Algumas reflexões sobre o conceito de sociedade civil
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Augusto Guzzo Revista Acadêmica
Galileu do Amaral FIDÉLIS*
Algumas reflexões sobre o conceito de sociedade civil
Resumo
O limite da pretensão deste artigo é contribuir para a discussão do conceito de sociedade civil. Como é sabido, nos dias de hoje proliferam as chamadas "ONGs", que se intitulam também de "organizações da sociedade civil", cuja importância é cada vez mais significativa. No entanto, o conceito de sociedade civil encerra algumas ambigüidades, como este pequeno "paper" procura apontar.
Abstract
This article intcnds contributing to the discussion of ávil society concept. As we knou', nowadays, nmltiJ)ly thc called "ONGS which ulreudy entitle themselt'es of civil society organizations which importance is more and more St[.,rnificant. Howet·er, thc civil society cuncept contaíns some ambrgtLities as the short tenn paper reaches to appoint.
Um dos aspectos mais marcantes das democracias modernas 1 é a proliferação de organizações da chamada sociedade civil. São as ONGs (Organizações Não-Governamentais) sindicatos, clubes de mães, sociedades amigos de bairro, sociedades protetoras de animais, associações de deficientes, de homossexuais etc. Muitas ONGs têm, inclusive, caráter internacional, dirigindo-se, principalmente (mas não exclusivamente), para a preservação do meio-ambiente, e contam com volumosos recursos financeiros. Estas e .putras tantas entidades parecem querer ocupar espaços "vazios" do Estado, ou sociedade política. Isto nos coloca de frente com a
seguinte questão: pode-se pensar sociedade civil descalada de sociedade política? Ou ainda, precedendo a questão anterior, o que vem a ser sociedade civil?
A literatura que aborda a questão do conceito de sociedade civil não mostra unanimidade dos autores. Whitehead, em seu Jogando boliche no Bronx: os interstícios entre a sociedade civil e política, observa a diferença de significado em Hobbes, Hegel, Marx e Tocqueville, que consideramos importante discutir.
Quando Hobbes, no Capítulo 5 do seu Leviatã, começa a se referir ao conceito de sociedade civil, o que ele tinha em mente, na realidade, eram os conceitos de cidade ou de união. Os seus pressupostos eram de que os indivíduos tinham, de alguma maneira, para manter a paz entre eles, decidido que abririam mão de suas vontades individuais, mediante um contrato, em favor de uma vontade única. No entanto, acentua que "Hobbes não acreditava que a criação de uma sociedade civil poderia em algum momento abolir os medos e perigos subjacentes ao que ele denominava de o estado de natureza ... A liberdade e a interação social tomadas possíveis pela sociedade civil estariam permanentemente em risco pela possibilidade de regressão para uma comunidade não social" .2
A dimensão do trabalho está presente na formulação hegeliana de sociedade civil. O que lhe dá embasamento são as guildas, as corporações e comunidade, incluindo associações voluntárias e não voluntárias. É na sociedade civil que os indivíduos vão buscar materializar seus interesses, que estão inseridos num sistema de direitos e obrigações, cuja regulação é cometida a uma autori-
*Mestre em Ciências Políticas pela USP. Professor Titular do CEA da PUCCAMP. Professor das Faculdades Integradas "Campos Salles". 1 Ou Poliarquias, se utilizarmos a terminologia de Robert Dahl, caracterizando-as como regimes constitucionais e potencialmente democráticos, frágeis e estabelecidos em período recente. 2 WHITEHEAD, Laurence, op. cit., p.3.
dade pública, o que implica na existência de um judiciário probo e imparcial. No entanto, como Hobbes, Hegel também se preocupava com a possibilidade de regressão da sociedade civil, pela autodestruição, se não houvesse um forte constrangimento normativo. "Segundo essa visão, o desenvolvimento não controlado da divisão do trabalho poderia gerar uma parte da sociedade que fosse tanto material como espiritualmente empobrecida pela monotonia e estreiteza de sua ação .... Apenas a incorporação da sociedade civil em uma comunidade mais ampla (para Hegel a comunidade política) poderia conter o seu potencial auto-destrutivo. Mas é claro que nem Hegel nem Hobes estavam sugerindo que a autoridade política necessária para regular a sociedade civil deveria ser democrática. "3
Marx entende o conceito de sociedade civil dentro de um espectro mais amplo das relações entre superestrutura e infraestrutura; para ele, sociedade civil é o conjunto das relações de produção e de troca. Assim, a divisão do trabalho e a sociedade civil "burguesa" resultante se tomaram os motores da mudança social, enquanto os domínios político, ideológico e normativo se tomaram meras conseqüências dela subordinados. Este momento ativo é, para Marx, infraestrutura! e levaria a uma mudança dialética de substituição da sociedade capitalista por uma sociedade socialista, verdadeiramente democrática.
