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COLEc;:Ao TOPICOS

Bacbelard, G. - A POETICA DO DEVANEIO

Bacbelard, G. - A POETICA DO ESPA<;:O

Bacbelard, G. - A AGUA E OS SONHOS

Bacbelard, G. - 0 AR E OS SONHOS

Ferenczi, S. - THALASSA

Bergson, H. - MATERIA E MEMORIA

Bacbelard, G. - A TERRA E OS DEVANEIOS DO REPOUSO

Bacbelard, G. - A TERRA E OS DEVANEIOS DA VONTADE

Merleau·Ponty, M. - SIGNQS

Eliade, M. - MEFISTOFELES E 0 ANDROGINO

Eliade, M. - IMAGENS E SiMBOLOS

Panolsky, E. - ARQUITETURA OOTICA E ESCOLAsTICA

Eliade, M. - 0 SAGRADO E 0 PROFANO

Dumezil, G. - DO MITO AO ROMANCE

Tarde, G. - A OPINIAo E AS MASSAS

Sorel, G. - REFLEXOES SOBRE A VIOLENCIA

Ryle, G. - DILEMAS

Austin, J. L. - SENTIDO E PERCEP<;:Ao

Simmel, G. - FILOSOFIA DO AMOR

Weil, S. - A GRAVIDADE E A GRA<;:A

Lobruu, G. - KANT E 0 FIM DA METAFisICA

Ero, U. - INTERPRETA<;:Ao E SUPERINTERPRETA<;:Ao

Wbitebead, A. N. - 0 CONCEITO DE NATUREZA

Cassirer, E. - ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

Alain - IDEIAS

PR6xIMOS LANCAMENTOS:

Ponty, M. - FENOMENOLOGIA DA PERCEP<;:Ao

Panofsky, E. - IDEA

.•

Alfred North Whitehead

o Conceito de Natureza

Martins Fontessao Paulo - /994

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Titulo originol: THE CONCEPT OF NATUREPublicado por Press Syndicate of the University of CambridgeCopyright © Press Syndicate of the University of Cambridge

Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., Sao Paulo, 1993,para a presente edicao

1~ edi~iio brosileira: marco de 1994

Tradu~iio: Julio B. FischerRevistio do tradu~iio: Carlos Eduardo Silveira Matos

Revisiio tipogrdjica:Marise Simoes LealMarcio Della Rosa

SUMARIO

Produ~iio graftea: Geraldo AlvesComposi~ao: Ademilde L. da Silva

Capo - Projeto: Alexandre Martins FontesPrifaeio . 1

ISBN 8S-336"()248-O

1. Ciencia - Filosofia 2. Conhecimento - Teoria 3.Filosofia da natureza 4. Natureza I. Titulo. II. serie.

Dados Internacionais de Cataloga~o na Public~o (CIP)(CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Whitehead. Alfred North, 1861-o conceito de natureza / Alfred North Whitehead ;

(tradu~ao Julio B. Fischer]. - Sao Paulo: Martins Fontes,1993. - (Colecao T6picos)

"As Conferencias Tarner ministradas no Trinity College,novembro de 1919."

5336191

119143169193217233235

I. Natureza e pensamento .II. Teorias da bifurca~ao da natureza .

III. 0 tempo .IV. 0 metodo da abstra~ao extensiva .V. Espa~o e movimento .

VI. Congruencia .VII. Os objetos .

VIII. Resumo .IX. Os conceitos fisicos fundamentais .

Nota: Do conceito grego de ponto .Nota: Do significado e dos eventos infinitos .

CDD·501

indices para cataIogo sistematico:

I. Ciencia : Filosofia 5012. Ciencias naturais : Filosofia 501

3. Filosofia da ci&1cia SOl

93-3365

Todos os direitos para a /{ngua portuguesa reservados aLIVRARIA MARTINS FONTES EDiTORA LTDA.Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 - Tel.: 239-3677

01325-000 - Sao Paulo - SP - Brasil

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PREFA.CIO

o conteudo deste livro foi originalmente apresenta­do no Trinity College, no outono de 1919, como 0 cicloinaugural de Conferencias Tamer. A fun~ao de confe­rencista Tamer tern carcher ocasional e foi criada peIagenerosidade do sr. Edward T arner. A tarefa de cada urndaqueles que sucessivamente ocupam 0 posto sera. a deministrar urn cicIo de conferencias acerca da "Filosofiadas Ciencias e as Rela~6es ou Ausencia de Rela~6es en­tre os diferentes Setores do Conhecimento". 0 presentelivro traduz 0 esforc;o do primeiro conferencista da seneem desincumbir-se de sua tarefa.

Os capitulos preservam sua forma original de con­ferencias e se mantem da maneira como foram ministra­das, 11 exce~ao de pequenas a1tera~6es visando eliminarobscuridades de expressao. A forma da conferencia terna vantagem de sugerir uma plateia com urn quadro inte­lectual definido, 0 qual a conferencia tern 0 prop6sito demodificar em urn sentido especifico. Na apresenta~aodeuma perspectiva diferente e com amplas ramifica~6es,

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2 a CONCE/TO DE NA TUREZA PREFAcIO 3

uma exposi~ao linear, das premissas as conclusoes, naoe suficiente para assegurar a inteligibilidade. A assisten­cia ira interpretar tudo aquilo que for dito segundo suaperspectiva preexistente. Por esse motivo, os dais primei­ros capftulos e as dais ultimos sao essenciais para a inte­ligibilidade do livro, muito embora pouco acrescentem ainteireza formal da exposi~ao. Sua fun~ao e evitar que 0

leitor se desvie da rota no encal~o de concep~Oes equivo­cadas. Identico motivo me leva a evitar a terminologia tec­nica da fIlosofia. A modema filosofia natural esta crivadade alto a baixo pela falacia da bifurca~ao,discutida no se­gundo capitulo deste livro. Por conseguinte, todos os seustermos tecnicos implicam, de alguma fonna sutil, urn en­tendimento equivocado de minha tese. Talvez seja con­veniente prevenir explicitamente que, se 0 leitor se entregarao vicio comodo da bifurca~iio, sequer uma unica palavrado que escrevi the sera inteligivel.

as dois ultimos capitulos nao pertencem propriamen­te ao ciclo especial. a Capitulo VIII e uma conferenciaministrada na primavera de 1920 diante da Sociedade deQuimica dos alunos do Imperial College of Science andTechnology. Foi incluida neste volume a titulo de resu­mo e aplic~ao convenientes da doutrina do livro para umaplateia imbuida de uma certa perspectiva especifica.

Este volume sobre "0 Conceito de Natureza" ecom­plementar a meu livro anterior, An Enquiry concerning thePrinciples ofNatural Knowledge. QIalquer um deles pode serlido independentemente, mas ambos se completam. Emparte, 0 presente livro apresenta certos pontos de vista omi­tidos em sen predecessor e em parte transpOe 0 mesmaterreno com uma exposic;ao alternativa. Por urn lado, ano~aomatematica foi criteriosamente evitada, senda acei-

tos os resultados das dedu~Oes matematicas. Determinadasexplica~Oes foram aprimoradas, enquanto outras foramiluminadas sob um novo prisma. Por outro lado, impor­tantes pontos do trabalho anterior foram omitidos quandonaD havia nenhum acrescimo a fazer a seu respeito. Demodo geral, enquanto 0 trabalho anterior baseava-se, nofundamental, em ideias diretamente extraidas da fisica ma­tematica, 0 presente livro guarda maior proximidade a de­terminadas areas da filosofia e da fisica, a ponto de ex­cluir a matematica. as dois trabalhos convergem em suasdiscussOes acerca de alguns detalhes do espa~oe do tempo.

Nao tenho consciencia de ter modificado em sentidoalgum minhas conce~Oes. Houve alguns desdobramentos.Aqueles que permitem uma exposi~aonao-matematica fo­ram incorporados ao texto. as desdobramentos matemati­cos sao mencionados nos dais Ultimos capftulos e se referemaadapta~ao dos principios da fisica matematica a formado prindpio da relatividade aqui sustentada. Embora sejaadotado 0 metodo einsteiniano de utilizar a teoria dos tenso­res, sua aplica~aoe conduzida por diferentes linhas e a par­tir de diferentes pressupostos. Aqueles dentre os seus resul­tados que tiveram comprova~aona experiencia tambemsao obtidos por meus metodos. A divergencia nasce funda­mentalmente de minha recusa em aceitar sua teoria do es­pa~o nao-uniforme ou sua admissao do peculiar caniterfundamental dos sinais luminosos. Nao obstante, eu naoincorreria no erro de deixar de reconhecer 0 valor de seurecente trabalho acerca da relatividade geral, que tem 0

grande merito de ter sido 0 primeiro a revelar 0 modo comoa fisica matematica deve se desenvolver aluz do principioda re1atividade. A meu ver, noentanto, ele confinou 0 de­senvolvimento de seu brilhante metodo matematico aoslimites estreitos de uma filosofia altamente duvidosa.

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4 o CONCEITO DE NA TUREZA

o objetivo do presente volume e de seu predeces­sor e lan~ar as bases de uma filosofia natural que sejao pressuposto necessario de uma fisica especulativa reor­ganizada. A assimila~1i.o geral do espa~o e tempo quedomina 0 pensamento construtivo pode reivindicar 0

apoio independente de Minkowski pelo lado da cienciae tambem de sucessivos relativistas, ao passo que, notocante aos fil6sofos, foi, ereio eu, tema das Confer(~ncias

Gifford do professor Alexander, ministradas ha poucosanos, mas ainda n1i.o publicadas. Tambem de resumiusuas conclusoes quanta a essa questao em uma palestraaSociedade Aristotelica emjulho de 1918. Desde a pu­blica~1i.o de An Enquiry concerning the Principles of NaturalKnowledge, pude beneficiar-me com a leitura do livro deSr. C.D. Broad, Perception, Physics and Reality [Camb.Univ. Press, 1914]. Esse valioso trabalho serviu-me deapoio em minha discuss1i.o do Capitulo II, embora eudesconhe~aate que ponto 0 sr. Broad concordaria comqualquer urn dos meus argumentos, da maneira comoali enunciados.

Resta-me agradecer aos quadros da University Press,seu pessoal da linotipia, seus revisores de provas, seupessoal de escrit6rio e gerentes, nao apenas pela exce­lencia tecnica de seu trabalho, mas pdo modo como coo­peraram no sentido de assegurar 0 atendimento de mi­nhas conveniencias.

A.N.W.

IMPERIAL COLLEGE OF SCIENCE AND TECHNOLOGY

Abril de 1920

CAPITULO I

NATUREZA E PENSAMENTO

o tema enfocado pdas Conferencias Tamer e de­fmido por Seu criador como sendo "a Filosofia das Cienciase as Rela~oes ou Ausencia de Rela~oesentre os diferen­tes Setores do Conhecimento". Na primeira conferenciadessa nova institui~ao, sera conveniente nos determospor alguns instantes nos propositos de seu outorgante talcomo expressos nessa defini.;ao; e 0 fal,;o com urn pra­zer tanto maior quanto isso me facultara introduzir ostopicos aos quais 0 presente curso devera estar voltado.

Ejustificado, penso eu, tomarmos a segunda chaveda defini~1i.o como parcialmente explanatoria da primei­ra. 0 que vern a ser a filosofia das ciencias? N1i.o serauma resposta insatisfatoria dizer que se trata do estudodas rela~oes entre os diferentes setores do conhecimento.Ent1i.o, com admiravel deferencia para com a liberdadedo saber, sao inseridas na definil,;30, ap6s a palavra "re­lal,;oes", as palavras "ou ausencia de re1al,;oes". U rnaconfutal,;ao das rela<;.oes entre as ciencias constituiria em

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6 o CONCEITO DE NA TUREZA NA TUREZA E PENSAMENTO 7

si mesma uma filosofia das ciencias. Mas nao poderia­mos prescindir quer da primeira quer da segunda cha­ve. Nao e toda e qualquer rela~ao entre as ciencias queparticipa da filosofia das mesmas. A biologia e a ffsica,por exemplo, estao ligadas pelo uso do microsc6pio. Ain­da assim, posso asseverar COm seguranc;a que uma des­cric;ao tecnica das utilizac;oes do microscopio na biolo­gia nao e parte da filosofia das dencias. Por outro lado,nao podemos abandonar a ultima chave da defini~ao,

ou seja, aquela referente as relac;oes entre as ciencias,sem abandonar a referencia expHcita a urn ideal na au­sencia do qual a filosofia necessariamente passani a de­finbar pela cacencia de urn interesse intrinseco. Esse ideale a obten~ao de algum conceito unificador capaz de en­quadrar em relac;5es determinadas, inerentes ao mesmo,tudo quanto esta disponivel ao conhecimento, ao senti­mento e aemo~ao. Esse ideal remoto e a for~a motivada investiga~ao filos6fica e rec1ama obediencia mesmoquando 0 banimos. 0 pluralista filos6fico e urn 16gicorigoroso; 0 hegeliano floresce em meio a contradic;6escom a ajuda de seu absoluto; 0 sacerdote maometanocurva-se diante da vontade criativa de Ala; e 0 pragmati­co aceitara 0 que quer que seja coutanto que "funcione".

A menc;ao a esses vastos sistemas e a essas cootro­versias de longa data, das quais as mesmos se originam,advertem-nos aconcentrac;ao. Nossa tarefa ea mais sim­ples da filosofia das ciencias. Ora, uma cienciaja possuiuma certa unidade, razao pela qual tal corpo de conhe­cimento foi instintivamente reconhecido como constituin­te de uma ciencia. A filosofia de uma ciencia e 0 esfor~o

de expressar explicitamente as caracteristicas unificado­ras que permeiam esse complexo de pensamentos e con-

ferem-Ihe a condi~ao de ciencia. A filosofia das ciencias- concebida como urn objeto de estudo - e 0 esfor~o

de apresentar todas as ciencias como uma unica cien­cia, ou - em caso de insucesso - a confuta~ao de talpossibilidade.

Farei ainda uma outra simplifica~ao, confinandonossa aten~ao as ciencias naturais, ou seja, as cienciasque tern por objeto de estudo a natureza. 0 postuladode urn objeto de estudo comum para esse grupo de cien­cias determinou a pressuposi~ao de uma filosofia unifi­cadora da ciencia natural.

o que entendemos por natureza? E nosso misterdiscutir a filosofia da ciencia natural. Ciencia naturale a ciencia da natureza. Mas ... 0 que vern a ser a na­tureza?

A natureza e aquilo que observamos pela percep­~ao obtida atraves dos sentidos. Nessa percep~ao sensi­vel, estamos conscios de algo que nao e pensamento eque e contido em si mesmo com rela~ao ao pensamen­to. Essa propriedade de ser autocontido com re1a~ao aopensamento esta na base da ciencia natural. Significaque a natureza pode ser concebida como urn sistema fe­chado cujas rela~iies mutuas prescindem da expressaodo fato de que se pensa acerca das mesmas.

Em determinado sentido, portanto, a natureza in­depende do pensamento. A afirma~ao nao se pretendenenhum postulado metafisico. Quem dizer apenas quepodemos pensar sobre a natureza sem pensar sobre 0

pensamento. Direi que, nesse caso, estaremos pensan­do "homogeneamente" sobre a natureza.

Obviamente, epossivel pensar na natureza conjun­tamente com 0 pensamento sobre 0 fato de a natureza

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ser alva de pensamento. Direi, nesse caso, que estare­mas pensando "heterogeneamente" sabre a natureza.Na verdade, durante esses ultimos minutos estivemospensando heterogeneamente sabre a natureza. 0 inte­resse da ciencia natural esta voltado exclusivamente paraas pensamentos homogeneos sabre a natureza.

Contudo, a percep~ao senslve! traz consigo um e!e­mento diverso do pensamento. Trata-se de uma intrin­cada questao psicol6gica 0 sabermos se a percep~ao sen­Stve! envolve 0 pensamento; e, caso 0 envolva, qual 0tipo de pensamento que necessariamente envolve. Obser­ve-se que foi estabelecido acima que a percep~ao senslve!e uma apreensao de a!go que difere do pensamento. Ouseja, a natureza nan epensarnento. Mas essa euma ques­tao diferente, a saber, que 0 fato da percep~ao senslve!contem um fator diverso do pensamento. A esse fatordenomino "apreensao senslve1". Por conseguinte, a dou­trina de que a ciencia natural ocupa-se exclusivarnentede pensamentos homogeneos acerca da natureza naD coo­duz imediatamente aconclusao de que a ciencia natu­ra! nao se ocupa da apreensao senslve!.

Fonnularei, porem, mais este postulado, a saber,que, embora a ciencia natural se ocupe da natureza, quee 0 termo da percep~aosenslve!, nao se ocupa da apreen­sao sensfvel em si.

Repetirei a linha-mestra desse raciocfnio e 0 des­dobrarei em determinadas dire~6es.

o pensamento sobre a natureza e diferente da per­cep~ao senslve! da natureza. Dal 0 fato de a percep~ao

sensfvel conter um ingrediente ou fator que nao e pen­samento. A esse ingrediente denomino apreensao sen­slve!. E indiferente para meu raciocfnio se a percep~ao

sensfvel inclui ou nao 0 pensamento como ingredienteadicional. Se a percep~ao sensfvel nao envolve 0 pensa­mento, a apreensao sensfvel e a percep~ao sensfvel saoidenticas. Aquilo que e percebido, porem, 0 e enquan­to uma entidade que constitui 0 termo da apreensao sen­sfvel, algo que, para 0 pensamento, se encontra alemdo fato daque!a apreensao senslve!. Ademais, a coisa per­cebida certamente nao contem apreens5es sensfveis ou­tras, diferentes da apreensao sensfvel que e urn ingre­diente dessa percep~ao. Por conseguinte, a natureza, ta!como revelada na percep~ao sensfvel, e contida em simesma em rela~aoaapreensao sensfvel, alem de conti­da em si mesma em re!a~ao ao pensamento. Tambemexpressarei essa conten~ao em si mesma da natureza di­zendo que a natureza est.. fechada para a mente.

Esse fechamento da natureza nao traz em seu bojonenhuma doutrina metaffsica da separa~ao entre natu­reza e mente. Significa que, na percep~aosensfvel, a na­tureza e reve!ada como um complexo de entidades cujasrela~5es mutuas sao passfveis de expressao no pensamen­to sem referencia amente, ou seja, sem referencia queraapreensao sensfvel quer ao pensamento. Ademais, naopretendo dar a impressao de estar sugerindo que aapreensao sensfve1 e 0 pensamento sejam as unicas ati­vidades a serem atribuldas it mente. Tampouco estounegando a existencia de rela~5es outras entre entidadesnaturais e a mente, ou mentes, alem de serem as enti­dades os termos da apreensao senslve! das mentes. Porconseguinte, estenderei 0 sentido dos tennos "pensamen­tos homogeneos' , e "pensamentos heterogeneos", ja in­troduzidos. Pensamos "homogeneamente" sobre a na­tureza quando pensamos sobre e!a sem pensar sobre 0

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10 o CONCEITO DE NA TUREZA NA TUREZA E PENSAMENTO 11

pensamento au sabre a apreensao senslvel, e pensamos"heterogeneamente" sabre a natureza quando pensa­mos sabre esta conjuntamente com 0 pensamento sabreo pensamento au sabre a apreensao senslve1 au sabre

ambos.Tambem considero que a homogeneidade de pen­

samento sobre a natureza exclui qualquer referencia avalores marais au esteticos cuja assimilac;ao seja vividana propor~ao da atividade autoconsciente. Os valoresda natureza talvez constituam a chave para a sfntese me­tafi'sica da existencia. Tal sfntese, entretanto, e exata­mente 0 oposto do que estou perseguindo aqui. Minhapreocupac;ao exc1usiva ecom as generalizac;oes as roaisamplas que se possa levar a cabo respeitando aquilo quenos e conhecido como a direta reve!a~ao da apreensao

sensfvel.Mencionei que a natureza se reve1a na percepc;ao

senslve! enquanto urn complexo de entidades. Sera. pro·veitoso considerar 0 que entendemos por entidade nes­se contexto. "Entidade" esimplesmente 0 equivalentelatina de "coisa", a menoS que, com finalidades tecui·cas, se trace a1guma distin~ao arbitniria entre as ~a1a­

vras. Todos as pensamentos devem se referir a COISas.

Podemos obter a1guma ideia dessa necessidade de coi­sas para 0 pensamento examinando a estrutura de uma

proposi~ao.Suponhamos que uma proposi~ao esteja sendo

transmitida por urn expositor a urn receptor. Tal pro­posi~aoe composta por frases; algumas dessas frases po­derao ser demonstrativas e outras descritivas.

Por frase demonstrativa refiro-me it frase que tor­na 0 receptor conscio de uma determinada entidade de

urn modo independente da frase demonstrativa parti­cular. Voces compreenderao que estou empregando aquio termo "demonstrac;ao" em urn sentido a-Iogica, ouseja, no sentido em que urn conferencista demonstra,com 0 auxnio de uma ra e urn microscopio, a circula­c;ao sangiiinea para uma turma iniciante de estudantesde medicina. Chamarei a tal demonstra~ao "especula­tiva", reportando-me aacepc;ao em Hamlet do termo "es­peculac;ao", quando se diz:

Nao hi especula~ao naque!es 0lhos1•

Assim, uma frase demonstrativa demonstra especu­lativamente uma entidade. Pode se dar que 0 expositortenha em mente alguma Dutra entidade - ou seja, a frasedemonstra a e!e uma entidade diversa daquela que de­monstra ao receptor. Nesse caso, ocorre uma confusao;pais existirao duas proposi<;5es diversas, a saber, a propo­si~ao para 0 expositor e a proposi~ao para 0 receptor. Dei·xo tal possibilidade de lado enquanto irre!evante para nos­sa discussao, embora possa ser diffcil, na pratica, duaspessoas convergirem na considera<;ao exatamente cia mes­rna proposi<;ao ou mesma que uma pessoa tenha determi­nado exatamente a proposi<;ao que esta considerando.

Tambem pode acontecer que a fraoe demonstrati­va nao consiga demonstrar entidade a1guma. Neste ca­so, nao existe proposi~ao para 0 receptor. Creio que po­demos partir do prindpio (irrefletido, talvez) de que 0expositor sabe 0 que pretende transmitir.

1. Na verdade, 0 trecho ede "Macbeth" (Ato III, cena 4); "Thou hastno speculation in those eyes" , onde speculaJiQn tern 0 sentido de "conllecer aquilaque se vi", segundo cornentario do prof. G. K. Hunter na edit;ao da PenguinBooh (N. T.)

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12 o CONCE/TO DE NA TUREZA NA TUREZA E PENSAMENTO 13

Uma Frase demonstrativa eurn gesto. Nao eem siurn constituinte da proposi~ao, mas a entidade que de­monstra e tal constituinte. Podemos nos indispor comuma [rase demonstrativa considerando-a de alguma for­ma ofensiva para n6s; mas se demonstra a entidade cor­reta, a proposi<;ao se mantem valida, embora nosso gostopossa ter sido ofendido. Esse carater sugestivo da fra­seologia e parte da qualidade literaria da senten~a quetransmite a proposic;ao. Issa porgue uma sentenc;a trans­mite diretamente uma proposic;ao, ao mesma tempo queem sua fraseologia sugere uma penumbra de outras pro­posi~6es carregadas de valor emocional. Estamos falan­do agora da proposi~aoespecifica diretamente transmi­tida em qualquer fraseologia.

Essa doutrina e obscurecida pelo fato de que, namaior parte dos casos, 0 que em termos cia forma eme­ra parte do gesto demonstrativo constitui, na verdade,parte da proposi~ao que se pretende transmitir direta­mente. Nesse caso, chamaremos elfptica a fraseologiacia proposic;ao. Na comunicac;ao ordinaria, e e1fptica afraseologia de praticamente todas as proposi~6es.

Vejamos alguns exemplos. Suponha-se que 0 ex­positor se encontre em Londres, digamos em Regent'sPark e no Bedford College, 0 grande educandario femi­nino situado naquele parque. Ele esta se pronunciandona entrada do predio e diz:

"Este ediffcio educacional e confortavel."A frase" este ediffcio educacional" e uma Frase de­

monstrativa. Suponhamos agora que 0 receptor res­ponda:

"Este nao e urn edificio educacional; e a area dosleaes no zooI6gico."

Entao, considerando que a proposi~ao original doexpositor nao tenha sido expressa em uma fraseologiaeliptica, 0 expositor mantem sua proposi<;ao original aoreplicar:

"Seja como for, 0 lugar (it) e confortavel."Observe-se que a resposta do receptor aceita a es­

pecula<;ao demonstrativa da Frase "Este ediffcio educa­cional". Ele nao diz: "0 que voce esta querendo di­zer?", mas aceita a Frase como demonstrativa de umaentidade, embora declare ser a mesma entidade a areados leaes no zool6gico. Em sua replica, 0 expositor, aseu turno, reconhece 0 exito de seu gesto original en­quanto uma demonstra<;ao especulativa, e poe de ladoa questao da pertinencia de seu modo de sugestividadecom urn "seja como for". Encontra-se agora, contudo,em posi~ao de repetir a proposi~ao original com a aju­da de urn gesto demonstrativo privado de qualquer su­gestividade, pertinente ou impertinente, dizendo:

"0 lugar (it) e confortavel."o "it" de sua afirma<;ao final pressupae que 0 pen­

samento se apoderou da entidade enquanto puro e sim­ples objetivo para considera~ao.

Restringir-nos-emos a entidades reveladas naapreensao senslvel. A entidade erevelada, assim, comourn termo relacional no complexo que ea natureza. Elase faz mostrar a urn observador em fun<;ao de suas rela­<;aes; mas eurn objetivo para 0 pensamento em sua in­dividualidade pura e simples. 0 pensamento nao podese processar de outra forma, isto e, nao pode se proces­sar sem 0 "it" ideal e simples especulativamente demons­trado. Esse estabelecimento da entidade enquanto ob­jetivo puro e simples nao atribui amesma uma existencia

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14 o CONCE/TO DE NA TUREZA NA TUREZA E PENSAMENTO 15

a parte do complexo em que foi identificada pela per­cep<;ao sensfvel. Para 0 pensamento, 0 "it" eessencial­mente urn termo relacional cia apreensao sensfvel.

Epossivel que 0 diaJogo referente ao ediffcio edu­cacional assuma uma forma diversa. Seja 0 que for queo expositor pretendesse dizer originalmente, epratica­mente certo que ele agora reconhe<;a sua primeira afir­ma<;ao como expressa em uma fraseologia elfptica e partado principio de que pretendesse dizer:

"18to aqui eurn ediffcio educacional e econfortavel."Aqui, a frase ou gesto demonstrativo, que demons­

tra a "caisa" (it) que e confortave1, foi agora reduzidaa urn "isto"; e a Frase atenuada, mediante as circuns­tancias em que e proferida, e suficiente para 0 prop6si­to cia correta demonstrac;;ao. Isso traz a luz a questaode que a forma verbal jamais e a fraseologia completada proposi~ao; tal fraseologia inc1ui ainda as circunstan­cias gerais de sua criac;;ao. Assim, a meta de uma Frasedemonstrativa eexpor uma "coisa" especffica como urnobjetivo puro e simples para 0 pensamento; todavia, 0

modus operandi de uma frase demonstrativa e produziruma apreensao cia entidade como urn termo re1acionalparticular de urn complexo auxiliar, eleito merarnenteem fun,ao da demonstra~aoespeculativa e irre1evantepara a proposi,ao. No diaJogo acima, por exemplo, edu­candarios e ediffcios, enquanto relacionados a"coisa"especulativamente demonstrada pela frase "este edifi­cio educacional", flXaram essa "coisa" em urn complexoauxiliar que e irrelevante aproposi~ao.

"0 Iugar (a coisa, it) e confortavel."Nalinguagem, obviamente, cadafrasee, de modo in­

variavel, altamente elfptica. Por conseguinte, a senten,a

"Este ediffcio educacional econfortavel' , provavelmentesignifica: "Este ediffeio educacional e confortavel en­quanta ediffcio educacional."

Perceberemos, porem, que e passIvel substituir"confortavel" par "confortavel enquanto ediffcio edu­cacional" na discussao acima, sem alterar nossa conclu­sao; fiuito embora possamos adivinhar que 0 receptor,que imaginou estar na area dos leaes do zoologica, es­taria menos inc1inado a admitir que: "Seja como for,o lugar e confortavel enquanto ediffcio educacional."

Teremos um exemplo mais evidente de fraseologiae1fptica se 0 expositor dirigir ao receptor a observa~ao:

"Esse criminoso e seu amigo."o receptor poderia responder: "Ele e meu amigo

e 0 senhor esta sendo grosseiro."Aqui, 0 receptor parte do principio de que a frase

"Esse criminoso" ee1fptica e nao simplesrnente demons­trativa. Na verdade, a pura dernonstra~aoeimpossfvel,ainda que seja 0 ideal do pensamento. A impossibilida­de pratica da pura demonstra,ao e uma dificuldade quese manifesta na comunica~ao do pensamento e na re­ten,ao do pensamento. Em outras palavras, uma pro­posi~ao acerca de urn fator particular da natureza naopode ser expressa a outros e tarnpouco retida para con­sidera~6es repetidas sem a ajuda de complexos auxilia­res que Ihe sao irre1evantes.

Passarei agora as frases descritivas. 0 expositor diz:"Urn educandario em Regent's Park e confortavel."

o receptor conhece bem Regent's Park. A frase"Urn educandario em Regent's Park" edescritiva pa­ra ele. Nao sendo elfptica sua fraseologia - 0 que, na

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16 o CONCEITO DE NATUREZA NA TUREZA E PENSAMENTO 17

vida cotidiana, certamente sera, de uma forma ou deGutra -, tal proposi~ao significa simplesmente: "Exis­te uma entidade que euma construc;ao educacional emRegent's Park e que e confortavel."

Caso 0 receptor retruque: "A area dos Idles no 200­

16gico e a unica construc;ao confortavel em Regent'sPark" 1 ele agora estanl contradizendo 0 expositor, par­tindo do prinefpio de que uma area de leGes em um 200­

16gico nao e urn ediffcio educacional.Assim, enquanto no primeiro diaIogo 0 receptor

simplesmente polemizou com 0 expositor sem contradize­10, neste diaJogo ele 0 contradiz. Assim, uma [rase des­critiva eparte cia proposic;ao que contribui para expres­sar, enquanto uma [rase demonstrativa nao e parte ciaproposic;ao que contribui para expressar.

o expositor pode ainda estar parado em Green Park- onde nao existe nenhum ediffcio educacional - e di­zer: "Este ediffcio educacional e confortavel."

Provave1mente, nenhuma proposi<;ao sera recebi­da pelo receptor, porquanto a frase demonstrativa "Es­te ediffcio educacional" nada logrou demonstrar, dadaa ausencia da base que pressup6e em termos de apreen­sao sensfvel.

Caso 0 expositor tivesse dito, porem: "Urn ediff­cio educacional em Green Park e confortavel" , 0 receptorteria recebido uma proposi<;ao, embora uma proposi<;aofalsa.

A linguagem e normalmente ambfgua e seria im­prudente fazer afirma<;6es genericas quanta a seus sig­nificados. Mas frases iniciadas em "isso" ou "aquilo"sao normalmente demonstrativas, enquanto as frases ini-

ciadas com "0, a" ou "urn, uma" sao amiude descriti­vas. Ao estudar a teoria da expressao proposicional, eimportante ter em mente a larga diferen<;a entre as mo­

destas palavras an310gas "isso" e "aquilo" por urn la­do, e "urn, uma" e "0, a", por outro. A frase "0 edi­ffcio educacional em Regent's Park e confortavel" sig­

nifica, segundo a an3.1ise originariamente empreendidapor Bertrand Russell, que: "Existe uma entidade que

(i) e um edificio educacional em Regent's Park e que(ii) e confortavel e que (iii) e tal que qualquer edificioeducacional em Regent's Park lhe e identico."

o carater descritivo da frase "0 ediffcio educacio­nal em Regent's Park" e, portanto, evidente. Por ou­

tro lado, a negativa da proposi<;ao se da pela nega<;aode qualquer uma de suas tres chaves componentes oupela nega<;ao de qualquer combina<;ao das chaves com­ponentes. Tivessemos substitufdo "Regent's Park" por"Green Park" 0 resultado seria uma proposi<;ao falsa.A constru<;ao de urn segundo estabelecimento educacio­nal em Regent's Park tambem tornaria falsa a proposi­

<;ao, muito embora na vida diaria 0 senso comum a tra­tasse, por polidez, como meramente ambfgua.

Para urn estudioso do classicismo, "A Ilfada" e emgeral uma frase demonstrativa, pois demonstra para eleurn poerna bern conhecido. Para a maioria da humani­dade, contudo, a frase e descritiva, ou seja, tern por si­nonimo "0 poerna intitulado 'A Ilfada' ".

Os nomes podern ser frases quer dernonstrativasquer descritivas. "Homero", por exemplo, epara nosuma frase descritiva, ou seja, a palavra, com alguma li-

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geira diferen~a de sugestividade, significa "0 homemque escreveu 'A IHada' " .

A prescnte discussao ilustra como 0 pensamento co­loca diante de si objetivos simples - entidades, como nosas chamamos -, com as quais 0 pensar se reveste ao ex­pressar suas rela~oesmutuas. A apreensao sensfve1 reve­la um fato por meio dos fatores que sao as entidades dopensamento. A distin~ao separada de uma entidade nopensamento nao euma asser~aometaffsica, mas urn me­todo de processo necessario para a expressao finita de pro­posi~oes individuais. Alem das entidades nao poderiamexistir verdades finitas; sao elas as meios pelos quais ainfinitude cia irrelevancia e exclufda do pensamento.

Resumindo: os termos do pensamento sao entidades,em primeira instancia com individualidades simples e emsegunda instancia com propriedades e rela~oes a e1as atri­bufdas no processo de pensamento; as termos para aapreensao senslve1 sao fatores do fato cia natureza, em pri­meira instancia termos relacionais e apenas em segundainstancia discriminados como individualidades definidas.

Nenhuma caracterfstica cia natureza imediatamenteapresentada ao conhecimento pela apreensao sensfvelpode ser explicada. E impenetra.vel ao pensamento, nosentido de que seu peculiar carater essencial que se in­troduz na experiencia atraves da apreensao sensfvel e, pa­ra 0 pensamento, 0 simples guardiao de sua individua­lidade enquanto simples entidade. Para 0 pensamento,portanto, "vermelho" e simplesmente uma entidade de­finida, embora, para a apreensao, 0 "vermelho" car­regue 0 conteudo de sua individualidade. A transi~ao

do "vermelho" da apreensao para 0 "vermelho" do pen-

samento e acompanhada por uma nftida perda de con­teudo, ou seja, pela transit;ao do fator "vermelho" pa­ra a entidade "vermelho". Essa perda na transit;ao parao pensamento e compensada pelo fato de 0 pensamentoser comunicavel, ao passo que a apreensao sensfvel e in­comunicavel.

Existem, portanto, tres componentes em nosso co­nhecimento da natureza, a saber: fato, fatores e entida­des. Fato e 0 termo indiferenciado da apreensao sensi­vel; fatores sao termos da apreensao sensfvel, diferen­ciados enquanto elementos do fato; entidades sao fato­res em sua fun~ao enquanto os termos do pensamento.As entidades assim referidas sao entidades naturais. 0pensamento e mais amplo que a natureza, de sorte queexistem entidades do pensamento que nao sao entida­des naturais.

Quando falamos da natureza como um complexode entidades inter-relacionadas, 0 "complexo" efato en­quanta entidade do pensamento, a cuja individualida­de pura e simples e atribuida a propriedade de abarcar,em sua complexidade, as entidades naturais. :Eo nosso pro­p6sito analisar essa concep~ao; no curso da analise, 0

espat;o e 0 tempo deverao se manifestar. Evidentemen­te, as rela~oes existentes entre as entidades naturais saopor si mesmas entidades naturais, ou seja, sao tambemfatores de fato, ali presentes para a apreensao sensivel.Nesse sentido, a estrutura do complexo natural jamaispode ser completada em pensamento, da mesma formacomo os fatores de um fato jamais podem ser exauridosna apreensao sensfvel. A inexauribilidade e urn carateressencial de nosso conhecimento da natureza. Ademais,

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a natureza DaD exaure a materia destinada ao pensarnen­to, ou seja, existem pensamentos que nao ocorreriamem nenhum pensamento homogeneo sabre a natureza.

A questao de sabermos se a percep.;;;:ao senslvel en­volve 0 pensamento e largamente verbal. Se a percep­c;ao sensfve1 envolve uma cognic;ao cia individualidadeabstraida da posir;ao atual da entidade enquanto fatorde urn fata, eia indubitavelmente envolve 0 pensamen­to. Mas se for concebida como apreensao sensfvel de urnfatar de urn fata, fatar esse competente para evocar aemoc;ao e a ac;ao investida de prop6sito sem 0 concursode uma cognic;ao, ela DaO envolve 0 pensamento. Nessecaso, 0 termo cia consciencia cia apreensao senslvel re­presenta alga para a mente, mas nada para 0 pensarnento.Pode-se conjecturar que a percepr;ao sensivel de algu­mas farmas inferiores de vida se aproxime habitualmentedesse carater. Por vezes, tambem, nos momentos em quenossa atividade racional foi acalmada ate atingir urn es­tado de quietude, nossa percepc.;ao sensivel nao esta taolonge de a1canr;ar esse limite ideal.

a processo de discriminac.;ao na apreensao sensi­vel tern duas faces distintas. Existe a discriminac.;ao deum fato em partes e a discriminac.;ao de qualquer partede um fato enquanto exibic.;ao de relac.;oes para com en­tidades que nao sao partes do fato, embora sejam in­gredientes do mesmo. Em outras palavras, 0 fato ime­diato para a apreensao e a ocorrencia da natureza emsua totalidade. Ea natureza enquanto evento presenteaapreensao sensivel e essencialmente passageiro. Eine­xequivel imobilizar a natureza e contemphi-Ia. Nao po­demos redobrar nossos esforc.;os para aprimorar nosso

conhecimento do termo de nossa apreensao sensfvel pre­sente; e nossa oportunidade subseqiiente na apreensaosensfvel subsequente que aufere 0 beneficio de nossa boaresoluc.;ao. Assim, 0 fato fundamental para a apreensaosensive1 e urn evento. A totalidade desse evento e pornos discriminada em eventos parciais. Estamos consciosde urn evento que e nossa vida corporal, de urn eventoque e 0 andamento da natureza no interior desta salae de urn conglomerado vagamente percebido de outroseventos parciais. Essa e a discriminac.;ao na apreensaosensive1 de urn fato em partes.

Empregarei 0 termo "parte" no sentido arbitraria­mente limitado de urn evento que e parte do fato totalrevelado na apreensao.

A apreensao sensfvel tambem nos transmite outrosfatores da natureza que nao eventos. a azul-celeste, porexemplo, e visto como situado em urn evento determi­nado. Essa relac.;ao de situac.;ao exige uma discussao maisextensa, 0 que adiaremos para uma palestra futura. Aquestao presente ea de que 0 azul-celeste eencontradona natureza com uma nftida implicac.;ao em determina­dos eventos, mas nao e urn evento em si mesmo. Porconseguinte, existem na natureza, alem dos eventos, ou­tros fatores que nos sao revelados diretamente na apreen­sao sensfvel. A concepc.;ao, no pensamento, de todos osfatores da natureza como entidades distintas imbufdasde re1ar;5es naturais definidas e alga que denomineialhures2 a "diversificac.;ao da natureza".

Ha uma conclusao geral a ser extraida da discus­sao precedente: a de que a primeira atribuic.;ao de uma

2, Cf. En.quiry.

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filosofia da ciencia deve ser a de elaborar alguma classi­fica~ao geral das entidades a nos reveladas na percep­c;ao senslvel.

Entre as exemplos de entidades acrescidas a "even­tos" par nos utilizadas para fins ilustrativos estao os edi­flcios do Bedford College, Homero e 0 azul-celeste. Evi­dentemente, trata-se de especies muito diversas de coisas,e e provavel que enunciados acerca de determinada es­pecie de entidade nao sejam validos para as outras es­pecies. Se 0 pensamento humano se processasse segundoo metodo ordenado que a logica abstrata the sugeriria,poderfamos ir mais adiante e afirmar que uma classifi­cac;ao das entidades naturais deveria ser 0 passo inicialcia propria ciencia. Talvez voces se sintam inclinados aresponder que tal classifica~aoja foi empreendida e queo campo de interesse cia ciencia sao as aventuras das en­tidades materiais no espa~o e no tempo.

A historia da doutrina da materia ainda deve serescrita. E a historia da influencia da filosofia grega naciencia. Tal influencia originou-se de uma concepc;aoequivocada, de origem remota, quanta acondic;ao me­taflsica das entidades naturais. A entidade foi separadado fator que constitui 0 termo da apreensao senslvel.Converteu-se no substrato de tal fator, enquanto 0 fa­tor foi degradado a condi~ao de atributo da entidade.Dessa forma, introduziu-se na natureza uma distinc;aoque, em realidade, absolutamente naG existe. Conside­rada em si mesma, uma entidade natural nada mais edo que 0 fator de urn fato. Sua desconexao com rela~ao

ao complexo do fato e uma simples abstra~ao. Nao e 0

substrato do fator, mas 0 proprio fator em si tal comorevelado no pensamento. Portanto, aquilo que e urn me-

ro processo da mente na traduc;ao da apreensao sensf­vel em termos do conhecimento discursivo foi transmu­tado em urn carater fundamental da natureza. Dessa for­ma, a materia se afigurou na qualidade de substrato me­taffsico de suas propriedades e 0 curso da natureza e in­terpretado como a hist6ria da materia.

Platao e Aristote1es encontraram 0 pensamento gre­go preocupado com a busca das substancias simples emcujos termos 0 curso dos eventos poderia ser expresso.Podemos formular essa disposi~ao da mente na pergunta:De que e feita a natureza? As respostas que a genialida­de de ambos os fil6sofos oferece a essa indagac;ao e, maisparticularmente, os conceitos subjacentes aos terrnos nosquais estruturaram suas respostas, determinaram os in­questionados pressupostos referentes a tempo, espa~o emateria que tern sido soberanos na ciencia.

