom grado.

    Mas h uma certa maneira de recusar a problemtica da Criao e da Origem que, mesmo

    declarando rejeit-la, permanece a ela submetida.

    Que esse problema das Origens ( da vida, do homem, etc.) assombra

    particularmente numerosos marxistas convencidos de fazer obra filosfica ( e no

    puramente ideolgica), um fato que j pode ser um indcio. Ora, esse indcio to logo

    confirmado pela natureza do princpio terico que eles fazem intervir para resolver

    esses problemas de Origem que eles particularmente afeioam.

    Gostaria de aqui denunciar publicamente a persistncia espontnea (no sentido

    leninista da espontaneidade) de uma concepo que no pode se impedir de associar

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    materialismo e gnese. Nos amplos crculos do materialismo marxista, no apenas entre

    os filsofos, mas tambm (e , de longe, o caso mais freqente) entre cientistas

    marxistas, o materialismo espontaneamente pensado sob e na categoria da gnese. por isso que os problemas de Origem tm uma tal importncia, no prprio seio da

    concepo atualmente dominante de materialismo dialtico. Pois as Origens so o local

    por excelncia onde pode atuar, em toda sua liberdade, o esquema ideolgico da gnese.

    Quem diz gnese, diz, do fundo mesmo de uma tradio ideolgica secular,

    filiao ; diz : possibilidade de seguir passo a passo os efeitos de uma filiao ; diz :

    segurana de que se est lidando com o mesmo indivduo, com a mesma linhagem da

    qual no se pode seguir passo a passo as transformaes. No fundo de toda gnese,

    reside essa necessidade de segurana, de garantia ideolgica fundamental (toda

    ideologia tem, entre outras, a funo de assegurar um efeito de garantia) : jamais

    perder de vista, atravs mesmo de todas as suas transformaes, o Sujeito inicial ; possuir

    a garantia de que se est sempre lidando com o mesmo sujeito. Na Gnese religiosa :

    que se est efetivamente sempre lidando, em tudo o que advm, com um s e mesmo

    sujeito, Deus. Na gnese materialista : que se est efetivamente sempre lidando,

    quaisquer sejam as transformaes, com um s e mesmo Sujeito : a matria. A

    associao do materialismo e do gentico reside assim, no seu fundo, em um esquema

    ideolgico de garantia.

    Esse esquema ideolgico toma espontaneamente a forma do empirismo. Para

    seguir passo a passo as transformaes do Sujeito originrio, nada como fazer passo a

    passo a deduo exaustiva do que dele advm, nas suas prprias transformaes. E

    quando ele se transforma, deve-se poder recompor todos os detalhes do processo que ,

    mesmo transformando-o, conserva do Sujeito originrio a sua Identidade (em todos os

    sentidos do termo). Para no perder de vista o indivduo que assim foi identificado, nada

    como jamais perd-lo de vista. O empirismo adota e vive espontaneamente essa

    singular lgica da filiao na sua prtica da investigao.

    Pretendo que o conceito de gnese, constantemente praticado na

    espontaneidade da ideologia cientfica, um dos maiores obstculos epistemolgicos

    atuais, no somente ao desenvolvimento do materialismo dialtico, mas tambm do

    materialismo histrico, e da maior parte das cincias que dele dependem, como, sem

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    dvida, tambm das cincias da vida e de muitas outras cincias da natureza. Ele

    provoca estragos na psicologia, na histria, etc. Esse conceito constantemente

    praticado, mais jamais foi posto prova quanto aos seus ttulos tericos, tanto esmagador e leve o peso de sua evidncia, isto , seu peso ideolgico.

    Vejam a fora prodigiosa desse preconceito da gnese. No momento mesmo onde

    as Recentes Descobertas impem nos fatos o reconhecimento de que as coisas podem se

    passar, entre o reino animal e o reino humano, em um esquema totalmente diverso

    daquele da dialtica da gnese homem-a-partir-do-macaco (garantia de que, sob

    condio de bem investigar o macaco, pode-se v-lo, sem perd-lo de vista, tornar-se

    homem) ; no momento mesmo em que se torna evidente que se deve, ao contrrio, para

    compreender o homem, partir de um resultado sem gnese (isto , sem filiao onde se

    conserve a identidade de um mesmo sujeito), partir desse ser-que-no--o filho-de-um-

    macaco, que se mantm de p, e cujo crebro (pequeno demais) no tampouco o

    crebro filho-dos-crebros-de-macacos (demasiadamente grande para que os

    preconceitos de gnese possam funcionar comodamente nesse encolhimento indecente),

    nesse mesmo momento, precipitamo-nos dentro da gnese, no interior do reino humano.