Ao contrário dos anteriores, Tocqueville considerava sociedade civil como o conjunto das associações que se constituem sem terem como referência finalidades políticas, incluindo aí as atividades comerciais, educacionais e religiosas. Para o pensador francês, a sociedade civil preenche o vazio provocado pela não existência de uma aristoc_r.acia. De uma maneira arguta observa, em um relatório feito em 1831, sobre o sistema prisional americano, as contradições entre os organismos estatais e as organizações sociais e considera que estas são substâncias ao regime democrático; "pela primeira vez, na concepção
3 Idem, p.4. 4 Idem, p.S.
de Tocqueville, a sociedade civil e a democracia foram vistas como inerentemente relacionadas entre si, enquanto para os autores anteriores elas eram vistas como princípios da organização social desconectados e na verdade potencialmente antagónicos. "4
Podemos ainda acrescentar a conceituação amarga de Rousseau sobre sociedade civil, no seu famoso Discurso sobre a origem da desigualdade: "O primeiro homem a quem ocorreu pensar e dizer "isto é meu", e encontrou gente suficientemente ingênua para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos teriam sido evitados ao gênero humano, se aquele, arrancando as estacas, tivesse gritado: Não, impostor!"
Outro autor importante a trabalhar o conceito de sociedade civil foi Gramsci. Para ele, sociedade civil é o conjunto das relações sociais práticas e ideológicas - todo tecido social infinitamente variado, todo o conteúdo humano de uma determinada sociedade - que se instaura e vive sobre a base de relações de produção determinadas. Ela compreende, simultaneamente, os comportamentos do homo oeconomicus e do homo ethicopoliticus. A sociedade civil é o objeto, a matéria, e o lugar das atividades superestruturais que se manifestam de maneira diferente, segundo os níveis e os momentos por meio dos aparelhos hegemónicos, de um lado, e dos aparelhos coercitivos, de outro. Assim, como descreve em sua Carta a Tatiana, Formação dos intelectuais e Cadernos do cárcere, a sociedade civil é, a um tempo, o aparelho de hegemonia e o lugar onde se exerce esta hegemonia ético-política. Desta maneira, a sociedade civil compreende, de um lado, o conjunto das necessidades e os modos de comportamento do homo oeconomicus e, de outro, o conjunto das necessidades e dos comportamentos do homo ethico-politicus. Para Gramsci, os conceitos de hegemonia e de sociedade civil aparecem como momentos importantes da teoria das superestruturas, que é, na verdade, uma teoria das relações entre
infraestrutura e superestrutura. Gramsci coloca os partidos e os sindicatos entre os organismos privados da sociedade civil e considera que o surgimento desses últimos provocou uma expressiva mudança nas relações de força existentes nela. O conceito gramsciano deve ser entendido, conforme já foi acentuado, considerando a unidade da infraestrutura e das superestruturas e, nessa ordem, a não descalagem entre sociedade civil e sociedade política.
Numa linha diferente, Habermas, falando sobre a concepção republicana do processo democrático, escreve (Três modelos normativos de democracia): "Para a prática da autodeterminação cidadã, supõe-se uma base de sociedade civil autônoma, independente tanto da administração pública como do intercâmbio privado, que protegeria a comunicação política da absorção pelo aparato estatal ou da assimilação à estrutura do mercado. Na concepção republicana, o espaço público e político e a sociedade civil como sua infraestrutura assumem um significado estratégico. Eles têm a função de garantir a força integradora e a autonomia da prática de entendimento entre os cidadãos. A esse desacoplamento entre comunicação política e sociedade econômica corresponde um reacoplamento entre o poder administrativo e o poder comunicativo que emana da formação da opinião e da vontade política. "5 Assim, como base social dos espaços públicos autônomos, a sociedade civil deve ser considerada distintamente do universo da ação econômica e do espaço da administração pública, abrangendo associações voluntárias que percebem e captam as situações turbulentas da vida social, procurando levá-las para a esfera pública e, através de pressão, conseguir formar a chamada "vontade política" para encaminhar as formas de solução.