Em Platao, as formas do pensamento sao mais flui­das que em Arist6teles e, por conseguinte, segundo meatrevo ajulgar, mais valiosas. Sua importancia consisteno testemunho que fornecem do pensamento cultivadoacerca da natureza antes que the tenha sido imposto urnmolde uniforme pela longa tradi~aoda filosofia cientlfi­ca. No Timeu, por exemplo, existe urn pressuposto, ex­presso de modo urn tanto vago, de uma distin~ao entreo vir-a-ser geral da natureza e 0 tempo mensuravel danatureza. Em uma conferencia futura terei de distinguirentre 0 que denomino passagem da natureza e sistemastemporais particulares, que tornam manifestas certas ca­racterlsticas dessa passagem. Nao irei tao longe ao pon­to de invocar Platao para urn apoio direto a essa doutri­na, mas creio efetivamente que as partes do Timeu que

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tratam do tempo tornam-se mais claras se minha dis­tin~ao for admitida.

Issa, no entanto, euma digressao. Por ora, minhapreocupac;ao esta voltada para a origem cia doutrina cien­tffica cla materia no pensamento grego. Declara Platao,no Timeu, que a natureza e feita de fogo e terra, tendoo ar e a agua como seus intermediarios, de sorte que"tal como 0 fogo epara 0 ar, assim e0 ar para a agua;e tal como 0 ar e para a agua, assim e a agua para aterra". Ele tambem sugere uma hip6tese molecular pa­ra esses quatro elementos. Segundo essa hip6tese, tudodepende cla forma dos atomos; para a terra, esta ecubi­ca e para a fogo, piramidal. Os fisicos da atualidade es­tao novamente discutindo a estrutura do atomo e suaforma nao eurn fator desprezfve1 nessa estrutura. As su­posi~6es de Platao se afiguram imbuidas de um canitermuito mais fantastica que a analise sistematica de Aris­t6te1es; sob certos aspectos, porem, sao mais valiosas.o arcabou~o geral de suas ideias e comparavel aqueleda ciencia moderna. Ele sistematiza conceitos que qual­quer teoria de ftlosofia natural deve conservar e, em certosentido, explicar. Arist6teles formulou a questao funda­mental quanta ao que entendemos por "substancia".Aqui, a rea~ao entre sua fila sofia e sua l6gica se proces­sou de modo muito infeliz. Em sua l6gica, a tipo funda­mental de proposi~ao afirmativa e a atribui~ao de umpredicado a urn sujeito. Nesse sentido, entre os diver­sos usos correntes do termo "substancia" que analisou,a enfase recai em seu significado como "0 substrato ul­timo ao qual nenhum outro predicado e atribuido".

A aceita~ao inquestionavel da l6gica aristotelica con­duziu a uma tendencia inveterada a se postular urn subs-

trato para tudo quanta e revelado na apreensao sensf­vel, au seja, a dirigir a olhar abaixo daquilo de que es­tamos conscientes, em busca da substancia, no sentidoda "coisa concreta". Tal e a origem dos modernos con­ceitos cientfficos de materia e eter, ou seja, eles sao 0

produto desse insistente habito de postula~ao.

Nesse sentido, 0 eter foi inventado pela ciencia mo­derna como 0 substrato dos eventos disseminados peloespa~o e tempo para alem do alcance da materia comumponderavel. Pessoalmente, julgo a predica~ao uma no­<;ao obscura a confundir relac;6es diferentes sob uma con­veniente forma de expressao comum. Sustento, porexemplo, que a rela~ao do verde com uma folha de rel­va difere totalmente da relac;ao do verde com 0 evento,que e a hist6ria da existencia daquela folha par um cer­to periodo limitado de tempo, e difere da rela~ao da fo­lha com tal evento. Em urn determinado sentido deno­mino evento a situac;ao do verde e, em outro sentido,asituac;ao da folha. Assim, em urn determinado senti­do a folha e um carater ou propriedade que se pode ta­mar como predicativa da situac;ao e, em outro sentido,o verde e urn caniter ou propriedade do mesmo eventoque e tambern sua situa<;ao. Dessa forma, a predicac;aode propriedades encobre rela~6es radicalmente diferen­tes entre entidades.

Como conseqiiencia, a "substancia", que e urn ter­rno correlato a "predicac;ao", participa da ambigiiida­de. Se pretendermos buscar substancia em toda parte,deveremos encontra-Ia em eventos que constituem, emcerto sentido, a substancia ultima da natureza.

Em sua moderna acepc;ao cientffica, a materia e urn

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retorno ao esfon;o jonieD de se determinar, no espa~o

e no tempo, a1gnm elemento do qual se comp6e a natu­reza. Possui ela uma significa~aomais refinada do queas primitivas suposi~6es envolvendo a terra e a agua emrazao de uma certa associa~ao vaga com a ideia aristo­telica de substfmcia.

Terra, agua, ar, fogo e materia, e, por fim, 0 eter,estao re1acionados segundo uma sucessao direta no quediz respeito a seus caracteres de substratos ultimos danatureza. Dao testemunbo da imorredoura vitalidade dafliosofia grega em sua busca pelas entidades ultimas quesao as fatores dos fatos revelados na apreensao senslvel.Essa busca e a origem da ciencia.

A sucessao de ideias que se inicia nas toscas supo­si~6es dos primeiros pensadores jonicos e termina no eteroitocentista nos faz lembrar que a doutrina cientifica damateria na verdade eurn hibrido, percorrido de passa­gem pela filosofia em seu trajeto rumo ao refinado con­ceito aristotelico de substancia e para 0 qual a cienciaretornou ao reagir contra as abstra~6es filos6ficas. A ter­ra, 0 fogo e a agna da filosofiajonica e os elementos pro­vidos de forma no Timeu sao companiveis amateria eao eter da moderna doutrina cientffica. A substancia,todavia, representa 0 conceito filosafico final do subs­trata de qualquer atributo. A materia (na acep~ao cien­tifica) ja se encontra no espa~o e no tempo. Assim, amateria representa a recusa em recha'.;ar as caracteristi­cas espaciais e temporais e em chegar ao conceito sim­ples de uma entidade individual. Foi essa recusa a res­ponsave! pela confusao de se transpor 0 mero processodo pensamento para 0 fato da natureza. A entidade, des-

pida de todos os caracteres exceto aqueles do espac;o edo tempo, adquiriu uma condi'.;3.o ffsica de tessitura ul­tima da natureza, de sorte que 0 curso da natureza econcebido como as simples vicissitudes da materia emsua aventura pelo espa~o.

Assim, a origem da doutrina da materia e produtoda aceita~ao acritica do espa~o e do tempo como condi­'.;oes externas da existencia natural. Nao pretendo dizercom isso que se deva lan~ar qualquer duvida sobre fa­tos do espa~o e do tempo enquanto ingredientes da na­tureza. Refiro-me, isso sim, 'lao pressuposto inconscientedo espa~o e do tempo como aquilo em que a naturezaesta a1ojada". :E esse exatamente 0 tipo de pressupostoque matiza 0 pensamento em qualquer rea'.;ao contra asutileza da critica filosafica. Minba teona referente afor­ma'.;ao da doutrina cientffica da materia e a de que, numprimeiro momento, a filosofia transformou ilicitamentea entidade pura e simples, que nao passa de uma abs­tra'.;ao necessaria ao metodo do pensamento, no subs­trato metafisico desses fatores na natureza que, sob va­rios aspectos, sao consignados a entidades enquanto seusatributos; e que, num segundo passo, os cientistas (in­cluindo os filasofos que eram cientistas), ignorando cons­ciente ou inconscientemente a filosofia, tomaram essesubstrato como pressuposto, qua substrato de atributos,como, nao obstante, existente no tempo e no espa'.;o.

Isso eseguramente uma confusao. 0 ser completoda substancia ecomo urn substrato para atributos. Porconseguinte, tempo e espac;o deveriam ser atributos dasubstancia. 0 que e1es claramente DaO sao, se a materiafor a substancia da natureza, uma vez que eimpossive!expressar verdades espa'.;o-temporais sem recorrer a rela-

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~6es envolvendo termos outros que naa fra~6es de ma­teria. Deixo de lado este ponto, todavia, para chegar emoutro. Nao ea substancia que existe no espa~o, mas siroas atributos. 0 que encontramos no espac;o sao 0 ver­melho da rosa, a aroma do jasmim e a rufdo do canhao.Todos ja indicamos a urn dentista onde esta nossa darde dente. Portanto, a espa~o nao e uma rela~ao entresubstancias, mas siro entre atributos.

Assim, meSilla se admitirmos aos adeptos cia subs­tancia a permissao em coneeher a substancia COmomateria, efraudulento introduzir sorrateiramente a subs­tancia no espa~o sob a alega~ao de que a espa~o expres­sa relac;5es entre substancias. Aprimeira vista, 0 espa­c.;o nada tern a veT com substancias, mas tao-somentecom seus atributos. 0 que guera dizer e que se optar­mos - a meu veT erroneamente - por interpretar n08­sa experiencia cia natureza como uma apreensao dosatributos das substancias, essa teoria nos impossibilita­ni encontrar quaisquer relac;5es anaIogas diretas entreas substancias tais como reveladas em nossa experien­cia. a que efetivamente encontramos sao relac;5es en­tre os atributos das substancias. Portanto, se a materiafor tida como substancia no espa~o, a espa~o no qualela se encontra pouco tern a ver com 0 espac;o de nossaexperiencia.

o argumento acima foi expresso em termos da teo­ria relacional do espa~o. Mas se a espa~o for absoluto- ou seja, se possuir urn ser independente das coisasnele contidas -, 0 curso do argumento pouco se altera.Isso porque as coisas existentes no espac;o devem guar­dar uma certa rela~ao fundamental com a espa~o, aqualdenominamos ocupac;ao. Assim, ainda se mantem a obje-

c;ao de que 0 que observamos enquanto relacionados aoespac;o sao os atributos.

A doutrina cientffica da materia e sustentada con­juntamente com uma teoria absoluta do tempo. 0 mes­rna raciocfnio adotado para as rela~6es entre espa~o emateria aplica-se as relac;5es entre tempo e materia. Exis­te no entanto (na filosofia corrente) uma diferen~a en­tre as rela~6es entre espa~o e materia e entre tempo emateria, a qual passarei a explicar.

o espa~o nao e uma mera ordena~aode entidadesmateriais de modo tal que cada entidade individual guar­da determinadas rela~6es com outras entidades mate­riais. A ocupac;ao do espac;o imprime urn certo caniter acada entidade material isoladamente. Dada a sua ocupa­c;ao do espac;o, a materia tern extensao. Dada a sua ex­tensao, cada porc;ao de materia e divisfve! em partes ecada parte e uma entidade numericamente distinta detodas as outras partes. Consequentemente, a irnpressaoque se tern e que cada entidade material nao constituide fato uma entidade, mas uma multiplicidade essen­cial de entidades. Parece nao haver fim nessa dissocia­~ao da materia em multiplicidades, a nao ser ao se iden­tificar cada entidade ultima a ocupar urn ponto indivi­dual. Essa multiplicidade essencial de entidades mate­riais certamente nao e aquilo que prega a ciencia e tarn­pouco corresponde a coisa algurna revelada na apreensaosensfvel. Eabsolutamente necessaria que se imponha urnfim em determinado estagio dessa dissocia~ao e que asentidades materiais assim obtidas sejam tratadas comounidades. 0 estagio da interrup~ao pode ser arbitrarioou estipulado pelas caracteristicas da natureza; todo ra­ciocfnio cientffico, todavia, termina por deixar de lado

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sua analise espacial e formular a si meSilla 0 seguinteproblema: "Eis aqui uma entidade material; 0 que es­tara acontecendo com e1a enquanto entidade unitaria?"Contudo, essa entidade material conserva ainda sua ex­tensao, e assim estendida ernera multiplicidade. Existini,portanto, uma propriedade atomica essencial na natureza,independente da dissocia<;ao da extensao. Existini algouno em si meSilla e que emais do que a reuniao 16gicadas entidades que ocupam os pontos do volume ocupadopela unidade. Na verdade, podemos perfeitamente nosmostrar ceticos quanta a essas entidades wtimas em pontos,e por em duvida se tais entidades existem realmente. Elaspossuem 0 canlter suspeito de sermos Ievados a aceita­las pela l6gica abstrata e nao polo fato observado.

o tempo (na filosofia corrente) nao exerce 0 mes­rna efeito desintegrador sabre a materia que 0 ocupa.Se a materia ocupa uma dura<;ao do tempo, a totalida­de da materia ocupa cada parte dessa dura<;ao. Assim,a rola<;ao entre materia e tempo difere daquela entre ma­teria e espa<;.o, tal como expressa na filosofia cientfficacorrente. Existe, obviamente, uma dificuldade maisacentuada em se conceber 0 tempo como 0 produto dasrola<;aes entre diferentes por<;aes de materia do que naconcep<;ao analoga de espa<;o. Em urn dado instante, di­ferentes volumes de espa<;o sao ocupados por diferentesporc;oes de materia. Conseqiientement~,nao existe ne­nhuma dificuldade intrfnseca, ate aqui, em se conceberque 0 espa<;o nada mais e do que a resultante de rela­<;oes entre as porc;5es de materia. No tempo unidimen­sional, contudo, a mesma por<;ao de materia ocupa di­ferentes porc;oes de tempo. Por conseguinte, deveria ser

passfve1 expressar 0 tempo em termos das re1ac;oes deuma pon;ao de materia consigo mesma. Meu ponto devista pessoal e de uma cren<;a na teoria re1acional tantodo espa<;o como do tempo e de uma descren<;a na formacorrente da tearia relacional do espa<;o, que exibe par­<;oes de materia como as termos relacionais para as re­lac;oes espaciais. Os legftimos termos re1acionais sao even­tos. A distin<;ao que acabei de apontar entre tempo eespa<;o em sua re1ac;ao com a materia torna evidente quequalquer assimila<;ao do tempo e do espa<;o nao pode seprocessar segundo a linha tradicional de se tomar a mate­ria por eJemento fundamental na farma<;ao do espa<;o.

Durante seu desenvolvimento peJo pensamenta gre­go, a filasofia da natureza enveredou por urn caminhoequivocado. Esse pressuposto erroneo e vago e fluido noTimeu de Platao. As bases gerais do pensamento aindanao foram comprametidas e podem ser consideradas co­mo simplesmente se ressentindo da falta de explica<;aodevida e de enfase na defesa desse pensamento. N a ex­posic;ao de Arist6te1es, contudo, as concepc;oes correntesforam consolidadas e olucidadas, de modo a produziruma analise falha da rela<;ao entre a materia e a formada natureza tais como reveladas na apreensao sensfvel.o termo "materia", nessa frase, nao e empregada emsua acepc;ao cientffica.

Concluirei minha explana<;ao guardando-me deuma compreensao equivocada. Eevidente que a dou­trina corrente da materia cultiva uma certa lei funda­mental da natureza. Qualquer exemplo simples podeilustrar 0 que pretendo dizer. Em urn museu, par exem­p10, urn especime qualquer e trancado com seguran<;aem uma caixa de vidro. Ali ele permanece por anos a

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fio: sua cor se esvanece e talvez se rampa em peda<;os.M.as sera 0 meSilla especime; e as mesmos elementos quf­mIcas e as mesmas quantidades de tais elementos esta­faD presentes na caixa ao final, assim como 0 estavamno infcio. 0 engenheiro e 0 astronomo, par sua vez li­dam com movimentos de reais permanencias' na n~tu­reza. Qualquer teoria da natureza que por algum ins­tante perea de vista esses importantes fatos basicos ciaexperiencia esimplesmente nescia. Mas pode-se ressal­tar que a expressao cientffica desses fatos terminou en­redada no emaranhado de uma metaffsica duvidosa eque, quando removemos a metaffsica enos lan<;amoscom fOlego renovado a uma investiga~ao imparcial danatureza, uma nova luz e lanc;;ada sabre uma serie deconceitos fundamentais que dominam a ciencia e orien­tam 0 desenvolvimento cia investigac;ao.

CAPITULO II

TEORIAS DA BIFURCAQAoDA NATUREZA

Em minha conferencia anterior, critiquei 0 conceitode materia como a subst5ncia cujos atributos sao perce­bidos por nos. Tal modo de considerar a materia cons­titui, penso eu, a razao historica de sua introdu~ao naciencia - e e ainda a vaga concep~ao desse modo, nabase de nossos pensamentos, que leva a doutrina cientf­fica corrente a se afigurar taq obvia. Ou seja, concebe­mos a nos mesmos como percebendo atributos de coi­sas, e sao por~6es de materia as coisas cujos atributos

percebemos.No seculo XVII, a doce simplicidade desse aspec­

to da materia foi alvo de urn duro golpe. As doutrinascientfficas da propaga~ao encontravam-se na epoca emprocesso de elabora~ao e, por volta do fim do seculo,ja eram inquestionaveis, muito embora suas formas par­ticulares tenham sido modificadas desde entao. a esta­belecimento dessas teorias da propaga~ao marca umaguinada na rela~ao entre ciencia e filosofia. As doutri-

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nas as quais me refiro especialmente sao as teorias cialuz e do sam. Nao tenho a menor duvida de que as teo­rias em questao ja tinham uma existencia vaga e oca­sional anterior, como sugestoes evidentes ditadas pelosensa cOillum; pais que nada no pensamento jamais enovo de todo. Naquela epoca, porem, foram sistematiza­das no sentido das ciencias exatas e todas as suas conse­qiiencias, implacavelmente deduzidas. E a estabeleci­menta desse processo de se tamar seriamente as conse­qiiencias que marca a legftima descoberta de uma teoria.Doutrinas sistematicas da luz e do som como fenomenosprovenientes de corpos emissores foram definitivamenteestabelecidas, tendo Newton, em particular, exposto deforma inequivoca a relac;ao entre a luz e a cor.

o resultado aniquilou par completo a simplicida­de da teoria da percep~ao baseada no binomio "subs­tancia e atributo". Aquila que enxergamos depende daluz que penetra a olho. Ademais, sequer percebemos aque penetra a olho. As coisas transmitidas sao ondas au- como julgava Newton - partfculas diminutas, as coi­sas percebidas sao cores. Locke enfrentou essa dificul­dade atraves de uma teoria de qualidades primarias esecundarias. Segundo ela, existem alguns atributos damateria que nos sao perceptiveis. Tais atributos consti­tuem as qualidades primarias, enquanto outras coisasha que percebemos, como as cores, que nao sao atribu­tos da materia, mas sao por nos percebida,s como sendotais atributos. Sao as qualidades secundarias da materia.

Par que percebemos as qualidades secundarias? Pa­rece uma contingencia bastante infeliz a de percebermosmuitas coisas que nao se encontram presentes. Enisso,porem, que verdadeiramente redunda a teoria das quali-

dades secundarias. Reina hoje na filosofia e na cienciauma apatica aquiescencia com a conclusao de que eim­possivel produzir qualquer relato coerente da naturezatal como nos e revelada na apreensao sensfvel, sem tra­zer Ii baila, de maneira for~ad'1-, as rela~oes da mesmacom a mente. 0 relato contemporaneo da natureza naoe, como deveria ser, urn mero relato daquilo que a menteconhece acerca da natureza, mas e tambem confundidocom urn relato acerca da aC;ao da natureza sobre a men­te. 0 resultado tern sido desastroso, tanto para a cien­cia como para a filosofia, mas sobretudo para a filoso­fia. 0 grande tema das rela~oes entre natureza e mentese transformou na forma amesquinhada da intera~aoen­tre 0 corpo e a mente humanos.

A polemica de Berkeley contra a materia baseou­se nessa confusao introduzida pela teoria da propaga­~ao da luz. Ele advogava - justificadamente, a meu ver- 0 abandono da doutrina da materia em sua formapresente. Mas nada tinha a propor em substitui~ao,ex­ceto uma teoria quanta arelac;ao das mentes finitas coma mente divina.

A meta a que nos propomos nestas conferencias,contudo, e a de nos atermos anatureza propriamentedita e nao jornadear para alem de entidades reveladasna apreensao sensfvel.

A percipiencia em si mesma e tida como pressu­posta. Na verdade, chegamos a considerar as condi~oes

para a percipiencia, mas apenas ate onde tais condi­~oes se encontram entre as dados revelados pela percep­c;ao. Deixamos a cargo cia metaffsica a sintese entre acognoscente e 0 cognito. Se faz necessaria, para que alinha de argumentac;ao dessas conferencias se tome com-

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preensivel, alguma explica~ao e defesa adicionais dessaposi~ao.

A tese imediata para discussao ea de que qualquerinterpreta~aometafisica euma intromissao ilicita na sea­ra da filosofia da ciencia natural. Par interpreta~aome­tafisica refiro-me a qualquer discussao do como (paraalem da natureza) e do porque (para alem da natureza)do pensamento e cia apreensao sensivel. Buscamos, nafilosofia cia ciencia, as no~oes gerais que se aplicam anatureza, au seja, aquila de que estamos conscios atra­yes da percep~ao.Trata-se da filosofia da coisa percebi­cia, e naD cleve ser confundida com a metaffsica cia rea­lidade, cujo alcance inclui tanto a perceptor como a coisapercebida. Nenhuma perplexidade referente ao objetodo conhecimento pode ser solucionada pela afirma~ao

de que existe uma mente a canhece-lo t .

Em outras palavras, ea seguinte a premissa adota­da: a apreensao sensivel e uma apreensao de alga. Qualsera, entao, 0 carater geral daque1e alga por nos apreen­dido? A pergunta nao se refere itquele que percebe auao processo, mas acoisa percebida. Enfatizo este pontoporgue as discuss5es acerca cia filosofia cia ci(~ncia saoamiude extremamente metafi'sicas - em grande detri­mento do tema, na minha opiniao.

o recurso a metaffsica e como lanc;ar urn fosforoaceso em urn dep6sito de p61vora. Tudo vai pelos ares.E exatamente isso 0 que fazem os filosofos cientfficosquando se veem lanc;ados em urn beeo sem saida e cen­surados por incoereneia. De imediato trazem a mente

1. Cf. Enquiry, prefacio.

it baila e se poem a falar de entidades da mente au exte­riores a mente, conforme 0 caso. Para a filosofia natu­ral, tudo quanto e percebido encontra-se na natureza.Nao podemos empreender uma selec;ao rigorosa. Paran6s, a fulgor avermelhado do poente deve ser parte taointegrante da natureza quanto 0 sao as moltkulas e asondas eletricas par intermedio das quais as homens daciencia explicariam 0 fenomeno. Cabe afilosofia natu­ral analisar como esses diferentes elementos da nature­za se interligam.

Ao fazer essa exigencia, julgo-me adotando nossaatitude instintiva imediata para com 0 conhecimento per­ceptual, que somente e abandonado sob influencia dateoria. Somos instintivamente inclinados a acreditar que,mediante a devida atenc;ao, a natureza pode se revelara nos para alem do observado aprimeira vista. Mas naonos contentaremos com menos. 0 que pedimos da filo­sofia da ciencia e algum relato acerca da coerencia dascoisas conhecidas atraves da percep~ao.

Isso significa uma recusa a sustentar qualquer teoriade acrescimos psfquicos ao objeto conhecido pela per­cep~ao. Seja urn dado da percep~ao,par exemplo, a gra­rna verde, urn objeto que conhecemos como ingredienteda natureza. A teoria dos acrescimos psiquicos tratariao verdor como urn acrescimo psiquico fornecido pelamente perceptiva e reservaria anatureza meramente asmoIeculas e a energia radiante que influenciam a men­te no sentido de tal percep~ao. Meu argumento e a deque essa introdu~ao for~ada da mente como capaz deempreender acrescimos proprios acoisa oferecida ao co­nhecimento pela apreensao sensivel nao passa de umaforma de evitar a problema da fl1osofia natural. Tal pro-

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I

blema consiste em discutir as rela~6es inter se das coi­sas conhecidas, abstraidas do fato puro e simples de se­rem conhecidas. A filosofia natural jamais deve inda­gar 0 que esta na mente e 0 que esta na natureza. Talprocedimento seria uma confissao de sua inepcia em ex­pressar relat;5es entre coisas perceptivamente conheci­das, ou seja, expressar aquelas rela-;6es naturais cujaexpressa.o constitui a filosofia natural. Pode se dar quea incumbencia seja demasiado ardua para n6s, que asrela~5es sejam por demais complexas e variadas paranossa apreensao ou triviais em demasia para merece­rem 0 incomodo de uma exposi~ao. Everdade, sem du­vida, que percorremos tao-somente urn trecho muito pe­queno no sentido da formula~ao adequada de tais rela­<;oes. No minima, porem, naD nos dispomos a ocultaro insucesso sob uma teoria cia a<;8.o coadjuvante cia men­te perceptiva.

o alvo de meu protesto e essencialmente a bifur­ca~ao da natureza em dois sistemas de realidade os,quais, conquanto sejam reais, sao reais em sentidos di­ferentes. Uma realidade seriam as entidades como os ele­trons, objeto de estudo da fisica especulativa. Essa seriaa realidade oferecida ao conhecimento, muito emboranessa teoria ela jamais seja conhecida. 1sso porque 0 pas­sIvel de cognic;ao e a outra especie de realidade, a ac;aocoadjuvante da mente. Existiriam, portanto, duas na­turezas: uma e a conjetura e a outra,-o sonho.

Outro modo de enunciar essa teoria contra a qualestou argumentando e bifurcar a natureza em dois seg­mentos, a saber, a natureza apreendida pela percepc;aoe a natureza que e a causa da percepc;ao. A natureza,enquanto fato apreendido pela percep~ao, traz dentro

de si 0 verdor das arvores, 0 gorjeio dos passaros, a ca­lidez do sol, a rigidez das cadeiras e a sensaC;ao do velu­do ao tatoo A natureza enquanto causa da apreensao eo sistema hipotetico de moleculas e eletrons que afetaa mente de modo a produzir a apreensao da naturezaaparente. 0 ponto de convergencia dessas duas nature­zas e a mente, sendo a natureza causal influente e a na­tureza aparente, efluente.

Existem quatro quest5es referentes a essa teoria dabifurca~ao da natureza que de pronto se prestam a dis­cussao. Dizem respeito a (i) causalidade, (ii) ao tempo,(iii) ao espa~o e (iv) as ilus5es. Sao quest5es que, emverdade, nao podem existir separadamente. Constituemapenas quatro pontos de partida distintos a partir dosquais se pode passar a discussao da teoria.

A natureza causal e a influencia sobre a mente queea causa da efluencia da natureza aparente a partir damente. Essa concepC;ao da natureza causal nao deve serconfundida com a concep~ao distinta de uma parte danatureza enquanto a causa de outra parte. Por exem­plo, 0 ardor do fogo e a transmissao do calor a partirdeste atraves do espac;o intermedio sao a causa que levao corpo, seus nervos e seu cerebro, a funcionar de de­terminadas maneiras. Mas esta nao e uma ac;ao da na­tureza sobre a mente. Trata-se de uma interac;ao inter­na anatureza. A causac;ao envoIvida nessa interac;ao euma causac;ao cujo sentido difere da influencia desse sis­tema de interac;5es corp6reas, interno anatureza, sobrea mente que the e estranha e que, mediante tal influen­cia, percebe a vermelhidao e 0 calor.

A teoria da bifurca~aoe uma tentativa de apresen­tar a ciencia natural como uma investigac;ao quanta a

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causa do fatD do conhecimento, vale dizer, tenta apre­sentar a natureza aparente como uma efluencia cia men­te devida a natureza causal. Toda essa no~ao baseia-separcialmente na admissao implfcita de que a mente s6pode conhecer aquilo que ela mesma produziu e de al­guma forma conserva dentro de si, embora exija umarazao extrfnseca tanto para originar como para deter­minar 0 carater de sua atividade. Ao considerarmos 0

conhecimento, porem, devemos abolir essas metaforasespaciais, como "interno amente" e "externo amen­te". a conhecimento euma instancia ultima. Nao sepode explicar 0 "porque" do conhecimento; s6 pode­mos descrever 0 "que?" do conhecimento. au seja, po­demos analisar 0 conteudo e suas relac;oes internas, masnao podemos explicar por que existe 0 conhecimento.A natureza causal, portanto, e uma quimera metaffsi­ca, embora se fa~a necessaria uma metaffsica cujo al­cance transcenda a limita~ao da natureza. 0 objetivode uma tal ciencia metaffsica nao e explicar 0 conheci­mento, mas expor, em sua mais absoluta completude,nosso conceito de realidade.

Cumpre-nos admitir, no entanto, que a teoria dacausalidade da natureza tern urn sequito respeitavel. Arazao pela qual a bifurca~ao da natureza esta repetida­mente se insinuando pela filosofia cientifica e a extre­ma dificuldade em apresentar a vermelhidao e a calidezpercebidas no fogo em urn sistema unico.de rela~oes comas agitadas moleculas de carvao e oxigenio, com a ener­gia que deles se irradia e com as diversas atividades docorpo material. A menos que se produzam essas rela­~oes de abrangencia total, defrontarno-nos com uma na­tureza bifurcada, ou seja, calidez e vermelhidao por urn

(

lado, e moleculas, eletrons e eter do outro. Assim, osdois fatores sao explicados como sendo respectivamentea causa e a reaC;ao da mente a causa.

o tempo e 0 espa~o aparentemente forneceriam es­sas rela~6es de abrangencia total exigidas por aquelesque defendem a filosofia da unidade da natureza. A ver­melhidao percebida no fogo e 0 calor estao definitiva­mente relacionados no tempo e no espa~o as moleculasdo fo((o e as moleculas do corpo.

E pouco mais que urn exagero desculpavel dizer quea determina~ao do significado da natureza se reduz preci­puamente adiscussao do carater do tempo e do caraterdo espa~o. Em conferencias subsequentes, explicarei meuponto de vista do tempo e do espa~o. Esfor~ar-me-eiemdemonstrar que constituem abstrac;oes a partir de ele­mentos mais concretos da natureza, isto e, dos eventos.A discussao dos detalhes do processo de abstra~ao apre­sentara 0 tempo e 0 espa~o como interligados e, por fim,nos levara ao tipo de re1a~oes entre seus dimensionarnen­tos que se verifica na moderna teoria da relatividade ele­tromagnetica. Mas isso e antecipar nossa linha de de­senvolvimento. Por ora, quero considerar 0 modo co­mo as concep~oes usuais de tempo e espa~o contribuem,ou deixam de contribuir, para unificar nossa concep~ao

da natureza.Primeiramente, consideremos as teorias absolutas

do tempo e do espa~o. Consideraremos cada urn, istoe, tempo e espac;o, como urn sistema separado e inde­pendente de entidades, cada sistema conhecido por nosem si e por si mesmo, simultaneamente a nosso conhe­cimento dos eventos da natureza. 0 tempo e a sucessaoordenada de instantes desprovidos de dura~ao; instantes

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esses que nos sao conhecidos meramente como as ter­mas cia rela\=ao serial que ea rela~ao ordenadora do tem­po, rela'Yao essa, por sua vez, que somente nos econhe­cida como referente aos instantes. Em outras palavras,a rela'Yao e os instantes nos sao conhecidos conjuntamenteem nossa apreensao do tempo, cada urn implicando 0

Dutro.Tal ea teoria absoluta do tempo - e confesso que

me parece bastante implausfvel. Em meu conhecimentopessoal nao ha nada que corresponda ao tempo puro esimples da teoria absoluta. 0 tempo me econhecido comouma abstra~aoderivada da passagem dos eventos. 0 fatofundamental que torna possive! essa abstra~aoea passa­gem cia natureza, seu desenvolvimento, seu avaniYo cnati­vo; e, combinado a esse fata, temos Dutra caracteristicacia natureza, a saber, a relaiYa.o extensiva entre as eventos.Esses dais fatos, quais sejam, a passagem dos eventos ea extensao dos eventos uns sabre as outros, sao, em mi­nha opiniao, as qualidades a partir das quais 0 tempoe 0 espa~o se originam como abstra~6es. Mas isso ean­tecipar minhas pr6prias especula~6es futuras.

Por ora, retornando ateoria absoluta, admitiremosque 0 tempo nos e conhecido independentemente dequaisquer eventos no tempo. 0 que acontece no tem­po ocupa tempo. Essa rela~ao dos eventos com 0 tempoocupado, ou seja, essa rela~ao de ocupa~ao, e uma re­la~ao fundamental da natureza do tempo. Portanto, ateoria exige que estejamos conscientes de duas rela~6es

fundamentais: a rela~ao ordenadora do tempo, entre osinstantes, e a rela~ao de ocupa~ao do tempo, entre os ins­tantes do tempo e os estados da natureza ocorridos nes­ses instantes.

Existem duas considera~6esque prestam substan­cial apoio it teoria dominante do tempo absoluto. Emprimeiro lugar, 0 tempo se estende para alem da natu­reza. Nossos pensamentos estao situados no tempo. Porconseguinte, parece impossivel derivar 0 tempo simples­mente das rela~6es entre elementos da natureza. N essecaso, as rela~6es temporais nao poderiam relacionar pen­samentos. Assim, para lan~ar mao de uma metafora, 0

tempo aparentemente teria raizes mais profundas na rea­lidade do que a natureza. Isso porque podemos imagi­nar pensamentos relacionados no tempo sem nenhumapercep~ao da natureza. Podemos imaginar, por exem­plo, urn dos anjos de Milton cujos pensamentos se su­cedem no tempo, e que casualmente nao percebeu queo Altissimo criou 0 espa~o e ali alojou urn universo ma­terial. A bern da verdade, creio que Milton colocou 0

espa~o no mesmo nivel absoluto que 0 tempo. Mas issonao deve perturbar nosso exemplo. Em segundo lugar,e diffcil derivar da teoria relativista 0 legitimo caraterserial do tempo. Cada instante eirrevogavel. Jamais podereincidir, pelo pr6prio carater do tempo. Mas se na teoriarelativista urn instante de tempo e simplesmente 0 esta­do da natureza naquele momento, e a rela~ao ordena­dora do tempo, simplesmente a rela~ao entre esses esta­dos, 0 carater irrevogave1 do tempo pareceria significarque urn estado atual da natureza como urn todo jamaispode retornar. Admito pare~a pouco provave! que al­guma vez se verificasse tal recorrencia ate 0 minimo de­talhe, mas nao ea extrema improbabilidade que esta emquestao. Nossa ignorancia e tao abissal que nossos jui­zos acerca da probabilidade e da improbabilidade deeventos futuros pouco conta. A questao verdadeira eque

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a exata recorrencia de urn estado da natureza parece me­ramente improvave1, enquanto a recorrencia de urn ins­tante do tempo viola todo 0 nosso conceito de ordem tem­poral. Os instantes do tempo que passaram sao passadoe jamais podem tornar a ser.

Qualquer teoria alternativa do tempo deve ter emconta essas duas considera~oes, verdadeiros sustentaculosda teoria absoluta. Contudo, nao prosseguirei agora emsua discussao.

A teoria absoluta do espa<;o e aniiloga acorrespon­dente teoria do tempo, embora sejam mais frageis as ra­zoes para sustenta-Ia. 0 espa~o, segundo essa teoria, eurn sistema de pontos desprovidos de extensao, que cons­tituem as termos das re1a<;6es ordenadoras do espa<;o tec­nicamente combinaveis em uma unica re1a~ao. Tal re­la~ao nao organiza os pontos em uma serie linear ana­logamente ao metoda simples da re1a<;ao ordenadora dotempo com respeito aos instantes. As caracterfsticas 16­gicas essenciais dessa re1a<;ao da qual todas as proprie­dades do espa<;o derivam sao expressas pe10s matema­ticos nos axiomas da geometria. Com base nesses axio­mas2, tal como estruturados pelos matematicos moder­nos, e possIve1 deduzir a ciencia da geometria em suatotalidade, atraves do mais estrito raciodnio 16gico. Osdetalhes desses axiomas nao nos dizem respeito no mo­menta. Os pontos e as rela~oes nos Sa? conhecidos con­juntamente em nossa apreensao do espa<;o, cada qualimplicando a outro. Aquila que se da no espa<;o ocupa

2. Cf. (por exemplo) Projective Geometry de Veblen e Young, vol. i. 1910,vol. ii. 1917, Ginn and Company, Boston, EVA.

espa<;o. Essa rela<;ao de ocupa<;ao norrnalmente nao e for­mulada para eventos, mas para objetos. Dir-se-ia, parexemplo, que a estatua de Pompeu ocupaespa<;o, mas naoa evento que foi a assassinato de Julio Cesar. Nesse parti­cular, creio que a costume habitual e infeliz e sustento queas relac;6es dos eventos com 0 espac;o e com 0 tempo sao,sob todos os aspectos, anaIogas. Mas iSBa euma intromis­sao de meus pareceres pessoais, que deverao ser discuti­dos em conferencias futuras. A teoria do espa<;o absoluto,assim, exige que atentemos a duas rela<;6es fundamentais:a relac;ao ordenadora do espac;o, que se cia entre pontos,e a rela<;ao de ocupa<;ao do espa<;o entre as pontos de obje­tos espaciais e materiais.

Essa teoria careee dos dais principais sustentaculosda teoria correspondente do tempo absoluto. Em primei­ro lugar, a espa<;o nao se estende para alem da naturezano sentido em que 0 tempo aparentemente 0 faz. Nossospensamentos nao parecem ocupar espac;o exatamente ciamesma forma essencial como ocuparn 0 tempo. Por exem­pIo, estive pensando em uma sala e, nessa medida, meuspensamentos estao situados no espac;o. Mas afigura-se urncontra-senso indagar 0 volume que ocupavam da sala, querse tratasse de urn metro cubico ou urn centfmetro cubico,ao passo que os mesmos pensamentos ocupam uma deter­minada dura~aode tempo, digamos, das onze as doze deuma determinada data.

Assim, enquanto as re1a~5es de uma teoria re1ativis­ta do tempo sao necessarias para relacionar pensamentos,nao parece tao 6bvio que as re1a~5es de uma teoria relati­vista do espa<;o sejam necessarias para re1aciona-Ios. A li­ga<;ao entre pensamento e espa<;o parece imbufda de umcerto carater de indiretividade aparentemente ausente naliga<;ao entre pensamento e tempo.

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Tambem 0 carater irrevogavel do tempo pareee naGter nenhum paralelo com 0 espac;o. Na teoria relativis­ta, 0 espac;o e0 produto de determinadas relac;oes entreobjetos que normalmente se diz situados no espac;o; esempre que existirem as objetos, assim re1acionados, exis­tid. 0 espa,o. Nenhuma dificuldade parece surgir comoaquela dos inconvenientes instantes do tempo que po­deriam, hipoteticamente, tornar a se apresentar quan­do imaginavamos estar livres deles.

A teoria absoluta do espa,o nao desfruta agora deampla popularidade. 0 conhecimento do espa,o puroe simples, como urn sistema de entidades por nos co­nhecido em si e por si, independentemente de nossoconhecimento dos eventos cia natureza, DaD pareee cor­responder a coisa alguma de nossa experiencia. 0 espa­eyo, a exemplo do tempo, pareceria ser uma abstra<;aocom base em eventos. Segundo minha teoria pessoal,e1e apenas se diferencia do tempo em urn estagio algodesenvolvido do processo abstrativo. 0 modo mals usualde expressar a teoria relacional do espac;o seria conside­rar 0 espac;o como uma abstra~ao a partir das rela~6es

entre os objetos materiais.Imaginemos agora que admitimos urn tempo e urn

espa,o absolutos. Qual 0 significado desse pressupostono conceito de uma natureza bifurcada em natureza cau­sal e natureza aparente? Sem duvida, a separa~ao entreas duas naturezas encontra-se agora largamente atenua­da. Podemos prove-las de dois sistemas de rela,6es emcomum, pois e admissivel presumir que ambas as natu­rezas ocupem 0 mesmo espa~o e 0 mesmo tempo. A teo­ria agora e a seguinte: os eventos causais ocupam de­terminados perfodos do tempo absoluto e determinadas

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posi~6es do espa~o absoluto. Tais eventos influenciama mente que, em consequencia, percebe determinadoseventos aparentes que ocupam determinados periodosno tempo absoluto e determinadas posi,6es do espa,oabsoluto; e os periodos e as posi,6es ocupadas pelos even­tos aparentes guardam uma rela~ao determinada comos perfodos e as posi,6es ocupadas pelos eventos causais.

De resto, os eventos causals definidos produzem pa­ra a mente eventos aparentes definidos. As ilus6es saoeventos aparentes surgidos em perlodos temporais e po­si~oes espaciais sem a interven~ao desses eventos cau­sais que sao pr6prios para influenciar a mente no senti­do de sua percep,ao.

A teoria e perfeitamente 16gica em sua totalidade.Nas discussoes presentes, naopodemos esperar levar umateoria infundada a uma contradi,ao 16gica. Urn argu­mentador, aparte meros resvalos, apenas se envolve emuma contradi,ao quando em busca de uma reductio adabsurdum. 0 motivo substancial para a rejei,ao de umateoria filos6fica eo"absurdum" ao qual a mesma nosreduz. No caso da filosofia da ciencia natural, 0 unico"absurdum" possivel e 0 de nosso conhecimento per­ceptivo nao possuir 0 carater a ele atribufdo pe1a teoria.Se nosso oponente afirma que seu conhecimento possuital carater, resta-nos tao-somente - uma vez assegura­do de maneira inequivoca que nos compreendemos mu­tuamente - concordar ou divergir. Nesse sentido, a ta­refa primordial de urn comentador ao enunciar uma teo­ria da qual desacredita eapresenta-Ia como l6gica. Naoe ali que reside 0 seu problema.

Permitam-me sintetizar as obje~oes anteriormentefonnuladas a essa teoria da natureza. Em primeiro lugar,

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ela busca elucidar a causa do conhecimento da coisa co­nhecida em vez de buscar elucidar 0 canher cia coisaconhecida; em segundo lugar, eia admite urn conheci­mento do tempo em si, a parte dos eventos relaciona­dos no tempo; em terceiro, admite urn conhecimento doespa-;o em si, separado dos eventos re1acionados no es­pa<;o. Somam-se a essas obje<;6es outras falhas na teoria.