    que enfim encontrou-se o culpado, o Indivduo originrio ; ele foi identificado, ele

    fabrica ferramentas vagas, ele vive em grupo : bem ele. Ns o temos. Basta segui-

    lo, passo a passo, no perd-lo de vista, tendo a certeza de encontrar, na ponta dessa

    perseguio, os Manuscrits de 1844 e Le Capital. No menos. E ento, saber-se-

    afinal do que feita essa coisa, evidentemente ainda totalmente indefinida at as

    Recentes Descobertas, que uma sociedade e a histria ; saber-se- afinal, alm disso, de

    que feito, no fundo do fundo, Le Capital, bem como o marxismo, e saber-se-, afinal,

    pela mesma ocasio (no ser de pequeno proveito) o que pensar do Humanismo e do

    Antihumanismo terico.

    Perdoem-me por ter imprimido a alguma vivacidade. Seria e ser necessrio

    uma tempestade para sacudir esse preconceito inextirpvel da gnese. Naturalmente, eu

    sei o que me espera. Bons espritos apressaram-se em diz-lo [17], no somente

    filsofos, cuja profisso tratar da gnese (transcendental), mas infelizmente tambm

    historiadores, que no entanto, lidam, eles, com coisa diversa das abstraes, e que no

    cessam de trabalhar sobre resultados, que so o produto de um processo sem sujeito (

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    isto , todo o contrrio de uma gnese, cujo conceito esmagado pelos preconceitos

    ideolgicos do Sujeito). Est claro : eu sacrifico a gnese s estruturas. Eu sou

    bom para esse sempiterno processo.No responderei, pois, deve-se deixar aos acusadores a sua oportunidade ; afinal,

    o Homem tambm pode refletir. Mas, j que se trata justamente de macaco e de homem,

    e para ficar no campo das ondas de ressonncia terica dessa pedra no charco ideolgico

    que a relao macaco-homem, tomarei a liberdade de usar, na minha vez (uma vez no

    costume), uma das Clebres Citaes : essa pequena frase to clara de Marx que nos

    diz que no o macaco a chave para a inteligncia do homem, mas que o homem a

    chave para a inteligncia do macaco [18 ].

    Naturalmente, nossos bons materialistas fizeram dela, durante dcadas, todo o uso

    geneticista que quiseram. Marx queria dizer, no mesmo, assim como Hegel, que se v

    no homem o desenvolvimento do que est em germe no macaco ; o que, desde o

    macaco, era o Homem do macaco. Simples questo de comodidade de leitura : como em

    Plato, h textos em pequenas letras, difceis, e textos em grandes letras : para os mopes.

    bem conhecido : quando se confia uma perseguio a um mope, mais vale lhe mandar

    seguir um grande ou um gordo. A frase de Marx , em sumo, a prova ao contrrio da

    filiao-investigao : j que no homem, no se compreende jamais seno o futuro do

    prprio homem no seu pai-macaco.

    Em um outro texto [19], apresentei a idia de que essa pequena frase to clara

    era difcil de situar no contexto da Contribution e do Capital, a menos que se a entenda

    em um sentido totalmente diverso, no hstoricista, portanto no geneticista. Mas deve-se

    sempre dizer as coisas vrias vezes, segundo a necessidade, variando o discurso. Falei

    ento, antes de tudo, no texto em questo, do significado epistemolgico da pequena

    frase. A saber, que o conhecimento comea sempre por um resultado, e que o

    conhecimento do resultado (o conhecimento dos mecanismos da sociedade capitalista),

    na medida em que ele deve comear por ser o conhecimento de resultado, bastante

    complexo, dava com isso as chaves necessrias ao conhecimento de outros resultados,

    anteriores, mais simples (as sociedades pr-capitalistas). Para mudar de tom, falemos

    portanto agora dessa pequena frase sob a tica do resultado real, enquanto tal, isto ,

    falemos da dialtica.

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    Penso que o texto de Marx significa que o capitalismo um resultado, e, como

    todo resultado, o resultado de um processo histrico. Em tudo que podemos escrever,

    jamais tratou-se de outra coisa do que a Historia, que Eles chamam, na sua linguagem,gnese. Ora, o capitalismo o resultado de um processo que no tem a forma de uma

    gnese. Resultado de que ? Marx o diz repetidamente : de um processo de encontro de

    vrios elementos definidos, indispensveis, e distintos, envolvidos no processo histrico

    anterior por diferentes genealogias independentes umas das outras, e podendo, alis,

    remeter a vrias origens possveis : acumulao de capital-moeda, fora de trabalho

    livre, invenes tcnicas, etc. Para dizer as coisas claramente, o capitalismo no o

    resultado de uma gnese que remeteria ao modo de produo feudal como sua origem,

    ao seu em-si, ao seu germe, etc. mas de um processo complexo produzindo, a um

    dado momento, o encontro de um certo nmero de elementos prprios a constitu-lo no

    seu prprio encontro. Contrariamente iluso evolucionista, hegeliana, ou geneticista,

    um modo de produo no contm nele prprio, em potncia, em germe, em-si,

    o modo de produo que vai suced-lo. Sem o que no se compreenderia porque

    tantos exemplos de formaes sociais reguladas pelo modo de produo feudal no

    conseguiram dar a luz ao modo de produo capitalista.