Habermas vê, a,inda, a necessidade de estabelecer auto-limites à ação dos atores da sociedade civil. Para que tal ocorra, torna-se necessária a satisfação de algumas condições, tais como: as organizações da sociedade civil não podem se transformar em estruturas formalizadas, dominadas por rituais burocráticos; as organizações da socie-
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dade civil não podem assumir as funções cometidas ao Estado, uma vez que não dispõem de poder político nem administrativo. Finalmente, organizações da sociedade civil somente são pertinentes num contexto social que seja caracterizado pela existência de uma cultura política fundada na liberdade e por um mínimo de garantia de intocabilidade da esfera privada. (COSTA, p.60/61).
Diferente da concepção gramsciana, Habermas não considera sindicatos e partidos como atores da sociedade civil, uma vez que procuram, na esfera pública, representar reivindicações de grupos específicos, ao passo que os atores da sociedade civil procuram problematizar emergências do cotidiano. Outras diferenças são observadas nos aspectos comunicativos, pois, ao passo que os demais atores procuram ocupar espaços políticos, os pertencentes à sociedade civil procuram utilizá-los para convencer a sociedade que suas propostas são corretas. Além disso, como dependem da esfera pública para influir sobre o processo político, procuram reforçá-la e ampliar suas fronteiras, com a incorporação de novas minorias e a criação de novos meios comunicativos.
Todas essas considerações deixam claro que, a despeito das divergências conceituais, a sociedade civil ocupa um espaço importante na teoria política. Claus Offe chega a estabelecer a diferença entre um estado "grande" e um estado "forte", tomando por base a importância relativa da sociedade civil: "De qualquer modo, parece ser de fundamental importância ter em mente a diferença entre um grande estado (medido em termos do tamanho do seu orçamento ou do número de seus funcionários) e um estado forte, isto é, um estado cuja forma de governar tem um impacto significativo sobre o nível e a distribuição de chances de vida na sociedade civil (grifo nosso). Pode provavelmente acontecer que um estado seja superdimensionado e subeficaz ao mesmo tempo, e que os bens por ele produzidos não sejam bens públicos, mas bens de categoria (ou "clube") usufruídos pela assim chamada "burguesia estatal", que pode ser considerada tanto na versão militar
5 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. São Paulo: Lua Nova, n. 36, 1995.
quanto na civil. No entanto, estados "grandes" freqüentemente pretendem ser estados "fortes". Em vez de atender à sociedade civil em todo sentido tangível, eles exercem controles oligárquicos sobre os atares da sociedade civil."6 (OFFE, p.14)
Para Adam Przeworski, sociedade civil é um conceito fundamental entre os defensores da chamada "democracia participativa". Entre estes, a proliferação e o desenvolvimento das organizações da sociedade civil são condicionantes fundamentais para a consolidação democrática. Mas, quais as características destas organizações? Whitehead menciona a formulação de Philippe Schmitter que as considera como "um conjunto ou sistema de grupos auto-organizados", os quais (1) são relativamente independentes tanto das autoridades públicas quanto das unidades privadas de produção e reprodução, isso é, firmas e famílias; (2) são capazes de deliberar sobre e realizar ações coletivas na defesa/promoção de seus interesses ou paixões; (3) não tentam substituir nem os agentes estatais nem os (re)produtores privados ou aceitar responsabilidades de governar a comunidade política como um todo; ( 4) não aceitam agir com regras preestabelecidas de uma natureza "civil" ou legal. E, continuando, "sociedade civil, conseqüentemente, não é uma, propriedade simples, mas composta. Ela se apóia em quatro condições ou normas: (1) autonomia dual; (2) ação coletiva; (3) não usurpação; (4) civilidade". Essas condições devem ser consideradas cumulativamente, embora nem todas tenham a mesma intensidade; no entanto, sua não persistência denota a debilidade ou mesmo ausência de sociedade civil.