Podemos lan<;ar alguma luz sobre a condi<;ao arti­ficial da natureza causal nessa teoria indagando por quepressupor que a natureza causal ocupe tempo e espa<;o.1sso traz atona a questao fundamental de sabermos quaiscaracterfsticas cleve tef a natureza causal em COillum coma natureza aparente. Por que - llessa teoria - deveriaa causa, que influencia a mente a percep.yao, ter algu­rna caracterfstica em COillum com a natureza aparenteefluente? Por que haveria, em particular, de estar situadano espa<;o? Por que haveria de estar situada no tempo?E, num sentido mais genedco, que conhecimento dete­mos acerca cia mente que nos autorize a inferir quais­quer caracterfsticas particulares de uma causa que de­veria influenciar a mente no sentido de efeitos parti­culares?

A transcendencia do tempo para alem da naturezaoferece uma tenue razao para se presumir que a natu­reza causal deva ocupar tempo. Pois se a mente ocupaperfodos de tempo, pareceria haver algum motivo vagopara se presumir que as causas influentes ocupam os mes­mos periodos de tempo ou, no minima, periodos estrei­tamente re1acionados aos perfodos mentais. Mas se amente naa ocupa volumes de espa<;o, parece nao havermotivo para que a natureza causal deva ocupar algumvolume do espa<;o. Assim, 0 espa<;o se afiguraria uma

mera aparencia, no mesmo sentido em que a naturezaaparente e mera aparencia. Conseqiientemente, se aciencia esta de fato investigando as causas atuantes namente, pareceria inteiramente descabido presumir queas causas que busca tenham re1a<;6es espaciais. De res­to, nada mais existe, em nosso conhecimento, analogoa essas causas que influenciam a mente apercepc;ao. As­sim, naa existe, alem do fato irrefletidamente presumi­do de que ocupam tempo, realmente base alguma quenos permita determinar qualquer ponto de seu carater.Elas devem permanecer eternamente desconhecidas.

Admitirei agora como urn axioma que a ciencia naoeurn conto de fadas. Nao se dedica a investigar entida­des incognosdveis de propriedades arbitrarias e fantas­ticas. De que se ocupa entao a ciencia, admitinda queesteja empreendendo algo de importante? Minha res­posta e a de que a ciencia esta determinando 0 caraterde coisas conhecidas, vale dizer, 0 caniter da naturezaaparente. Mas podemos e1iminar 0 termo "aparente" ,porquanto existe apenas uma natureza, a saber, a na­tureza calocada diante de nos no conhecimento percep­tivo. Os caracteres que a ciencia distingue na naturezasao caracteres sutis, nao obvios aprimeira vista. Sao re­lac;5es de rela<;6es e caracteres de caracteres. Contudo,em que pese toda sua sutileza, trazem a marca de umacerta simplicidade, 0 que torna sua considera<;ao essen­cial para desembara<;ar as complexas rela<;6es entre ca­racteres de uma insistencia mais perceptiva.

o fato de a bifurca<;ao da natureza em componen­tes causais e aparentes nao expressar 0 que considera­mos ser nosso conhecimento e colocado diante de nosquando atentamos para nossos pensamentos em qual-

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quer discussao sabre as causas de nossas percep~oes. Porexemplo, 0 fogo arde e percebemos urn carvao averme­lhado. A ciencia explica isso como a energia radiantedo carvao a penetrar-nos as olhos. Mas, ao buscar talexplica~ao, nao estamos indagando qual a sorte de ocor­rencias propfcias para levar a mente a perceber 0 ver­melha. A cadeia causal e inteiramente diversa. A men­te e deixada totalmente a parte. A verdadeira questaoe: quando 0 vermelho e encontrado na natureza, queDutra coisa tambem se encontra ali? Em surna, estamosesperando uma analise dos acompanhamentos, na na­tureza, adescoberta do vermelho na natureza. Em umaconferencia posterior deverei estender essa linha de pen­samento. Chama apenas aten~ao a ela aqui no proposi­to de assinalar que a teoria ondulatoria da luz nao foiadotada porque as ondas sao exatamente a tipo de coi­sas que deveriam levar a mente a perceber as cores. Is­so nao pertence ao testemunho jamais aduzido em fa­vor cia teoria ondulat6ria, embora, na teoria causal ciapercep~ao, seja realmente a unica parte relevante. Emoutras palavras, a ciencia nao esta discutindo as causasdo conhecimento, mas a coerencia do conhecimento. 0entendimento perseguido pela ciencia e urn entendimentodas relac;6es internas a natureza.

Ate este ponto, discuti a bifurcac;ao da natureza nocontexto das teorias do tempo absoluto e do espa~o ab­soluto. Minha razao para tal foi que a introdu~ao dasteorias relacionais somente enfraquece a defesa da bi­furca~ao, e pretendi discutir essa defesa em seus funda­mentos mais solidos.

Suponhamos, por exemplo, que se adote a teoriarelacional do espac;o. Nesse caso, 0 espac;o em que a

natureza aparente esta alojada e a expressao de deter­minadas relac;6es entre os objetos aparentes. Eurn con­junto de relac;oes aparentes entre termos relacionais apa­rentes. A natureza aparente e 0 sonho, as relac;6esaparentes do espa~o sao rela~6es oniricas, 0 espac;o e urnespa~o onirico. De modo semelhante, a espa~o em quea natureza causal estii alojada ea expressao de determi­nadas rela~6es entre os objetos causais. Ea expressaode determinados fatos envolvendo a atividade causal quetranscorre nos bastidores. Nesse sentido, 0 espac;o cau­sal pertence a uma ordem diferente de realidade daque­la do espac;o aparente. Por conseguinte, nao existe ne­nhuma liga~ao inequivoca entre ambos e e desproposi­tado afirmar-se que as moleculas da relva se encontramem urn lugar qualquer que guarde uma rela~ao espa­cial definitiva com a lugar ocupado pela relva que per­cebemos. Tal conclusao esobremodo paradoxal e reduza urn contra-senso toda a fraseologia cientffica. 0 casotorna-se ainda mais grave se admitimos a relatividadedo tempo. Isso porque as mesmos argumentos se apli­cam e desmembram 0 tempo em urn tempo onirico eurn tempo causal, pertencentes a diferentes ordens derealidade.

Estou discutindo, porem, uma forma extremada dateoria da bifurcaC;ao. Trata-se, ereio, de sua forma maisdefensavel. Contudo, seu proprio earater explicito tor­na-a tanto mais evidentemente permeavel aeritiea. Aforma intermediaria permite que a natureza em diseus­sao seja sempre a natureza diretamente eonhecida e, nes­sa medida, ela rejeita a teoria cia bifurca~ao. Sustenta,porem, a existencia de acreseimos psiquieos anaturezatal como conheeida e que tais acreseimos nao eonstituem,

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em nenhum senfido pertinente, partes cia natureza. Per­cebemos, por exemplo, a bola vermelha de bilhar emseu tempo particular, em seu lugar particular, com seumovimento particular, sua rigidez particular e sua inerciaparticular. Mas sua vermelhidao e seu calor, bem co­mo 0 estalido ao colidir com Dutra bola, constituem acres­cimos psfquicos, vale dizer, qualidades secundarias quesao apenas 0 modo pelo qual a mente percebe a nature­za. Essa naD eapenas a teoria vagamente predominan­te, mas antes, penso eu, a forma historica cia teoria ciabifurca~ao na medida em que esta e derivada da filoso­fia. Passarei a chama-Ia teoria dos acn§scimos psfquicos.

Essa teoria dos acrescimos psfquicos euma bern fun­damentada teoria baseada no born senso, que enfatizaenormemente a flagrante realidade do tempo, do espa­c;o, cia solidez e cia inercia, mas que nao da credito aosacrescimos artfsticos menores cia COf, cia calidez e do som.

A teoria e produto do bom senso em retirada. Seuaparecimento deu-se numa epoca em que eram e1abo­racias as teorias cientfficas cia propaga~ao. A cor, porexemplo, resulta de uma propaga~aooriginada no ob­jeto material e dirigida ao olho daquele que percebe; ea que se propaga, assim, naD ea cor. Logo, a cor DaD

pertence it realidade do objeto material. Da mesma for­ma, e pela mesma razao, as sons evaporam-se cia natu­reza. Tambem 0 calor se cleve a transferencia de algadiverso cia temperatura. Restam-nos, assim, posi~oes

espa~o-temporaise algo que posso qualificar de "impul­sividade" do carpo. 0 que nos remete ao materialismodos seculos XVIII e XIX, ou seja, it crenp de que arealidade cia natureza ea materia no tempo e no espa­<;0, e dotada de inercia.

Evidentemente, foi pressuposta uma distin<;ao emqualidade a separar, de outras percep<;oes, algumas per­cep~6es oriundas do tatoo Essas percep~6esoriundas dotate sao percep<;oes cia legftima inercia, enquanto as de­mais constituem acrescimos psfquicos a serem explica­dos pela teoria causal. Tal distin~ao e produto de umaepoca na qual a ciencia fisica tamau a dianteira cia pa­tologia medica e da fisiologia. As percep~6esde impul­so sao tanto 0 resultado da propaga~aocomo as percep­~6es de cor. Quando a cor e percebida, os nervos doorganismo sao estimulados em determinado sentido etransmitem sua mensagem para 0 cerebro, e quando sepercebe urn impulso outros nervos do organismo sao es­timulados em urn sentido diverso e transmitem sua men­sagem para 0 cerebro. A mensagem da primeira situa­~ao nao e a transmissao da cor, e a mensagem da se­gunda nao e a transmissao do impulso. Mas, no primeirocaso temos a percep~ao da cor e, no segundo, do impul­so devido ao objeto. Se fizermos um corte em determi­nados nervos, a percep~ao da cor deixara de existir, secortarmos outros nervos, a percep~ao do impulso dei­xara de existir. Quer nos parecer, portanto, que quais­quer razoes que determinassem por eliminar a cor darealidade da natureza haveriam de determinar tambema elimina~ao da inercia.

Assim, a perseguida bifurca~ao da natureza apa­rente em duas partes, das quais uma ecausal tanto pa­ra sua propria aparencia como para a aparencia da ou­tra parte, que epura aparencia, cai por terra devido aimpossibilidade de se estabelecer qualquer distin~ao fun­damental entre nossos meios de conhecer acerca das duaspartes da natureza assim compartimentada. Nao nego

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que a sensa~ao de esfor~omuscular tenha, historicamen­te, conduzido ao conceito de forl,;a. Esse fatD historica,no entanto, nao nos autoriza a atribuir uma realidadesuperior na natureza a inercia material, acima cia corau do sam. No que diz respeito arealidade, tadas as nos­sas percep~6es sensoriais estao no meSilla barco e de­vern ser tratadas segundo a mesmo principia. Eqiiida­de de tratamento eexatamente 0 que essa teoria transi­gente deixa de atingir.

A teoria cia bifurca~ao, todavia, nao se extingue comfacilidade. A razao e que existe efetivamente uma difi­culdade a ser enfrentada, no sentido de se estabelecer,no ambito de urn meSilla sistema de entidades, a rela­~ao entre a vermelhidao do fogo e a agita~ao das moJe­culas. Apresentarei, em Dutra conferencia, minha ex­plica~ao pessoal da origem dessa dificuldade e de sua so­lu~iio.

Gutra solu~ao favorita, a forma mais abrandada as­sumida pe1a teoria cia bifurca<;ao, esustentar que as mo­leculas e 0 eter cia ciencia sao puramente conceituais.Existe, portanto, uma unica natureza, a saber, a natu­reza aparente, sendo os Momos e 0 eter meras designa­~6es de termos l6gicos empregados nas f6rmulas concei­tuais de calculo.

Mas a que e uma f6rmula de calculo? Supostamentee urn enunciado em que determinada coisa qualquer everdadeira com respeito as ocorrencias- naturais. Tome­mos a mais elementar de todas as formulas: dois e doissomam quatro. Tal f6rmula - ate onde se apEca ana­tureza - assevera que se tomarmos duas entidades na­turais e em seguida duas outras entidades naturais, 0

conjunto formado conteni quatro unidades naturais. Tais

55TEORIAS DA BIFURCAr;:AO DA NATUREZA

f6rmulas, validas para quaisquer entidades, nao podemresultar na cria<;ao dos conceitos dos Momos. Par outrolado, existem f6rmulas que asseverarn a existencia, nanatureza, de entidades com tais e tais propriedades es­peciais, digamos, par exemplo, com as propriedades dosatomos de hidrogenio. Ora, se tais entidades nao exis­tern, nao consigo perceber de que modo quaisquer enun­eiados a seu respeito podem aplicar-se anatureza. A as­ser<;ao, por exemplo, da existencia de queijo verde naLua nao pode ser premissa de nenhuma dedu~ao de re­levaneia eientffiea, a menos, efetivamente, que a pre­sen~a de queijo verde na Lua haja sido comprovada atra­ves de experimento. A resposta corrente a essas obje­<;5es e que, embora os <ltomos sejarn meramente eon­ceituais, constituem, ainda assim, uma forma interes­sante e viva de dizer alga diverso, porem verdadeiro,acerca da natureza. Mas se e algo diverso que voce temem mente, pelo amor de Deus, diga-o com clareza.Livre-se desse intrincado mecanismo de uma naturezaconceitual que eonsiste em asser<;oes acerca de coisas ine­xistentes com 0 proposito de transmitir verdades aeereade coisas que realmente existem. Defendo a posi~ao 6b­via de que as leis cientfficas, se verdadeiras, sao enun­ciados sabre entidades das quais adquirimos conhecimen­to por estarem na natureza, e que se as entidades as quaisse referem os enunciados nao forem encontradas na na­tureza, os enunciados a seu respeito nao tem re1evanciapara ocorrencia alguma puramente natural. Portanto,as moleeulas e eletrons da teoria cientifica sao, ambos ­ate onde a ciencia formulou corretamente suas leis -,fatores a serem encontrados na natureza. Os eletrons saoapenas hipotetieos, na medida em que nao temos cer-

o CONCEITO DE NA TUREZA54

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teza absoluta da veracidade da teoria do eletran. Mas,o carater hipotetico dos eletrons nao nasce cia naturezaessencial cia teoria em si mesma tao logo sua verdadetenha sido afiangada.

Assim, ao termino dessa discussao urn tanto com­plexa, retornamos a posi~ao que afirmamos no inicio.A tarefa primordial de uma filosofia da ciencia naturaleelucidar 0 conceito de natureza, considerada urn tinieDfata complexo para 0 conhecimento; expor as entidadesfundamentais e as relag6es fundamentais entre entidadesem cujos termos todas as leis cia natureza devem ser es­tabelecidas, e afiangar que as entidades e relag6es assimexpostas sao adequadas it expressao de todas as relag6esentre entidades que tern lugar na natureza.

o terceiro requisito, isto e, 0 cia adequac;ao, eo quegera toda a dificuldade. Tempo, espago, materia, qua­lidades cia materia e relac;5es entre objetos materiais saonormalmente admitidos como as dados fundamentais daciencia. Da forma como aparecem nas leis cientfficas,porem, as clados nao relacionam 0 conjunto das entida­des que se apresentam em nossa percepgao da nature­za. Por exemplo, a teoria ondulatoria da luz e uma teo­ria primorosa e bern estabelecida; infelizmente, porem,ela exclui a cor tal como esta e percebida. Assim, 0 ver­melho percebido - au outra cor - deve ser recortadoda natureza e convertido na rea~ao da mente sob 0 im­pulso dos verdadeiros eventos da natureza. Em outraspalavras, esse conceito das re1ac;6es fundamentais no am­bito da natureza e inadequado. Cumpre-nos, portanto,voltar nossas energias para 0 enunciado de conceitos ade­quados.

Ao faze-Io, porem, nao estaremos na verdade bus­cando solucionar urn problema metaffsico? Nao creio.Estaremos apenas procurando expor 0 tipo de rela~6es

existentes entre as entidades que de fato percebemos co­mo presentes na natureza. Nao somos chamados a fa­zer nenhum pronunciamento sobre a relac;ao psicologi­ca entre sujeitos e objetos au sabre a posigao ocupadapar cada urn no domfnio da realidade. E verdade quea resultado de nosso esforgo pode fornecer material deimportancia enquanto testemunho re1evante para umadiscussao dessa questao. Dificilmente isso deixara deacontecer. Trata-se, porem, de simples testemunho e naoconstitui em si uma discussao metaffsica. Para deixarclaro a carater dessa discussao adicional que est" forade nosso alcanc;e, apresentarei a voces duas cita~6es. Aprimeira, de Schelling, e extrafda da obra do m6sofo rus­so Lossky, recentemente traduzida com tanto primor pa­ra 0 ingles3 - "Considerei, na 'Filosofia da Natureza',o sujeito-objeto denominado natureza em sua atividadede autoconstru~ao.Para compreender isso, devemo-nosalgar a uma intuigao intelectual da natureza. 0 empi­rista nao se alc;a a essa altura e, por essa razao, em to­das as suas explicag6es e sempre ele proprio que se revelaa construir a natureza. Nao admira, pois, que sua cons­truc;ao e aquilo que deveria ser construido tao raramentecoincidam. Urn Natur-philosoph alga a natureza it condi­c;ao de independencia, faz com que construa a si pro­pria e jamais e acometido, portanto, pela necessidade

3. TheIntuitive Basis of Knowledge, de N. O. Lossky, tracl. da sra. Dud­dington, Macmillan and Co., 1919.

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de contrapor a natureza tal como construfda (i.e., comoexperiencia) anatureza real, ou de corrigir a primeirapor intermedio cia segunda."

A outra cita9ao e de urn ensaio lido pelo deao deSt. Paul para a Sociedade Aristotelica em maio de 1919.o ensaio do dr. luge intitula-se "Platonismo e Imorta­lidade Humana", e nele aparece a seguinte afirma<;ao:

"Resumindo, a doutrina plat8nica cia imortalidadeapoia-se na independencia do mundo espiritual. 0 mun­do espiritual nao eurn muncio de ideais nao realizados,acima de, e em contraposi<;ao a, urn muncio real de fa­tos nao-espirituais. Trata-se, pelo contrario, do muncioreal, do qual possufmos urn conhecimento verdadeiro,embora bastante incompleto, acima de, e em contrapo­si<;ao a, urn muncio cia experiencia ordinaria, 0 qual, co­mo urn todo completo, e desprovido de realidade, umavez que compactado a partir de uma miscelanea de da­dos, nem todos situados no meSilla nfvel, com a ajudada imagina9ao. Nao existe mundo algum que correspon­da ao mundo de nossa experiencia ordinaria. A nature­za forja-nos abstra90es, decidindo qual espectro de vi­brac;.oes deveremos enxergar e ouvir e que coisas deve­remos perceber e recordar."

Citei essas afirma90es porque ambas lidam com to­picos que, embora extrfnsecos ao ambito de nossa dis­cussao, sao sempre confundidos com ela. A razao e queestao proximos a nosso campo do pensamento e sao to­picos de enorme interesse para a mente metaffsica. Ediffci! a urn filosofo se dar conta de que alguem estejarealmente confinando sua discussao nos limites que ex­pus a voces. 0 limite se ergue exatamente ali onde elecomec;.a a ganhar entusiasmo. Afirmo-Ihes, porem, que

entre os prolegomenos necessarios afilosofia e aciencianatural esta um entendimento integral dos tipos de en­tidades, e dos tipos de relac;oes entre tais entidades, anos revelados em nossas percepc;oes da natureza.

58 a CONCE/TO DE NATUREZA

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TEaR/AS DA B/FURCA9AO DA NATUREZA 59

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CAPITULO III

o TEMPO

As duas conferencias anteriores deste cicio tiveramurn carater preponderantemente entico. Nesta conferen­cia, proponho-me a entabular uma investigae;ao dostipos de entidades apresentadas ao conhecimento naapreensao senslvel. Meu prop6sito e investigar as mo­dalidades de rela<;6es que essas entidades de diferentestipos podem guardar entre si. Uma classifica<;ao das en­tidades naturais e 0 preludio da filosofia natural. Co­me<;aremos hoje com a considera<;ao do Tempo.

Em primeiro lugar, e-nos apresentado urn fato ge­ral, a saber, que algo est:i se passando; h:i uma ocor­rencia a ser definida.

Esse fato geral de pronto oferece it nossa apreen­sao dais fatores, aos quais denominarei 0 "discernido"eo "discernfvel". 0 discernido compreende aqueles ele­mentos do fato geral discriminados com suas propriaspeculiaridades individuais. E 0 campo percebido dire­tamente. Contudo, as entidades desse campo guardamrelae;oes com outras entidades nao particularmente dis-

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62 o CONCE/TO DE NA TUREZA o TEMPO 63

criminadas dessa forma individual. Essas outras entida­des sao conhecidas meramente como as termos relacio­nados as entidades do campo discernido. Tal entidadeeurn mera "alga", dotado de tais e tais relac;6es defini­das com alguma entidade ou entidades definidas no cam­po discernido. Vma vez assim relacionadas, elas sao ­grac;as ao carater particular dessas relac;6es - conheci­das como elementos do fato geral em curso. Contudo,nao temos consciencia delas senao como entidades cum­prindo as fun~6es de termos dessas rela~6es.

Assim, 0 fato geral completo, apresentado durantesua ocorrencia, compreende ambos as conjuntos de en­tidades, a saber, as entidades percebidas em sua pro­pria individualidade e outras entidades apreendidas me­ramente como termos relacionais sem outras definic;oes.Esse fato geral completo e 0 discernfvel e compreendeo discerndo. 0 discernido e a natureza no seu todo talcomo revelada naquela apreensao sensfvel; e estende-separa alem cia natureza e a compreende no seu todo, talcomo efetivamente discriminada au discernida em talapreensao sensfvel. 0 discernimento au discriminac;aocia natureza e uma apreensao peculiar de fatores espe­ciais da natureza com respeito a seus caracteres pecu­liares. Mas os fatores da natureza dos quais possufmosessa peculiar apreensao sensfvel sao conhecidos como naoabrangendo todos os fatores que, no conjunto, formamo todo complexo de entidades relacionadas compreen­didas no fato geral ali apresentado para 0 discernimen­to. E a essa peculiaridade do conhecimento que deno­mino seu carMer inexaurfvel, caniter que pode ser des­crito metaforicamente pela afirma~ao de que a nature­za tal como percebida contem sempre uma borda desi-

gual. Por exemplo, existe urn mundo para alem da salaaqual nossa visao esta confinada e que sabemos com­pletar as rela~6es espaciais das entidades percebidas nointerior da sala. A jun~ao do mundo interior da sala como mundo exterior existente alem dela jamais e bern de­finida. Os sons e os fatores mais sutis revelados naapreensao sensfvel afluem a partir do externo. Cada ti­po de sentido conta com seu proprio corpo de entidadesdiscriminadas, conhecidas enquanto termos relaciona­dos a entidades nao discriminadas por tal sentido. En­xergamos algo que nao tocamos e tocamos algo que naoenxergamos, e possufmos urn sentido geral das rela~oes

espaciais entre a entidade revelada na visao e a entida­de reve1ada no tatoo Em primeiro lugar, portanto, cadaqual dessas duas entidades e conhecida como urn termorelacional em urn sistema geral de rela~oes espaciais e,em segundo lugar, e determinada a rela~ao mUtua par­ticular dessas duas entidades enquanto mutuamente re­lacionadas nesse sistema geral. Mas 0 sistema geral dere1a~oes espaciais que relaciona a entidade discrimina­da pela visao aquela discriminada pelo tato nao depen­de do carliler peculiar da outra entidade tal como regis­trado pelo sentido alternativo. Por exemplo, as rela~6es

espaciais da coisa vista teriam necessitado de uma enti­dade, enquanto termo relacional, no lugar da coisa to­cada, ainda que certos elementos de seu carater nao hou­vessem sido revelados pelo tatoo Assim, aparte 0 tato,uma entidade dotada de determinada rela~ao especfficacom a coisa vista teria sido revelada na apreensao sen­sfve1, mas nao discriminada sob outros aspectos com res­peito a seu carater individual. Ea uma entidade conheci­da apenas enquanto espacialmente relacionada a alguma

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entidade discernida que designamos pela ideia pura esimples de "lugar". 0 conceito de lugar marca a reve­la~ao, na apreensao sensfvel, de entidades cia naturezaconhecidas meramente por suas relal;oes espaciais comentidades discernidas. Ea reve1a~ao do discernive1 atra­yes de suas re1a~oes com 0 discernido.

Essa revelal;ao de uma entidade como termo rela­cional sem discriminal;oes especfficas Qutras quanta aqualidade e 0 fundamento de nosso conceito de signifi­cado. No exemplo acima a coisa vista era significativa,no sentido de que revelava sua relal;ao espacial com ou­tras entidades nao necessariamente penetrando de ou­tro modo a consciencia. Portanto, significado e re1al;ao,mas relac;;ao com a enfase em uma extremidade apenasda rela~ao.

A bern cia simplicidade, restringi meu raciocfnio asrela<;6es espaciais; as mesmas considera~6es,porem, seaplicam as rela~6es temporais. 0 conceito de "perfodode tempo" marca a revela~ao, na apreensao sensfvel,de entidades da natureza conhecidas unicamente atra­yes de suas rela~6es temporais com entidades discerni­das. Mais ainda, essa separa~ao das ideias de espa~o etempo foi adotada meramente em nome de uma simpli­cidade de exposi~ao, obtida atraves da conformidade coma linguagem corrente. Aquilo que discernimos e 0 cara­ter especffico de urn lugar atraves de urn periodo de tem­po. Eisso que entendo por urn "evento". Discernimosalguns caracteres especificos de urn evento. Mas, ao dis­cernir urn evento, tambem estamos conscios de seu sig­nificado enquanto termo re1acional na estrutura de even­tos. Essa estrutura de eventos e 0 complexo de eventostais como relacionados pelas rela~6es de extensao e co-

grediencia. A expressao mais simples das propriedadesdessa estrutura pode ser encontrada em nossas rela~6es

espaciais e temporais. Urn evento discernido e conheci­do enquanto relacionado, nessa estrutura, a outros even­tos cujos caracteres espedficos nao sao reve1ados sob ou­tros aspectos naquela apreensao imediata, exceto na me­dida em que sao termos re1acionais compreendidos naestrutura.

A reve1a~ao da estrutura de eventos na apreensao sen­sivel estabelece uma classifica~ao dos mesmos em duascategorias: eventos discernidos com respeito a algum cara­ter individual adicional e aqueles que tao-somente sao re­velados na qualidade de elementos da estrutura. Esseseventos denotados devem necessariamente incluir even­tos do passado remoto, bern como eventos pertencentes aofuturo. Tais eventos nos sao apreendidos como os perfodoslongfnquos do tempo ilimitado. Existe, porem, outra c1as­sifica~ao de eventos, tambem inerente a apreensao sensf­vel. Refere-se ela aos eventos que partilham do imediatis­mo dos eventos discemidos imediatamente presentes. Saoeventos cujos caracteres, somados aque1es dos eventos dis­cernidos, compreendem a natureza total presente parao discernimento. Formam 0 fato geral completo que eanatureza por inteiro orayresente, tal como revelada nes­sa apreensao senslvel. E nessa segunda classifica~aodeeventos que a diferencia~ao entre espa~o e tempo tern suaorigem. 0 germe do espa~o pode ser encontrado nasmutuas rela~6es dos eventos compreendidos no fato ge­ral imediato que e a natureza total ora discernfve1, ou se­ja, compreendidos no evento singular que e a totalidadeda natureza presente. As rela~6esde outros eventos comessa totalidade da natureza formam 0 tecido do tempo.

65o TEMPOo CONCEITO DE NA TUREZA64

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66 o CONCE/TO DE NA TUREZA o TEMPO 67

A unidade desse fato geral presente esta expressano conceito de simultaneidade. a fato geral ea total ocor­rencia simultanea cia natureza ora presente para aapreensao senslve!. E a esse fato geral que denomineio discernivel. No futuro, porem, 0 chamarei de uma"dura~ao", referindo-me, por esse terma, a uma certatotalidade de natureza limitada tao-somente pe!a pro­priedade de constituir uma simultaneidade. Outrossim,em obediencia ao principia de delimitar anatureza 0 ter­rno completo cia apreensao sensfvel, naD se cleve CDnce­ber a simultaneidade como urn conceito mental irrele­vante impasto anatureza. Nossa apreensao senslvel apre­senta, para urn discernimento imediato, uma certa to­talidade, aqui denominada uma "durac;ao"; portanto,uma dura~aoeuma entidade natural definida. Uma du­rac;ao ediscriminada como urn complexo de eventos par­ciais, dande se afirma que as entidades naturais que com­poem esse complexo sao "simultaneas a essa durac;ao".Sao, ainda, em urn sentido derivativo, simultaneas en­tre si com respeito a essa dura~ao. A simultaneidade,portanto, euma rela~ao natural definida. Talvez 0 ter­mo "dura~ao" seja improprio, na medida em que ape­nas sugere uma extensao abstrata de tempo. Nao e issoo que entendo por dura~ao. Uma dura~ao euma fatiaconcreta da natureza limitada pe!a simultaneidade, fa­tor" essencial revelado na apreensao sensfvel.

A natureza eurn processo. A exemplo de tudo quan­to e diretamente demonstrado na apreensao sensfvel, naoha explica~aoposslve! para essa caracterlstica da natu­reza. Tudo 0 que se pode fazer eempregar uma lingua­gem capaz de demonstra-Io especulativamente, bern co­mo expressar a rela~ao que esse fato da natureza guar­da com outros fatores.

o fato de cada dura~ao ocorrer e passar constituiuma demonstra~aodo processo da natureza. 0 proces­so da natureza tambem pode ser denominado "a passa­gem da natureza". Evito de!iberadamente, no presenteestagio, 0 emprego da palavra "tempo", porquanto 0

tempo mensuravel, da ciencia e da vida civilizada, emgeral demonstra apenas alguns aspectos do fato mais fun­damental da passagem da natureza. Acredito estar depleno acordo, nessa doutrina, com Bergson, embora eleempregue 0 termo "tempo" para se referir ao fato fun­damental que denomino a "passagem da natureza". Apassagem da natureza, ainda, e igualmente demonstra­da pe!a transi~ao espacial e pe!a transi~ao temporal. Eem virtude dessa passagem que a natureza esta sempreem movimento. a significado dessa propriedade de "mo­vimento" envolve 0 fato de que nao apenas qualquerato de consciencia sensorial e tao-somente aquele ato enenhum outro, como 0 termo de cada ato e tambem uni­co e nao constitui 0 termo de nenhum outro ato. Aapreensao sensfvel agarra sua unica chance e apresentapara 0 conhecimento algo exclusivamente destinado a ele.

o termo da apreensao sensivel e unico em dois sen­tidos. Eunico para a apreensao sensfvel de uma menteindividual e unico para a apreensao senslvel de todasas mentes que atuam sob condif;oes naturais. Ha umaimportante distin~ao entre os dois casos. (il Para umamente individual, nao apenas 0 componente discernidodo fato geral edemonstrado em qualquer ato de apreen­sao senslve! distinto do componente discernido do fatogeral demonstrado em qualquer outro ate de apreensaosensfvel daquela mente, como as duas duraf;oes corres­pondentes, respectivamente relacionadas pela simulta-

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neidade aos dais componentes discernidos, sao necessa­riamente distintas. Essa euma demonstra<;ao cia passa­gem temporal da natureza: uma dura<;:ao passou paraDutra. Portanto, naD apenas e a passagem cia naturezaurn carMer essencial cia natureza em sua fun(iiO de ter­rno cia apreensao sensfvel, mas e tambern essencial pa­ra a apreensao sensfvel em si mesma. E essa verdadeque confere ao tempo a impressao de estender-se paraa1em da natureza. Mas 0 que para a mente se estendepara alem cia natureza nao e0 tempo seqiiencia! e men­sunivel, que apenas demonstra 0 carater de passagemda natureza, mas a qualidade da propria passagem, quede modo algum emensuravel, exceto na propon;ao emque prevalece na natureza. Em outras palavras, a "pas­sagem" nao emensuravel, a nao ser na medida em queocorre na natureza conjuntamente com a extensao. Napassagem, alcan<;amos uma conexao cia natureza coma realidade metafisica ultima. A qualidade da passagemem durac;5es e uma demonstrac;ao particular, na natu­reza, de uma qualidade que se estende para a1em da na­tureza. A passagem, por exemplo, e uma qualidade naoapenas cia natureza, que ea coisa conhecida, mas tam­bern cia apreensao sensivel, que e0 processo cognitivo.As dura<;:oes tern toda a realidade que a natureza pos­sui, embora DaD precisemos determinar agora 0 que is­so possa ser. A mensurabilidade do tempo e derivativadas propriedades das dura<;:oes. Assim tambem 0 cara­ter seqiiencial do tempo. Verificaremos que existem nanatureza sistemas temporais seqiienciais divergentes, de­rivados de diferentes familias de dura<;:oes. Sao uma pe­culiaridade do carater da passagem tal como encontra­cia na natureza. Esse carater tern a realidade cia natureza,

69o TEMPO

mas DaD devemos necessariamente transferir 0 temponatural para entidades extranaturais. (ii) Para duas men­tes, os componentes discernidos dos fatos gerais demons­trados em seus respectivos atDs de apreensao sensfvel de­vern ser diferentes. Pais que cada mente, em sua apreen­sao cia natureza, apreende urn determinado complexode entidades naturais relacionadas, em suas relac;5es como organismo vivo enquanto urn foco. As durac;5es asso­ciadas, POrell, podem ser identicas. Aqui, ja estamosabordando aque!e carater da natureza passante originadonas re!a<;:oes espaciais dos corpos simultaneos. Essa pos­SIVe! identidade das dura<;:oes no casa da apreensaosenslvel de mentes distintas e 0 que enfeixa em uma unicanatureza as experiencias particulares dos seres dotadosde percep<;:ao. Estamos considerando aqui 0 lado espa­cial da passagem da natureza. Para a mente, a passa­gem, nesse aspecto, tambem parece estender-se paraalem da natureza.

Eimportante distinguir simultaneidade de instan­taneidade. Minha enfase nao recai sobre 0 mero uso cor­rente de ambos os termos. Existem dois conceitos quepretendo distinguir, aos quais denomino simultaneida­de e instantaneidade. Espero que as palavras tenham sidocriteriosamente escolhidas; mas na verdade pouco im­porta, conquanto eu consiga explicar 0 que pretendo de­signar. Simultaneidade e a propriedade de urn grupo deelementos naturais que em algum sentido sao compo­nentes de uma dura<;:ao. Uma dura<;:ao pode ser tantoa natureza como urn todo presente quanta 0 fato ime­diato apresentado pe!a apreensao senslvel. Uma dura­c;ao retem em si a passagem da natureza. Dentro delaencontrarn-se antecedentes e conseqiientes que tarnbem

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saO dura~6es que podem ser completos presentes espe­ciosas de consciencias mais velozes. Isto e, uma dura­~ao retem uma densidade temporal. Qualquer conceitocia natureza como urn todo imediatamente conhecida esempre 0 conceito de alguma dura~ao, embora esta possaser alargada em sua densidade temporal para alem dopossive! presente especioso de qualquer ente por nos co­nhecido como existente na natureza. A simultaneidade,portanto, eurn fator ultimo cia natureza, imediato paraa apreensao sensfvel.

A instantaneidade e urn conceito logico complexode urn processo de pensamento por meio do qual se pro­duzem entidades 16gicas em nome cia simples expressao,no pensamento, de propriedades cia natureza. A instan­taneidade e 0 conceito cia natureza como urn todo emurn instante, cnde urn instante e concebido como pri­vado de qualquer extensao temporal. Por exemplo, pen­samos sabre a distribui~ao cia materia no espa<.;o em urninstante. Trata-se de urn conceito altamente providen­cial na ciencia, especialmente na matematica aplicada;mas € uma id€ia altamente complexa no que diz respei­to a suas relal.;oes com os fatos imediatos da apreensaosensivel. A natureza em um instante apresentada pelaapreensao sensivel € algo inexistente; 0 que a apreen­sao sensivel franqueia para 0 conhecimento e a nature­za ao longo de um perfodo. Consequentemente, umavez que nao e em si mesma uma entidade natural, a na­tureza em um instante deve ser definida em termos deentidades naturais genuinas. A menos que assim pro­cedamos, nossa ciencia, que adota 0 conceito de natu­reza instantanea, deve abandonar toda e qualquer ale­ga~ao de estar fundamentada na observa~ao.

Usarei 0 termo "momento" para me referir a "na­tureza como um todo em urn instante". Urn momento,na acepl.;ao em que 0 termo e aqui empregado, e des­provido de qualquer extensao temporal e cleve ser con­trastado com uma dura~ao provida de tal extensao. 0que e diretarnente oferecido ao nosSo conhecimento atra­yes da apreensao sensivel e uma clural.;ao. Assim sendo,cumpre-nos explicar agora como os momentos sao de­rivados das dural.;oes, bern como 0 prop6sito a que ser­ve a introdul.;ao dos mesmos.

Urn momenta eurn limite do qual nos aproxima­mos amedida que confinamos a atenl.;ao a dural.;oes deextensao minima. As relal.;oes naturais entre os ingre­dientes de uma dura~ao ganbam em complexidade quan­do consideramos dural.;oes de extensao temporal cres­cente. Por conseguinte, existe uma aproximal.;ao asim­plicidade ideal amedida que nos aproximamos de umadiminui~ao ideal de extensao.

A palavra "limite" tern urn significado precise na16gica numerica e mesmo na 16gica das series unidimen­sionais a-numericas. Do modo empregado aqui, trata-se,ate agora, de simples metafora, e e necessario explicardiretarnente 0 conceito que se pretende 0 termo indique.

As dura~6es podem apresentar a propriedade rela­cional binaria de se estenderem uma sobre a outra. As­sim, a dural.;ao que e a natureza como urn todo em de­terminado minuto se estende sobre a dural.;ao que e anatureza como urn todo durante 0 30~ segundo daque­Ie minuto. Essa relal.;ao de "estender-se sobre" - "ex­tensao" como a chamarei - e uma relal.;ao nat~ral b:i­sica, cUj~ campo compreende mais que dural.;oes. Eumarela~ao que dois eventos limitados podem guardar entre

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si. AIem disso, enquanto verificada entre dura~6es, a re­la~ao parece referir-se aextensao puramente temporal.Sustentarei, no cntanto, que a mesma rela~ao de exten­sao jaz na base tanto da extensao temporal quanta daespacial. Tal discussao pode ser adiada; nosso interes­se, por ora, reside simplesmente na rela-;;ao de extensaotal como ocorre em seu aspecto temporal no que toeaao limitado campo das dura~6es.

o conceito de extensao demonstra no pensamentouma face da passagem ultima da natureza. Essa rela~ao

se verifica em razao do caniter especial assumido pelapassagem na natureza; ea rela~ao que, no caso das du­ra<.;oes, expressa as propriedades de "sobrepassar". As­sim, a dura<;ao, que era urn minuto definido sobrepas­sou a dura~ao que era seu 30~ segundo. A dura~ao do30~ segundo era parte da dura~ao do minuto. Adotareias termos "todo" e "parte" exclusivamente neste sen­tida, senda a "parte" urn evento sobre-estendido peIooutro evento que e 0 "todo". Em minha nomenclatu­ra, portanto, "todo" e "parte" referem-se exclusiva­mentc a cssa re1a<;ao fundamental de extensao; e nessaacepC;ao tecnica, conseqiientemente, s6 os eventos po­dem constituir quer todos quer partes.

A continuidade da natureza origina-se da extensao.Cada evento estende-se por sobre outros eventos e porsobre cada evento estendem-se outros eventos. Portan­to, no caso especial de durac;oes, por ora os unicos even­tos diretamente considerados, cada dura~ao e parte deoutras durac;6es; e cada durac;ao contem outras dura­~6es que sao partes dela. Nesse sentido, nao existem du­rac;oes maximas ou durac;oes mlnimas. Nao ha, portanto,uma estrutura atomica das durac;oes, e a definic;ao per-

feita de uma dura~ao,de modo a assinalar sua individuali­dade e distingui-la das dura~6esquase anaJogas sobre asquais esta passando, ou que passam sobre ela, e urn postu­lado arbitnirio do pensamento. A apreensao sensfvel apre­senta as durac;5es como fatores da natureza, mas nao auto­riza claramente 0 pensamento a utiliza-la para distinguiras individualidades separadas das entidades de urn grupoafim de dura~6es ligeiramente divergentes. Este e urnexemplo da indeterminabilidade da apreensao sensfvel.A exatidao eurn ideal do pensamento e s6 se realiza naexperiencia pela seleC;ao de uma rota de aproximac;ao.

A ausencia de durac;oes maximas e mlnimas naoesgota as propriedades da natureza que formam sua con­tinuidade. A passagem da natureza envolve a existen­cia de uma familia de dura~6es. Quando duas dura~6es

pertencem amesma famnia, pode acontecer que umacontenha a outra ou que se sobreponham mutuamenteem uma dura~ao subordinada em que nenhuma conte­nha a outra; ou entao que sejam completamente isola­das. 0 caso exclufdo e aquele em que as dura~6es

sobrepoem-se em eventos finitos, mas sem conter umaterceira durac;ao enquanto parte comum.

E6bvio que a rela~ao de extensao etransitiva. Ouseja, aplicada a dura~6es, temos que: se a dura~ao A eparte da dura~ao B e a dura~ao B e parte da dura~ao

C, entao A eparte de C. Portanto, os dois primeiros ca­sos podem ser combinados em urn unico e poderemosdizer que duas durac;oes que pertencem amesma fami­lia ou serao tais que haveni dura~6es que sao partes deambas ou serao totalmente isoladas.

Tambem 0 inverso everdadeiro, isto e, se duas du­rac;oes contem outras durac;oes que sao partes de ambas

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o CONCE/TO DE NA TUREZA o TEMPO 75

ou se as duas dire-;5es sao completamente isoladas, am­bas pertencem amesma familia.