    Evidentemente, como sempre acontecem coisas, e sobretudo, como elas sempre

    j aconteceram, o semi-historiador pode facilmente se oferecer o prazer terico de

    segui-las passo a passo, e de tomar, em uma boa religio da gnese, essa sucesso por

    uma filiao. Como j dizia Voltaire, se todos os filhos tm um pai, nem todos os pais

    tm filhos. Mas Voltaire permanecia, na sua crtica, tributrio de uma dialtica da

    filiao que, certamente, no deixa de estar relacionada com a ideologia da famlia, muito

    precisamente [ ...] a ideologia jurdica familiar da sucesso (entendam : do direito

    de sucesso). Deve-se ir muito mais longe, e dizer que os Filhos que contam no processo

    da histria no tm pai, pois eles precisam de muitos pais, os quais no so, eles

    prprios, filhos de um s pai (sem o que j estaramos dando buscas) mas de vrios, etc.

    No penso que a histria se perca nesse processo. Perde-se a certamente a

    gnese, mas uma boa perda. Perde-se tambm as evidncias do empirismo histrico,

    mas uma excelente perda. Ganha-se simplesmente a possibilidade de fazer a

    inteligncia da Histria, o que apresenta, de qualquer forma, algumas vantagens. E

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    ganha-se tambm algumas consideraes importantes sobre a dialtica, das quais

    exporemos os rudimentos algum dia.

    Volto ao nosso macaco e ao nosso homem. Se o homem pode ser a chave domacaco, , acima de tudo, porque o que, partindo do homem, ns podemos compreender

    do macaco o modo pelo qual um macaco pode ter sido produzido, quando se

    compreende que o homem no o filho do macaco. assim que eu interpretarei a

    pequena frase de Marx. A inteligncia do homem d essa chave para a inteligncia do

    macaco, nem o macaco nem o homem sendo mais o resultado de uma gnese, isto , de

    uma filiao a partir de um Sujeito identificado na origem e garantido pela origem.

    Podemos apostar mesmo que aqueles que se precipitam na ideologia da gnese das

    sociedades humanas das quais fala Le Capital, a partir da maravilha identificada pelas

    Recentes Descobertas, expem-se a alguns infortnios, por quererem colocar em

    investigao essa jovem maravilha. A dialtica dos processos (que no so gneses)

    reservar-lhes-, sem dvida, algumas surpresas, do tipo daquelas que j dilacelaram,

    teoricamente falando, todos aqueles que comearam a colocar em investigao um modo

    de produo para seguir passo a passo sua transformao em um outro modo de

    produo, em um parto sem dor (ou com).

    Eis onde se deve, penso, chegar, para cercar em seu ltimo refgio o argumento

    ideolgico que sustenta, para os prprios marxistas srios, um tipo de raciocnio que

    outros, tambm marxistas, mas no srios, apressam-se em transformar em Defesa

    espiritualista do Humanismo marxista. Desculpo-me por ter entrado nesse detalhe. Mas

    a experincia poltica (na falta de outra : mas ela um excelente mestre sob essa

    perspectiva) ensina que no possvel, por um s instante, participar da ideologia. Marx

    bem o lembrava na Critique du Programme de Gotha : pode-se participar, o que

    chamamos de compromisso, da poltica, pode-se fazer a unidade no terreno da poltica -

    mas jamais se pode participar da ideologia, ou fazer a unidade com a ideologia. Ele

    acrescentava que particularmente recomendado respeitar, sem nenhuma concesso,

    essa regra absoluta, sobretudo nos tempos onde a Unidade poltica est na ordem do dia.

    Que se consigne em ata.

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    Esse texto de Marx, a social-democracia alem, para no atrapalhar a unidade

    com os Lassalianos, para no mago-los, enterrou-o durante quinze anos. Em nome da

    Unidade [20].

    Notas

    1. Contrariamente primeira parte, essa segunda parte no possui nenhum ttulo. Averso datilografada mais recente no contm alis aqui a indicao de uma segunda

    parte, mas um simples trao horizontal aps os desenvolvimentos precedentes.