É importante destacar que a sociedade civil vive sob constante turbulência e está sujeita a constrangimentos, quer da estrutura política organizada, que~ dos vazios sociais, que desenvolvem formas patológicas de associações, como, por exemplo, a máfia, o que Whitehead chama de "fontes persistentes e substanciais de incivilidade". Estas últimas podem "contaminar" organizações da sociedade civil, desviando-as de suas
finalidades e levando à dissipação das condições propostas por Schmitter como necessárias para a caracterização de uma sociedade civil. Poderíamos utilizar, como exemplo ilustrativo dessa contaminação, as relações esdrúxulas entre Escolas de Samba cariocas e a contravenção organizada, representada pelos "bicheiros". Por outro lado, o Estado, ou sociedade política procura utilizar mecanismos de regulamentação para "enquadrar" as organizações da sociedade civil, como acontece, por exemplo, com a Lei federal nº 963 7/98 conhecida como "Lei Bresser". Esta lei tem encontrado grande resistência das ONGs (chamadas na Lei de OSs- Organizações Sociais) que vêm nela uma tentativa de burocratizar estas organizações, mantendo-as sob tutela do Estado, estabelecendo a criação de conselhos de administração dessas entidades, que negociarão com a União contratos de gestão de recursos (património, verbas e servidores públicos federais). Todavia, estes conselhos de administração serão constituídos por membros indicados pela própria União, membros indicados por outras OSs e apenas 10% dos membros da própria OS em que se efetua a negociação. Em sentido inverso, podem ser observados inúmeros momentos em que, na sua interação com a sociedade política, as organizações da sociedade civil intervêm, subvertendo suas estruturas, como aconteceu com o Sindicato Solidariedade na Polónia comunista.
Conclusão
O conceito de sociedade civil percorre várias vertentes do pensamento político e é utilizado de maneira, por vezes, totalmente discrepantes. Gramsci, por exemplo, considera que sociedade civil e sociedade política são dimensões da superestrutura; já os defensores da chamada democracia participativa estabelecem uma total dissociação entre esses conceitos. Whitehead considera que não há nenhuma congruência entre so-
6 OFFE, Claus. Present Historical transitions and some basic design options for societal institutions. Seminário Sociedade e Reforma do Estado, 1998. Mimeografado.
ciedade civil e sociedade política. Uma constatação importante é a ênfase que se
dá às organizações que brotam voluntariamente da vida social, parecendo querer ocupar espaços vazios deixados pelo Estado e mesmo querendo influir na formulação de políticas públicas. Atribui-se a estas, chamadas organizações da sociedade civil, o contrapeso necessário entre a vida societária e o poder estatal. Quanto mais atuantes forem essas organi
zações, mais sólida é a vida democrática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Augusto Guzzo Revista Acadêmica
Algumas questões, no entanto, se impõem: se sociedade política e sociedade civil correspondem a momentos conceituais diferentes, a exacerbação valorativa dessa última não corresponde a uma debilidade da outra, levando, inclusive, ao enfraquecimento do processo democrático, uma vez que esta tem um caráter de inclusividade e aquela de exclusão? No mesmo sentido, não pode favorecer o desenvolvimento dos espaços de incivilidade? São questões que ficam para uma reflexão posterior.
COSTA, Sérgio. A democracia e a dinâmica da esfera pública. São Paulo: Lua Nova, n. 36, 1995. COOLINGWOOD, R.G. The new leviathan: on man, society, civilization and barbarism. Oxford: Claredon Press, 1992. GRAMSCI, Antonio. Antologia. México: Siglo XXI Editores, 1970. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. São Paulo: Lua Nova, n.36, 1995. OFFE, Claus. Present historical transitions and some basic design options for societal institutions. ln: SEMINÁRIO SOCIEDADE E REFORMA DO ESTADO, 1998. Mimeografado. PRZEWORSKI, Adam. The state and the citizen. ln: SEMINÁRIO DE REFORMA DO ESTADO, 1998. Mimeografado. WHITEHEAD, Laurence. Jogando boliche no Bronx: os interstícios entre a sociedade civil e política. ln: SEMINÁRIO DE REFORMA DO ESTADO, 1998. Mimeografado.