As caractensticas adicionais cia continuidade cia na­tureza - no que tange as dura<;6es - ainda nao for­muladas, se manifestam no contexto de uma familia dedura<;6es e podem ser enunciadas cia seguinte maneira:existem dura<;5es que cantero, como partes integrantes,duas dura~oes quaisquer da mesma famflia. Por exem­pIo, uma semana cantero, como partes integrantes, daisde seus dias. E evidente que uma dura~ao continentesatisfaz as condic;5es necessarias para pertencer ames­rna familia tanto quanto as duas dura~oes contidas.

Estamos preparados agora para passar a defini~ao

de urn momenta do tempo. Consideremos urn conjun­to de dura~oesextrafdas da mesma familia. Admitamosque possua as seguintes propriedades: (i) de dois mem­bros quaisquer do conjunto urn cantem 0 Dutro comoparte e (ii) nao existe dura~ao alguma que seja parte detodos os membros do conjunto.

Ora, a rela<;ao entre todo e parte eassimetrica; que­fO dizer com iSBa que se A eparte de B, B DaD sera partede A. Ademais, tambem ja observamos que a rela~ao

etransitiva. Assim senda, podemos facilmente perceberque as dura~oes de qualquer conjunto dotado das pro­priedades recem-enumeradas devem ser organizadas emuma ordem serial unidimensional, de modo que ame­dida que a percorremos em sentido decrescente, alcan­~amos dura~5es de extensao temporal cada vez menor.A serie pode ser iniciada com qualquer dura~ao arbi­trariamente admitida de qualquel' extensao temporal,porem, amedida que decresce a serie, a extensao tem­poral se contrai progressivamente e as sucessivas dura-

~5es se veem encerradas umas nas outras como num jo­go de caixas chines. Contudo, 0 conjunto difere do jogono seguinte particular: 0 jogo tern uma caixa menor quetodas, que forma a caixa final de sua serie; ja 0 conjun­to de dura~6es nao tern nenhuma dura~ao menor quetodas e tampouco pode convergir em dire~ao a umadura~ao-limite.1sso porque as partes quer da dura~ao

final quer do limite seriam partes de todas as dura~oes

do conjunto e, portanto, a segunda condi~aodo conjuntoteria sido violada.

Denominarei tal conjunto de dura~5es urn "con­junto abstrativo" de dura~5es. Eevidente que, ao per­corrermos urn conjunto abstrativo, este converge parao ideal da natureza como urn todo sem extensao tempo­ral, isto e, ao ideal da natureza e como urn todo em urninstante. Esse ideal, porem, na verdade e 0 ideal de umanao-entidade. A a~ao efetiva do conjunto abstrativo econduzir 0 pensamento a considera~ao da progressivasimplicidade das re1a~oes naturais ao reduzirmos pro­gressivamente a extensao temporal da dura~aoconside­rada. Ora, a essencia do processo se resume em que asexpress5es quantitativas dessas propriedades naturaisconvergem efetivamente a limites, embora 0 conjuntoabstrativo nao convirja a nenhuma dura~ao limftrofe.As leis que relacionam esses limites quantitativos sao asleis da natureza "em urn instante", embora na verda­de nao exista uma natureza em urn instante, mas ape­nas 0 conjunto abstrativo. Portanto, urn conjunto abs­trativo e a entidade efetivamente designada quando con­sideramos urn instante de tempo sem extensao tempo­ral. Presta-se ele a todas as finalidades necessarias dedar urn sentido inequfvoco ao conceito das propriedades

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1. Cf. An Enquiry concerning the Principles ofNatural Knowledge, CambridgeUniversity Press, 1919.

cia natureza em urn instante. Concordo plenamente emque tal conceito e fundamental na expressao da cienciaffsica. A dificuldade eexpressar nossa acep~ao em ter­mos dos julgamentos imediatos cia apreensao sensivel,e sugiro a explicat;:ao acima como uma solut;ao cabal doproblema.

Nessa explica-;ao, urn momento e0 conjunto de pro­priedades naturais alcan~ado por uma rota de aproxi­mac;ao. Urna serie abstrativa euma rota de aproxima­<;3.0. Existem diferentes ratas de aproximac;ao ao mes­mo conjunto limftrofe das propriedades da natureza. Emoutras palavras, existem diferentes conjuntos que devemser considerados ratas de aproximac;ao ao mesma mo­menta. Par conseguinte, existe urn certa volume de de­talhes tecnicos necessarios para se explicar as relac;5esde tais conjuntos abstrativos de mesma convergencia enos precaver de possfveis casos excepcionais. A exposi­c;ao de tais detalhes nao cabe nestas conferencias, mastratei extensamente deles alhures 1.

Convem mais, por motivos tecnicos, considerar urnmomento como a classe de todos os conjuntos abstrati­vos de durac;5es de mesma convergencia. Segundo essadefini~ao (conquanto consigamos explicar satisfatoria­mente 0 que designamos por "mesma convergencia",alem de urn conhecimento detalhado do conjunto de pro­priedades naturais alcan~adovia aproxima~ao), urn mo­mento e simplesmente uma classe de conjuntos de du­ra~5es cujas rela~5es mutuas de extensao sao dotadas de

77o TEMPO

certas peculiaridades especfficas. Podemos chamar a taisrelac;5es das durac;5es componentes de propriedades "ex­tri'nsecas" de urn momento; as propriedades "intri'nse­cas" do momenta sao as propriedades da natureza al­can~adas enquanto urn limite ao percorrermos qualquerurn de seus conjuntos abstrativos. Estamos falando daspropriedades da natureza "naquele momento" ou "na­gue1e instante".

As dura~5es que integram a composi~ao de urn mo­mento pertencem todas a uma mesma famllia. Portan­to, a uma familia de durac;5es corresponde uma familiade momentos. Alem disso, se tomarmos dois momen­tos da mesma familia, entre as durac;5es que entram nacomposic;ao de urn momento as durac;5es menores saocompletamente isoladas das dura~5es menores que in­tegram a composic;ao do outro momento. Em suas pro­priedades intri'nsecas, assim, os dois momentos devemdemonstrar os limites de estados completamente diver­sos da natureza. Nesse sentido, os dois momentos saocompletamente isolados. Chamarei "paralelos" a essesdois momentos da mesma familia.

Correspondentes a cada durac;ao, existem dois mo­mentos da familia associada de momentos que consti­tuem os momentos limitrofes de tal durac;ao. Urn "mo­mento limftrofe" de uma dura~ao pode ser definido co­mo se segue: existem durac;5es da mesma familia quea durac;ao dada e que, embora a sobreponham, nao es­tao contidas na mesma. Consideremos urn conjunto abs­trativo de tais dura~5es. Tal conjunto define urn mo­mento que esta, exatamente em proporc;5es iguais, forae dentro da dura~ao. Tal momenta e urn momenta li­mftrofe da durac;ao. Tambem nos reportamos a nossa

o CONCE/TO DE NA TUREZA76

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apreensao sensivel cia passagem cia natureza para queesta nos informe cia existencia de dais momentos limi­trofes, a saber, 0 anterior e 0 posterior. A estes denomi­naremos as limites inicial e final.

Existem tambem momentos de mesma faroflia taisque as durac;;5es mais breves de sua composic;;ao estaocompletamente isoJadas da dura~ao dada. Diremos quetais momentosjazem "exteriormente" adurac;;ao dada.Por sua vez, outros momentos cia familia sao tais queas durac;;6es mais breves de sua composic;;ao sao partescia durac;;ao dada. Diremos que tais momentos jazem "in­teriormente" a durac;;ao dada ou que "sao inerentes"amesma. Em seu conjunto, a familia de momentos pa­raIelos edescrita dessa maneira, em referencia a qual­quer dura~ao dada da familia associada de dura~6es. Ouseja, existem momentos da familia situados exterionnen­te adura~ao dada, existem os dois momentos que saoas momentos limftrofes da dura~ao dada e momentossituados interiormente a dura~ao dada. Outrossim,quaisquer dois momentos da mesma familia sao os mo­mentos Jimitrofes de alguma dura~ao individual da fa­milia associada de dura~6es.

Torna-se possive!, agora, definir a rela~ao serial deordem temporal entre os momentos de uma familia. Se­jam, pois, A e C dais momentos quaisquer dessa famf­lia; esses momentos serao os momentos limftrofes de umacerta dura~ao d da familia associada e diremos que qual­quer momento B compreendido na dura~aod estara com­preendido entre os momentos A e C. Assim, a rela~ao

ternana de "estar compreendido entre", envolvendo tresmomentos, A, Be C, esta compJetamente definida. Tam­bern 0 nosso conhecimento acerca da passagem da natu- 2. Cf. Enquiry.

79a TEMPO

reza assegura-nos que essa rela~ao distribui os momen­tos da familia em uma ordem serial. Abstenho-me deenumerar as propriedades especfficas que garantem es­se resultado, por mim enumeradas em meu livro recen­temente pubJicad02, ao qualja fiz referencia. Ademais,a passagem da natureza nos faculta saber que uma de­terminada dire~ao ao lange cia serie corresponde apas­sagem para 0 futuro, enquanto a outra dire~ao corres­ponde ao retrocesso em dire~ao ao passado.

Ea uma tal serie ordenada de momentos que nosreferimos ao falar no tempo definido como uma serie.Cada elemento da serie revela urn estado instantaneoda natureza. Evidentemente, esse tempo serial e resul­tado de urn processo intelectual de abstra~ao. Minha con­tribui~ao foi fornecer defini~6es precisas do processo atra­ves do qual a abstra~ao e levada a cabo. Tal procedi­mento e simplesmente urn caso particular do metodo ge­ral que, em meu livro, denomino "metodo da abstra­~ao extensiva". Esse tempo serial evidentemente nao ea propria passagem da natureza em si. Ele revela algu­mas das propriedades naturais que deJa brotam. 0 es­tado da natureza "em urn momenta" evidentementeperdeu essa qualidade ultima da passagem. Tambem aserie temporal de momentos apenas a retem enquantouma rela~ao extrfnseca de entidades e nao como 0 pro­duto do ser essencial dos termos da serie.

N ada foi dito ainda quanta ao dimensionamentodo tempo. Tal dimensionamento nao decorre da merapropriedade serial do tempo, mas requer uma teoria dacongruencia, a qual sera considerada em uma conferen­cia posterior.

o CONCEITO DE NA TUREZA78

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Ao avaliar a adequa~ao dessa definic;ao da serie tem­poral como uma formulac;ao cia experiencia, enecessa­rio discriminar entre 0 julgamento elementar da apreen­sao sensivel e nossas teorias intelectuais. 0 lapso de tem­po e uma quantidade serial mensurave!. A teoria cien­tffica em sua totalidade depende desse pressuposto; qual­quer teoria do tempo que se mostre incapaz de fornecertal serie mensuravel candena a si mesma como incapazde dar conta do fato mais proeminente da experiencia.Nossas dificuldades apenas come<;am quando indagamoso que e aquila que se esta mensurando. Trata-se, evi­dentemente, de urn elemento de tal modo fundamentala experiencia que dificilmente podemos nos distanciardele e isohi-Io, de modo a observa-Io em suas devidaspropor<;i5es.

Devemos inicialmente determinar se 0 tempo cleveser encontrado na natureza ou se a natureza cleve serencontrada no tempo. A dificuldade da segunda alter­nativa - isto e, a de estabelecer 0 tempo como anteriora natureza - e a de que 0 tempo converte-se, entaa,em urn enigma metafisico. Que especie de entidades saoseus instantes ou seus perfodos? A dissociac;ao entre tem­po eeventos revela, a nossa investigac;ao imediata, quea tentativa de estabelecer 0 tempo como termo indepen­dente do conhecimento e semelhante ao esfor~o por seencontrar substancia em uma sombra. Existe 0 tempoporque existem acontecimentos e, aMm dos acontecimen­tos, nada existe.

Epreciso, porem, estabelecer uma distin<;ao. Emcerto sentido, 0 tempo se estende para aIem da nature­za. Einverfdico que uma apreensao sensfvel atemporale urn pensarnento atemporal se combinem para contem-

plar uma natureza temporal. A apreensao senslvel e 0

pensamento sao, em si mesmos, processos, a exemplode seus termos na natureza. Em outras palavras, ha umapassagem da apreensao sensivel e uma passagem do pen­samento. Portanto, os dominios da qualidade da passa­gem se estendem para alem da natureza. Mas surge ago­ra a distin~ao entre passagem, de carater fundamental,e a serie temporal, que e uma abstra~ao16gica visandorepresentar algumas das propriedades da natureza. Umaserie temporal, tal como a definimos, representa ape­nas certas propriedades de uma familia de dura<;i5es ­propriedades que as dura~oes s6 possuem em razao departilharem 0 carater da passagem, mas, por outro la­do, propriedades que s6 as dura<;i5es possuem de modoefetivo. Como conseqiit~ncia,0 tempo, no sentido de umaserie temporal mensuravel, e tao-somente uma proprie­dade da natureza e nao se estende aos processos do pen­samento e da apreensao sensfvel, exceto por uma corre­la~ao desses processos com a serie temporal impHcita nosprocedimentos destes.

Ate este ponto, a passagem da natureza foi consi­derada em conexao a passagem de dura~6es, contextono qual ela revela uma peculiar afinidade com a serietemporal. Devemo-nos lembrar, todavia, que 0 caraterda passagem esta peculiarmente associado aextensao doseventos e que dessa extensao origina-se a transi~ao es­pacial, bern como a transi<;ao temporal. A discussao desseponto esta reservada para uma conferencia posterior, po­rem e necessario lembra-lo agora que estamos nos en­caminhando para discutir a aplica<;ao do conceito de pas­sagem para alem da natureza. Do contrario, teremasuma ideia muito estreita quanta aessencia da passagem.

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Enecessaria nos deter no tema cia apreensao sensi­vel nesse contexto, como um exemplo do modo pelo qualo tempo diz respeito amente, muito embora 0 tempo men­surcivel seja uma mera abstra~aocia natureza e a nature­za esteja fechada a mente.

Consideremos a apreensao sensivel- naD seu termo,que ea natureza, mas a apreensao sensi've1 em si mesma,como urn processo cia mente. A apreensao sensive1 eumarelac;;ao cia mente com a natureza. Assim senda, estamosagora considerando a mente como urn termo relacionalcia apreensao sensivel. No que diz respeito amente, ternosa apreensao sensfvel imediata e temos a memoria. A dis­tin<;ao entre memoria e 0 imediatismo presente tern urnduplo significado. Par um lado, revela que a mente naopossui uma apreensao imparcial de todas essas dura<;oesnaturais as quais esta relacionada atraves da apreensao.Sua apreensao compartilha da passagem da natureza. Po­demos imaginar urn ser cuja apreensao, concebida comosua posse particular, nao sofre transi<;ao alguma, emborao termo de sua apreensao seja nossa propria natureza tran­sitoria. Nao existe uma razao essencial para que a memo­ria nao deva ser al<;ada avividez do fato presente; e entao,pelo lado da mente, perguntamos: qual a diferen~a entreo presente e 0 passado? Com essa hipotese, contudo, po­demos tambem supor que a recorda~ao vivida e a fatopresente sao dispostos na apreensao da mesma forma co­mo em sua ordem serial temporal. Por co~seguinte,de­vemos admitir que, embora possamos imaginar que noprocessamento da apreensao sensfvel a mente poderia es­tar isenta de qualquer cad.ter de passagem, em verdadenossa experiencia da apreensao sensfvel revela nossasmentes como partfcipes desse carater.

83o TEMPO

Por outro lado, 0 simples fato da memoria e umafuga a transitoriedade. Na memoria, a passado se fazpresente. Presente nao enquanto sobrepondo-se asuces­sao temporal da natureza, mas como urn fato imediatopara a mente. Nesse sentido, a memoria e urn desenga­jamento da mente com respeito a simples passagem danatureza; pois aquilo que passou para a natureza naopassou para a mente.

Alem disso, a distin<;ao entre memoria e 0 presen­te imediato nao e tao nitida como convencionalmentese presume. Existe uma teoria intelectual do tempo co­mo 0 gume de uma faca em movimento, a demonstrarurn fato presente sem extensao temporal. Essa teoriaorigina-se do conceito de uma exatidao ideal da obser­va<;ao. As observa<;oes astronomicas sao sucessivamen­te refinadas no sentido da exatidao em decimos, cente­simos e milesimos de segundos. Contudo, os refinarnen­tos finais sao obtidos par meio de um sistema de dtlculoaproximativo e, mesmo entao, apresentam-nos uma ex­tensao de tempo como uma margem de erro. 0 erro aquieurn simples termo convencional para expressar 0 fatode que 0 carater da experiencia nao condiz com 0 idealdo pensamento. Ja tive oportunidade de explicar comoo conceito de urn momento consegue conciliar 0 fato ob­servado com esse ideal; ou seja, existe uma simplicida­de limitrofe na expressao quantitativa das propriedadesdas dura~6es, alcanpda atraves da considera~aode qual­quer urn dos conjuntos abstrativos incluidos no momen­to. Em outras palavras, 0 carMer extrfnseco do momentocomo urn agregado de dura<;oes assoeiou-0 com 0 cara­ter intrfnseco do momento, que e a expressao limftrofede propriedades naturais.

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Assim, 0 carater de urn momento e 0 ideal de exa­tidao que este comporta de modo algum enfraquecema posi,ao de que a termo final da apreensao e uma du­ra,ao provida de densidade temporal. Tal dura,ao ime­diata nao esta claramente delineada para nossa apreen­sao. Seu limite inicial se turva por uma dissolu~ao namemoria, e seu limite final se turva por uma emergen­cia da antecipa,ao. Nao ha uma distin,ao nftida querentre a memoria e a imediatismo do presente quer en­tre a imediatismo do presente e a antecipa,ao. a pre­sente euma amplitude de fronteiras oscilantes entre asdais extremos. Assim, nossa propria apreensao sensfvel,com seu presente estendido, possui alga do caniter ciaapreensao sensfvel do ser imaginario cuja mente estavaliberta da passagem e que contemplava a natureza noseu todo como urn fata imediato. Nossa presente indi­vidual possui seus antecedentes e seus conseqiientes, en­quanta para 0 ser imaginario a natureza como urn todotern suas durac;5es antecedentes e consequentes. Portan­to, a unica diferen<;a, nesse sentido, entre nos e 0 serimaginario e que para ele toda a natureza participa doimediatismo de nossa durac;ao presente.

A conclusao dessa discussao e que, no que tangea apreensao sensfvel, existe uma passagem da mente,distingufvel da passagem da natureza, embora estreita­mente afim com ela. Podemos especular, se 0 quiser­mos, que essa afinidade da passagem da mente com apassagem da natureza resulta de ambas compartilbaremalgum carater ultimo da passagem que domina todo ser.Esta, porem, e uma especulac;ao na qual naD ternos in­teresse. A deduc;ao imediata que nos e suficiente - noque tange a apreensao senslvel - e a de que a mente

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nao esta no tempo ou no espac;o no mesmo sentido emque os eventos da natureza estao no tempo, mas que seencontra derivativamente no tempo e no espa<.;o em ra­zao da afinidade peculiar de sua passagem com a passa­gem da natureza. A mente, portanto, encontra-se notempo e no espac;o em urn sentido peculiar a si mesma.Houve uma longa discussao para chegarmos a uma con­clusao extremamente simples e 6bvia. Temos todos a sen­sac;ao de que, em algum sentido, nossas mentes estaoaqui nesta sala e neste momento. Mas nao exatamenteno mesmo sentido em que os eventos da natureza, quesao as existencias de nossos cerebros, tern suas posi<;5esespaciais e temporais. A distinc;ao fundamental a lem­brar e a de que 0 imediatismo para a apreensao sensivelnao e a meSillO que a instantaneidade para a natureza.Essa ultima conclusao nos leva adiscussao seguinte, coma qual encerrarei esta conferencia. Podemos, portanto,formular a seguinte questao: sera possivel encontrar umaserie temporal alternativa na natureza?

Alguns anos atras, tal possibilidade teria sido des­considerada como fantasticamente impossivel. Nao te­ria tido a menor sustentac;ao na ciencia entao correntee tampouco teria familiaridade com id€ia alguma jamaisintroduzida nos sonhos da filosofia. as seculos XVIIIe XIX aceitaram como sua filosofia natural urn deter­minado circulo de conceitos tao rfgidos e definitivos co­mo aqueles da filosofia medieval, e que eram aceitos coma mesma escassez de investigac;ao critica. Denominarei"materialismo" a essa filosofia natural. Materialistaseram nao s6 os homens da ciencia, mas tambem os adep­tos de todas as escolas filos6ficas. as idealistas apenasse distinguiam dos materialistas filos6ficos na questao do

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alinhamento cia natureza com respeito amente. Mas ne­nhum deles tinha a menor duvida de que a filosofia danatureza, considerada em si mesma, era do tipo ao qualdenominei materialismo. Trata-se da filosofiaja exami­nada nas duas conferencias anteriores deste cielo. Po­demos sintetiza-la como a cren~a de que a natureza eurn agregado material e que esse material existe, em certasentido, em cada membra sucessivo de uma serie unidi­mensional de instantes do tempo desprovidos de exten­sao. Alem disso, as rela~oes mutuas entre as entida­des materiais em cada instante dispunham essas enti­dades em uma configura<;ao espacial em um espa<;o ili­mitado. A impressao que se tem e de que 0 espa<;o ­nessa teoria - seria tao instantaneo como as instantes,e que seria preciso a1guma explica<;ao das rela<;6es en­tre as sucessivos espat;os instantaneos. Mas a teoria ma­terialista se cala nesse particular; e a sucessao de espa­t;OS instantaneos etacitamente combinada no sentido deformar urn espal,;o persistente. A teoria e uma conside­ral,;ao puramente inte1ectual da experiencia, que teve asorte de se fazer formular no alvorecer do pensamentocientifico. Ela dominou a linguagem e a imagina<;ao daciencia desde que esta floresceu em Alexandria, com 0

resultado de que, hoje, dificilmente se pode falar semdar a impressao de assumir sua obviedade imediata.

Quando, porem, formulada claramente nos termosabstratos em que acabo de enuncia-la, ateoria se afastalargamente do 6bvio. 0 complexo passageiro de fatoresque compoe 0 fato que constitui 0 termo da apreensaosensivel nao nos coloca diante de coisa a1guma que cor­responda it trindade desse materialismo natural. Essatrindade e composta (i) pela serie temporal de instantes

desprovidos de extensao, (ii) pelo agregado de entida­des materiais e (iii) pelo espa<;o, que e 0 resultado dasrelal,;oes cia materia.

Ha urn grande abismo entre esses pressupostos dateoria intelectual do materialismo e os jufzos imediatosda apreensao sensivei. Nao ponho em duvida que essatrindade materialista personifica importantes caracteresda natureza. Mas e necessario expressar esses caracte­res em termos dos fatos da experiencia. Eexatamenteo que venho buscando nesta conferencia no que diz res­peito ao tempo; e agora nos deparamos com a pergun­ta: existira uma unica serie temporal, apenas? A filoso­fia materialista da natureza pressupoe 0 carater unicoda serie temporal. Essa filosofia, porem, e tao-somenteuma teoria, como as teorias cientfficas aristotelicas, ob­jetos de uma fe tao obstinada na Idade Media. Se nestaconferencia consegui, de algun1a forma, me afastar dateoria em favor dos fatos imediatos, a resposta nem delonge sera tao indiscutivel. A pergunta pode ser refor­mulada nos seguintes termos: existira uma unica famI­lia de dura<;6es, apenas? 0 significado de "familia dedural,;oes" na pergunta foi definido anteriormente nes­ta conferencia. A resposta agora de modo a1gum e 6b­via. Na teoria materialista, 0 presente instantaneo e 0

unico campo para a atividade criativa da natureza. apassado se foi e 0 futuro ainda nao e. Portanto (nessateoria), 0 imediatismo da apreensao e 0 de urn presenteinstantaneo, e esse presente unico e 0 produto do pas­sado e a promessa do futuro. De nossa parte, contudo,negamos esse presente instantaneo imediatamente da­do. Nao existe a1go semelhante a ser encontrado na na­tureza. Enquanto fato ultimo, trata-se de uma nao-enti-

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dade. 0 imediato, para a apreensao senslvel, euma du­ra~ao. Ora, uma durac;ao traz em seu seio urn passadoe urn futuro; e as amplitudes temporais das durac;6es ime­diatas cia apreensao senslvel sao altamente indetermi­nadas e dependentes do percipiente individual. Comoconseqiiencia, DaD existe fator algum na natureza que,para cada percipiente, seja preeminente e necessariamen­te 0 presente. A passagem cia natureza DaD deixa nadaentre 0 passado e 0 futuro. 0 que percebemos como pre­sente ea vfvida borda cia memoria matizada pela ante­cipac;ao. Essa vividez ilumina 0 campo discriminado noambito de uma durac;ao. Mas iSBa DaD representa ne­nhuma garantia de que as acontecimentos cia naturezanao possam ser distribufdos por outras dura,6es de fa­mflias alternativas. Sequer podemos saber que a seriede durac;6es imediatas exibidas pela apreensao sensIvelde uma mente individual pertence, de modo absoluta­mente necessario, a mesma famIlia de dura~5es. Naoexiste a menor razao para se acreditar que seja assim.N a verdade, se minha teoria da natureza estiver corre­ta, nao sera 0 caso.

A teoria materialista apresenta toda a abrangenciado pensamento medieval, que tinha uma resposta cabalpara tudo, quer no ceu, no inferno ou na natureza. Existenela urn certo carater ordenativo, com seu presente ins­tantaneo, seu passado esvanecido, seu futuro inexisten­te e sua materia inerte. Esse carater ordenativo e pro­fundamente medieval e concorda sofrivelmente com osfatos ordinarios.

A teoria que estou defendendo admite urn miste­rio ultimo mais vultoso e uma ignorancia mais profun­da. 0 passado e 0 futuro se encontram e se misturam

no presente mal definido. A passagem da natureza, sim­plesmente uma outra denomina~ao da for~a criativa daexistencia, possui uma ampla margem de presente defi­nido e instantaneo em cujo ambito operar. Sua presen­~a operativa, que no momenta impulsiona a naturezaadiante, deve ser procurada ao longo do todo, tanto nopassado remoto quanta na mais estreita amplitude dequalquer dura,ao presente. Talvez tambem no futuronao-realizado. Talvez tambem no futuro que poderia ser,bern como no futuro efetivo que vira a ser. E impossI­vel meditar sobre 0 tempo e 0 misterio da passagem cria­tiva da natureza sem uma avassaladora como~ao anteas limita,6es da inte!igencia humana.

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II',

I

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~ I,

CAPITULO IV

o METODO DA ABSTRAQAOEXTENSIVA

A conferencia de hoje deve iniciar com a conside­ra~ao dos eventos limitados. Estaremos, assim, em po­si<;ao de nos embrenhar por uma investiga<;ao acerca dosfatores da natureza representados por nossa concep~ao

de espa<;o.A dura~ao que constitui a revela~ao imediata de nos­

sa apreensao senslvel e discriminada em partes. Existea parte representada pela vida da natureza como um todono interior de uma sala e existe a parte representada pelavida da natureza como urn todo em uma mesa da sala.Essas partes sao eventos limitados. Possuem a extensaoda dura<;ao presente e sao partes desta. Mas, enquantouma dura~ao e urn todo ilimitado e, em determinadosentido restrito, e tudo quanto existe, urn evento limi­tado possui uma limita<;ao completamente definida deextensao, a nos expressa em termos espac;o-temporais.

Estamos habituados a associar a cada evento umacerta qualidade melodramitica. a atropelamento de um

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homem, por exemplo, constitui urn evento compreendidoem determinados limites espac;o-temporais. Nao estamoshabituados a considerar a permanencia cia Grande Pira­mide ao longo de urn dia especffico qualquer como urnevento. No entanto, 0 fato natural que ea Grande Pirami­de ao longo de urn dia - enos referimos, com issa, anatureza como urn todo neJa compreendida -, e urnevento do meSilla carater do acidente do homem, no senti­do cia natureza como urn todo em suas limitac;oes espac;o­temporais, de sorte a incluir 0 homem e 0 velculo moto­rizado durante 0 perfodo em que estiveram em cantata.

Estamos habituados a analisar esses eventos segundotres fatores: tempo, espa~o e material. Na verdade, depronto aplicamos a des as conceitos cia teoria materia­lista da natureza. Nao nego a utilidade dessa analise como prop6sito de expressar importantes leis cia natureza.Minha negativa ea de que qualquer urn desses fatoresseja apresentado a nos na apreensao sensfvel em umaconcreta independencia. Percebemos urn fator unitarioda natureza; e esse fator e que algo esta transcorrendoentao - ali. Percebemos, por exemplo, 0 transcorrer daGrande Piramide em suas rela<;6es com 0 transcorrer doseventos egfpcios circundantes. De tal modo estamos con­dicionados, tanto pela linguagem como pelo ensino for­mal e pe1a conveniencia resultante, a expressar nossospensamentos em termos dessa analise materialista quetendemos inte1ectualmente a ignorar a legftima unida­de do fator realmente apresentado na apreensao sensf­vel. Esse fator unitario, que retem em si mesmo a pas­sagem da natureza, e0 e1emento concreto primordial dis­criminado na natureza. Sao esses fatores primordiais quedesigno por eventos.

Os eventos sao 0 campo de uma re1a<;ao binaria,qual seja, a relar;.ao de extensao considerada na ultimaconferencia. Eventos sao as coisas ligadas pela relar;.aode extensao. Se urn evento A se estende por sobre urnevento B, Be "parte de" A e A e urn "todo" do qualBe uma parte. Os termos "todo" e "parte" sao inva­riavelmente empregados nessas conferencias nesse sen­tido especffico. Segue-se que, com respeito a essa rela­<;ao, dois eventos A e B quaisquer podem apresentar entresi qualquer uma das quatro rela~5es, quais sejam (i) Apode estender-se por sobre B, ou (ii) B pode estender-sepor sobre A, ou (iii) A e B podem, ambos, estender-sepor sobre urn terceiro evento C, mas nenhum deles porsobre 0 outro, ou (iv) A e B podem estar completamen­te separados. Tais alternativas podem obviamente serilustradas pelos diagramas de Euler, tal como aparecemnos livros de 16gica.

A continuidade da natureza e a continuidade doseventos, continuidade essa que e simplesmente a deno­mina~aopara 0 agregado de uma variedade de proprie­dades de eventos ligados pela rela~ao de extensao.

Em primeiro lugar, tal relar;.ao e transitiva; em se­gundo, cada evento contem outros eventos como partesde si; em terceiro, cada evento euma parte de outros even­tos; em quarto lugar, dados dois eventos finitos quais­quer, existirao eventos dos quais cada urn contera a am­bos enquanto partes; e em quinto, existe uma relar;.ao es­pecial entre eventos, aqual dou 0 nome de "jun<;ao" .

Dois eventos apresentam junr;.ao quando existe urnterceiro evento do qual ambos fazem parte e que e talque nenhuma de suas partes esta separada dos dois even­tos dados. Portanto, dois eventos que apresentam jun-

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1. Cf. Enquiry.

t;;ao formam exatamente urn evento, que constitui, emcerto sentido, a soma de ambos.

Somente determinados pares de eventos possuemessa propriedade. De modo geral, qualquer evento quecontenha dais eventos cantero igualmente partes outras,separadas de ambos os eventos.

Ha uma defini~aoa1ternativa para a jun~ao de doiseventos, que adotei em meu recente livro!, Dais eventosapresentam junt;;ao quando existe urn terceiro evento talque (i) se sobrepiie a ambos os eventos e (ii) nenhumade suas partes esta separada dos dois eventos dados. Aado~ao de qualquer uma dessas defini~iies a1ternativascomo a definic.;ao de junc.;ao determina que a Dutra seafigure como urn axioma referente ao caniter dajunc.;.aotal como a conhecemos na natureza. Mas nosso interes­se nao e tanto uma definic.;ao 16gica como a formulac.;aodos resultados cia observac;ao direta. Ha. uma certa con­tinuidade inerente it unidade observada de um eventoe essas duas defini~iies de jun~ao na verdade sao axio­mas baseados na observac;ao sabre 0 carater dessa con­tinuidade.

As relac;6es entre todo e parte e de sobreposic.;aoconstituem casos particulares dajun~ao de eventos. Con­tuda, epassive1 a existencia dejun~ao em eventos sepa­rados entre si; por exemplo, as partes superior e infe­rior da Grande Piramide estao divididas por a1gum planohorizontal imaginario.

A continuidade que a natureza deriva dos eventosfoi obscurecida pe!os exemplos que fui forpdo a apre-

95o METODO DA ABSTRA9AO EXTENSIVA

sentar. Assim, tomei a existencia da Grande Piramiciecomo um fato sobejamente conhecido ao qual poderiarecorrer seguramente a titulo de explica~ao. Esse e umtipo de evento que a nos se manifesta como a situa~ao

de um objeto reconhecivel; e, no exemplo escolhido, 0

objeto e tao amplamente conhecido que recebeu um no­me. Um objeto e uma entidade de diferente tipo que umevento. Por exemplo, 0 evento que consiste na vida cianatureza na Grande Piramide ontem e hoje e divisive!em duas partes, a saber, a Grande Piramide ontem ea Grande Pirftmide hoje. Contudo, 0 objeto reconheci­vel tambem chamado a Grande Pirftmide e hoje 0 mes­mo objeto que era ontem. A teoria dos objetos deveraser alva de considera~ao em Dutra conferencia.

Todo esse tema esta investido de urn indevido arde sutileza pe!o fato de que quando 0 evento e a situa­~ao de urn objeto bern caracterizado, DaO temos uma lin­guagem propria para distinguir entre evento e objeto.No caso da Grande Pirftmide, 0 objeto e a entidade uni­taria percebida que, tal como percebida, se mantem iden­tica a si mesma ao longo do tempo, ao mesma tempoem que toda a dan~a das moleculas e 0 jogo a1ternantedo campo eletromagnetico sao ingredientes do evento.Um objeto esta, em certo sentido, fora do tempo. Ape­nas derivativamente esta no tempo, por estar associadoa eventos por uma relac;ao a que denomino "situac;ao".Essa relac;ao de situac;ao exigira discussao em uma con­ferencia subseqiiente.

o ponto que desejo assinalar por ora e que consti­tuir a situa~ao de um objeto bem caracterizado nao enecessidade inerente a urn evento. Existe urn evento ondequer e quando quer que algo esteja se passando. Ade-

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2. Cf. Organization oj Thought, pp. 146 ss. Williams and Norgate, 1917.

97o METODO DA ABSTRA\7AO EXTENSIVA

o primeiro resultado do uso sistematico dessa leifoi a formula,ao dos conceitos abstratos de Tempo e Es­pa\:o. Na conferencia anterior, esbocei 0 modo como 0

principio foi aplicado para a obten,ao da serie tempo­ral. Passo agora a considerar como se obtem as entida­des espaciais atraves do mesmo metodo. 0 procedimentosistematico e identico, em principio, para ambos os ca­sos, e ao tipo geral de procedimento dei 0 nome de "me­todo da abstra\:ao extensiva".

Voces se lembrarao que em minha conferencia an­terior defini 0 conceito de urn conjunto abstrativo de du­ra,oes. Essa defini,ao pode ser ampliada, de modo aaplicar-se a quaisquer eventos, eventos limitados berncomo dura\:oes. A unica altera\:ao necessaria e a substi­tuic;ao da palavra "dura\:ao" pela palavra "evento". Porconseguinte, urn conjunto abstrativo de eventos e qual­quer conjunto de eventos dotado de duas propriedades:(i) a de que em quaisquer dois membros do conjunto,urn contern 0 outro como parte e (ii) que nao existe ne­nhum evento que seja parte comum it totalidade dosmembros do conjunto. Tal conjunto, conforme voces selembrarao, possui as propriedades do jogo chines de cai­xas, em que uma vai dentro da outra, com a diferenc;ade que 0 jogo chines possui uma caixa menor que to­das, ao passo que a serie abstrativa nao possui nem urnevento menor que todos e tampouco converge para urnevento-limite, nao pertencente ao conjunto.

Portanto, no que diz respeito aos conjuntos abstra­tivos de eventos, urn conjunto abstrativo nao convergea nada. Existe 0 conjunto cujos membros vao-se tomandoindefinidamente menores ao avan\:armos em pensamentoem dire-;ao aextremidade menor da serie, mas nao ha

o CONCEITO DE NA TUREZA

mais, as pr6prias palavras "ande quer e quando quer"pressup5em urn evento, pais espa,;;o e tempo em si mes­mos sao abstrac;5es a partir de eventos. Portanto, eumaconseqiiencia dessa doutrina que algo esteja sempre sepassando em toda parte, mesmo no chamado espa,o va­zio. Tal conclusao esta de acordo com a moderna cien­cia ffsica que pressupoe a atividade de urn campo ele­tromagnetico ao longo de todo 0 espa,o e tempo. Essadoutrina cia ciencia assumiu a forma materialista de urneter que a tudo permeia. 0 eter, no entanto, eeviden­temente urn mero conceito superfluo - na terminolo­gia aplicada por Bacon adoutrina das causas finais, euma virgem infecunda. Nada se pode deduzir dele; eo eter simplesmente se presta ao prop6sito de satisfazeras exigencias cia teoria materialista. 0 conceito impor­tante e 0 dos fatos altemantes dos campos de for,a.Trata-se do conceito de urn eter de eventos que deveriasubstituir aque1e de urn eter material.

Nao e preciso nenhum exemplo para afian,ar a vo­d~s que urn evento e urn fata complexo, e as relac;5esentre dais eventos formam urn emaranhado quase im­penetra.vel. A chave descoberta pelo born senso da hu­manidade e sistematicamente utilizada na ciencia e aquiloque denominei alhures2 a lei de convergencia asimpli­cidade pela redu,ao da extensao.

Se A e B sao dois eventos e A' e parte de A e B'e parte de B, as rela-;:oes entre as partes A' e B' serao,sob multiplos aspectos, mais simples do que as rela,oesentre A e B. Esse e 0 principio que govema todas as ten­tativas de uma observac;ao exata.

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... ,

o METODO DA ABSTRA9AO EXTENSIVA

As rela~oes mutuas entre os limites no conjunto I (s),bern como entre esses limites e os limites em outros con­juntos I (s'), I (s"), ... , originados de outras conjuntos abs­trativos s', s", etc., possuem uma peculiar simplicidade.

o conjunto s, portanto, indica efetivamente umasimplicidade idea! de rela~oes naturais, muito emboratal simplicidade nao seja 0 caniter de nenhum evento

e

embora nao tenha termo final, geralmente converge a urnlimite definido. Por conseguinte, existe uma classe de li­mites I (s) que e a classe dos limites daqueles membrasde q (en) possuidores de hom610gos ao longo da serie q (s)amedida que n cresce indefinidamente. Podemos repre­sentar essa afirma<;ao diagramaticamente utilizando umaseta (-)0) para designar "tende para". Assim,

a nada. Eapenas ela mesma. Tambem a serie q (s) naopossui termo final. Mas os conjuntos de quantidades ho­m610gas que percorrem os diversos termos da serie con­vergem efetivamente para limites precisos. Porexemplo,sendo Q; uma medida quantitativa encontrada em q (e1)'e 0 0 hom610go de Q; a ser encontrado em q (e2)' e 0o hom610go de Q; e 0 a ser encontrado em q (e3), e as­sim sucessivamente, a serie

o CONCEITO DE NA TUREZA98

nenhum minima, de especie alguma, que por fim sejaalcan~ado. Na verdade, 0 conjunto e apenas ele meSilla

e DaD indica nada aMm no sentido de eventos, excetoa si proprio. Mas cada evento tern urn carciter intrfnse­co, no sentido de constituir uma situa~ao de objetos ede conter partes que sao situa~oes de objetos e - paraenunciar a questao de modo mais generico - no senti­do de ser urn campo da vida da natureza. Ta! caraterpode ser definido por expressoes quantitativas que ex­pressam reIa~6es entre diversas quantidades intrfnsecasao evento ou entre tais quantidades e outras quantida­des intrfnsecas a Qutros eventos. No caso de eventos deextensao espa~o-tempora!consideravel, esse conjunto deexpress5es quantitativas ede uma complexidade descon­certante. Sendo e urn evento, chamemos q (e) ao con­junto de expressoes quantitativas que definem seu ca­rater, incluindo suas re1ac;oes com 0 restante cia nature­za. Seja el , e2, e3' etc. urn conjunto abstrativo, cujosmembras estao distribuidos de maneira tal que cadamembro, como en se estende por sobre todos os mem­bros sucessivos en + l' en + 2' etc. Portanto, a serie

corresponde a serie

Chamemos aserie de eventos sea serie de expres­soes quantitativas, q (s). A serie s nao possui termo fi­na! e nenhum evento que esteja contido em cada ele­mento da serie. Assim, a serie de eventos nao converge

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100 a CONCE/TO DE NA TUREZA a METODa DA ABSTRA9AO EXTENS/VA 101

atual em s. Podemos fazer uma aproxima~aoa tal sim­plicidade - que, enquanto estimada numericamente,esta tao proxima quanta 0 desejarmos -, consideran­do urn evento da serie suficientemente afastado na di­re~ao da extremidade menor. Deve-se notar que e a se­rie infinita, ao se estender em uma infindavel sucessaoem dire~ao a extremidade menor, que tern importan­cia. 0 evento de amplitude arbitraria que da inicio aserie nao tern a mellor importancia. Podemos excluir ar­bitrariamente qualquer conjunto de eventos situado naextremidade maior de urn conjunto abstrativo sem a per­da de nenhuma propriedade importante para 0 conjun­to assim modificado.

DOll ao carMer limftrofe das rela~6es naturais, in­dicado por urn conjunto abstrativo, 0 nome de "cara­ter intrfnseco" do conjunto; ja as propriedades, ligadasare1ac;ao entre todo e parte no que conceme a seus mem­bros, pelas quais urn conjunto abstrativo e definido, for­mam 0 que denomino seu "caniter extrfnseco". 0 fatode 0 carater extrfnseco de urn conjunto abstrativo de­terminar urn carater intrfnseco definido e a razao da im­portfmcia dos conceitos precisos de espa~o e tempo. Es­sa manifesta~aode urn carcher intrfnseco definido a partirde urn conjunto abstrativo e 0 significado preciso da leide convergencia.