    Introduzimos esta subdiviso baseando-nos em uma verso mais antiga do texto, a

    nica a ter sido datilografada pelo prprio Althusser.

    2. Uma nota, jamais redigida, estava aqui inicialmente prevista por Althusser, ela visavaprovavelmente citar alguns extratos dos textos incriminados. Ns nos contentaremos

    com um exemplo : A transcendncia, se tomamos no sentido estritamente

    etimolgico - elevar-se alm de alguma coisa - a palavra aplicada ao homem que

    ultrapassa a natureza, e, ao mesmo tempo, ultrapassa constantemente a si mesmo,

    ultrapassa a sua prpria natureza, tem um significado perfeitamente aceitvel. Estou

    persuadido de que, efetivamente, a concepo da transcendncia, para os cristos, a

    tomada de conscincia sob uma forma mistificada da vocao do homem de

    ultrapassar a natureza ... questo dos cristos (fosse ela mistificada na prpria

    maneira de se coloc-la), podemos trazer uma resposta vlida. Essa teoria da

    transcendncia, ela j est feita : toda a herana do marxismo j isso, mesmo que

    falte algo a acrescentar. (Jean Suret-Canale, O marxismo , ao mesmo tempo,

    cincia e humanismo, interveno no Comit central de Argenteuil do PCF, Cahiers

    du communisme, No 516, junho de 1966, pp. 245 - 261).

    3. Dos seis problemas anunciados, apenas o primeiro problema ser tratado.Althusser julgar, entretanto, o seu texto suficientemente avanado para novamente

    faze-lo datilografar por uma secretria.

    4. Uma nota, jamais redigida, estava aqui inicialmente prevista por Althusser.

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    5. Cf. em particular Wilhelm Dilthey, Introduction ltude des sciences humaines(traduo francesa, Paris, PUF, 1942) cujo Primeiro Livro foi extensamente anotado

    por Althusser.6. Relembremos que Althusser foi atacado, sobre esse ponto por Merleau-Ponty

    (Humanisme et Terreur, Gallimard, 1955), p. 87, nota : De Engels e de Pelkhanov,

    passa-se facilmente perspectiva da ortodoxia contempornea : a dialtica no um

    gnero de conhecimento, um conjunto de constataes, ela no vlida seno no seu

    contedo geral (interao, desenvolvimento, saltos qualitativos, contradies) ( L.

    Althusser : Nota sobre o Materialismo dialtico, Revue de lEnseignement

    philosophique, outubro-novembro de 1953, p. 12) Essa mistura de dialtica e de

    esprito positivo transporta para a natureza o jeito de ser do homem : exatamente a

    magia.

    7. Uma nota sobre Kojve, jamais redigida, estava aqui prevista.8. Engels, Anti-Dhring, 1877.

    9. Uma nota estava aqui prevista. Althusser parece referir-se, particularmente, aos

    trabalhos de Andr Leroi-Gourhan (Le Geste et la Parole, Paris, Albin Michel,

    1965).

    10. Cf. por exemplo : O trabalho, dizem os economistas, a fonte de toda riqueza. Ele

    o efetivamente ... conjuntamente com a natureza que lhe fornece a matria que ele

    transforma em riqueza. Mas ele infinitamente mais ainda. Ele a condio

    fundamental primeira de toda vida humana, e ele o a tal ponto que, em um certo

    sentido, devemos dizer : o trabalho criou o prprio homem (Engels, Dialectique de

    la nature, traduo francesa, ditions sociales, 1952, p. 171).

    11.Le Capital, Editions Sociales, 1950, livro I, tomo I, p. 182.

    12.Interveno citada no Comit central de Argenteuil do PCF.

    13.Uma nota, jamais redigida, estava aqui prevista.

    14.Manuscrits de 1844, op cit., pp. 128 e 138. Essa frmula citada

    elogiosamente no artigo de Jean Suret-Canale, analisado por Althusser.

    15.Engels, O papel do trabalho na transformao do macaco em homem,

    Dialectique de la nature, Editions sociales, 1952, pp. 171-183.

    16.Uma nota, jamais redigida, estava aqui prevista.

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    17. Uma nota, jamais redigida, estava aqui prevista.

    18. Marx, Introduction la critique de lEconomie politique, in Contribution la

    critique de lconomie politique Editions sociales, 1957, p. 169.

    19. Uma nota estava aqui inicialmente prevista. Tratava-se, muito provavelmente, de

    uma nota a Lire le Capital, tomo II, p. 81sqq.

    20. O texto termina aqui, provavelmente inacabado.