Por exemplo, vemos urn trem a aproximar-se du­rante urn minuto. 0 evento que e a vida da naturezanaquele trem durante aquele minuto e de suma com­plexidade, e a expressao de suas rela~6es e dos ingre­dientes de seu carater nos desconcerta. Se tomarmos urnsegundo daquele minuto, 0 evento mais limitado assimobtido e mais simples no que tange a seus ingredientes,

e intervalos cada vez menores, como urn decimo daquelesegundo, ou urn centesimo, ou urn milesimo - desdeque tenhamos uma regra definida que resulte em umasucessao definida de eventos em diminui~ao - resul­tam em eventos cujos caracteres ingredientes convergempara a simplicidade ideal do carater do trem em urn ins­tante definido. Alem disso, existem diversos generas detal convergencia asimplicidade. Por exemplo, podemosconvergir, como acima, ao carater limftrofe que expressaa natureza em urn instante compreendida no volume to­do do trem naquele instante, ou anatureza em urn ins­tante compreendida em alguma por~ao daquele volume- na caldeira da locomotiva, por exemplo - ou ana­tureza em urn instante em alguma area de superffcie,ou anatureza em urn instante em alguma linha do trem,ou anatureza em urn instante em algum ponto do trem.No wtimo caso, os caracteres limitrofes simples aos quaisse chegara serao expressos em termos de densidades, pe­sos especificos e tipos de material. Por outra lado, naoprecisamos necessariamente convergir a uma abstra~ao

que envolva a natureza em urn instante. Podemos con­vergir aos ingredientes ffsicos de uma determinada tri­lha de pontos ao longo do minuto como urn todo. As­sim, existem diferentes tipos de carater extrfnseco de con­vergencia que conduzem a aproxima~ao a diversos ti­pos de caracteres intrfnsecos enquanto limites.

Passamos agora ainvestiga~ao de possfveis relac;6esentre conjuntos abstrativos. Urn conjunto pode "cobrir"outro. Defino esse "cobrir" do seguinte modo: urn con­junto abstrativo p cobre urn conjunto abstrativo qquandotodos os elementos de p contem, enquanto partes, al­guns elementos de q. Eevidente que se algum evento e

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cantero como parte integrante qualquer membra do con­junto q, dada a propriedade transitiva cia extensao, ca­da elemento sucessivo cia extremidade menor de q seraparte de e. Nesse caso, direi que 0 conjunto abstrativoq "inere" ao evento e. Assim, quando urn conjunto abs­trativo p cobre urn conjunto abstrativo q, 0 conjuntoabstrativo q inere a cada membro de p.

Epossivel a dois conjuntos abstrativos cobrirem-semutuamente. Nesse caso, chamarei aos dais conjuntos"iguais em for~a abstrativa". Sempre que naD haja ris­co de mal-entendidos, abreviarei a expressao dizendosimplesmente que as dais conjuntos abstrativos sao"iguais". 0 que torna possivel essa igualdade de con­juntos abstrativos e a fatD de ambos as conjuntos, p eq, constitufrem series infinitas que caminham para suasextremidades menores. A igualdade significa portantoque, dado qualquer evento x pertencente a p, podemossempre, afastando-nos 0 suficiente na direC;ao da extre­midade menor de q, encontrar urn evento y que epartede x, e que, afastando-nos 0 suficiente, entao, em dire­c;ao aextremidade menor de p, podemos encontrar urnevento z que e parte de y, e assim indefinidamente.

A importancia da igualdade de conjuntos abstrati­vos nasce do pressuposto de que os caracteres intrfnse­cos dos dois conjuntos saO identicos. Nao Fosse esse 0

caso, a observaC;ao exata estaria no fim.Eevidente que dois conjuntos abstrativos quaisquer

que sejam iguais a urn terceiro conjunto abstrativo saoiguais entre si. Urn "elemento abstrativo" e 0 grupocompleto de conjuntos abstrativos iguais a qualquer urndentre si. Portanto, todos os conjuntos abstrativos per­tencentes ao mesmo elemento sao iguais e convergem

103o METODO DA ABSTRAt;7AO EXTENSIVA

para 0 mesmo carater intrfnseco. Urn elernento abstra­tivo, assirn, e 0 grupo de rotas de aproximaC;ao a urncanlter intrfnseco definido, de simplicidade ideal, a serencontrado como urn limite entre os fatos naturais.

Se urn conjunto abstrativo p cobre urn conjunto abs­trativo q, qualquer conjunto abstrativo pertencente aoelemento abstrativo do qual p e urn membra ira cobrirqualquer conjunto abstrativo pertencente ao elementodo qual q eurn membro. Nesse sentido, sera proveitosoampliar a significado do termo "cobrir" e falar de urnelemento abstrativo "cobrindo" outro elemento abstra­tivo. Se procurarmos, de maneira seme1hante, ampliaro significado do termo "iguais" no sentido de "iguaisem forc;a abstrativa", torna-se 6bvio que urn elementoabstrativo pode ser igual apenas a si proprio. Assim, urne1emento abstrativo possui uma forc;a abstrativa singu­lar e e 0 constructo, formado a partir de eventos, querepresenta urn carater intrfnseco definido e ao qual sechega, como limite, pdo uso do principio de convergen­cia para a simplicidade atraves da redu~iioda extensiio.

Quando urn elemento abstrativo A cobre urn ele­mento abstrativo B, 0 caniter intrfnseco de A inclui, emcerto sentido, 0 carater intrfnseco de B. Daf resulta queas afirmac;5es acerca do carater intrfnseco de B serao,em certo sentido, afirmac;6es acerca do carater intrfnse­co de A; mas 0 carater intrfnseco de A sera mais com­plexo que aquele de B.

Os elementos abstrativos formam os elementos fun­damentais do espa~o e do tempo, enos voltaremos ago­ra para a considera~iio das prapriedades envolvidas naforma~iiode classes especiais de tais elementos. Em mi­nha conferencia passada tive oportunidade de investigar

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uma classe de elementos abstrativos, a saber, as momen­tos. Cada momenta e urn grupo de conjuntos abstrati­vas e as eventos membros desses conjuntos sao taciosmembros de uma mesma familia de dura~5es. Os mo­mentcs de uma familia formam uma serie temporal;admitindo-se a existencia de diferentes familias de mo­mentas, haven} series temporais alternativas na nature­za. Assim, 0 metoda de abstrac;ao extensiva explica aorigem cia serie temporal em termos dOB fatas imedia­tos cla experiencia e, ao meSilla tempo, aclmite a exis­tencia das series temporais alternativas exigidas pela mo­derna teoria cia relatividade eletromagnetica.

Passemos agora para 0 espa~o. A primeira coisa afazer enos assenhorear da classe de elementos abstrati­vos que constituem, em certo sentido, as pontos do es­pa~o. Urn elemento abstrativo tal deve, em algum sen­tido, apresentar uma convergencia a urn minima abso­luto de carater intrfnseco. Euclides expressou definiti­vamente a ideia geral de urn ponto como desprovido departes e desprovido de magnitude. Eesse carater de cons­tituir urn mInima absoluto que queremos alcanc;ar, berncomo expressar em termos dos caracteres extrfnsecos dosconjuntos abstrativos que formam urn ponto. Alem dis­so, os pontos assim alcan<;ados representam 0 ideal deeventos sem qualquer extensao, embora, na verdade, naoexistam entidades como esses eventos ideais. Esses pontosnao serao os pontos de urn espa<;o externo -atemporal,mas sim de espa<;os instantaneos. Almejamos, em ulti­ma instancia, chegar ao espa<;o atemporal da ciencia ff­sica e tambem do pensamento comum, ora matizado pe­los conceitos da ciencia. Sera conveniente reservar 0 ter­mo "ponto" para esses espa<;os quando chegarmos a eles.

3. cr. "La Theorie Relationniste de l'Espace", Rev. de Mitaphysiqueet de Morale, vol. XXIII, 1916.

105a METODa DA ABSTRA(:AO EXTENSIVA

Adotarei, portanto, a expressao "partfculas de evento"para os limites mfnimos ideais de eventos. Assim, umapartfcula de evento e urn elemento abstrativo e, enquantotal, e urn grupo de conjuntos abstrativos; e urn ponto- isto e, urn ponto do espa<;o atemporal - sera umaclasse de partfculas de evento.

Existe, ainda, urn espa<;o atemporal separado, cor­respondente a cada sene temporal separada, isto e, a cadafamilia separada de dura~5es. Voltaremos futuramenteaos pontos em espa~os atemporais. Apenas fa~o alusaoa eles agora a fim de que possamos compreender os es­tagios de nossa investiga~ao.A totalidade de partfculasde evento forma urn multiplo quadridimensional, cujadimensao adicional se origina do tempo - em outraspalavras, se origina dos pontos de urn espa~o atempo­ral, sendo cada urn deles uma classe de partfculas deevento.

o carater necessario aos conjuntos abstrativos queformam as partfculas de evento estaria assegurado casoconsegufssemos defini-Ios como dotados da proprieda­de de serem cobertos por qualquer conjunto abstrativoque os mesmos cobrem. Neste caso, pois, qualquer ou­tro conjunto abstrativo coberto pelo conjunto abstrati­vo de uma partfcula de evento seria igual a este e seria,assim, urn membro da mesma partfcula de evento. Porconseguinte, uma partfcula de evento nao poderia co­brir nenhum outro elemento abstrativo. Essa e a defini­<;ao por mim originalmente proposta em urn congressoem Paris no ano de 19143. Se adotada sem algum tipo

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de complementa~ao,todavia, essa defini.;ao envolve umadificuldade particular e atualmente nao estoll satisfeitocom 0 modo pelo qual procurei transpor essa dificulda­de no referido ensaio.

A dificuldade i' a seguinte: uma vez definidas as par­tkulas de evento, i' facil definir 0 agregado de partfcu­las de evento que formam 0 contorno de urn evento; e,a partir ciai, 0 cantata de ponto passivel, em seus con­tornos, a urn par de eventos dos quais urn i' parte dooutro. Podemos conceber entao todas as complexidadesdo tangenciamento. Podemos conceber, em particular,urn conjunto abstrativo no qual todos os membros ternseu cantata de ponto na mesma partfcula de evento. Efacil provar, entao, que nao havera nenhum conjuntoabstrativo com a propriedade de ser coberto por todoconjunto abstrativo que 0 meSilla cobre. Apresento essadificuldade de modo menos sucinto porque sua existenciaconduz 0 desenrolar de nossa linha de argumenta~ao.

Tivemos de anexar alguma condi~aoapropriedade ba­sica de ser coberto por qualquer conjunto abstrativo queele cubra. Quando investigamos essa questao das con­di~5es adequadas, descobrimos que, ali'm das partfculasde evento, todos os demais elementos abstrativos espa­ciais e espa~o-temporais podem ser definidos da mesmaforma, variando-se adequadamente as condi90es. Assim,seguiremos urn percurso geral, adequado para 0 empregoali'm das partfculas de evento.

Seja (J 0 nome de qualquer condi~aoobedecida porurn eerto numero de eonjuntos abstrativos. Direi queurn conjunto abstrativo e urn "a-primo" quando apre­sentar duas propriedades: (i) satisfa~a a condi~ao (J e (ii)seja coberto por todo conjunto abstrativo que, ali'm deser eoberto por ele, satisfa~a a eondi~ao a.

Em outras palavras, nao se pode ter nenhum eon­junto abstrativo que satisfa~aa condi~ao (J e que demons­tre urn carater intrfnseco mais simples do que aquele deurn a-pnmo.

Temos tambem os eonjuntos abstrativos correlatos,aos quais denomino conjuntos de a-antiprimos. Urn eon­junto abstrativo i' urn (J-antiprimo quando apresenta duaspropriedades: (i) satisfaz a condi~ao (J e (ii) cobre todoconjunto abstrativo que, ali'm de cobri-lo, satisfa~a a con­di~ao (J. Em outras palavras, nao se pode ter tenhumconjunto abstrativo que satisfa~a a condi~ao (J e que de­rnonstre urn carater intrfnseeo mais eomplexo do queaquele de urn (J-antiprimo.

o carater intnnseeo de urn a-primo possui urn certominimo de completitude entre aqueles eonjuntos abstra­tivos sujeitos aeondi~ao de satisfazerern a; ao passo queo carater intrfnseco de urn a-antiprimo possui urn cor­respondente maximo de completitude e inclui tudo quan­to pode nas circunstancias.

Consideremos primeiro que contribui~ao poderianos prestar a no~ao de antiprimos na defini~ao de mo­mentos por nos apresentada na conferencia passada. Sejaa condi~ao (J a propriedade de ser uma classe cujos mem­bros sao, em sua totalidade, dura~5es. Urn conjunto abs­trativo que satisfa~a tal condi~ao e, portanto, urn eon­junto abstrativo totalmente composto de dura~5es. Se­ra eonveniente, entao, definir urn momenta como 0 gru­po de conjuntos abstrativos iguais a algum (J-antiprimo,onde a condi~ao (J possui esse significado especial. Po­deremos perceber, mediante considera~ao,(i) que cadaeonjunto abstrativo que forma urn momento e urn(J-antiprimo, onde (J possui esse significado especial, e (ii)

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que exclufmos do carpo de momentos as conjuntos abs­trativos de durac;oes que possuem, sern excec;ao, urn con­torno em comum, quer 0 contorno inicial, quer 0 final.Exclufmos, assim, as casos especiais capazes de confundira raciocinio geraL A nova defini~ao de urn momenta,que suplanta nossa defini~ao previa, e (com a ajuda dano~ao de antiprimos) a de tra~ado mais preciso dentreas duas, bern como a mais proveitosa.

A condic;ao particular representada por "(J" na de­fini~ao de momentos incluiu alga adicional em tudo aqui­la que se pode derivar do conceito puro e simples de ex­tensao. Urna durac;;:ao demonstra para 0 pensamento umatotalidade. 0 conceito de totalidade e alga que trans­eeude ao de extensao, embora ambos se entrelacem noconceito de durac;ao.

Da mesma forma, a condic;ao particular" (1", ne­cessaria para a definic;;:ao de uma partfcula de evento,deve ser buscada para alem do simples conceito de ex­tensao. A mesma observac;ao evaIida para as condic;6esparticulares indispensaveis para as outros elementos es­paciais. Essa no~ao adicional e obtida atraves da distin­c;ao entre 0 conceito de "posi~ao" e 0 conceito de con­vergencia a urn zero ideal de extens6es tal como demons­trado par urn conjunto abstrativo de eventos.

Para compreenderrnos essa distin~ao, consideremosurn ponto do espa~o instantaneo que concebemos apa­rente a nos a urn olhar quase instantaneo. Esse pontoe uma particula de evento e possui dais aspectos. Soburn primeiro aspecto, ele esta ali onde esta. Trata-se desua posi~ao no espa~o. Sob outro aspecto, chega-se nelequando ignorado 0 espa~o circundante e a aten~ao seconcentra no conjunto de eventos cada vez menor que

dele se aproxima. Trata-se de seu caniter extrfnseco. Urnponto, portanto, possui tres caracteres, a saber, sua po­si~ao no espa~o instantaneo como urn todo, seu caraterextrfnseco e seu carater intrfnseco. 0 mesmo se aplicaa qualquer outro elemento espacial. Par exemplo, urnvolume instantaneo no espa~o instantaneo possui trescaracteres, a saber, sua posi~ao, seu carater extrfnsecocomo grupo de conjuntos abstrativos, e seu carater in­trfnseco, que e 0 limite de propriedades naturais indi­cado par qualquer urn desses conjuntos abstrativos.

Antes que possamos discorrer acerca de posi~ao noespa~o instantaneo, devemos evidentemente ter muitaclareza quanta aquila que designamos par espa~o ins­tantaneo propriamente dito. 0 espa~o instantaneo de­ve ser buscado enquanto carater de urn momento. Issoporque urn momenta e a natureza como urn todo emurn instante. Nao pode constituir 0 carater intrfnseco domomento, pois 0 carater intrfnseco revela-nos 0 caraterlimitrofe da natureza no espa~o naquele instante. 0 espa­~o instantaneo deve ser uma reuniao de elementos abstra­tivos considerados em suas rela~5es mutuas. Portanto,urn espa~o instantaneo e a reuniao de elementos abs­trativos cobertos por algum momento individual, e cons­titui 0 espa~o instantaneo daque1e momento.

Devemos indagar agora quanto ao carater que en­contramos na natureza apto a conferir aos elementos deurn espa~o instantaneo diferentes qualidades de posi~ao.

Essa questao leva-nos de pronto a intersec~ao de mo­mentos, urn topico ainda nao considerado nestas confe­rencias.

o lugar geometrico da intersec~aode dais momen­tos ea reuniao de elementos abstrativos cobertos por am-

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bos. Ora, nao pode haver interseq:ao entre dais momen­tos cia mesma seric temporal. Havera necessariamenteinterseq:ao entre dais momentos respectivamente de fa­roilias diversas. Portanto, devemos esperar, no espac;;o ins­tantaneo de urn momento, que as pmpriedades funda­mentais sejam marcadas pe1as interseq;5es com momen­tos de outras famflias. SendoM urn momento dado, a in­tersecc;ao de M com Dutro momento A sera urn plano ins­tantaneo no espac;o instantaneo de M; e sendo B urnterceiro momento ainterseccionar tantoM cornoA, a in­tersecc;ao de M e B sed. urn outro plano no espac;o M. As­siro tambem, ainterseq:ao comumdeA, BeMea inter­seq:ao dos dais pIanos no espac;oM, ou seja, eumalinhareta no espac;o M. Teremos 0 surgimento de urn caso ex­cepcional se B e M se cruzarem no mesmo plano que AeM. Outrossim, senda C urn quarto momento, apartealguns casos especiais que naG precisamos considerar, estcintersecciona M em urn plano sobre 0 qual a linha reta(A, B, M) incide. Assim temos, em geral, uma intersec­c;ao comum de quatm momentos de diferentes familias.Tal intersecc;ao comum e uma reuniao de elementos abs­trativos, cada urn deles coberto (ou "compreendido em")todos os quatm momentos. A propriedade tridimensio­nal do espac;o instantaneo redunda em que (a parte rela­c;(ies especiais entre os quatm momentos) qualquer quin­to momento ou contem 0 todo de sua intersecc;ao comumou nenhuma parte desta. Nenhuma subdivisiio adicionalda intersecc;ao comum e possfvel por intermedio dos mo­mentos. Vigora 0 princfpio do "tudo ou nada". Nao es­tamos diante de uma verdade apriori, mas de urn fato em­pfrico da natureza.

Sera conveniente reservar os termos espaciais co­muns "plano", "linha reta" e "ponto" para os elemen-

tos do espac;o atemporal de urn sistema temporal. Assimsendo, urn plano instantaneo no espac;o instantaneo deurn momenta sera chamado de "nfvel", uma linha retainstantanea sera chamada de "recta" e urn ponto ins­tantaneo sera chamado de "puncto". Urn puncto, as­sim, e a reuniao de elementos abstrativos compreendi­dos em cada qual dos quatm momentos cujas familiasnao apresentam nenhuma relaC;ao mutua especial. Sen­do P, ainda, urn momento qualquer, ou todo elementoabstrativo pertencente a urn puncto dado jaz em P ounenhum elemento abstrativo de tal puncto jaz em P.

Posic;ao e a qualidade possufda por urn elementoabstrativo em virtude dos momentos nos quais esta com­preendido. as elementos abstrativos compreendidos noespac;o instantaneo de urn momento dado M diferenciam­se entre si pelos diversos outros momentos que intercep­tam M de modo a conter varias selec;oes desses elemen­tos abstrativos. Eessa diferenciac;ao de elementos queconstitui sua diferenciac;ao de posic;ao. Urn elemento abs­trativo pertencente a urn puncto apresenta 0 tipo maissimples de posiC;ao em M, urn elemento abstrativo per­tencente a uma recta, mas nao a urn puncto, possui umaqualidade mais complexa de posic;ao, urn elemento abs­trativo pertencente a urn nfvel e nao a uma recta ternuma qualidade ainda mais complexa de posic;ao e, fi­nalmente, a mais complexa qualidade de posic;ao se ve­rifica em urn elemento abstrativo pertencente a urn vo­lume e nao a urn nfvel. Nao definimos ainda, porern,o que eurn volume. Tal definic;ao sera fornecida na pro­xima conferencia.

Em sua qualidade de agregados infinitos, os nfveis,rectas e punctos nao podem, evidentemente, ser as ter-

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mos cia apreensao sensfvel, nem tarnpouco limites aosquais tende a apreensao senslvel. Qualquer membra in­dividual de urn nivel possui uma certa qualidade origi­nada de seu carater enquanto tambem pertencente a urndeterminado conjunto de momentos, porem 0 nive! co­mo urn todo eurn simples conceito 16gico sem nenhu­rna rota de aproxima(ao pelas entidades apresentadasna apreensao sensfvel.

Por Qutro lado, uma partfcula de evento edefinidade modo a demonstrar esse carater de constituir umarota de aproxima(ao assinalada pelas entidades apresen­tadas na apree!,sao sensivel. Uma partfcula de eventodefinida edefinida em referencia a urn puncta definidoda seguinte maneira: admitamos que a condi(ao (J sig­nifique a propriedade de cobrir todos as elementos abs­trativos que sao membros daquele puncto, de modo queurn conjunto abstrativo que satisfa~aa condi~ao a seja urnconjunto abstrativo que cubra todo elemento abstrativopertencente aquele puncta. Assim, a defini(ao de pard­cula de evento associada ao puncta e a de que se tratado grupo de todos as (J-primos, em que (J possui esse sig­nificado particular.

Eevidente que - com esse significado de (J - to­do conjunto abstrativo equivalente a urn a-primo e, eleproprio, urn a-primo. Assim, uma particula de eventotal como definida aqui eurn elemento abstrativo, ou se­ja, e 0 grupo daqueles conjuntos abstrativos iguais, ca­da qual, a a1gum conjunto abstrativo dado. Se formu­lada por escrito, a defini(ao de partfcula de evento as­sociada a algum puncta dado, ao qual chamaremos ",sera a seguinte: a partfcula de evento associada a 7r eo grupo de classes abstrativas no qual cada uma, sem

exce(ao, apresenta as duas propriedades: (i) a de cobrircada conjunto abstrativo em " e (ii) a de que todos asconjuntos abstrativos que tambem satisfazem a condi­<;ao anterior quanta a 7r e que este cobre, tarnbem 0

cubram.U rna partfcula de evento tern posi<;ao devido asua

associa<;ao com urn puncto; inversamente, de sua asso­cia<;ao com a partfcula de evento adquire a puncto seucarater derivado como rota de aproxirna<;ao. Esses doiscaracteres de urn ponto recorrem continuamente emqualquer tratado da deriva(ao de urn ponto a partir dosfatos observados da natureza, mas em geral nao ha urnreconhecirnento claro de sua distin<;ao.

A peculiar simplicidade de urn ponto instanti'meotern uma origem dupla, a primeira ligada aposi<;ao, is­to e, a seu carater de puncto, e a segunda ligada a seucad.ter de partfcula de evento. A simplicidade do punc­to surge de sua indivisibilidade por urn momenta.

A simplicidade de uma partfcula de evento surgeda indivisibilidade de seu carater intrfnseco. 0 caraterintrfnseco de urna partfcula de evento e indivisfvel, nosentido de que todo conjunto abstrativo coberto pela mes­rna exibe 0 mesma carater intrfnseco. Segue-se que, ern­bora haja diferentes elementos abstrativos cobertos parpartfculas de evento, nao ha vantagem em considera­los, uma vez que nao se obtem nenhuma simplicidadeadicional na expressao de prapriedades naturais.

Esses dois caracteres de simplicidade de que estaoinvestidos respectivamente as partfculas de evento e ospunctos definem urn significado para as palavras deEuclides, "desprovido de partes e desprovido de mag­nitude" .

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Obviamente, convem varrer de nosso pensamentotodos esses conjuntos abstrativos desgarrados cohertospor partfculas de evento sem serem, eles pr6prios, mem­bros destas. Nada nos oferecem de novo no sentido docaniter intrinseco. Portanto, podemos pensar em rectase nfveis como simples lugares geometricos de partfculasde eventos. Ao faze-lo, estamos tambem deixando de ladoaqueles elementos abstrativos que cobrem conjuntos departfculas de eventos, sem que tais elementos sejam, elespr6prios, partfculas de evento. Existem classes desses ele­mentos abstrativos que sao de grande importancia. De­verei consideni-las mais adiante nesta e em outras con­ferencias. Por ora, vamos ignoni-las. Tambem me re­ferirei sempre a "particulas de evento" de preferenciaa "punctos", urn termo artificial peIo qual nao tenhogrande simpatia.

o paralelismo entre rectas e nfveis torna-se agoraexplicaveI.

Considere-se 0 espac;o instantaneo pertencente a urnmomenta A e seja A perteneente aserie temporal de mo­mentos que denominarei a. Considere-se outra serie tem­poral qualquer de momentos it qual chamarei (3. as mo­mentos de {3 nao se interseeeionam mutuamente, masinterceptam a momenta A em uma farniliade nfveis. Ne­nhum desses nfveis pode interseccionar outro: forma umafamilia de pianos paralelos instantaneos no espa~o ins­tantaneo do momento A. Assim, 0 paralelismo de mo­mentos em uma serie temporal gera 0 paralelismo de ni­veis em urn espac;o instantaneo e dai - como e facil per­ceber - 0 paralelismo de retas. Desse modo, a proprie­dade euclidiana do espa~o nasce da propriedade para­b6lica do tempo. Epossivel que nao haja razao alguma

para se adotar uma teoria hiperb6lica do tempo e umaeorrespondente teoria hiperb6liea do espa~o. Tal teoriaainda nao foi desenvolvida e, portanto, nao e possiveljulgar quanta ao carater das evidencias que se poderiamapresentar em seu favor.

A teoria da ordem em urn espac;o instantaneo e umaderiva~ao imediata da ordem temporal. Consideremos,pois, 0 espa~o de um momento M. Seja ex 0 nome deum sistema temporal ao qual M nao pertence. SejamAI, A2, As, etc., momentos de a na ordem de suas oeor­rencias. Assim, AI, A2, As, etc., cortarao M nos nfveisparalelos It, h, Is, etc. Assim, a ordem re1ativa dos ni­veis paralelos no espa~o de M e identica it ordem relati­va dos momentos eorrespondentes no sistema temporalex. Qualquer recta de M que corte todos esses niveis emseu conjunto de punctos reeebe par seus punctos, emconseqiiencia, uma ordem de posiC;ao em M. Entao, aordem espacial e derivativa da ordem temporal. Exis­tern, alem disso, sistemas temporais alternativos, masuma unica ordem espacial definida em cada espa~o ins­tantaneo. Por conseguinte, os diferentes modos de se de­rivar uma ordem espacial dos diversos sistemas tempo­rais devem harmonizar-se com uma ordem espacial unicaem cada espa~o instantaneo. Dessa forma, tambem e pos­sive1 comparar diferentes ordens temporais.

Temos ainda duas grandes quest6es pendentes a se­rem elucidadas antes de nossa teoria do espa~o estar ple­namente ajustada. A primeira se refere adeterminac;aodos metodos de dimensionamento intra-espa~o,em ou­tras palavras, ateoria da congruencia do espac;o. Vere­mos que 0 dimensionarnento do espac;o esta intimamenteligado ao dimensionamento do tempo, com relaC;ao ao

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116 o CONCE/TO DE NA TUREZA o METODO DA ABSTRA9AO EXTENS/VA 117

qual principio a1gum [oi determinado ate agora. Por­tanto, nossa teoria cia congruencia sera uma teoria re­ferente tanto ao espa90 como ao tempo. Em segundo lu­gar, existe a determina~ao do espa<;o atemporal corres­pondente a qualquer sistema temporal particular comseu conjunto infinito de espa<;os instantaneos em seusmomentos sucessivos. Esse e0 espa<;o - au, antes, saoesses as espa<;os - cia ciencia f(sica. Emuito comumdesconsiderar esse espa~o qualificando-o de conceitual.Nao compreendo 0 sentido dessas palavras. Presumo quesignifiquem que 0 espa~o e a concep~ao de a1go existen­te na natureza. Nesse sentido, se 0 espa<;o cia ciencia ff­sica for chamado de conceitual, pergunto, sera 0 con­ceito de que [ator da natureza? Por exemplo, quando[alamos de urn ponto no espa~o atemporal da ciencia fl­sica, presumo que estejamos nos referindo a alga exis­tente na natureza. Se nao e a issa que nos referirnos,nossos cientistas estao investindo suas faculdades inteli­gentes nos domfnios cia pura fantasia, 0 que obviamen­te nao e 0 caso. Essa exigencia de urn Ato de Habeas Cor­pus definido para a produ~ao das entidades relevantescia natureza aplica-se tanto ao espac;o relativo como aoabsoluto. Talvez possa-se argumentar, em favor cia teoriarelativista do espac;o, que nao existe espac;o atemporalpara a ciencia flsica, mas apenas a serie momentaneade espac;os instantaneos.

Deve-se pedir uma explicac;ao, portanto, quanta aosignificado da afirma~ao tao comum de que tal ou qualhomem percorreu a pe quatro milhas num certo honi­rio determinado. Como podemos medir a distancia en­tre urn espa~o e outro espa~o? Posso compreender 0 queseja locomover-se com base em urn mapa de operac;oes

militares. Ja 0 significado de se dizer que Cambridgeas 10 horas da manha de hoje, nO espa~o instantfmeopertinente aquele instante, encontra-se a 52 milhas deLondres as 11 horas da manha de hoje, no espa~o ins­tanta-neo pertinente aquele instante, fage totalmente aminha compreensao. Penso que quando urn significadopara essa afinna/.;ao hOllver sido apresentado, voces per­ceberao que 0 que de [ato construiram [oi urn espa~o

atemporal. 0 que nao posso compreender e como pro­duzir uma explicac;ao desse significado sem, com efei­to, fazer alguma constrUl;ao do genero. Posso acrescen­tar, ainda, que desconhel,;o 0 modo como os espal,;os ins­tantaneos sao assim correlacionados no ambito de urnespa~o unico por qualquer metodo sugerido pe1as teo­rias correntes do espal,;o.

Voces terao observado que, com 0 concurso do pres­suposto de sistemas temporais alternativos, estamos nosavizinhando de uma explica~ao do carater do espa~o.

Para a ciencia natural, "explicar" significa simpiesmentedescobrir "interligal,;oes". Em certo sentido, por exem­pIo, nao existe explical,;ao para 0 vermelho que enxer­gamos. Evermelho, e nao h<i nada alem a ser dito a seurespeito. Ou ele e apresentado diante de nos na apreen­sao senslvel ou ignoramos a entidade vermelho. A cien­cia, todavia, explicou 0 vermelho, isto e, descobriu in­terliga~5es entre 0 vermelho enquanto [ator da nature­za e outros fatores da natureza, por exemplo as ondasde luz, que sao ondas de perturba~5es e1etromagneticas.Existem ainda multiplos estados patologicos do organis­mo que conduzem avisao do vermelho sem a ocorrenciade ondas luminosas. Descobriu-se, assim, ligal,;oes entreo vermelho tal como apresentado na apreensao senslvel

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118 o CONCE/TO DE NA TUREZA

e diversos outros fatores da natureza. A descoberta des­sas liga~oes constitui a expIica~ao cientffica de nossa vi­sao cia cor. De modo semelhante, a dependencia do ca­rater do espac:;o com relac:;ao ao carater do tempo consti­tui uma explicac:;ao, no sentido em que a ciencia buscafornecer explicac:;6es. 0 inte1ecto sistematizante abomi­na os simples fatos. a carater do espa~o foi apresenta­do ate 0 momento presente como uma reuniao de fatDssimples, ultimos e desconexos. A teoria que estoll ex­pondo pOe fim a essa desconexao entre os fatos do espa~o.

CAPITULO V

ESPAQO E MOVIMENTO

a prop6sito desta conferencia e dar prosseguimen­to it tarefa de explicar a constru~ao dos espa~os como abs­trac:;5es derivadas dos fatDs cia natureza. Assinalamos, noencerramento cia conferencia passada, que a questao ciacongruencia naD havia sido ainda objeto de considera­~ao, tarnpouco a constru~ao de urn espa~o atemporal queestabelecesse a correlac:;ao entre os sucessivos espac:;os mo­mentaneos de urn sistema temporal dado. Foi tambemassinalada a existencia de diversos elementos espaciaisabstrativos que ainda nao haviarn sido objeto de defini~ao.

Consideraremos primeiro a defini~ao de alguns desseselementos abstrativos, a saber, as defini~5es de s61idos,areas e rotas. Com 0 termo "rota" designo urn segmentolinear, quer retilfneo quer curviHneo. A apresenta~ao des­sas defini~5es e as explica~5es preliminares necessariasservirao, espero, como uma explica~aogeral da fun~ao

das particulas de evento na analise da natureza.Observamos que as particulas de evento sao dota­

das de "posi~ao" com respeito umas as outras. Na con-

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fereneia anterior, expliquei que "posi9ao" era qualida­de adquirida por urn elemento espacial em virtude dosmomentos em interseq:ao que 0 cobriam. Enesse sen­tido, portanto, que uma particula de evento e dotadade posi~ao. a modo mais simples de expressar a posi­c;ao na natureza de uma partfcula de evento e atravesda fixa~ao inicial de urn sistema temporal definido qual­quer. Vamos chama-lo de C/. Havera urn momento daserie temporal de C/ que cobrira a partfcula de eventodada. Assim, a posi~ao da partfcula de evento na serietemporal de C/ e definida por esse momento, ao qual cha­maremos M. A posi~ao da partfcula no espa~o de M eentao determinada cia maneira usual, peIos tres niveisque neIa, e somente nela, se interseccionam. Tal proce­dimento de se determinar a posi9ao de uma partfculade evento mostra que 0 agregado de partfculas de even­to forma urn multiplo quadridimensional. Urn eventofinito qualquer ocupa uma fatia limitada desse multiploem urn sentido que passo a explicar agora.

Seja e urn evento dado qualquer. a multiplo de par­tfculas de evento incide em tres conjuntos com referen­cia a e. Cada particula de evento e urn grupo de con­juntos abstrativos iguais e cada conjunto abstrativo di­recionado para sua extremidade menor e composto deeventos finitos cada vez menores. Quando selecionamos,dentre esses eventos fiuitos que integram a composic;aode uma partfcula de evento dada, aqueles suficientementepequenos, urn dentre tres casos devera ocorrer. au (i)todos esses pequenos eventos sao inteiramente separa­dos do evento dado e ou (ii) todos esses pequenos even­tos sao partes do evento e ou (iii) todos esses eventos sesobrepoem ao evento e, mas nao constituem partes do

mesmo. No primeiro caso, diremos que a partfcula deevento "jaz exteriormente" ao evento e; no segundo ca­so, que a partfcula de evento "jaz interiormente" aoevento e, e no terceiro caso, que a partfcula de eventoe uma "particula limitrofe" do evento c. Existem, por­tanto, tres conjuntos de partfculas: 0 conjunto daquelasque jazem exteriormente ao evento e, 0 conjunto daquelasque jazem interiormente ao evento c, e 0 contorno doevento e, que e0 conjunto de partfculas limitrofes de e.

Vma vez que urn evento e quadridimensional, 0 con­torno de urn evento eurn multiplo tridimensional. Paraurn evento finito, ha uma continuidade de contorno; parauma durac;;ao, 0 contorno consiste naquelas particulasde evento cobertas por qualquer urn dos dois momen­tos limitrofes. 0 contorno de uma durac;;ao, portanto,consiste em dois espac;;os tridimensionais momentaneos.Diremos que urn evento "ocupa" 0 agregado de parti­culas de evento compreendidas em seu interior.

Dizemos que dois eventos que apresentem "jun­c;;ao" - no sentido em que foi descrita ajunc;;ao em mi­nha conferencia passada -, e que todavia estao sepa­rados, de sorte que nenhum evento se sobrepoe ao ou­tro ou e parte deste, sao "adjacentes".

Tal rela~ao de adjacencia determina uma re1a~ao

peculiar entre os contornos dos dois eventos. Os dois con­tornos devem ter uma porc;;ao comum que e, na verda­de, urn lugar geometrico tridimensional continuo de par­tfculas de evento no multiplo quadridimensional.

Urn lugar geometrico tridimensional de partfculasde evento, que ea porc;;ao comum dos contornos de doiseventos adjacentes, sera denominado urn "solido". V msolido pode estar ou nao completamente compreendido

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em urn momento. Urn solido que nao esteja compreen­dido em algurn momento sera charnaclo de "errante".Chama-se "volume" a urn solido efetivamente com­preendido em urn momento. Podemos definir urn volu­me como 0 lugar geometrico das particulas de eventono qual urn momento Cruza urn evento, coutanto queambos efetivamente se interseccionem. A interseCl;ao en­tre urn momento e urn evento consistira, evidentemen­te, naquelas partfculas de evento cobertas peID momen­to e compreendidas no evento. A identidade das duasdefini~6es de volume torna-se evidente quando recor­damos que, ao ser cortado par urn momento, 0 eventose divide em dois eventos adjacentes.

Urn solido, segundo essa defini~ao, quer se tratede urn errante ou de urn volume, eurn mero agregadode particulas de evento a revelar uma determinada qua­lidade de posi~ao. Tambem podemos definir urn solidocomo urn elemento abstrativo. Para tanto, devemos re­carrer ateoria dos primos explicada na conferencia an­terior. Seja a condi~ao denominada u representante dofato de que cada urn dos eventos de qualquer conjuntoabstrativo que a satisfa~a possuid. todas as particulas deevento de algum solido particular nele compreendido.Assim, 0 grupo de todos os u-primos e 0 elemento abs­trativo associado ao solido dado. Chamarei a esse ele­menta abstrativo 0 solido enquanto e1emento abstrativoe ao agregado de particulas de evento 0 solido enquantolugar geometrico. Os volumes instantaneos em espayoinstantaneo, que sao os ideais de nossa percepc;ao sensf­vel, sao volumes enquanto elementos abstrativos. Aquiloque realmente percebemos com todos os esfor~os que en­vidamos em busca cia precisao sao pequeuos eventos si-

tuados a uma distancia suficiente no sentido cia extre­midade menor de algum conjunto abstrativo pertencenteao volume enquanto elemento abstrativo.

Edificil saber ate que ponto nos aproximamos dequalquer apreensao dos solidos errantes. Seguramentenao imaginamos fazer nenhuma aproximac;ao tal. Nes­se caso, porem, nossos pensamentos - no que tange aosindividuos que efetivamente se ocupam dessas questaes- de tal modo se encontram sob controle da teoria ma­terialista cia natureza que dificilmente valero como evi­dencia. Se a teoria da gravita~aode Einstein contem al­guma verdade, os solidos errantes sao de grande impor­tancia para a ciencia. 0 contorno todo de urn eventofinito pode ser encarado como exemplo particular de urnsolido errante enquanto lugar geometrico. Sua peculiarpropriedade de ser fecbado impede que seja definivel co­mo urn elemento abstrativo.

Quando urn momento cruza urn evento, divide tam­bern 0 contorno daquele evento. Esse lugar geometri­co, que e a pon;ao do contorno compreendida no mo­menta, ea superffcie limftrofe do volume correspondentedaquele evento contido no momento. Trata-se de urnlugar geometrico bidimensional.

o fato de todo volume possuir uma superficie li­mitrofe e a origem da continuidade dedekindiana1 doespa~o.

Outro evento pode ser cortado pelo mesmo momen­ta em outro volume e este volume tambem tera seu con-

1. Referencia ao matematico alemaoJulius Wilhelm Richard Dede­kind (1831-1916), autor, entre outras obras, de "Continuidade e numerosirracionais", de 1872. (N. T.)

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torno. Os dais volumes no espac;o instantaneo de urn mo­menta podem sobrepor-se mutuarnente no modo fami­liar que naD preciso explicar em detalhe e, assim, elimi­nar por~6es da superffcie urn do outro. Tais por~6es desuperficies sao "areas momentais".

Edesnecessario, no presente estagio, nos embre­nharmos peJa complexidade de uma defini~ao de areaserrantes. Sua defini~aoparecera simples 0 bastante quan­do 0 multiplo quadridimensional de partfculas de even­to houver sido explorado mais amplamente no tocantea suas propriedades.

As areas momentais podem, eevidente, ser defini­das como elementos abstrativos, peJo mesmo metodoaplicado aos solidos. Tudo 0 que devemos fazer e subs­tituir "solido" por "area" no enunciado cia definic;aoja apresentada. Assim tambem, exatamente como no ca­so anaJogo de urn solido, 0 que percebemos como umaaproximac;ao a nosso ideal de area eurn evento peque­no suficientemente distanciado no sentido cia extremi­dade menor de urn dos conjuntos abstrativos iguais per­tencente a area como urn elemento abstrativo.

Duas areas momentais compreendidas no mesmamomento podem cOftar uma aDutra em urn segmentomomental nao necessariamente retilineo. Tal segmentotambem pode ser definido como urn elemento abstrati­vo e recebera, entao, 0 nome de "rota momental". Naonos deteremos em nenhuma considerac;;ao geral dessasrotas momentais, tampouco nos e importante passar ainvestigac;;ao ainda mais ampla das rotas errantes em ge­ral. Existem, todavia, dois conjuntos simples de rotascuja importancia e vital. 0 primeiro e urn conjunto derotas momentais e 0 outro de rotas errantes. Ambos po-

dem ser reunidos em uma unica classe como rotas reti­lineas. Passaremos asua definic;;ao sem nenhuma refe­rencia as definic;;oes de volumes e superficies.

Os dois tipos de rotas retilineas serao chamados derotas retilineares e estac;5es. Rotas retilineares sao rotasmomentais, enquanto estac;oes sao rotas errantes. Ro­tas retilineares sao rotas que, em certo sentido, estao con­tidas em rectas. Duas partfculas de evento quaisquer si­tuadas em uma recta definem 0 conjunto de particulasde evento compreendidas entre elas naquela recta. Ad­mitamos que a satisfa~ao da condi~ao (j por urn conjun­to abstrativo signifique que as duas partfculas de even­to dadas e as partfculas de evento compreendidas entreelas na recta estao todas compreendidas em cada even­to pertencente ao conjunto abstrativo. 0 grupo dea-primos, em que (J tern esse significado, forma urn ele­mento abstrativo. Tais elementos abstrativos sao rotasretilineares, segmentos de linhas retas instantaneas queconstituem os ideais da percep~aoexata. Nossa percep­c;;ao efetiva, por exata que seja, sera a percepc;;ao de urnevento pequeno, suficientemente distanciado no senti­do da extremidade menor de urn dos conjuntos abstra­tivos do elemento abstrativo.

V rna estac;;ao e uma rota errante; nenhum momentopode cruzar esta~ao alguma em mais que uma partfcu­la de evento. Vma estac;;ao, portanto, traz consigo umacomparac;;ao das posic;;oes, em seus respectivos momen­tos, das partfculas de evento por ela cobertas. As rectasse originam da intersec~aode momentos. Ate agora, po­rem, nao se fez menc;;ao a propriedades de eventos atra­yeS das quais se possa descobrir qualquer lugar geome­trico errante anaIogo.

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o problema geral para nossa investiga~aoconsisteem determinar urn metoda de compara~ao de posic;aoem urn espac;o instantaneo com posic;oes em outros es­pa~os instantaneos. Podemos nos limitar aos espa~os dosmomentos paralelos de urn sistema temporal. De quemodo deverao ser comparadas as posic;oes nesses dife­rentes espa~os? Em outras palavras, 0 que entendemospor movimento? Eis a questao fundamental a ser levan­tada com respeito a qualquer teoria de espa~o relativoe, a exemplo de diversas outras questoes fundamentais,e grande a possibilidade de ficar sem resposta. Replicarque todos sabemos 0 que entendemos por movimentonao e uma resposta. Claro que sabemos, no que tangeanossa apreensao senslvel. Minha reivindicac;ao ea deque nossa teoria de espal.;o cleve investir a natureza dealgo a ser observado. A questao nao tera sido respondi­da com a apresenta~ao de uma teoria segundo a qualnada existe a seT observado e reiterando, entaa, que, naoobstante, observamos efetivamente tal fata inexistente.A menos que 0 movimemo seja algo como urn fato danatureza, a energia cinetica, 0 momenta e tudo quantadepende desses conceitos fisicos evapora de nosso rol derealidades ffsicas. Mesilla nesta era revolucionaria, meuconservadorismo se op6e frontalmente aidentifica~ao doconceito de momenta com uma irrealidade.

Por conseguinte, parto do axioma de que 0 movi­mento e urn fato f[sico. E algo que percebemos comoexistente na natureza. Movimento pressup6e repouso.Ate 0 surgimento da teoria para perverter a intuiyao ime­diata, vale dizer, para perverter os julgamentos aerfti­cos que deeorrem imediatamente da apreensao sensivel,ninguem punha em duvida que, no movimento, deixa-

mos para tras aquila que se eneontra em repouso. Emsuas peregrinayoes, Abraao deixou seu rincao de origemonde este sempre estivera. Uma teoria do movimentoe uma teoria do repouso representam a mesma eoisa ob­servada sob diferentes aspectos e com enfases alteradas.

Ora, nao podemos dispor de uma teoria do repousosem admitir, em algum sentido, uma teoria da posiyaoabsoluta. Presume-se, de habito, que 0 espa~o relativoimplica a inexistencia de qualquer posi~ao absoluta. 0que, segundo minha doutrina, e urn equivoco. 0 pres­suposto nasce da incapacidade em se estabelecer outradistin~ao, a saber, a de que possam existir defini~6es al­ternativas de posi~ao absoluta. Tal possibilidade se in­troduz com a admissao de sistemas temporais alternati­vos. Assim, a serie de espayos nos momentos paralelosde uma serie temporal determinada pode ter sua propriadefini~aode posi~ao absoluta estabelecendo-se uma cor­rela-;;ao entre eonjuntos de partieulas de eventos nessesespayos sueessivos, de modo que cada eonjunto eonsis­ta em partfculas de evento, urn de cada espa~o, cada qualcom a propriedade de processar a mesma posi~ao abso­luta naquela serie de espa~os. Urn conjunto tal de par­dculas de evento formara urn ponto no espa~o atemporaldaquele sistema temporal. Portanto, urn ponto e, ver­dadeiramente, uma posi~ao absoluta no espa~o atem­poral de urn sistema temporal dado.

Existem, todavia, sistemas temporais alternativose cada sistema temporal possui seu proprio gropo pecu­liar de pontos - ou seja, sua propria defini~aopeculiarde posi~ao absoluta. Eessa exatamente a teoria que pre­tendo elaborar.

Ao se contemplar a natureza em busca de eviden­eias de posiyoes absolutas, sera ocioso reeorrer ao mul-

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tiplo quadridimensional de particulas de evento. Essemultiple foi obtido peIa extensao do pensamento paraalem do imediatismo cia observac;ao. Nada encontrare­mos nele senao 0 que ali colocamos a fim de represen­tar, no pensarnento, as id€ias originadas de nossa dire­ta apreensao sensiveI da natureza. A fim de descobrirevidencias das propriedades a serem encontradas no mul­tiplo de partkulas de eventos, devemos sempre recor­rer aobservac;ao das relac;5es entre eventos. Nossa pro­blema edeterminar aquelas reIa~5es entre eventos queresultam na propriedade da posi~ao absoluta em urn es­pa~o atemporal. Trata-se, na verdade, do problema dadetermina~aodo proprio significado dos espa~os atem­porais na ciencia ffsica.

Quando analisamos as fatores cia natureza tais co­mo imediatamente revelados na apreensao sensfvel, de­vemos observar 0 carater fundamental do objeto da per­cepc;ao do "estar aqui". Discernimos urn evento mera­mente como fator de urn complexo determinado no qualcada fatar tern sua participac;ao propria e caracterfstica.

Dais fatores hi que sao ingredientes constantes dessecomplexo: 0 primeiro ea durac;ao, representada no pen­samento peIo conceito de toda a natureza que se faz pre­sente agora, eo segundo, 0 locus standi peculiar cia men­te envolvida na apreensao sensivel. Esse locus standi danatureza e aquilo que, no pensamento, e representadopelo conceito de "aqui", isto e, de urn "evento aqui".

Trata-se do conceito de urn fator preciso da natu­reza. Tal fator eurn evento que constitui 0 foco, na na­tureza, do ate da percepc;ao, enquanto os demais even­tos sao percebidos em referencia a e!e. Tal evento eparteda durac;ao associada e a ele chamarei "evento perci-

piente". Esse evento nao e a mente, ou seja, nao e 0

percipiente. Eaquilo existente na natureza a partir doqual a mente percebe. A base completa da mente na na­tureza esta representada por urn par de eventos, quaissejam, a durac;ao presente, que assinala 0 "quando" dapercepc;ao, e 0 evento percipiente, que assinala 0 "on­de" da percepc;ao e 0 "como" da percepc;ao. Tal even­to percipiente e, grosso modo, a vida corporal da menteencarnada. Mas essa e apenas uma identificac;ao gros­seira. Isso porque as func;6es corporais gradativarnentese confundem com aquelas de outros eventos da natu­reza, de sorte que, para certas finalidades, 0 evento per­cipiente deve ser avaliado simplesmente como parte davida corporal e, para outras, pode ser avaliado ate mes­mo como algo mais que a vida corporal. Sob varios as­pectos, a demarcac;ao e puramente arbitraria, dependen­do de onde elegemos fixar limites em uma escala move!.

Em minha conferencia anterior sobre 0 Tempo, dis­cuti a associac;ao entre mente e natureza. A dificuldadeda discussao reside numa propensao em se negligenciarcertos fatares constantes. Jamais os percebemos pe!o con­traste com suas ausencias. 0 prop6sito de uma discus­sao de tais fatores pode ser descrito como 0 de fazer comque coisas 6bvias parec;am extraordinarias. Nao pode­mos divisa-las a menos que logremos investi-las de algodo ineditismo decorrente da estranheza.

Eem razao desse habito de deixar os fatores cons­tantes resvalarem consciencia afora que constantemen­te incorremos no equivoco de considerar a apreensao sen­sive! de algum fator particular da natureza uma re!a~ao

binaria entre a mente e 0 fator. Por exemplo, percebouma folha verde. A linguagem dessa asser~ao suprime

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I

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toda referencia a quaisquer fatores outros que nao a men­te percipiente, a folha verde e a rela~iio de apreensiiosensivel. A linguagem descarta os fatores obvios e ine­vitaveis que constituem elementos essenciais cia apreen­sao. Estoll aqui, a falha est;a ali; eo evento aqui e 0 even­to que ea vida da folha ali estiio ambos imersos em umatotalidade da natureza que eagora, totalidade que abrigaoutros fatores as quais eirrelevante mencionar. Portanto,a linguagem amiude defronta a mente com uma enga­nadora abstra~iioda indefinida complexidade do fato daapreensao sensfvel.

o que pretendo discutir agora ea rela~iio especialentre 0 evento percipiente que esta "aqui" e a dura~ao

que e "agora". Tal relac;ao eurn fata cia natureza, ouseja, a mente e conscia cia natureza enquanto imbufdadesses dois fatores nessa rela~iio.

No ambito cia breve durac;ao presente, 0 "aqui"do evento percipiente tern urn certo significado claro.Esse significado do "aqui" ea conteudo cia relac;ao es­pecial entre 0 evento percipiente e sua durac;ao associa­cia. Chamarei a essa relac;ao "cogrediencia". Busco, por­tanto, uma descri~iiodo carater da rela~iiode cogredien­cia. 0 presente se rompe em urn passado e urn presentequando 0 "aqui" da cogrediencia perde seu significadotinico e determinado. A natureza sofreu uma passagemdo "aqui" da percep~aocompreendida na dura~aopas­sada para 0 "aqui" diferente da percep~ao compreen­dida na dura~ao presente. Contudo, os dois "aquis" daapreensao sensfve1 compreendida em dura~oes vizinhastalvez sejam indistingufveis. Neste caso, verificou-se umapassagem do passado para 0 presente, embora uma for­~a perceptiva mais retentiva pudesse ter retido a natu-

reza passante como urn presente tinico e completo, emlugar de permitir que a durac;ao interior resvalasse pas­sado adentro. Em outras palavras, 0 sentido de repousocontribui para a integrac;ao das durac;oes em urn pre­sente prolongado, enquanto 0 sentido de movimento di­ferencia a natureza em uma sucessao de durac;oes abre­viadas. Ao olbarmos para fora do vagiio em urn tremexpresso, 0 presente passou antes que a reflexao pudes­se captud.-lo. Vivemos em fragmentos demasiado velo­zes para 0 pensamento. Por outro lado, 0 presente ime­diato e prolongado segundo a natureza se apresente anos sob urn aspecto de repouso inquebrand.vel. Qual­quer modifica~iiona natureza da margem it diferencia­'Yao entre dura'Yoes, de modo a abreviar 0 presente. Exis­te, porem, uma grande distin'Yao entre automodifica'Yaona natureza e modifica'Yao na natureza externa. A au­tomodifica~iio na natureza euma a1tera~iio na qualida­de do ponto de vista do evento percipiente. Eo rompi­mento do "aqui", que torna indispensavel 0 rompimentoda dura'Yao presente. A mudan'Ya na natureza externaecompativel com urn prolongamento do presente da con­templa~iio radicada em urn ponto de vista determina­do. 0 que desejo salientar eque a preserva~iio de umarela'Yao peculiar com uma dura'Yao e uma condi'Yao ne­cessaria it fun~iio daquela dura~iio enquanto dura~iio pre­sente para a apreensao sensfvel. Essa rela'Yao peculiare a rela'Yao de cogrediencia entre 0 evento percipientee a dura~iio. Cogrediencia ea preserva~iio de uma qua­lidade inquebrantavel de ponto de vista no ambito dadura~iio. E 0 prolongamento da identidade de esta~iiono ambito da natureza como urn todo, que e 0 termoda apreensiio sensivel. A dura~iio pode compreender mo-

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dificac;.oes internamente a si mesma, mas naG pode ­na medida em que euma durac;.ao unica presente - com­preender modifica~6esna qualidade de sua rela~ao pe­culiar com 0 evento percipiente canticlo.

Em outras palavras, a percepc;.ao esempre "aquin,

e uma dura~ao so pode ser postulada como presente pa­ra a apreensao sensivel sob a condic;.ao de propiciar urnsignificado unico e inquebrantavel do "aqui" em suarela~ao com 0 evento percipiente. Apenas no passadoepassIve! termos estado "ali" com urn ponto de vistadiverso de nosso presente "aqui".

as eventos ali e os eventos aqui sao [atos da natu­reza e as qualidades de estar "ali" e "aqui" naG saomeras qualidades cia apreensao enquanto uma relac;.aoentre natureza e mente. A qualidade de determinada es­tac;.ao na durac;.ao pertencente a urn evento que se en­contra" aqui", em urn certo sentido do" aqui" , e0 mes­mo tipo de qualidade de esta~ao pertencente a urn eventoque se encontra "ali" , em certo sentido do "ali" . A co­grediencia, portanto, nada tern a ver com algum cara­ter biologico do evento por e1a re1acionado it dura~aoassociada. Tal carater biologico e aparentemente umacondi<;ao adicional para 0 vinculo peculiar entre urnevento percipiente e a percipiencia da mente; mas nadatern a ver com a rela<;ao entre 0 evento percipiente e adura<;ao, que e 0 todo presente da natureza apresenta­do como a revela<;ao da percipiencia.

Dado seu canlter biol6gico indispensavel, 0 even­to, em seu carater de evento percipiente, elege aqueladura~ao com a qual 0 passado atuante do evento e pra­ticamente cogrediente nos limites da exatidao da obser­va<;ao. Dito de outra forma, em meio aos sistemas tem-

porais alternativos oferecidos pela natureza, havera urncuja dura<;ao fornecera a melhor media de cogredienciapara todas as partes subordinadas do evento percipien­teo Tal dura<;ao sera a natureza como urn todo, que eo termo apresentado pe1a apreensao senslvel. Assim, 0

carater do evento percipiente determina 0 sistema tem­poral de imediata evidencia na natureza. Amedida queo carater do evento percipiente se modifica com a pas­sagem da natureza - ou, em outras palavras, amedi­da que a mente percipiente em sua passagem estabe1eceuma correla<;ao entre a passagem do evento percipientee outro evento percipiente - 0 sistema temporal corre­lacionado com a percipiencia daque1a mente pode mo­dificar-se. Quando 0 montante dos eventos percebidossao cogredientes em uma dura<;ao outra que nao a doevento percipiente, a percipiencia podera inc1uir umadupla consciencia de cogrediencia, a saber, a conscien­cia do todo em cujo ambito 0 obervador no trem se en­contra "aqui" e a consciencia do todo em cujo ambitoas arvores, pontes e postes telegraficos encontram-se de­finitivamente (( ali". Assim, nas percep<;6es sob deter­minadas circunstancias, os eventos discriminados esti­pulam suas proprias re1a~6es de cogrediencia. Tal estipu­la~ao de cogrediencia e peculiarmente clara quando adura~ao com a qual 0 evento percebido e cogredientee identica adura<;ao que e0 todo presente da natureza- em outras palavras, quando 0 evento e 0 evento per­cipiente sao ambos cogredientes com a mesma dura<;ao.

Estamos agora preparados para considerar 0 signi­ficado das esta<;6es em uma dura<;ao, onde estas sao umaespecie singular de rotas a definir uma posi~ao absolutano espa~o atemporal associado.

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Mas existem algumas explica~5espreliminares. Di­remos que urn evento finito se estende por teda uma du­ra~ao quando e parte da dura~ao e e cortado por qual­quer momento compreendido na dura~ao. Tal eventocome~a com a dura~ao e termina com ela. Ora, todoevento que comec;a com uma durac;ao e termina com amesma, se estende por toda a dura~ao. Tal axioma estabaseado na continuidade dos eventos. Por iniciar comuma dura~ao e terminar com ela, quero dizer que (i)o evento e parte da dura~ao e (ii) os momentos limftro­fes inicial e final da dura~ao cobrem algumas partfeulasde evento situadas no contorno do evento.

Todo evento que e cogrediente com uma dura~ao

se estende por toda essa dura~ao.

Nao e verdade que todas as partes de urn evento co­grediente com uma dura~ao sejam tambem cogredien­tes com a dura~ao. A rela~ao de cogrediencia pode dei­xar de se estabeIecer de duas maneiras diferentes. Vmarazao para tal pode ser a de que a parte nao se estendapor toda a dura~ao. Nesse caso, a parte pode ser cogre­diente com outra dura~aoque e parte da dura~aodada,embora nao seja cogrediente com a dura~ao dada em si.Tal parte seria cogrediente caso sua existencia fa sse su­ficientemente prolongada naquele sistema temporal. Aoutra razao para que nao se estabelec;a a cogrediencia sur­ge cia extensao quadridimensionaJ de eventos, de sortea inexistir uma rota precisa de transic;ao de eventos emuma serie linear. Por exemplo, 0 tune! de urn sistemametroviario eurn evento em repouso em urn determina­do sistema temporal, vale dizer, e cogrediente com umadeterminada dura~ao. Urn trem que 0 percorra e partedaquele tunel, mas ele proprio nao esta em repouso.

Se urn evento efor cogrediente com uma dura~aod,ed' uma dura~aoque eparte de d, d' pertencera ao mes­mo sistema temporal qued. Assim tambem, d' cruzaeemurn evento e' que eparte de e e cogrediente com d' .

Seja Puma partfcuJa de evento qualquer compreen­dida em uma dura~ao d dada. Considere-se 0 agregadode eventos em que Pesta compreendido e que tambemsao cogredientes com d. Cada qual desses eventos ocupaseu proprio agregado de partfculas de evento. Tais agre­gados terao uma parcela comum, a saber, a classe departfculas de evento que jaz em todos e1es. Essa classede partfculas de evento e 0 que denomino "esta~ao"daparticula de evento P na dura~aod. Trata-se da esta~ao

no carater de urn Jugar geometrico. U rna esta~ao podetambem ser definida no carater de urn elemento abstra­tivo. Seja a propriedade a a denomina~ao da proprie­dade de que e dotado urn conjunto abstrativo quando(i) cada qual de seus eventos e cogrediente com a du­ra~ao de (ii) a partfeula de evento Pesta compreendi­da em cada qual de seus eventos. Assim, 0 grupo dea-primos, onde a possui esse significado, eurn elemen­to abstrativo e constitui a esta~ao de P em d enquantoelemento abstrativo. 0 lugar geometrico das partfculasde evento cobertas pela esta~ao de P em d, enquanto ele­mento abstrativo, e a esta~ao de P em d enquanto lugargeometrico. Vma esta~ao, por conseguinte, possui os trescaracteres usuais, ou seja, seu carater de posi~ao, seucar~lter extrinseco enquanto elemento abstrativo e seu ca­rater intrfnseco.

Das propriedades peculiares do repouso segue-seque duas esta~oes pertencentes a mesma dura<;ao nao

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podem interseccionar-se. Por conseguirite, cada parti­cula de evento em uma esta~ao de uma dura~ao ternaque1a esta<;ao como sua esta<;ao na dura<;ao. Assim tam­bem, toda dura~iio que e parte de uma dura~iio dadacorta as esta~6es da dura~iiodada em lugares geometri­cos que sao suas pr6prias esta<,;oes. Por meio dessas pro­priedades podemos nos valer das sobreposi~6es de du­ra<;5es de uma familia - isto e, de urn sistema tempo­ral - para prolongar indefinidamente as esta~6es paratras e para a frente. Essa esta~iio prolongada sera cha­mada de uma trilha de pontos. Uma trilha de pontose um lugar geometrico de particulas de evento. Edefi­nida par referencia a urn sistema temporal particular,digamos 0<. Gorrespondente a qualquer outro sistematemporal, estas particulas formado um grupo diferen­te de trilhas de pontos. Gada particula de evento estarasituada em uma, e uma unica, trilha de pontos do gro­po pertencente a qualquer sistema temporal. 0 grupode trilhas de pontos de um sistema temporal 0< e 0 gru­po de pontos do espa~o atemporal de 0<. Gada um des­ses pontos indica uma certa qualidade de posi~iio abso­luta com referencia as dura~6es da familia associada aa e, portanto, com referencia aos sucessivos espac;os ins­tantaneos compreendidos nos sucessivos momentos de0<. Gada momento de 0< corta uma trilha de pontos emuma, e uma unica, partfcula de evento.

Essa propriedade da intersec~iiounica de um mo­menta e uma trilha de pontos DaD se restringe ao casoem que 0 momenta e a trilha de pontos pertencem aomesmo sistema temporal. Quaisquer duas particulas deevento em uma trilha de pontos sao sequenciais, de sor­te que DaD podem estar situadas no mesmo momento.

Por conseguinte, nenhum momento pode cortar uma tri­Iha de pontos mais de uma vez e cada momento cruzauma trilha de pontos em uma unica partfcula de evento.

Qualquer urn que, nos momentos sucessivos de ex,se encontre nas partfculas de evento em que tais momen­tos cruzam urn ponto determinado de ex, estara em re­pouso no espa~o atemporal do sistema temporal 0<. Emqualquer outro espa~o atemporal pertencente a algumoutro sistema temporal, no entanto, de estara em urnponto diferente a cada momento sucessivo daquele sis­tema temporal. Em outras palavras, de estara em mo­vimento. Estara se movendo em linha reta e velocidadeuniforme. Poderfamos tomar isso como a defini~ao delinha reta, ou seja, uma linha reta no espa~o do sistematemporal {3 e 0 lugar geometrico daqueles pontos de {3que atravessam, sem exce~ao, uma certa trilha de pon­tos, que eurn ponto no espa~o de algum outro sistematemporal. Portanto, cada ponto do espa~o de um siste­ma temporal ex esta associado a uma, e uma unica, Ii­nha reta do espa~o de qualquer outro sistema temporal{3. Verifica-se, desse modo, que 0 conjunto de linhas retasno espa-;o {3 assim associadas com pontos no espa~o exforma uma familia completa de linhas retas paralelas noespa~o {3. Existe, portanto, uma correla~iiode um-para­urn entre os pontos no espa~o ex e as Iinhas retas de umacerta familia definida de linhas paralelas no espa~o {3.Inversamente, existe uma correla~ao amil.oga de um­para-um entre os pontos do espa~o {3 e as linhas retasde uma determinada familia de linhas retas paralelas noespa~o ex. Tais famflias serao respectivamente denomi­nadas a familia de paralelas em {3 associadas com 0< ea familia de paralelas em 0< associadas com {3. A dire~iio

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no espa~o de {3 indicada pe1a familia de parale1as em {3sed. chamada de dire~ao de ex no espa~o {3, enquantoa familia de parale1as em ex sed. a dire~ao de {3 no espa­~o a. Dessa forma, urn ente em repouso em urn pontodo espa~o ex estani se deslocando em movimento uni­forme ao lange de uma linha no espa~o {3 que se encon­tra na dire~ao de ex no espa~o {3, e urn ente em repousoem urn ponto do espa~o {3 estad. se deslocando em mo­vimento uniforme ao longo de uma linha no espa~o exque se encontra na dire~ao de {3 no espa~o ex.

Estive falando de espa~os atemporais associados asistemas temporais. Sao esses as espa~os cia ciencia ffsi­ca e de qualquer conceito de espa~o como eterno e imu­tavel. Mas aquilo que efetivamente percebemos e umaaproximac.;ao ao espa90 instantaneo indicado por partf­culas de evento compreendidas em algum momento dosistema temporal associado a nossa apreensao. Os pon­tos de tal espa~o instantaneo sao partfculas de eventoe as linhas retas sao rectas. Chamemos a ao sistema tem­poral e seja M 0 momento do sistema temporal ex ao qualnossa apreensao instantanea cia natureza se aproxima.Qualquer linha reta r do espa~o ex e urn lugar geometri­co de pontos e cada ponto e uma trilha de pontos queeurn lugar geOlnetrico de partfculas de evento. Existe,portanto, na geometria quadridimensional de todas aspartfculas de evento, urn lugar geometrico bidimensio­nal que e 0 lugar geometrico de todas as partfculas deevento existentes nos pontcs compreendidos na linha retar. Chamarei a esse lugar geometrico de partfculas deevento a matriz cia linha reta r. Vma matriz cruza qual­quer momento de uma recta. Assim, a matriz de r cortao momento M em uma rectap. Portanto, pea recta ins-

tantanea de M que ocupa, no momento M, a linha retar no espac;o de a. Assim sendo, quando se ve, instanta­neamente, urn ente em movimento e 0 caminho que 0

mesmo tern afrente, 0 que realmente se ve e0 ente emalguma partfcula de evento A compreendida na recta p,que e 0 caminho aparente mediante 0 pressuposto deurn movimento uniforme. Mas a recta atual p, urn lu­gar geometrico de partfculas de evento, jamais e atra­vessada pelo ente. Essas partfculas de evento sao os fa­tos instantaneos que passam com 0 momento instanta­neo. Efetivamente atravessadas sao outras partfculas deevento que, em instantes sucessivos, ocupam os mesmospontos do espa~o ex que aqueles ocupados pelas partfcu­las de evento da recta p. Por exemplo, avistamos urntrecho de estrada e urn caminhao a percorre-Io. A es­trada instantaneamente vista e uma porc;ao da recta p

- obviamente apenas uma aproxima~ao desta. 0 ca­minhao e 0 objeto em movimento. Mas a estrada, talcomo a vemos, jamais e atravessada. Nos a imaginamoscomo sendo atravessada porque os caracteres intrfnse­cos dos eventos mais recentes em geral de tal modo seassemelham aqueles da estrada instantanea que nao nosdamos ao trabalho de discrimina-Ios. Imaginemos, po­rem, que uma mina instalada sob a superffcie da estra­da tenha explodido antes da chegada do caminhao. Nessecaso, e obvio que 0 caminhao nao atravessara aquilo quevimos de infcio. Imaginemos que 0 caminhao se encon­tre em repouso no espa~o {3. Assim, a Iinha reta r doespa~o ex estara na dire~ao de {3 no espa~o ex, enquantoa recta p estara representando a Iinha r do espa~o ex nomomento M. A dire~ao de p no espa~o instantaneodo momento Mea dire~ao de {3 em M, onde Meum

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momento do sistema temporal Q. Outrossim, a matrizda linha r do espa~o '" sera igualmente a matriz de umacerta linha s do espa~o {3 que estara na dire~ao de '" noespa~o {3. Portanto, se 0 carninhao se detiver em urn certoponto P do espa~o '" compreendido na linha r, estaraagora se deslocando pela linha s do espa~o {3. Esta e ateoria do movimento relativo; a matriz camum e0 Iia­me que liga 0 movimento de {3 no espa~o '" com os mo­vimentos de '" no espa~o {3.

o rnovimento eessencialmente uma re1a~ao entrealgum objeto da natureza e 0 espa~o atemporal unicode urn sistema temporal. Urn espa~o instantaneo e es­tatico e esta relacionado anatureza estatica em urn ins­tante. Quando, na percep~ao, enxergamos coisas a semover em uma aproxima~aoa urn espac;o instantaneo,as linhas futuras de rnovimento tal como imediatamen­te percebidas sao rectas jamais atravessadas. Essas rec­tas aproximativas sao compostas de pequeuos eventos,a saber, rotas aproximativas e partfculas de evento quesao deixadas para tras antes que os objetos em movi­menta as alcancem. Presumindo que nossos progn6sti­cos de urn movimento retilfneo estejam corretos, essasrectas ocupam as linhas retas do espa~o atemporal quesao atravessadas. As rectas, portanto, sao sfmbolos daapreensao sensfvel imediata de urn futuro que apenaspermite ser expresso em termos de espac;o atemporal.

Estamos agora em condi~oes de explorar 0 caraterfundamental da perpendicularidade. Consideremos osdois sistemas temporais a e 13, cada urn com seu pr6­prio espa~o atemporal e sua propria familia de momen­tos instantaneos com seus espac;os instantaneos. SejamMeN, respectivamente, urn momento de a e urn mo-

mento de {3. M abriga a dire~ao de BeN abriga a dire­<;ao de a. Contudo, na condic;ao de momentos de siste­mas temporais diferentes, MeN se interseccionam emurn nfvel. Chamemos a esse nfvel A. Assim sendo, Aeurn plano instantaneo no espa~o instantaneo de M e noespa~o instantaneo de N. Trata-se do lugar geometricode todas as particulas de evento compreendidas tantoem M como em N.

No espa~o instantaneo de M, 0 nivel Ae perpendi­cular a dire~ao de {3 em M e, no espa~o instantaneo deN, 0 nivel A e perpendicular a dire~ao de '" em N. Tale a propriedade fundamental que constitui a defini~ao

de perpendicularidade. A simetria da perpendicularidadeeurn caso particular de simetria das relac;6es mutuas en­tre dois sistemas temporais. Verificaremos na pr6ximaconferencia que e dessa simetria que deriva a teoria dacongruencia.

A teoria da perpendicularidade no espa~o atempo­ral de qualquer sistema temporal '" decorre de imediatodessa teoria da perpendicularidade em cada urn de seusespac;os instantaneos. Sejam puma recta qualquer nomomenta M de '" e A urn nivel em M perpendicular ap. 0 lugar geometrico desses pontos do espa~o de '" quecortam M em particulas de evento de p sera a linha retar do espa~o "', e 0 lugar geometrico dos pontos do espa­~o de '" que cortam M em particulas de evento em A eo plano I do espa~o "'. Entao, 0 plano I e perpendiculara linha r.

Dessa forma, logramos colocar em evidencia as pro­priedades especfficas e precisas da natureza correspon­dentes aperpendicularidade. Verificaremos que essa des­coberta de propriedades singulares que definem a per-

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142 o CONCE/TO DE NA TUREZA

pendicularidade ede surna importancia para a teoria ciacongruencia, que sera 0 tema cia proxima conferencia.

Lamento que me tenha sido necessaria administrar,nesta conferencia, uma dose tao farta de geometria qua­dridimensional. Nao estou me desculpando, pois real­mente nao sou responsavel peIo fatD de a natureza serquadridimensional em seu aspecto mais fundamental.As coisas sao como sao; e seria Gcioso encobrir 0 fatD

de que freqiientemente ediffcil aos nossos intelectos se­guir aquila que "as coisas sao". Furtar-se a tais obsta­culos nao passa de escapismo para com as questoesultimas.

CAPITULO VI

CONGRUENCIA

A presente conferencia tern par meta estabeleceruma teoria cia congruencia. Eo preciso que compreendam,de imediato, que a congruencia euma quesdio contro­versa. :E a teoria do dimensionamento no espa~o e notempo. A questao parece simples. Na verdade, e sim­ples a ponto de um ato parlamentar haver estabe1ecidoum procedimento padrao - e a dedica~ao a sutilezasmetaffsicas e praticamente 0 unico crime jamais impu­tado a nenhum parlamento ingles. Todavia, 0 procedi­mento e uma ·coisa e seu significado outra.

Inicialmente, voltemos nossa aten~ao para a ques­tao puramente matematica. Quando 0 segmento entredois pontos A e B e congruente com aque1e entre doispontos C e D, os dimensionamentos quantitativos dosdois segmentos serao iguais. A igualdade das medidasnumericas e a congruencia dos dois segmentos nem sem­pre sao claramente discriminadas, sendo ambas confun­didas sob 0 termo igualdade. Contudo, 0 processo dedimensionamento pressupoe congruencia. Por exemplo,

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1I

uma medida em jardas e aplicada sucessivamente parase dimensionar duas distancias entre dais pares de pon­tos no pisa de uma sala. Faz parte cia essencia do pro­cesso de dimensionamento a condi~ao de que a medidaem jardas se mantenha inalterada ao ser transferida deuma posi~ao para outra. Alguns objetos podem se alte­rar concretamente ao se movimentarem - urn fie ehis­tico, por exemplo; uma medida em jardas, todavia, ca­so executada com 0 material adequado, nao ira se alte­rar. 0 que vern a ser issa senao urn julgamento de con­gruencia aplicado aserie de posi<;5es sucessivas cia me­dida em jardas? Sabemos que ela nao se altera, poisjulgamos que seja congruente consigo propria em dife­rentes posi<;5es. No caso do fio, podemos observar a per­cia de autocongruencia. Assim, julgamentos imediatosde congruencia sao pressupostos no dimensionamento,senda este meramente urn processo para estender 0 re­conhecimento cia congruencia a casos em que tais jul­gamentos imediatos nao sao possiveis. Portanto, nao po­demos definir congruencia via dimensionamento.

Nas modernas formula~oesdos axiomas geometri­cos sao estabelecidas determinadas condi~oes que a re­la~ao de congruencia entre segmentos deve satisfazer.Parte-se do pressuposto de que contamos com uma teo­ria completa de pontos, retas, pIanos e da ordem de pon­tos nos pIanos - na verdade, com uma teoria completade geometria nao-metrica. A seguir, investigamos acercada congruencia e estabelecemos 0 conjunto de condi~oes

- ou axiomas, como sao chamados - que essa rela~ao

satisfaz. Foi provada, entao, a existencia de rela~oes al­ternativas que satisfazem tais condi~oes de modo igual­mente satisfatorio e que nada hci de intrinseco na teoria

do espa~o que nos leve a adotar qualquer uma dessasrela-:;oes de preferencia a qualquer outra, como a rela­-:;ao de congruencia por nos adotada. Em outras pala­vras, contamos com geometrias metricas altemativas queexistem, sem exce-:;ao, por urn identico direito, no quetange it teoria do espa~o.

Poincare, 0 grande matemcitico frances, sustenta­va que nossa escolha final entre essas geometrias eguiadapuramente pela convent;ao e que 0 efeito de uma mu­dan~a de escolha seria apenas alterar nosso modo de ex­pressar as leis fisicas da natureza. Por "convent;ao" en­tendo que Poincare quer dizer que nada existe de ine­rente na natureza a emprestar algumafim,iio especial aalguma dessas rela~oes de congruencia e que a escolhade uma rela~ao particular eguiada pelas voli~oes da men­te na extremidade oposta da apreensao sensivel. 0 prin­cipio que determina a escolha e a conveniencia intelec­tual e nao 0 fato natural.

Tal posi~ao foi mal interpretada por diversos co­mentadores de Poincare. Eles a confundiram com ou­tra questao, a saber, a de que ° carciter impreciso daobserva~ao determinaria a impossibilidade de se fazeruma avaliat;ao precisa na compara-:;ao de medidas.Segue-se que epossive! determinar urn subconjunto derela~oesde congruencia estreitamente afins, em que cadamembro concorda de modo igualmente satisfatorio comaquela avalia~ao de congruencia observada, sempre quea avaliat;ao inclua as devidas ressalvas quanta a seus li­mites de erro.

Essa euma questao inteiramente diversa, que pres­supoe uma rejei~ao it postura de Poincare. A absolutaindeterminat;ao da natureza com respeito a todas as rela-

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146 o CONCEITO DE NA TUREZA CONGRUENCIA 147

,oes de congruencia e substitulda pela indetermina,aocia observa~ao com respeito a urn pequeno subgrupo des­sas rela~6es.

A postura de Poincare eenergica. Ele, com efeito,desafia qualquer urn aapontar algum fator na naturezaque confira uma condi~aode primazia are1a~ao de con­gruencia efetivamente adotada pela humanidade. Semduvida, porem, trata-se de uma posi,ao bastante para­doxa!. Bertrand Russell teve uma controversia com 0

matern:itico frances nessa questao e observou que, se­gundo os princfpios de Poincare, nada havia na nature­za que determinasse se a terra e maior au menor queuma bola de bilhar qualquer. Poincare respondeu quea tentativa de se encontrar, na natureza, razoes para aescolha de uma rela~ao espedfica de congruencia no es­pac;o e semelhante a se tentar determinar a posic;ao deurn navia em alto-mar atraves cia contagem do numerode tripulantes ou da observa,ao da cor dos olhos docapitao.

A meu ver, ambos os contendores estavam corre­t08, levando-se em conta os fundamentos em que assen­tava a discussao. Russell na verdade apontava que, aparte inexatidoes menores, verifica-se uma determina­da rela~ao de congruencia entre os fatores da naturezaa nos apresentados por nossa apreensao senslvel. Poin­care pede informa~oesquanta ao fator da natureza quepoderia levar qualquer rela,ao de congruencia a desem­penhar uma funr;iio proeminente entre os fatores apre­sentados na apreensao senslve!. Se for admitida a teo­ria materialista da natureza, nao consigo ver a respostaa nenhum desses pontos sustentados na controversia.Com essa teoria, a natureza em urn instante no espa~o

II

e urn fato independente. Assim, devemos buscar nossarela~ao primaz de congruencia em meio anatureza noespa~o instantaneo; e Poincare sem duvida esta corretoao afirmar que, com essa hipotese, a natureza em nadanos ajuda a encontra.-Ia.

Russell, por outro lado, se coloca em uma posi,aoigualmente energica quando afirma que, enquanto fatoda observa~ao,nos efetivamente a encontramos e, maisainda, concordamos em encontrar a mesma rela~ao decongruencia. Com base nisso, e urn dos fatos mais ex­traordinarios da experiencia humana 0 de que a huma­nidade inteira, sem nenhuma razao identificavel, con­corde em fixar a aten~ao em uma unica rela~ao de con­gruencia em meio ao infinito numero de competidoresque disputam aten~ao. Seria de esperar que uma dis­cordia nessa escolha fundamental promovesse a cisao dena,oes e 0 desmembramento de familias. Todavia, a di­ficuldade nem sequer foi descoberta ate fins do seculoXIX, por uma meia duzia de filasofos matematicos ematematicos filosoficos. 0 caso nao se assemelha anos­sa concordancia com respeito a algum fato fundamen­tal cia natureza, como as tres dimensoes do espa~o. Seo espa~o possui apenas tres dimensoes, seria de esperarque a humanidade inteira tivesse consciencia do fato,como efetivamente se da. No caso da congruencia, po­rem, a humanidade concorda em uma interpreta~aoar­bitraria cia apreensao senslvel quando nada existe na na­tureza a determina-la.

Considero urn ponto favoravel, e nada desprezlvel,da teoria da natureza que lhes estou expondo, 0 ofere­cimento, por esta teoria, de uma solu~ao a essa dificul­dade, ao indicar 0 fator da natureza que resulta na pri-

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148 o CONCEITO DE NA TUREZA CONGRUENCIA 149

mazia de uma rela~ao de congruencia determinada sa­bre a indefinida profusao de outras re!a~6es congeneres.

A razao desse resultado eque a natureza naG maisse encontra confinada ao espac;o em urn instante. Espa­90 e tempo estao agora interligados; e esse fator peculiardo tempo, tao imediatamente distingufvel entre as re­velac;oes de nossa apreensao sensfve1, relaciona-se a umarelac;ao de congruencia particular no espac;o.

A congruencia e urn exemplo particular do fato fun­damental do reconhecimento. Na percep~ao, nos reco­nhecemos. Tal reconhecimento naG se refere meramenteacomparac;ao de urn fator cia natureza apresentado pe­Ia memoria com urn fator apresentado pe1a apreensaosenslve! imediata. 0 reconhecimento tern lugar no am­bito do presente, sem intervens;ao alguma cia pura me­moria. Isso porque 0 fata presente euma durac;ao comsuas durac;oes antecedentes e conseqiientes, que sao par­tes de si propria. A discrimina9aO, na apreensao sensi'­vel, de urn evento fin ito com sua qualidade de passa­gem tambem e acompanhada pela discrimina~aode ou­tros fatores da natureza que nao participam da passa­gem de eventos. Tudo quanta passa e urn evento. To­davia, encontramos na natureza entidades que naopassam, ou seja, reconhecemos a permanencia na na­tureza. 0 reconhecimento nao e fundamentalmente urnate intelectual de cOmpara9aO; e, em sua essencia, meraapreensao sensi'vel em sua capacidade de colocar diantede nos fatores nao passageiros da natureza. Por exem­plo, 0 verde e percebido como situado em urn determi­nado evento finito contido na dura~ao presente. Esse ver­de preserva sua identidade do infcio ao fim, enquantoo evento passa e em consequencia disso adquire a pro-

priedade de romper-se em partes. A por~ao verde e com­posta de partes. Porem, ao falarmos da POr9ao verde,estamos nos referindo ao evento em sua capacidade unicade constituir para nos a situa9aO do verde. 0 verde emsi e, numericamente, uma entidade unica, identica a simesma e desprovida de partes porque desprovida de pas­sagem.

Os fatores da natureza desprovidos de passagem se­rao chamados objetos. Existem especies radicalmente di­versas de objetos, 0 que sera considerado na proximaconferencia.

o reconhecimento e refletido no intelecto comocompara~ao. Os objetos reconhecidos de determinadoevento sao comparados com os objetos reconhecidos deoutro evento. A compara9ao pode se dar entre dois even­tos do presente ou entre dois eventos dos quais urn e apre­sentado pe!a apreensao na memoria e outro pela apreen­sao sensi'vel imediata. Entretanto, nao e entre eventosque se da a cOmpara9aO, uma vez que cada evento e es­sencialmente unico e incomparavel. Da-se a cOmpara9aOentre objetos e rela90es de objetos situados nos eventos.o evento considerado enquanto re!a~ao entre objetos per­deu sua passagem e, sob esse aspecto, e em si mesmourn objeto. Tal objeto nao e0 evento, mas tao-somenteuma abstra~ao inte!ectual. 0 mesmo objeto pode estarsituado em multiplos eventos e, nesse sentido, ate mes­mo 0 evento como urn todo, visto enquanto objeto, po­de recorrer, embora nao 0 proprio evento em si com suapassagem e suas rela90es com outros eventos.

Objetos nao apresentados pela apreensao senslve!podem ser conhecidos para 0 inte!ecto. Por exemplo, re­la90es entre objetos e rela90es entre rela90es podem ser

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~:I

II

fatores cia natureza nao revelados na apreensao sensi'­vel, mas conhecidos, por inferencia logica, como neces­sariamente existentes. Portanto, os objetos de nosso co­nhecimento podem ser meras abstra~6es 16gicas. Porexemplo, urn evento completo jamais e revelado naapreensao senslvel e, portanto, 0 objeto que constitui asoma total de objetos situados em urn evento assim inter­re1acionado naD passa de urn conceito abstrato. Da mes­rna forma, urn angulo reta eurn objeto percebido capazde ser localizado em multiplos eventos; mas, embora aretangularidade seja apresentada pela apreensao senslvel,a maioria das rela~6es geometricas naD e apresentadadessa forma. Na verdade, com freqiiencia a retangula­ridade naD epercebida, embora se possa comprovar queestivesse preseote para a apreensao. Assim, urn objetoeconhecido amiude simplesmente como uma rela~aoabs­trata nao apresentada diretamente na apreensao sensi­vel, embora esteja presente na natureza.

A identidade de qualidade entre segmentos con­gruentes geralmente possui esse carater. Em determi­nados casos especiais, essa identidade de qualidade podeser percebida diretamente. Em geral, porem, e inferidapor urn processo de dimensionamento que depende denossa direta apreensao sensivel de casas selecionados ede uma inferencia logica com base no caniter transitivoda congruencia.

A congruencia depende do moviment-o, e par inter­media deste gera-se a liga~ao entre congruencia espaciale congruencia temporal. 0 movimento ao longo de umalinha reta possui uma simetria em torno dessa linha. Asimetria e expressa pelas rela~6es geometricas simetricasda linha com a familia de pIanos normais amesma.

Gutra simetria na teoria do movimento surge dofato de 0 repouso nos pontos de {3 corresponder a urnmovimento uniforme ao longo de uma familia definidade retas paralelas no espa~o de Q!. Devemos observar astres caracterlsticas - (i) da uniformidade do movimen­to correspondente a qualquer ponto de {3 ao longo desua reta correlata em "', (ii) da igualdade em magnitu­de das velocidades ao longo das diversas linhas de '" cor­relacionadas ao repouso nos diversos pontos de {3, e (iii)do paralelismo entre as retas dessa familia.

Estamos agora de posse de uma teoria de parale­las, uma teoria de perpendiculares e uma teoria do mo­vimento, a partir das quais pode-se erigir uma teoria dacongruencia. Deve-se lembrar que uma familia de ni­veis paralelos em urn momento qualquer e a familia deniveis na qual aquele momenta e cortado pela familiade momentos de urn outro sistema temporal qualquer.Por sua vez, uma familia de momentos paralelos e a fa­milia de momentos de urn determinado sistema tempo­ral. Assim, podemos arnpliar nosso conceito de uma fa­milia de niveis paralelos de modo a inc1uir niveis em di­ferentes momentos de urn detenninado sistema temporal.Com esse conceito ampliado, dizemos que uma familiacompleta de nlveis paralelos em urn sistema temporala ea familia completa de niveis na qual os momentosde'" fazem intersec~iio com os momentos de {3. Essa fa­milia completa de nlveis paralelos evidentemente tam­bern euma familia compreendida nos momentos do sis­tema temporal{3. A introdu~ao de urn terceiro sistematemporal A determina a obten~iio de rectas paralelas.Alem disso, todos os pontos de qualquer sistema tem­poral determinado formam uma familia de trilhas de

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pontos paralelas. Existem, portanto, tres tipos de para­lelogramos no multiplo quadridimensional de partfcu­las de evento.

Nos paralelogramos do primeiro tipo, os dois pa­res de lados paralelos sao, ambos, pares de rectas. Nosparalelogramos do segundo tipo, urn dos pares de ladosparale10s eurn par de rectas, enquanto 0 outro eurn parde trilhas de pontos. Nos paralelogramos do terceiro ti­po, ambos os pares de lados paralelos sao pares de tri­lhas de pontos.

o primeiro axioma cia congruencia e0 de que saocongruentes os lados opostos de qualquer paralelogra­mo. Tal axioma permite-nos comparar 0 comprimentode dais segrnentos quaisquer, estejam eles respectivamen­te em rectas paralelas ou na mesma recta. Permite-nosainda comparar a comprimento de dais segmentos quais­quer, estejam des respectivamente em trilhas de pantosparalelas ou na mesma trilha de pontos. Segue-se, des­se axioma, que dais objetos em repouso em dais pontosquaisquer de urn sistema temporal {3 rnovem-se com ve­locidades iguais em qualquer outro sistema temporal exao longo de linhas paralelas. Podemos, assim, falar davelocidade em ex devida ao sistema temporal (3, sem es­pecificar nenhum ponto particular em (3. 0 axioma tam­bern nos permite medir 0 tempo em qualquer sistematemporal, embora nao nos permita comparar tempos emsistemas temporais diferentes.

o segundo axioma da congruencia refere-se a pa­ralelogramos de bases congruentes e entre as mesmasparalelas, que apresentam tambem seus autros pares delados paralelos. 0 axioma afirma que a recta que uneas duas partfculas de evento da interseq:ao das diago-

nais e paralela arecta em que estao situadas as bases.Com 0 concurso desse axioma, segue-se imediatamenteque as diagonais de urn paralelogramo dividem-se mu­tuamente ao meio.

Em qualquer espa~o, a congruencia se estende, paraaMm das rectas paralelas, as rectas em geral, atraves dedois axiomas que dependem da perpendicularidade. 0primeiro desses axiomas, 0 terceiro axioma da congruen­cia, e 0 de que se ABG e urn triangulo de rectas em urnmomento qualquer e D e a partlcula de evento interme­diaria da base BG, a nlvel que passa por D perpendicu­larmente a BG contem A quando, e samente quando,AB e congruente com AG. Esse axioma evidentementeexpressa a simetria da perpendicularidade e e a essen­cia do celebre pons asinorum expresso como urn axioma.

o segundo axioma dependente da perpendiculari­dade, e 0 quarto da congruencia, e 0 de que: sendo re A uma recta e uma partfcula de evento no mesmo mo­mento, sendo AB e AG urn par de rectas retangularesa cruzar r em BeG, e sendo AD e AE outro par de rec­tas retangulares a cortar r em DeE, teremos que ouE ou D esta compreendida no segmento BG, enquantoa outra das duas nao esta contida em tal segmento. Te­mos ainda, como caso particular desse axioma, que: sen­do AB perpendicular are, em conseqiiencia, AC para­lelo a r, entao DeE estarao situados respectivamenteem lados opostos de B. Com 0 concurso desses dois axio­mas, a teoria da congruencia pode ser estendida de mo­do a camparar 0 comprimento de segmentos de qual­quer par de rectas. Por conseguinte, a geometria metri­ca euclidiana no espac;o esta completamente estabeleci­da, sendo possIve1 a comparac;ao de comprimentos nos

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espac;os de diferentes sistemas temporais, como resulta­do de propriedades definidas da natureza que indicamexatamente esse metoda particular de comparac;ao.

A compara,ao de dimensionamentos do tempo emdiferentes sistemas temporais requer dais axiomas adi­cionais. 0 primeiro desses axiomas, que constitui 0 quin­to axioma cia congruencia, recebera 0 nome de axiomacia "simetria cinetica". Ele expressa a simetria das re­la,Des quantitativa.<; entre dois sistema.<; temporais quandoas tempos e as comprimentos nos dais sistemas sao me­didos em unidades congruentes.

o axioma pode ser explicado da seguinte maneira:sejam a e {3 os nomes de dois sistemas temporais. A di­rec;ao do movimento no espac;o de O! devido ao repousoem urn ponto de {3 e chamada de "direc;ao {3 em a" ea dire,ao do movimento no espa,o de {3 devido ao re­pouso em urn ponto de a echamada de "dire,ao a em{3". Considere-se urn movimento no espa<.;o de O! queconsista em uma determinada ve10cidade na dire,ao {3de a e uma certa velocidade em angulos retas com rela­c;ao amesma. Esse movimento representa repouso noespa,o de outro sistema temporal - vamos chama-lode 1r. 0 repouso em 1r tambem sera representado no es­pa,o de {3 por uma determinada velocidade na dire,aoa em {3 e uma determinada velocidade em angulos re­tos com re1a<;ao a essa dire<;ao a. Assim, urn certo movi­mento no espa<;o de a esta correlacionado a certo mo­vimento no espa,o de {3, com ambos representando 0mesmo fato, que tambem pode ser representado porrepouso em 7f. EpOSSIVe1, ainda, encontrarmos outrosistema temporal, a que denominarei (J, e que e tal queo repouso em seu espa<;o e representado pe1as mesmas

grandezas de velocidades ao lange da, e perpendicula­res a, dire<;ao a em {3 que aquelas velocidades em a, aolange da, e perpendiculares it dire,ao {3, que represen­tam repouso em 7f. 0 requerido axioma da simetria ci­netica e 0 de que 0 repouso em (J sera representado ema pelas mesmas velocidades ao longo da, e perpendicu­lares it, dire,ao {3 em a que aquelas velocidades em {3ao longo da, e perpendiculares it, dire,ao a, que repre­sentam repouso em 7f.

Urn caso particular desse axioma eaquele em queas velocidades relativas sao iguais e opostas. Em outraspalavras, 0 repouso em a erepresentado em {3 por umavelocidade ao lange da dire,ao a, que e igual it veloci­dade ao longo da dire,ao {3 em a que representa repou­so em {3.

Finalmente, 0 sexto axioma de congruencia e 0 datransitividade da rela,ao de congruencia. No que tangeaaplica<;ao desse axioma ao espa<;o, 0 mesmo e super­fluo, pois a propriedade segue-se de nossos axiomas an­teriores. Contudo, e necessario para 0 tempo, enquan­to complemento ao axioma da simetria cinetica. 0 sig­nificado do axioma e 0 de que se a unidade de tempodo sistema a e congruente com a unidade de tempo dosistema {3 e a unidade de tempo do sistema {3 econgruentecom a unidade de tempo do sistema 'Y, tambem seraocongruentes as unidades de tempo de a e 'Y.

Esses axiomas tornam possIvel a dedu<;ao de for­mulas para a transforma<;ao dos dimensionamentos efe­tuados em urn determinado sistema temporal para di­mensionamentos dos mesmos fatos da natureza em ou­tro sistema temporal. Verificaremos que tais formulasenvolvem uma constante arbitraria, aqual chamarei k.

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Suas dimensoes equivalem ao quadrado de uma veloci­dade. Consequentemente, quatro casos se apresentam.No primeiro caso, k ezero. Esse caso produz resultadosabsurdos, que contradizem os dados elementares da ex­periencia. Vamos deixa-lo de lado.

No segundo caso, k einfinito. Esse caso resulta nasf6rmulas comuns para transformat;;ao em movimento re­lativo, ou seja, as formulas encontradas em qualquer li­vro elementar de dinamica.

No terceiro caso, k enegativo. Vamos chama-Io dec2, onde c tera. as dimensoes de uma velocidade. Essecaso resulta nas formulas de transformat;;ao descobertaspor Larmor para a transforma~ao das equa~oes do campoeletromagnetico de Maxwell. Tais f6rmulas foram des­dobradas por H. A. Lorentz e empregadas por Einsteine Minkowski como a base de sua nova teoria da relati­vidade. Nao me refiro aqui amais recente teoria de Eins­tein, a cia relatividade geral, por cujo intermedio ele de­duz sua modifica~aoda lei da gravita~ao. Em sendo es­te 0 caso que se aplica a natureza, c cleve ser estreita­mente proximo avelocidade cia luz in vacuo. TaIvez setrate dessa propria ve1ocidade. Nesse sentido, "in vacuo"nao deve significar uma ausencia de eventos, ou seja,a ausencia do eter de eventos que a tudo permeia. Devesignificar a ausencia de determinados tipos de objetos.

No quarto caso, k e positivo. Vamos chama-Io deh2, onde h tera as dimensoes de uma velocidade. Estecaso redunda em um tipo perfeitamente possive! de f6r­mulas de transforma~ao,mas que nao explica nenhumfato da experiencia. Ha ne!e outra desvantagem. To­mando este quarto caso como pressuposto, a distinc;aoentre espac;o e tempo torna-se indevidamente obscure-

cida. 0 objetivo geral destas conferencias tem sido 0 dedefender a doutrina de que espa~o e tempo tem sua ori­gem em uma raiz comum e que 0 fato ultimo da expe­riencia eurn fato espac;o-temporal. Em ultima amilise,todavia, a humanidade inteira distingue muito claramen­te entre espa~o e tempo, e e gra~as a essa clareza de dis­tinc;ao que a doutrina destas conferencias e algo para­doxal. Note-se que, no terceiro pressuposto, essa clare­za de distinc;ao esta devidamente preservada. Existe umadistin~ao fundamental entre as propriedades metricas detrilhas de pontos e rectas. No quarto pressuposto, con­tudo, essa distin~ao fundamental desaparece.

Nem 0 terceiro nem 0 quarto pressuposto podemconcordar com a experiencia, a menos que admitamosque a ve!ocidade c do terceiro pressuposto e a ve!ocida­de h do quarto pressuposto sao extremamente altas, secomparadas as velocidades da experiencia ordinaria.Nesse caso, as formulas de ambos os pressupostos ver­se-ao obviamente reduzidas a uma estreita aproxima­~ao com as formulas do segundo pressuposto, que saoas formulas comuns dos livros diditicos de dinamica.A tItulo de classificac;ao, chamarei essas formulas encon­tradas nos livros didaticos de formulas "ortodoxas".

Nao pode haver duvidas quanta a generica corre­~ao aproximada das f6rmulas ortodoxas. Seria simplestolice levantar duvidas a esse respeito. Mas a determi­na~ao do status dessas f6rmulas de modo algum fica es­tabe!ecida por essa admissao. A independencia entre tem­po e espa~o e um pressuposto inquestionavel do pensa­mento ortodoxo que produziu as f6rmulas ortodoxas.Com esse pressuposto e dados os pontos absolutos de umespa~o absoluto determinado, as formulas ortodoxas sao

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dedu<;oes imediatas. Por conseguinte, tais formulas S3.0­

nos apresentadas em nossa imaginac;ao como fatDs quenao podem se dar de modo diferente, sendo 0 tempo eo espa~o 0 que sao. As formulas ortodoxas adquiriram,portanto, 0 status de necessidades inquestionaveis na cien­cia. Qualquer tentativa de substituir essas formulas poroutras significava abandonar afun,iio da explica~aoffsi­ca e reeOfrer a meras formulas matematicas.

Mesma a ciencia ffsica, entretanto, assistiu ao acumu­10 de dificuldades em torno das formulas ortodoxas. Emprimeiro lugar, as equac;oes do campo e1etromagneti­co de Maxwell naG sao invariaveis mediante as trans­forma~5es das formulas ortodoxas, ao mesmo tempo emque sao invariaveis mediante as transformac;6es das f6r­mulas resultantes do terceiro dos quatro casos mencio­nados acima, contanto que a velocidade c seja identifica­da com uma celebre quantidade e!etramagnetica cons­tante.

Assim, as resultados nulos dos minuciosos experi­mentas para se detectar as variac;oes do movimento ciaTerra pelo eter em sua trajet6ria orbital sao imediata­mente explicados pe!as formulas do terceiro caso. Con­tudo se adotamos as f6rmulas ortodoxas, devemos ado-,tar uma hip6tese especial e arbitnlria quanta acontra­<;ao da materia durante 0 movimento. Refiro-me ahi­potese de Fitzgerald-Lorentz l

Por fim, 0 coeficiente de arrasto de Fresnel, que re­presenta a varia~ao da ve!ocidade da luz em urn move!animado, e explicado pelas formulas do terceiro caso e

1. "Todo corpo se contrai na dire~ao de sua velocidade." (N. T.)

requer outra hipotese arbitraria caso empreguemos asformulas ortodoxas.

Parece portanto que, do ponto de vista da simplesexplica<;ao ffsica, as formulas do terceiro caso sao maisvantajosas se comparadas as formulas ortodoxas. Toda­via, 0 caminho esd. bloqueado pe!a crenp arraigada deque essas f6rmulas ortodoxas possuem urn carater de ne­cessidade. Assim, e urn urgente requisito da ciencia ff­sica e da filosofia 0 exame crftico dos fundamentos des­sa suposta necessidade.O unico metodo segura de in­vestiga~ao e recorrer aos princfpios originarios de nos­so conhecimento da natureza. E exatamente isso 0 queestou buscando fazer nestas conferencias. Indago 0 quevern a ser aquilo que percebemos em nossa percep~ao

sensfvel da natureza. Em seguida, passo a examinaraqueles fatores da natureza que nos induzem a conce­ber que a natureza ocupe espa~o e persista ao longo dotempo. Tal procedimento conduziu-nos a uma investi­ga~ao dos caracteres do espa~o e do tempo. Resulta des­sas investiga<;6es que as formulas do terceiro caso e asformulas ortodoxas ocupam urn certo patamar enquan­to formulas possfveis, resultantes do carater basico denosso conhecimento acerca da natureza. As formulas or­todoxas perderam, assim, toda e qualquer vantagem emtermos da condi~aode necessidade de que desfrutavamsobre 0 grupo serial. 0 caminho esta aberto, portanto,para a ado~ao de qualquer urn dentre os dois grupos querevele maior concordancia com a observa<;ao.

Aproveito esta oportunidade para fazer uma pau­sa momentanea no curso de minha argumenta<;ao e fe­fletir acerca do carater geral atribufdo por minha dou­trina a alguns conceitos familiares da ciencia. Nao tenho

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duvidas de que alguns de voces consideraram tal cara­ter extremamente paradoxal sob determinados aspectos.

Esse cunho paradoxal deve-se parcialmente ao fa­to de a linguagem douta ter sido levada a conformar-seateoria ortodoxa predominante. Ao expormos uma dou­trina alternativa, portanto, somes levados a lanc;ar maoquer de termos estranhos quer de termos conhecidos emacepc;5es naD usuais. Essa vit6ria cia teoria ortodoxa sa­bre a linguagem e bastante natural. Os eventos sao no­meados segundo os objetos proeminentes neles situadose, assim, tanto na linguagem como no pensamento, 0

evento submerge por tfCis do objeto, tornando-se 0 me­ro jogo de suas rela~5es. A teoria do espa~o converte­se, entaD, em uma teoria das relac;5es entre objetos, emlugar de uma teoria das rela~5es entre eventos. Os ob­jetos, cantudo, sao isentos cia passagem de eventos. Porconseguinte, 0 espac;o, enquanto relac;ao entre objetos,esta privado de qualquer liga~ao com 0 tempo. Eo es­pac.;o em urn instante sem nenhuma relac;ao espedficaentre as espac;os em instantes sucessivos. NaG pode serurn espac;o unico e atemporal porque as re1ac;5es entreobjetos se modificam.

Alguns instantes atras, ao falar da dedu~ao das f6r­mulas ortodoxas referentes ao movimento relativo, afir­mei que estas se seguiam como uma dedu~ao imediatado pressuposto de pontos absolutos em urn espa~o ab­soluto. Tal men~ao ao espa~o absoluto nao foi uma ne­gligencia. Bern sei que a doutrina da relatividade do es­pa~o domina atualmente 0 campo tanto da ciencia comoda filosofia. Nao creio, porem, que suas conseqiienciasinevitiiveis sejam compreendidas. Quando de fato nosdefrontamos com e1as, 0 paradoxo na apresenta~aodo

carater do espa~o por mim elaborada se reduz sensivel­mente. Se nao existe uma posic;ao absoluta, urn pontodevera deixar de ser uma simples entidade. 0 que paraurn homem em urn balao, olhos fixos em urn instrumen­to, e urn ponto, sera uma trilha de pontos para urn ob­servador postado na Terra a observar 0 balao par meiode urn telesc6pio, e uma trilha de pontos diversa paraurn observador colocado no Sol a observar 0 balao pormeio de algum instrumento condizente a urn ser tal. As­sim sendo, aos que me censuram pe10 paradoxo de mi­nha teoria dos pontos como classes de partfeulas de even­to e por minha teoria das partfeulas de evento como gru­pos de conjuntos abstrativos, pe~o que expliquem exa­tamente 0 que entendem por ponto. Ao explicar 0 queentendemos par alguma coisa qualquer, par mais sim­ples que seja, a explicac;ao sempre tende a parecer en­genhosa e bern urdida. Pelo menos expliquei exatamenteo que entendo par urn ponto, que relac;oes este envolvee quais entidades sao os termos relacionais. Se admiti­rem a re1atividade do espa~o, voces deverao admitir tam­bern que os pontos sao entidades complexas, constru­~6es 16gicas que envolvem outras entidades e suas rela­~6es. Apresentem sua teoria, nao em meia duzia de fra­ses vagas e de significado impreciso, mas expliquem-napasso a passo em termos precisos, referindo-se a rela­~oes especificas entre termos especificos. Demonstrem,ainda, que sua teoria de pontos resulta em uma teoriado espa~o. Alem disso, observem que 0 exemplo do ho­mem no balao, 0 observador colocado na Terra e 0 ob­servador colocado no Sol mostra que cada pressupostode urn repouso relativo requer urn espa~o atemporaJ compontos radicalmente diversos daqueles decorrentes de

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qualquer outro pressuposto congenere. A teoria da re­latividade do espa~o e inconsistente com qualquer dou­trina de urn conjunto tinieD de pontcs em urn espat;oatemporal.

o fato e que nao existe paradoxo algum em minhadoutrina cia natureza do espac;.o que naD seja, em essen­cia, inerente a teoria da relatividade do espa~o. Essa dou­trina, no entanto, jamais foi aceita pela ciencia, digamo que disserem as pessoas. 0 que figura em nassos trata­dos de dinamica ea doutrina newtoniana do movimentorelativo baseada na doutrina do movimento diferencialno espa~o absoluto. Vma vez admitido que os pontossao entidades radicalmente diversas mediante diferen­tes hipoteses de repouso, as formulas ortodoxas perdemtoda sua obviedade. Elas apenas eram obvias porque es­tavamos, na verdade, pensando em Dutra coisa. Ao dis­cutir esse tema, somente podemos evitar 0 paradoxarefugiando-nos da torrente de desaprova~ao na como­da arca da ausencia de sentido.

A nova teoria fornece uma definic;.ao cia congruen­cia de perfodos de tempo. A doutrina dominante naofornece tal defini~ao. Sua posi~ao e a de que se adota­mos medi~6es de tempo tais que determinadas veloci­clades farniliares que nos parecem uniformes se mostremuniformes, as leis do movimento serao vaIidas. Ora, emprimeiro lugar, mudanc;.a alguma poderia se manifestar,quer como unifonne au nao-uniforme, sem envolver umaprecisa determina~aoda congruencia entre perfodos detempo. Assim, ao apelar para fenamenos familiares, adoutrina dominante admite a existencia de algum fatorna natureza ao qual podemos elaborar intelectualmen­te como uma teoria da congruencia. Todavia, ela nao

faz men~ao alguma a esse respeito, exceto a de que asleis do movimento sao, afinal de contas, corretas. Su­ponhamos que, atraves de alguns comentadores te6ri­cos, eliminemos a referencia a velocidades familiares co­mo a de rotal;aO da Terra. Somos levados a admitir, en­tao, que nao existe 0 menor significado na congruenciatemporal, exceto 0 de que determinadas hipoteses con­ferem verdade as leis do movimento. Tal asser~ao e his­toricamente falsa. 0 rei Alfredo 0 Grande ignorava asleis do movimento, mas sabia perfeitamente 0 que en­tendia por dimensionamento do tempo, e alcanl;ou seuprop6sito via queima de velas. Da mesma forma, nin­guem em eras passadas justificou 0 usa de areia nas am­pulhetas dizendo que alguns seculos a frente se assisti­ria adescoberta de curiosas leis do movimento que em­prestariam urn significado a afirmal;ao de que a areiaera esvaziada dos bulbos em tempos iguais. A unifor­midade na mudan~a e diretamente perceptfvel, dondese segue que a humanidade percebe, na natureza, fato­res a partir dos quais e possIvel a fOrmal;aO de uma teo­ria de congruencia temporal. A doutrina predominantese mostra totalmente incapaz de designar tais fatores.

A menl;ao as leis do movimento levanta outro pontoacerca do qual a teoria predominante nada tem a dizere no qual a nova teoria oferece uma explical;aO comple­tao Elargamente sabido que as leis do movimento naosao validas para todo e qualquer eixo referencial que ve­nhamos a adotar como fixo em todo e qualquer corporfgido. Devemos adotar um corpo que nao esteja em ro­ta~ao e nao apresente acelera~ao. Por exemplo, elas naose aplicam realmente a eixos fixos na Terra, em razao

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da constante rota<;ao de tal corpo. A lei que malograquando adotamos as eixos errados como em repouso ea terceira lei, a de que a<;ao e rea<;ao sao iguais e opOS­tas. Os eixos efracios dao margem ao aparecimento defon;as centrffugas nao compensadas e for<;as centrffugascompostas nao compensadas, devido a rota<;ao. A in­fluencia dessas for<;as pode ser demonstrada par uma se­rie de fatos sabre a superficie da Terra, como a pendulode Foucault a formato da Terra e as dire<;5es de rota-, ,<;ao fixas dos ciclones e anticiclones. E diffcillevar a se­rio a sugestao de que esses fenomenos sabre a Terra sedevam ainfluencia das estrelas fixas. Nao consigo con­veneer a mim meSilla a acreditar que uma estrelinha cin­tilante tenha girado em torno do pendulo de Foucaultna Exposi<;ao de Paris de 1861. Obviamente, qualquercoisa edigna de eredito uma vez demonstrada uma re­la<;ao ffsica inequivoca, por exemplo, a influencia dasmanchas solares. 0 presente caso ressente-se cia falta detoda e qualquer demonstra<;ao em termos de alguma teo­ria coerente. Segundo a teoria destas conferencias, oseixos que servem de referencia ao movimento sao eixosem repouso no espa<;o de algum sistema temporal. Parexemplo, considere-se 0 espac;o de urn sistema temporalo!. Existem conjuntos de eixos em repouso no espac;o dec/. Trata-se de eixos dinamicos adequados. Tambem urnconjunto de eixos nesse espac;o que esteja se movendocom velocidade uniforme e sem rotac;ao constitui outroconjunto adequado. Todos as pontos em movimento fi­xos nesses eixos em movimento estao realmente descre­venda linhas parale1as a uma mesma velocidade unifor­me. Em outras palavras, sao os reflexos, no espac;o deC/, de urn conjunto de eixos fixos no espa<;o de algum

outro sistema temporal {3. Assim, a grupo de eixos di­namicos requeridos para as Leis do Movimento de New­ton e produto da necessidade de referir 0 movimento aurn corpo em repouso no espac;o de algum sistema tem­poral, de modo a se obter urn registro coerente de pro­priedades ffsicas. Se procedermos de outro modo, a sig­nificado do movimento de uma por<;ao de nossa configu­ra<;ao ffsica sera. diferente do significado do movimentode outra por<;ao de mesma configura<;ao. Assim, sendoo significado do movimento 0 que e, se quisermos des­crever 0 movirnento de qualquer sistema de objetos semalterar 0 significado de nossos termos ao avanc;armos emnossa descric;ao, sera imprescindfvel adotar urn dessesconjuntos de eixos como eixos referenciais, embora pos­samos optar par seus reflexos no espa<;o de qualquer sis­tema temporal que se deseje adotar. Desse modo, umarazao ffsica definida e atribufda it propriedade peculiardo grupo dinamico de eixos.

N a teoria ortodoxa, a posic;ao das equac;6es de mo­vimento e das mais alnbfguas. 0 espac;o a que se refe­rem e totalmente indeterminado, e 0 mesmo aconteceao dimensionamento do lapso de tempo. A ciencia estasimplesmente partindo em uma pescaria aver se naopode encontrar algum procedimento a que possa cha­mar dimensionamento do espac;o, algum procedimentoa que possa chamar dimensionamento do tempo, algaa que possa chama.: urn sistema de for<;as e alga que possachamar de massas, de sarte que essas formulas possamser satisfeitas. A unica razao - nessa teoria - por quealguem desejasse satisfazer tais formulas seria urn apre­<;0 sentimental par Galileu, Newton, Euler e Lagrange.A teoria, longe de basear a ciencia em urn solido alicerce

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observacional, obriga tudo a conformar-se a uma merapreferencia matematica por determinadas formulas sim­ples.

Sequer por urn momento acredito ser esse urn au­tentico registro da real condi<;ao das Leis do Movimen­to. Essas equa<;6es pedem um ligeiro ajuste em face dasnovas f6rmulas da relatividade. Mas com esses ajustes,imperceptfveis no usa ordinaria, as leis lidam com gran­dezas fisicas fundamentais que conhecemos muito berne desejamos corre1acionar.

o dimensionamento do tempo era conhecido de to­dos os povos civilizados muito antes de serem concebi­das as leis. Ecom esse tempo assim dimensionado quese ocupam as leis. Tratam, ainda, do espac;o de nassavida cotidiana. Quando nos aproximamos de uma pre­cisao de dimensionamento que ultrapassa aque!e da ob­servac;ao, 0 ajuste e admissfvel. Dentro dos limites ciaobservac;ao, pon§m, sabemos a que nos referimos quandofalamos de dimensionamentos de espa<;o, dimensiona­mentos de tempo e uniformidade de mudan<;a. Compe­te aciencia fornecer uma interpretac)'io intelectual da­quilo que etao evidente para a apreensao sensivel. Pa­reee-me absolutamente inacreditave1 que 0 fata ultimo,para alem do qual inexiste uma explica<;ao mais profun­da, seja que a humanidade tenha realmente sido tomadapor urn desejo inconsciente de satisfazer as f6rmulas ma­tematicas por nos denominadas Leis do Movimento, f6r­mulas completamente desconhecidas ate 0 seculo XVIIde nossa era.

A corre1a~ao desses fatos da experiencia sensive1,empreendida pela interpreta<;ao alternativa da nature­za, estende-se para alem das propriedades fisicas de mo-

vimento e das propriedades de congruencia. Ela forne­ce uma interpreta<;ao do significado de entidades geo­metricas como pontos, retas e volumes, e liga as ideiasafins de extensao no tempo e extensao no espa~o. A teoriasatisfaz 0 verdadeiro prop6sito de uma explica<;ao inte­lectual na esfera da filosofia natural. Tal prop6sito e 0

de demonstrar as interligac;6es da natureza e demons­trar que urn conjunto de ingredientes da natureza re­quer, para a demonstra<;ao de seu carater, a presen<;ados demais conjuntos de ingredientes.

A ideia falsa da qual devemos nos livrar e a da natu­reza como simples agregado de entidades independentes,cada qual passive! de ser isolada. Segundo essa concep­<;ao, tais entidades, cujos caracteres permitem definic;oesisoladas, se reunem e, atraves de suas relac;6es aciden­tais, formam 0 sistema da natureza. Sistema esse, portan­to, que e absolutamente acidental; e, ainda que sujeitoa urn destino mecanico, apenas acidentalmente estaraassim sujeito.

Com essa teoria, poderiamos ter 0 espac;o sem 0

tempo e 0 tempo sem 0 espa<.;o. A teoria reconhecida­mente cai por terra quando chegamos as re!a<;6es entremateria e espac;o. A teoria relacional do espa<;o e umaadmissao de que nao podemos conhecer 0 espa<;o sema materia ou a materia sem 0 espa<.;o. Mas 0 isolamentode ambos com re!a<;ao ao tempo e ainda guardado a se­te chaves. As relac;5es entre por<;6es de materia no es­pa<;o sao fatos acidentais determinados pela ausencia dequalquer interpreta~ao coerente de como 0 espa<;o se ori­gina da materia e como a materia se origina do espac;o.Da mesma forma, aquilo que realmente observamos nanatureza, suas cores, sons e texturas, sao qualidades se-

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cundarias; em outras palavras l naD se encontram abso­lutamente na natureza, mas sao produtos acidentais dasre1ac;oes entre natureza e mente.

A explica,ao de natureza por mim proposta comoideal alternativo a essa concep,ao acidental da nature­za e a de que nada na natureza poderia ser 0 que eex­ceto enquanto ingrediente da natureza como esta. a todopresente para a discriminac;ao eapresentado na apreen­sao sensivel como necessaria para as partes discrimina­das. Urn evento isolado naG eurn evento, pais cada even­to efator de um todo mals amplo e esignificativo dessetodo. Nao pode existir tempo isoladamente do espa,oe espa,o isoladamente do tempo; e nenhum espa,o e ne­nhum tempo isolados cia passagem dos eventos cia na­tureza. 0 isolamento de uma entidade no pensamento,quando a concebemos como urn "alga" puro e simples,naG tern contraparte em nenhum isolamento correspon­dente na natureza. Tal isolarnento eapenas parte do pro­cedimento da apreensao intelectual.

As leis da natureza sao 0 produto dos caracteres dasentidades que encontramos na natureza. Sendo as enti­dades 0 que sao, as leis devem ser 0 que sao; e, inversa­mente, as entidades decorrem das leis. Estamos muitodistantes da realiza,ao de um tal ideal; mas este se man­tern como a meta perene da ci(~ncia teorica.

CAPITULO VII

OS OBJETOS

A conferencia que se segue esta voltada para a teo­ria dos objetos. Objetos sao elementos da natureza isentosde passagem. A apreensao de um objeto como algumfator nao-partfcipe da passagem da natureza e0 que de­nomino "reconhecimento". EimpossIvel reconhecer urnevento, uma vez que urn evento e essencialmente dis­tinto de todos os demais eventos. 0 reconhecimento euma apreensao de igualdade. Contudo, chamar ao re­conhecimento percep,ao de igualdade implica um atointelectual de compara,ao acompanhado de julgamen­to. Emprego 0 termo reconhecimento para designar arela<;ao nao-intelectual da apreensao sensIvel que esta­belece a liga<;ao da mente com urn fator da natureza isen­to de passagem. No lado intelectual da experiencia men­tal verificam-se compara<;6es de coisas reconhecidas econsequentes julgamentos de igualdade ou diversidade.Provavelmente "reconhecimento sensIvel" seria uma ex­pressao mais adequada para aquilo que chamo de "re­conhecimento". Optei pdo termo mais simples por con-

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170 o CONCEITO DE NA TUREZA OSOBJETOS 171

siderar que me sera passive! evitar 0 usa de "reconhe­cimento" em qualquer Dutra acepl,;ao que DaD a de "re­conhecimento senslvel". Sou bastante propenso a acre­ditar que 0 reconhecimento, no sentido que estoll em­prestando ao termo, DaD passa de urn limite ideal e que,na verdade, naD existe reconhecimento desprovido deacompanhamentos intelectuais de comparac;ao e julga­mento. 0 reconhecimento, parern, eaque1a re1a~ao ciamente com a natureza que fornece 0 material para a ati­vidade intelectual.

Urn objeto e urn ingrediente do cad.ter de algumevento. Na verdade, 0 carater de urn evento nada maisesenao seus objetos ingredientes e os modos pe10s quaistais objetos se introduzem no evento. A teoria dos ob­jetos, portanto, e a teoria cia compara<;ao dos eventos.Os eventos s6 sao companiveis porque dao corpo a per­manencias. Toda vez que pudermos dizer "Ei-Io no­vamente", estaremos comparando objetos de eventos.Objetos sao os elementos da natureza capazes de "sernovamente" .

Por vezes, epossivel comprovar a existencia de per­manencias que se furtam ao reconhecimento, na acep­c;ao em que estou empregando 0 termo. As permanen­cias que se furtam ao reconhecimento se nos afiguramcomo propriedades abstratas quer de eventos quer deobjetos. Ainda assim, estao ali presentes para 0 reconhe­cimento, embora indiscriminadas em nossa apreensaosensivel. A demarcac;ao de eventos, 0 desmembramen­to da natureza em partes, e empreendida pelos objetosque reconhecemos como seus ingredientes. A discrimi­nac;ao da natureza e 0 reconhecimento de objetos emmeio aos eventos passageiros. Eurn composto formado

pela percepC;ao da passagem da natureza, a conseqiien­te partic;ao da natureza e a definic;ao de determinadaspartes da natureza pelos modos em que se da a introdu­c;ao dos objetos nas mesmas.

Talvez voces tenham percebido que estou empre­gando 0 termo "introduc;ao" para designar a relac;ao ge­ral entre objetos e eventos. A introduc;ao de urn objetoem urn evento e 0 modo pelo qual 0 evento molda a simesmo em virtude do ser do objeto. Ou seja, 0 eventoeo que eporque 0 objeto e 0 que e; e, quando conside­ro essa modificac;ao do evento por parte do objeto, cha­ma arelac;ao entre ambos "introduc;ao do objeto no even­to". Eigualmente verdadeiro dizer que os objetos saoo que sao porque os eventos sao 0 que sao. A naturezae tal que nao podem existir eventos nem objetos sem aintroduc;ao de objetos nos eventos, embora haja even­tos tais que seus objetos ingredientes se furtam a nossoreconhecimento. Sao os eventos no espac;o vazio. Taiseventos apenas sao analisados para nos pela investiga­c;ao intelectual da ciencia.

A introduc;ao e uma relac;ao que se da de diversosmodos. Existem, obviamente, especies muito diversasde objetos; e nenhuma especie de objeto pode apresen­tar 0 mesmo tipo de relac;ao com eventos do que se po­de verificar nos objetos de outra especie. Sera preciseque analisemos alguns dos diferentes modos de intro­duc;ao de diferentes especies de objetos em eventos.

Todavia, mesmo que nos atenhamos a uma unicaespecie de objetos, urn objeto de tal especie apresentadiferentes modos de introduc;ao em diferentes eventos.A ciencia e a filosofia tern demonstrado uma inc1inac;aoa se enredarem em uma teoria simplista de que cada

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objeto se encontra em urn tinieD local a qualquer mo­menta determinado e, sob nenhum aspecto, em partealguma alem. Essa, com efeito, e a atitude do pensa­menta ditada pelo sensa comum, embora naD seja a ati­tude da linguagem a expressar ingenuamente os fatosda experiencia. Urna de cada duas senten~as de uma obraliteniria verdadeiramente empenhada em interpretar asfatos cia experiencia expressa as diferenc;as sofridas noseventos circundantes devido a presen~a de algum obje­to. Cada objeto e urn ingrediente de toda a extensao desua circunvizinhanc;a e sua circunvizinhanc;a eindefini­da. A modifica~ao de eventos por introdu~ao, alem dis­so, e suscetfvel de diferenc;as quantitativas. Finalmen­te, portanto, somos levados a admitir que cada objetoe, em certo sentido, ingrediente cia totalidade cia natu­reza, embora sua introdw;;ao possa ser quantitativamenteirrelevante na expressao de nossas experiencias indivi­duais.

Tal admissao nao e inedita quer na filosofia querna ciencia. Trata-se obviamente de urn axioma neces­sario aqueles fil6sofos que insistem em que a realidadee urn sistema. No presente cicIo de conferencias, esta­mos deixando de lado a questiio profunda e inquietantequanta ao que entendemos por "realidade". Defendo,aqui, a tese mais modesta de que a natureza e urn siste­ma. Suponho no entanto que, neste caso, 0 menor de­corre do maior e que posso reivindicar 0 _apoio dessesfil6sofos. A mesma doutrina se encontra essencialmen­te entretecida em toda especula~ao f(sica moderna. ] aem 1847, em urn artigo no Philosophical Magazine, Fara­day observava que sua teoria dos tubos de for~a implicaque, em certo sentido, existe uma carga eletrica em toda

parte. A modificac;ao do campo eletromagnetico em ca­da ponto do espac;o, a cada instante, em decorrencia dahist6ria passada de cada eletron, e uma outra forma deenunciar 0 mesmo fato. Podemos, contudo, ilustrar adoutrina com os fatos mais familiares da vida sem re­correr as diffceis especulac;oes da ffsica te6rica.

o modo como se da 0 rolar das ondas junto a costada Cornualha indica uma tempestade no meio do Atlan­tico; e nosso jantar da testemunho da introduc;ao da co­zinheira na sala de jantar. Eevidente que a introdu~iiode objetos nos eventos inclui a teoria da causalidade. Pre­firo relegar esse aspecto cia introduc;ao, uma vez que acausalidade desperta a lembran~a de discuss6es basea­das em teorias da natureza estranhas aminha. Ademais,considero possfvellanc;ar novas luzes sobre 0 terna obser­vando-o sob esse aspecto diferente.

Os exemplos da introdu~aode objetos em eventosque apresentei nos fazem lembrar que a introduc;ao as­sume uma forma peculiar no caso de alguns eventos; emcerto sentido, trata-se de uma forma mais concentrada.Por exemplo, 0 eIetron tern uma determinada posic;aono espa~o e uma determinada forma. Talvez se trate deuma esfera extremamente dirninuta em urn determinadotubo de ensaio. A tempestade e urn vendaval situado noAtlantico em alto-mar com uma determinada latitudee longitude, e a cozinheira esta na cozinha. Charnareia essa forma especial de introduc;ao "relac;ao de situa­c;ao"; tambem, por urn duplo sentido da palavra "si­tuac;ao", chamarei ao evento no qual urn objeto esta si­tuado a "situac;ao do objeto". Assim, uma situac;ao eurn evento que e urn termo relacional na relac;ao de si­tuac;ao. Ora, nossa primeira irnpressao e a de termos

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finalmente chegado ao fato puro e simples da realloca­liza~ao do objeto; e que a rela~ao mais vaga a que de­nomino introduc;ao nao deveria ser confundida com arela~ao de situa~ao, como que inc1uindo esta na quali­dade de caso particular. Parece inteiramente 6bvio quequalquer objeto se encontra em tal ou qual posi~ao e queexerce influencia sabre outros eventos em urn sentidototalmente diverso. Dito de outra forma, um objeto, emcerto sentido, e0 caniter do evento que esua situac;ao,.mas apenas influencia 0 carater de outros eventos. Nes­se sentido, as re1a<;5es de situac;ao e influencia geralmenteDaD sao relac;6es do meSilla genera e nao devem ser agru­padas sob 0 meSilla termo "introduc;ao" . Acredito queessa no<.;5.o e urn equivoco e que seja impassIvel trac;ar

. uma clara distin<;ao entre as duas relac;5es.Por exemplo, onde era a sua dor de dente? Voce

foi a um dentista e indicou 0 dente para ele. Ele dec1a­rou esse dente perfeitamente sao e curou voce obturan­do outro dente. Qual dente era a situa~ao da dor de den­te? Da mesma forma, urn homem tern urn brac;o ampu­tado e experimenta sensac;oes na mao que perdeu. A si­tuac;ao cia mao imaginaria, na realidade, e pura ilusao.Voces se poem diante de urn espelho e avistam urn in­cendio. As chamas que veem estao situadas atras do es­pelho. Assim tambem, voces observam 0 ceu durantea noite; caso algumas das estrelas tenham deixado deexistir horas atHis, voces nao teriam a menor ideia dis­so. Mesmo a situa~ao dos planetas difere daquela quelhes seria atribufda pela ciencia.

Seja como for, voces se verao tentados a exclamar,a cozinheira esta na cozinha. Se estiverem se referindoamente dela, nao concordarei com voces nesse ponto,

pois estou falando apenas de natureza. Consideremosapenas sua presenc;a ffsica. 0 que entendem voces poressa noc;ao? Nos nos confinamos a manifestac;oes tipi­cas da mesma. Voces podem ver a cozinheira, toea-la,ouvi-la. Contudo, os exemplos que lhes apresentei mos­tram que as noc;oes das situac;5es daquilo que veem, da­quilo que tocam e daquilo que ouvem nao se encontramtao nitidamente separadas a ponto de desafiar questio­namentos adicionais. Voces nao podem se apegar aideiade que contamos com dois conjuntos de experiencias danatureza, urn das qualidades primarias pertencentes aosobjetos percebidos e outro das qualidades secundarias,produtos de nossas inquieta~i5es mentais. Tudo 0 queconhecemos acerca da natureza esta no mesmo barco,para afundar ou navegar conjuntamente. As constru­c;oes da ciencia sao meras demonstrac;oes dos caracteresdas coisas percebidas. Nesse sentido, afirmar que a co­zinheira e uma determinada danc;a de moleculas e eIe­trons esimplesmente afirmar que as coisas perceptiveisde que ela edotada possuem determinados caracteres.As situa~i5es das manifesta~i5espercebidas de sua pre­senc;a ffsica possuem tao-somente uma relaC;ao muito ge­nerica com a situac;ao das moleculas, para serem deter­rninadas pela discussao das circunstancias da percepc;ao.

Ao discutir as rela~i5es de situa~ao em particular eas de introduC;ao em geral, 0 prirneiro requisito eobser­var que os objetos sao de tipos radicalmente diversos.Para cada tipo, a "situac;ao" e a "introduc;ao" tern seussignificados pr6prios e especiais, que diferem de seus sig­nificados para outros tipos, ernbora seja possive! identi­ficar pontos de liga~ao. Ao discutir tais rela~i5es, por­tanto, e necessario deterrninar que tipo de objetos esta

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sob considera<:ao. Existe, penso eu, urn numero indefi­nido de tipos de objetos. Felizmente nao precisamos pen­sar em todos eles. A id€ia de situar;ao tern sua impor­tancia peculiar com referencia a tres tipos de objetos aque denomino objetos dos sentidos, objetos perceptuaise objetos cientificos. A adequa~ao desses nomes aos trestipos ede pouca importancia, contanto que eu consigaexplicar 0 que estou designando por e1es.

Esses tres tipos formam uma hierarquia ascenden­te, na qual cada membro pressup6e 0 tipo que vern abai­xo. A base da hierarquia e formada pelos objetos dossentidos. Tais objetos nao pressup6em nenhum outrotipo de objetos. Urn objeto dos sentidos e urn fator danatureza postulado pela apreensao sensive1 que (i) namedida em que e urn objeto, nao participa da passagemcia natureza e (ii) DaO constitui uma relac;ao entre ou­tros fatores cia natureza. Sera ele, obviamente, urn ter­mo de re1a~6es que tambem implicam outros fatores danatureza. Mas sera sempre urn termo relacional e ja­mais a rela~ao propriamente dita. Sao exemplos de ob­jetos dos sentidos uma classe particular de COf, digamoso azul-claro, uma c1asse particular de som, uma classeparticular de aroma au uma c1asse particular de sensa­r;ao. NaG estoll me referindo a uma porc;ao particularde azul tal como vista durante urn segundo particularde tempo em alguma data definida. Tal por~ao e urnevento em que 0 azul-claro esta situado. Da mesma for­ma, nao me refiro a nenhuma sala de concertos quandopreenchida por aquela determinada nota. Refiro-me itpropria nota e nao it por~ao de volume preenchida pelosom por urn decimo de segundo. Enatural para nos pen­sar na nota em si mesma, embora no caso da cor nossa

inclina<:ao seja a de considera-la meramente uma pro­priedade da por~ao. Ninguem pensa na nota como umapropriedade cia sala de concertos. N6s enxergamos 0 azule ouvimos a nota. Tanto 0 azul como a nota sao apresen­tados imediatamente pela discriminac;ao da apreensaosensivel que estabelece a relac;ao da mente com a natu­reza. 0 azul e apresentado como existente na natureza,relacionado a outros fatores da natureza. Eapresenta­do particularmente enquanto na relac;ao de estar situa­do no evento que constitui sua situaC;ao.

As dificuldades que se acumulam em tome da rela­c;ao de situac;ao tern origem na obstinada recusa dos fi­16sofos em encarar seriamente 0 fato ultimo das rela­~6es multiplas. Por rela~ao multipla designo uma re­laC;ao que, em qualquer instancia concreta de sua ocor­rencia, envolve necessariamente mais de dois termosrelacionais. Por exemplo, quando dizemos que John gos­ta de Thomas, temos apenas dais termos relacionais,John e Thomas. Mas quando dissermos que John en­trega aquele livro a Thomas, teremos tres termos rela­cionais, John, 0 livro e Thomas.

Determinadas escolas filos6ficas, sob a influenciada 16gica e da filosofia aristotelicas, insistem em nao ad­mitir absolutamente relac;ao alguma, salvo aquela en­tre substancia e atributo. Em outras palavras, todas asrelac;oes aparentes devem ser redutiveis aexistencia con­vergente de substancias com atributos contrastados. Ebastante 6bvio que a monadologia leibniziana e 0 resul­tado necessario de qualquer filosofia do genero. Se 0 plu­ralismo nos desagrada, existira uma unica monada.

Outras escolas filos6ficas admitem relac;oes, mas serecusarn obstinadamente a contemplar re1ac;oes corn nlais

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de dais termos. NaG ereio que tallimita<;8.o se baseie emnenhuma finalidade ou teoria estabelecida. Ela surgesimplesmente do incomodo representado por rela(:oesmais complicadas para pessoas sem uma adequada for­ma<;ao matematica, quando devem considera-Ias no ra­ciocfnio.

Devo repetir que em nada nos diz respeito, nestasconferencias, 0 carater ultimo da realidade. Ebern pos­sivel que na autentica filosofia da realidade somente exis­tam substancias individuais com atributos au apenas re­la<;oes entre pares de termos. Nao ereio que seja este 0

caso, mas naD estoll preocupado em discutir a esse res­peito agora. Nosso tema ea Natureza. Ate onde nos con­finamos aos fatores apresentados na apreensao sensfvelcia natureza, pareee-me que certamente existem casosde multiplas rela~6es entre tais fatores e que a rela~ao

de situa~ao para os objetos dos sentidos e urn exemplodessas rela~6es multiplas.

Consideremos urn blusao azul, urn blusao de (Ja­nela azul-clara pertencente a algum atleta. 0 blusao emsi e urn objeto perpetuo e naD e de sua situa<;ao que eg­tou falando agora. Estamos falando da precisa apreen­sao sensfvel, por parte de urn individuo, do azul-clarotal como situado em algum evento da natureza. 0 indi­viduo pode estar olhando diretamente para 0 blusao. Eleenxerga entao 0 azul-claro como situado praticamenteno mesmo evento que 0 blusao naquele instante . Ever­dade que 0 azul que ele enxerga deve-se aluz que aban­donou 0 blusao uma fra\=ao inconcebivelmente minimade segundo antes. Essa diferen~a seria importante se es­tivessemos olhando uma estrela cuja colora\=ao fosse azul­clara. A estrela poderia ter deixado de existir dias atnls,

ou mesmo anos atnls. A situa\=ao do azul nao estanl, por­tanto, intimamente ligada asitua\=ao (num outro senti­do de "situa~ao") de nenhum objeto perceptual. Naoeprecise uma estre1a para exemplificar essa desconex3.oentre a situa~ao do azul e a situa~ao de algum objetoperceptual associado. Urn espelho qualquer sera suficien­teo Observemos 0 blusao atraves de urn espelho. Nessecaso, 0 azul e visto como situado atds do espelho. 0

. evento que e sua situa~aodepende da posi~ao do obser­vador.

A apreensao sensivel do azul enquanto situado emurn determinado evento ao qual chamo situa\=3.o manifes­ta-se, portanto, como a apreensao sensive1 de uma rela­\=3.0 entre 0 azul, 0 evento percipiente do observador,a situa\=3.o e os eventos intervenientes. Na verdade, to­da a natureza e solicitada, embora apenas alguns even­tos intervenientes exijam que seus caracteres sejam dedeterminadas qualidades especfficas. A introdu~ao doazul nos eventos da natureza manifesta-se, portanto, co­mo sistematicamente correlacionada. A apreens3.o do ob­servador depende da posi~ao do evento percipiente nessacorre1a\=3.o sistematica. Usarei a express3.o "introdu\=aona natureza" para designar essa corre1a\=3.o sistematicado azul com a natureza. Assim, a introdu\=3.o do azulem qualquer evento especffico e uma declara~aoparcialdo fato da introdu~ao do azul na natureza.

Com respeito aintrodu\=3.o do azul na natureza, po­demos classificar os eventos, grosso modo, em quatro ca­tegorias que se sobrepoem e que nao estao nitidamenteisoladas. Tais categorias sao (i) os eventos percipientes,(ii) as situa\=oes, (iii) os eventos condicionantes ativos e

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(iv) as eventos condicionantes passivos. Para se com­preender essa classificac;ao dos eventos no fato geral ciaintroduc;;ao do azul na natureza, concentremos nossaatenc;;ao em uma situac;;ao para urn evento percipienteisolado e nas conseqiientes junfoes dos eventos condicio­nantes na introduc;;ao assim limitada. 0 evento perci­piente e 0 estado corporeo re1evante do observador. Asituac;;ao e 0 lugar cude ele ve 0 azul - digamos, atrasdo espelho. Os eventos condicionantes ativos sao aque­les cujos caracteres sao particularmente relevantes paraque 0 evento (que e a situa~ao) constitua a situa~ao da­gue1e evento percipiente, au seja, 0 blusao, 0 espe1hoe as condi~6es da sala no tocante it ilumina~ao e am­biente. as eventos condicionantes passivos sao aquelesdo resta cia natureza.

Em geral, a situac;;ao eurn evento condicionante ati­yo, ou seja, 0 blusao em si, na ausencia de espelhos ououtros artiffcios do genero para produzir efeitos anor­mais. 0 exemplo do espelho, entretanto, nos mostra quea situac;ao pode ser a de eventos condicionantes passi­vos. Podemos dizer, nesse caso, que nossos sentidos fo­ram ludibriados, pois exigimos, por direito, que a situa­c;ao seja uma condic;ao ativa para a introduc;ao.

Tal exigencia nao e tao infundada quanto pode pa­recer quando apresentada da maneira como liz. Tudoo que conhecemos acerca dos caracteres dos eventos danatureza baseia-se na analise das rela<;oes entre situa­c;6es e eventos percipientes. Se as situac;6es nao fossemem geral condic;5es ativas, essa analise nao nos revela­ria coisa alguma. A natureza seria para nos urn enigmainescrutavel e nao poderia haver nenhuma ciencia. As­sim sendo, 0 incipiente desapontamento surgido quando

se verifica que uma situa<;ao euma condic;ao passiva emcerto sentido ejustificavel, pois, caso esse tipo de coisase verificasse com muita assiduidade, afun~lio do inte­lecto estaria encerrada.

Outrossim, 0 proprio espelho e a situac;ao de ou­tros objetos dos sentidos, seja para 0 mesmo observa­dor com respeito ao mesmo evento percipiente como paraoutros observadores com respeito a eventos percipien­tes outros. Portanto, 0 fato de urn evento consistir emuma situa<;ao de introdu<;ao na natureza de urn conjun­to de objetos dos sentidos e uma suposta evidencia deque tal evento euma condic;ao ativa para a introduc;aona natureza de outros objetos dos sentidos que poderaoter outras situa<;5es.

Esse e urn principio fundamental da ciencia deri­vado do senso comum.

Passo agora aos objetos perceptuais. Ao olharmospara 0 blusao, nao dizemos geralmente: eis uma por­c;ao de azul-claro; 0 que naturalmente nos ocorre e: eisurn blusao. Tambem 0 julgamento de que 0 que vimoseuma pec;a de vestuario masculino nao passa de urn de­talhe. 0 que percebemos e urn objeto que difere de urnmero objeto dos sentidos. Nao se trata de uma simplespor<;ao de cor, mas de algo mais; e eesse algo mais quejulgamos ser urn. blusao. Usarei a palavra "blusao" paradesignar aquele simples objeto que e mais que uma por­c;ao de cor, sem nenhuma alusao aos julgamentos quantaa sua utilidade como pe<;a de vestuario, quer no passa­do quer no futuro. 0 blusao percebido - nesse sentidoda palavra "blusao" - e 0 que chama de objeto per­ceptual. Eprecise que examinemos 0 caniter geral des­ses objetos perceptuais.

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Euma lei cia natureza que, em geral, a situa<;aode urn objeto dos sentidos seja DaD apenas a situa<;ao da­quele objeto dos sentidos para urn evento percipiente es­pecifico, mas a situa,ao de uma variedade de objetos dossentidos para uma variedade de eventos percipientes. Porexemplo, para qualquer evento percipiente individual,a situa,ao de urn objeto dos sentidos para a visao tam­bern esta apta a ser as situa,oes dos objetos dos sentidospara a visao, 0 tate, 0 olfato e 0 som. Verifica-se, ain­cia, que essa confluencia nas situa<;oes dos objetos dossentidos levou 0 carpo - i.e. 0 evento percipiente ­a uma adapta,ao tal que a percep,ao de urn objeto dossentidos em uma determinada situac;ao conduz a umaapreensao sensfvel subconsciente de outros objetos dossentidos na mesma situa<;ao. Esse intercambio e parti­cularmente 0 caso que se cia entre 0 tate e a visao. Existeuma certa corre1al;,:ao entre as introdu<;6es na naturezade objetos dos sentidos para 0 tato e objetos dos senti­dos para a visao e, em grau menos acentuado, entre asintrodu,oes de outros pares de objetos dos sentidos. Doua esse genera de corre1ac;ao 0 nome de "transferencia"de urn objeto dos sentidos por algum outro. Ao vermoso blusao azul de flanela, subconscientemente imaginamo­nos vestincio-o ou tocando-o. Se formos fumantes, tam­bern poderemos atentar subconscientemente para 0 levearoma do tabaco. 0 fato peculiar, postulado por essaapreensao senslve1 cia confluencia de objetos dos senti­dos subconscientes e urn ou mais objetos dos sentidosdominantes na mesma situac;ao, e a apreensao senslveldo objeto perceptual. 0 objeto perceptual nao e funda­mentalmente 0 resultado de urn julgamento. Eurn fa­tor da natureza diretamente apresentado na apreensao

senslvel. 0 fator julgamento se introduz quando passa­mos a classificar 0 objeto perceptual particular. Dize­mos, por exemplo, "isso eflanela", e pensamos nas pro­priedades da flanela enos uso, dos blusoes esportivos.Tudo isso, contudo, tern lugar depois de nos termos as­senhoreado do objeto perceptual. Os julgamentos pre­vios afetam 0 objeto perceptual percebido, em rado dafocaliza,ao e do desvio da aten,ao.

o objeto perceptual e 0 produto do Mbito da ex­periencia. Tudo quanta esteja em conflito com esse ha­bito prejudica a apreensao sensfvel de urn tal objeto. Urnobjeto dos sentidos nao e 0 produto da associa,ao deideias intelectuais; eo produto da associa,ao de objetosdos sentidos na mesma situac;ao. Esse produto nao ein­telectual; e urn objeto de tipo singular, com sua intro­duc;ao propria e particular na natureza.

Existem duas especies de objetos perceptuais, a sa­ber, os "objetos perceptuais enganosos" e os "objetosffsicos". A situa,ao de urn objeto perceptual enganosoe uma condi,ao passiva na introdu,ao daquele objetona natureza. Ademais, 0 evento que e a situac;ao teraa rela,ao de situa,ao com 0 objeto apenas para urn eventopercipiente particular. Por exemplo, urn observador vea imagem do blusao azul em urn espelho. Eurn blusaoazul que ele enxerga e nao uma simples mancha de cor.Isso mostra que as condic;;5es ativas para a transferenciade urn grupo de objetos dos sentidos subsconscientes atra­Yes de urn objeto dos sentidos dominantes devem ser pro­curadas no evento percipiente. Em outras palavras, de­vemos busca-las nas investiga,oes dos psic610gos clfni­cos. A introdu,ao na natureza do objeto dos sentidos en­ganoso esta condicionada pela adapta,ao dos eventos cor-

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porais aocorrencia mais normal, que ea introdu~ao doobjeto fisico.

Urn objeto perceptual e urn objeto fisico quando (i)sua situac;ao eurn evento condicionante ativo para a in­trodu~ao de qualquer urn de seus objetos dos sentidoscomponentes e (ii) 0 mesma evento pode ser a situae;aodo objeto perceptual para urn numero indefinido de even­tos percipientes possiveis. Os objetos fisicos sao os obje­tos ordinarios que percebemos quando nossos sentidosnaG sao ludibriados, como cadeiras, mesas e arvores. Emcerto sentido, as objetos ffsicos contam com uma fore;aperceptiva mais insistente do que as objetos dos senti­dos. A atenc;ao para 0 fata de sua ocorrencia na nature­za ea condic;ao primeira para a subsistencia de organis­mos vivos complexos. 0 resultado desse elevado poderperceptivo dos objetos fisicos e a filosofia escolastica danatureza, que ve nos objetos dos sentidos meros atribu­tos dos objetos fisicos. Esse ponto de vista escolastico estadiretamente contestado pela prodigalidade dos objetosdos sentidos que se introduzem em nossa experiencia en­quanta situados em eventos sem 0 menor vinculo comobjetos fisicos. Por exemplo, aromas, sons e cores difu­sos, e objetos dos sentidos mais sutis e inominaveis. Naoexiste apreensao de objetos fisicos sem a apreensao deobjetos dos sentidos. Mas a redproca nao everdadeira,vale dizer, existe uma farta apreensao de objetos dos sen­tidos que nao e acompanhada por nenhuma apreensaode objetos fisicos. A ausencia de reciprocidade nas rela­~5es entre objetos dos sentidos e objetos fisicos e fatalpara a filosofia natural escolastica.

Egrande a diferenp entre as fun,iies das situa~5es

dos objetos dos sentidos e dos objetos fisicos. As situa~5es

de um objeto ffsico estao condicionadas pelo can~.ter tinicoe pela continuidade. 0 carater unico eum limite idealdo qual nos aproximamos ao percorrer em pensamentourn conjunto abstrativo de dura~5es, considerando du­ra<;6es progressivamente menores na aproxima<;ao ao li­mite ideal do momento temporal. Em outras palavras,quando a dura<;ao ebreve 0 suficiente, a situa<;ao do ob­jeto fisico dentro daquela dura~ao e praticamente unica.

A identifica~ao do mesmo objeto fisico como situa­do em eventos distintos em dura<;6es distintas e levadaa termo pela condi~ao da continuidade. Essa condi~ao

de continuidade e a condi~ao que permite identificar umacontinuidade na passagem de eventos, sendo cada eventouma situa<;ao do objeto em sua dura<;ao corresponden­te, do anterior ao posterior entre dois eventos dados. Namedida em que os dois eventos sejam praticamente ad­jacentes em urn presente especioso, essa continuidadede passagem pode ser percebida diretamente. Do con­trario, sera uma questao de julgamento e inferencia.

As situa~5es de urn objeto dos sentidos nao estaocondicionadas quer pelo carater unico quer pela conti­nuidade. Em quaisquer dura<;6es, por menores que se­jam, urn objeto dos sentidos pode apresentar qualquernumero de situa<;6es isoladas umas das outras. Portan­to, duas situa<;6es de urn objeto dos sentidos, na mesmadura<;ao ou em dura<;6es distintas, nao estao necessaria­mente vinculadas por nenhuma passagem contfnua deeventos que tambern sao situa~5es daquele objeto dossentidos.

Os caracteres dos eventos condicionantes envolvi­dosna introdu~aode urn objeto dos sentidos na nature­za podem ser largamente expressos em termos dos obje-

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tos fisicos situados em tais eventos. Sob determinado as­pecto, isso etambem uma tautologia, pais 0 objeto fisiconada mais e do que a habitual confluencia de urn de­terminado conjunto de objetos dos sentidos em uma si­tua,ao. Assim, quando conhecemos tudo a respeito doobjeto ffsico, conhecemos, conseqiiex:teme?-.te, as o~Je­

tos dos sentidos componentes. Urn obJeto fIsIco, porem,euma condi~ao para a ocorrencia de objetos dos senti­dos outros que DaO seus componentes. Par exemplo, aatmosfera leva os eventos que sao suas situae;oes a se­rem eventos condicionantes ativos na transmissao dosom. Urn espelho, em si meSilla urn objeto fisico, eumacondic;ao ativa para a situa.;ao de uma por~ao colaridaatras de si, devido a reflexao cia luz em sua superficie.

A origem do conhecimento cientffico, portanto, eo esforc;o em expressar, em termos dos objetos ffsicos,as mu.ltiplasfunfoes dos eventos enquanto condi,oes ati­vas na introduc;ao do objetos dos sentidos na natureza.£, no avan,o dessa investiga,ao que os objetos cientffi­cos vern a tona. Eles corporificam aqueles aspectos dassituac;oes dos objetos ffsicos que sao mais permanentese exprimfveis sem referencia a uma relac;ao multipIa en­volvendo urn evento percipiente. Suas re1ac;oes mutuastambern se caracterizam por uma certa simplicidade euniformidade. Por fim, os caracteres dos objetos ffsicose objetos dos sentidos observados podem ser expressosem termos desses objetos cientfficos. Na verdade, 0 cer­ne da busca por objetos cientfficos e 0 esfor,o em obter­se essa simples expressao dos caracteres dos eventos. Taisobjetos cientfficos nao sao, em si, meras for~ulas par.ao calculo uma vez que formulas devem refenr-se a C01­

sas da n~tureza e os objetos cientfficos sao .as coisas danatureza a que as formulas se referem.

Urn objeto cientffico, como urn eletron espedfico,euma correlac;ao sistematica dos caracteres de todos oseventos existentes por toda a natureza. E urn aspectodo carater sistematico da natureza. 0 eletron nao estasimplesmente ali onde esta sua carga. A carga e0 cara­ter quantitativo de certos eventos decorrentes da intro­du,ao do eletron na natureza. 0 eletron e a totalidadede seu campo de for,a. Em outras palavras, 0 eletrone a forma sistematica pe1a qual todos os eventos sao mo­dificados enquanto expressao de sua introdu,ao. A si­tua,ao de urn eletron em qualquer dura,ao breve podeser definida como aque1e evento dotado do caniter quan­titativo que e a carga do eletron. Podemos, se quiser­mos, chamar a simples carga de e1etron. Nesse caso, po­rem, sera preciso outro nome para 0 objeto cientfficoque e a entidade integral de que se ocupa a ciencia, ea qual denominei eletron.

Segundo essa concep,ao dos objetos cientfficos, asteorias rivais de ac;ao a distancia e ac;ao por transmissaoatraves de urn meio sao, ambas, expressoes incomple­tas do verdadeiro processo da natureza. A Corrente deeventos que forma a serie contfnua de situac;oes do ele­tron e inteiramente autodeterminada, tanto no que serefere a possuir 0 carater intrfnseco de ser a serie de si­tuac;oes daquele eletron COmo no que se refere aos siste­mas temporais com os quais seus diversos membros saocogredientes, bern como ao £luxo de suas posic;oes emsuas dura,oes correspondentes. Tal e 0 fundamento danegaC;ao da ac;ao a distancia, ou seja, 0 progresso da cor­rente das situa,oes de urn objeto cientffico pode ser de­terminado par uma analise da propria corrente.

Por outro lado, a introduc;ao de cada e1etron na na­tureza modifica, em certa medida, 0 carater de cada

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188 o CONCE/TO DE NATUREZA OS OB]ETOS 189

evento particular. Assim, 0 carater cia corrente de eventosque estamos considerando porta-sinais cia existencia detodos as demais eh~trons existentes em todo 0 universo.Se nos apraz pensar nos eletrons como senda meramen­te aquila que denomino suas cargas , as cargas atuam adistancia. Tal a~ao, porem, consiste na modifica~aociasitua~ao do outro e1€tron que se considera. Essa concep­<;ao de uma carga atuando a distancia e totalmente arti­ficial. A concep<;ao que mais integralmente expressa 0

can~.ter cia natureza ea de cada evento senda modifica­do pela introdu<;ao de cada eletron na natureza. 0 eterea expressao dessa sistematica modificac;ao dos eventosatraves de todo 0 espa<;o e de todo a tempo. Cabe aosffsicos encontrar a expressao mais adequada do caniterdessa modificac;ao. Minha teoria nada tern a ver comisso e esta pronta a aceitar qualquer resultado da pes­quisa no campo cia fisica.

A rela<;ao entre objetos e espa<;o requer uma eluci­da<;ao. Os objetos estao situados em eventos. A rela<;aode situa<;ao difere segundo cada tipo de objeto e, no ca­so dos objetos dos sentidos, nao pode ser expressa comouma re1a<;ao binaria. Talvez fosse mais apropriado em­pregarmos uma palavra diferente para esses diferentestipos de rela~ao de situa~ao. Contudo, isso nao se feznecessario para nossas finalidades nestas conferencias.Devemos compreender, no entanto, que, quando se fa­la em situa<;ao, algum tipo especffico se encontra em dis­cussao e pode se dar que 0 racioefnio nao se aplique asitua<;ao de algum outro tipo. Na totalidade dos casas,todavia, uso 0 termo situa~ao para expressar uma rela­~ao entre objetos e eventos, e nao entre objetos e ele­mentos abstrativos. Existe uma rela~ao derivativa entre

objetos e elementos espaciais, a qual denomino rela<;aode loca~ao; e quando se verifica essa loca~ao, digo quea objeto esta localizado no elemento abstrativo. Nessesentido, urn objeto pode estar localizado em urn momen­to do tempo, em urn volume do espa~o, uma area, umalinha au urn ponto. Haved urn tipo peculiar de locali­za<;ao correspondente a cada tipo de situa<;ao, sendo ela,em cada caso, derivativa da correspondente rela<;ao desitua~ao, de uma forma que passo agora a explicar.

Tambem a localiza<;ao no espa<;o atemporal de al­gum sistema temporal e uma rela~ao derivativa estabe­lecida a partir da 10caliza<;1i.o em espa<;os instantaneosdo mesmo sistema temporal. Consequentemente, a 10­caliza~ao em urn espa~o instantaneo e a ideia fundamen­tal que nos compete explicar. Grande confusao foi ge­rada na fila sofia natural pela negligencia em se distin­guir entre os diferentes tipos de objetos, as diferentestipos de situa<;ao, as diferentes tipos de localiza<;ao e adiferen<;a entre localiza<;ao e situa<;ao. Eimpossivel pon­derar de maneira precisa na vaguidao que envolve osobjetos e suas posi~6es sem ter em vista essas distin~6es.

Urn objeto estad localizado em urn eJemento abstrati­vo quando for possivel encontrar urn conjunto abstra­tivo tal, pertencente aque1e elemento, que cada eventopertencente aquele conjunto e uma situa<;ao do objeto.Devemos lembrar que urn elemento abstrativo e urn gro­po determinado de conjuntos abstrativos e que cada con­junto abstrativo e urn conjunto de eventos. Essa defini­<;ao define a 10caliza<;1i.o de urn elemento em qualquerespecie de elemento abstrativo. Nesse sentido, podemosfalar cia existencia de urn objeto em urn instante, refe­rindo-nos com isso a sua localiza<;ao em algum momen-

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190 o CONCEITO DE NA TUREZA OS OB]ETOS 191

to determinado. 0 objeto tambem podera. estar localizadoem algum elemento espacial do espa~o instantaneo da­quele momento.

Podemos dizer que uma quantidade esta localiza­cia em urn e1emento abstrativo quando e passive1 en­contrar urn conjunto abstrativo tal, pertencente ao ele­mento, que as expressoes quantitativas dos caracterescorrespondentes de seus eventos convergem para a medi­da da grandeza estabelecida como limite quando percor­remos 0 conjunto abstrativo em dire<:;ao asua extremi­dade convergente.

Com essas defini<:;6es, a localizac;ao em elementosde espa<;,:os instantaneos esta definida. Esses elementosocupam elementos correspondentes de espa~os atempo­rais. Diremos ainda que urn objeto localizado em urnelemento de urn espa~o instantaneo esta localizado na­quele momento no elemento atemporal do espa~o atem­poral ocupado por aquele elemento instantaneo.

Nao e todo objeto que pode estar localizado em urnmomento. Urn objeto capaz de estar localizado em to­dos os momentos de uma dura~ao qualquer sera cha­mado de urn objeto "uniforme" ao longo de toda aqueladura~ao. Os objetos fisicos comuns nos parecem obje­tos uniformes e habitualmente partimos do principio deque objetos cientfficos como os eIetrons sao uniformes.Contudo, alguns objetos dos sentidos certamente nao saouniformes. Uma melodia e urn exemplo de objeto nao­uniforme. Nos a percebemos como urn todo em uma de­terminada dura<:;ao, mas a melodia, enquanto melodia,nao se encontra em momento algum dessa durac;ao, em­bora uma das notas individuais possa estar localizada ali.

Epossivel, portanto, que para a existencia de de­terminadas especies de objetos, e.g. os eletrons, seja ne­cessario urn quanta mlnimo de tempo. Aparentemente,a moderna teoria quantica esta indicando algum postu­lado do genero, sendo 0 mesmo perfeitamente coerentecom a doutrina dos objetos sustentada nestas conferencias.

Tambem 0 exemplo da distin~ao entre 0 eletron en­quanta simples carga e!etrica quantitativa de sua situa­c;ao e 0 eletron enquanto representante da introduc;aode urn objeto por toda a extensao da natureza e ilustra­tivo do ilimitado numero de tipos de objetos existentesna natureza. Podemos distinguir intelectualmente atemesmo tipos cada vez mais sutis de objetos. Refiro-meaqui asutileza no sentido de urn isolamento no tocanteapercepc;ao imediata da apreensao senslvel. Evoluc;ao,na complexidade da vida, significa urn acrescimo nostipos de objetos diretamente percebidos. De!icadeza naapreensao senslve! significa percep~6es de objetos en­quanta entidades distintas que nao passam de ideias sutispara as sensibilidades mais embrutecidas. 0 fraseadomusical nao passa de uma sutileza abstrata para 0 indi­viduo nao-musical; e uma apreensao sensivel direta pa­ra 0 iniciado. Por exemplo, se pudessemos imaginar al­gum tipo de ente organico inferior a pensar e a atentarpara nossos pensamentos, este ficaria admirado diantedas sutilezas abstratas a que nos entregamos ao cogitarem pedras, tijolos, gotas d'agua e plantas. Tudo 0 queesse ente conhece sao vagas sensa<;oes indiferenciadas danatureza. Ele nos consideraria entregues ao jogo de in­telectos excessivamente abstratos. Mas, caso pudessepensar, de faria progn6sticos; e caso fizesse progn6sti­cos, em breve estaria percebendo por si mesmo.

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192 a CONCElTO DE NA TUREZA

Procedemos, nestas conferencias, a urn exame de­talhado dos fundamentos da filosofia natural. Estamosnos detendo no ponto exato em que urn ilimitado ocea­no de investigac;;6es se descortina para 0 nosso questio­namento.

Concordo em que a concep~ao de Natureza pormim sustentada nestas conferencias DaD esimples. A na­tureza se mostra como urn sistema complexo, cujos fa­tores sao vagamente discernidos por nos. Mas, pergunto­Ihes, naD sera essa a verdade propriamente dita? Naodeverfamos desacreditar a contumaz seguranc;a, com quecada epoca se jacta de haver finalmente alcan~ado os con­eeitos fundamentais em cujos termos tudo quanta ocor­re pode ser formulado? A meta da ciencia e buscar ex­plica~5es as mais simples para fatos complexos. Corre­mos 0 risco de incorrer no equfvoco de imaginar queos fatos sao simples por ser a simplicidade 0 objetivo denossa investiga~ao. A maxima diretora da atividade detodo fil6sofo natural deveria ser: buscar a simplicidadee desconfiar cia mesma.

CAPiTULO VIII

RESUMO

Econsenso geral que as investiga~5es de Einsteintern urn merito basieD, independente de quaisquer crl­ticas que possamos nos sentir inc1inados a dirigir-Ihes:e1as nos fizeram pensar. Uma vez admitido isso, porem,a maioria de nos se ve diante de uma desalentadora per­plexidade. Em que deverfamos pensar? a cerne de mi­nha conferencia desta tarde sera fazer frente a esse em­bara~o e, na medida de minha capacidade, situar sobuma luz clara as mudanc;as nos fundamentos de nossopensamento cientifico, necessarias a qualquer aceitac;ao,ainda que com reservas, das posic;5es centrais de Eins­tein. Lembro-me que estou me dirigindo aos membrosde uma sociedade de quimicos, que em sua maioria naosao versados em matematica avanc;ada. 0 primeiro pontoque eu enfatizaria aqui e 0 de que aquilo que concerneimediatamente a voces nao sao tanto as detalhadas de­du~5es da nova teoria como essa modifica~ao geral nosfundamentos das concep~5es ffsicas, decorrente de suaaceita~ao. Obviamente, as dedu~5es detalhadas sao im-

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portantes, porquanto a menos que nossos colegas, as as­tronornos e as ffsicos, corroborem esses progn6sticos, po­demos descurar por completo cia teoria. Atualmente,cantudo, podemos dar como certo que, em diversos de­talhes surpreendentes, verificou-se uma concordanciadessas dedw;6es com a observalYao. Assim senda, a teo­ria merece ser levada a serio e estamos ansiosos por sa­ber quais serao as conseqiiencias de sua aceitac;ao final.Ademais, as publicac;oes cientfficas e a imprensa em geraltern estado repletas, nas ultimas semanas, de artigos de­dicados anatureza dos experimentos cruciais realizadose a algumas das mais notaveis express6es do advento cianova teoria. "Flagrado espac;o a se curvar", foi a man­chete de urn jornal vespertino bastante conhecido. Talinterpreta~aoeuma tradu~ao concisa, mas nao inabil,do modo do proprio Einstein interpretar seus resulta­dos. Devo dizer de imediato que sou urn herege no quediz respeito a essa explica~ao e que apresentarei a vocesuma outra, baseada em alguns de meus trabalhos, umaexplica~ao que me parece mais de acordo com nossasideias cientfficas e com todo a corpo de fatos que pedemexplicac;ao. Devemo-nos lembrar de que qualquer novateoria deve dar conta dos velhos e bern atestados fatosda ciencia, exatamente na mesma medida em que daconta dos resultados experimentais mais recentes que le­varam a sua elabora~ao.

Para nos colocarmos em posi~ao de assimilar e cri­ticar qualquer mudanc;a nas concepc;6es cientfficas fun­damentais, devemos come~arpelo come~o. Portanto, vo­ces deverao ser pacientes se eu iniciar fazendo algumasreflexoes simples e 6bvias. Consideremos tres asser~6es:

(i) "Ontem, urn homem foi atropelado em Chelsea, na

margem do Tfunisa", (ii) "0 Obelisco de Cleopatra estaem Charing Cross, a margem do Tamisa" e (iii) "Exis­tern linhas escuras no Espectro Solar". A primeira as­ser~ao, sobre 0 acidente sofrido peIo homem, refere-seaquilo que podemos denominar uma "ocorrencia", urn"acontecimento', ou urn "evento". Usarei 0 termo"evento", por ser 0 mais breve. A fim de especificarurn evento observado, sao necessarios 0 local, 0 momentoeo carater do mesmo. Ao especificar 0 local e 0 momen­to, na verdade voces estao estabelecendo a rela~ao dodito evento com a estrutura geral de outros eventos ob­servados. Par exemplo, 0 homem foi atropelado entrea hora do cha e a do jantar, e nas adjacencias de umabarcal;a que percorria 0 Tamisa e do trafego no Strand.o ponto que desejo ressaltar e 0 seguinte: a Naturezanos econhecida, em nossa experiencia, como urn com­plexo de eventos passageiros. Nesse complexo, podemosdiscernir relal;oes mutuas definidas entre os eventos com­ponentes, as quais podemos denominar suas posil;oes re­lativas, posil;oes estas que expressamos parcialmente emtermos de espal;o e parcialmente em termos de tempo.Alem de sua mera posic;ao relativa em face de outroseventos, cada evento particular possui, ainda, seu pro­prio carMer peculiar. Em outras palavras, a naturezaeuma estrutura de eventos e cada evento tern sua posi­I;ao nessa estrutura e seu proprio carater ou qualidade pe­culiar.

Examinemos agora as duas outras asserl;oes a luzdesse principia geral quanta ao significado da nature­za. Tomemos a segunda asserc;ao - "0 Obelisco deCle6gatra esta em Charing Cross, it margem do Tami­sa". A primeira vista, dificilmente poderfamos classifi-

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car issa como urn evento. Pareee ressentir-se cia falta doelemento tempo au transitoriedade. Mas sera que eas­sim? Tivesse urn anjo feito a observa,ao algumas cen­tenas de milhoes de anos atras, a Terra nao existia, vintemilh5es de anos atnls nao existia 0 Tfunisa, oitenta anosatnls nao existia a avenida que hoje margeia 0 Tamisae quando eu era urn meninote 0 Obelisco de Cleopatranao estava ali. E agora que se encontra ali, nenhum denos espera que isso seja eterno. 0 elemento atemporale estatico na rela,ao do Obelisco de Cleopatra com amargem do Tamisa e uma pura ilusao gerada pelo fatode, para os propositas do trata diario, sua enfase ser des­necessaria. Doncie se chega ao seguinte: entre a estruturade eventos que forma 0 meio em cujo ambito transcorreo dia-a-dia dos londrinos, sabemos como identificar umacerta corrente de eventos que mantem uma permanenciade carcher, no caso 0 caniter de constituir as situac;;5esdo Obelisco de Cleopatra. Dia a dia e hora a hora po­demos nos deparar com uma certa por,ao da vida tran­sit6ria cla natureza, acerca cla qual dizemos: "Eis 0 Obe­lisco de Cleopatra." Se definirmos 0 obelisco de umaforma abstrata 0 suficiente, poderemos afirmar que es­te jamais se modifica. Contudo, urn ffsico que encareessa por~ao da vida da natureza como uma dan,a de ele­trons, dini que diariamente 0 obelisco perdeu algumasmoIeculas e adquiriu outras, e ate mesmo 0 homem co­mum pode perceber que ele se torna mais sujo e ocasio­nalmente e lavado. Assim, a questao da mudan,a no obe­lisco e uma simples questao de defini,ao. Quanto maisabstrata nossa defini<;ao, mais permanente sera 0 obe­lisco. Seja ele, porem, mutave1 ou permanente, tudoo que temos em mente ao postular que esta situado em

Charing Cross, amargem do Tamisa, e que, em meioaestrutura dos eventos, conhecemos uma certa corren­te de eventos, contfnua e limitada, tal que qualquer por­,ao da ditacorrente, a qualquer hora, qualquer dia ouqualquer segundo, tern 0 carater de ser a situa,ao doObelisco de Cleopatra.

Chegamos, por fim, aterceira asser<;ao - "Exis­tern linhas escuras no Espectro Solar". Essa e uma leida natureza. Mas qual seu significado? Seu significadoe apenas 0 seguinte: se algum evento tern 0 carater deser uma demonstra<;ao do espectro solar sob certas cir­cunstancias determinadas, tambern tera 0 carater de de­monstrar a existencia de linhas escuras naque1e espectro.

Essa longa discussao nos leva a conclusao final deque os fatos concretos da natureza sao eventos que re­velam uma determinada estrutura em suas re1a<;6es mu­tuas e determinados caracteres proprios. A finalidade daciencia e expressar as re1a<;6es entre esses caracteres emtermos das rela<;6es estruturais mutuas entre os eventosassim caracterizados. As rela<;6es estruturais mutuas en­tre eventos sao tanto espaciais como temporais. Se asconcebermos como meramente espaciais, estaremos omi­tindo 0 elemento temporal, e se as concebermos comomeramente temporais, estaremos omitindo 0 e1ementoespacial. Assim, quando consideramos unicamente 0 es­pa<;o, ou unicamente 0 tempo, estamos lidando com abs­tra,oes, ou seja, estamos deixando de lado urn elementoessencial na vida da natureza tal como esta se faz co­nhecer a nos na experiencia de nossos sentidos. Maisainda, existem diferentes maneiras de formar essas abs­tra<;6es nas quais pensamos como espa<;o e tempo; sob

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198 o CONCE/TO DE NA TUREZA RESUMO 199

determinadas circunstancias, adotamos certa maneira esob circunstancias diversas adotamos cutra maneira. As­sim, DaD hi 0 menor paradoxa em afirmar que 0 que en­tendemos par espa,o mediante determinado conjunto decircunstancias DaD e 0 meSilla que entendemos por es­pa~o mediante urn conjunto de circunstancias diverso.Da mesma forma, a que entendemos pot tempo mediantedeterminado conjunto de circunstancias DaD e0 que en­tendemos por tempo mediante urn canjunto de circuns­tancias diverso. Ao afirmar que espa,o e tempo sao abs­tra<;5es, DaD guera dizer que DaO expressam a nos fatcsreais acerca cia natureza. Quero dizer, issa sim, que DaD

existem fatos espaciais au fatos temporais dissociados danatureza ffsica, ista e, que espa<;o e tempo sao simplesmaneiras de se expressar determinadas verdades acercadas re1a<;6es entre eventos. E tambem que, sob diferentescircunstancias, existem diferentes sistemas de verdadesacerca do universo, naturalmente apresentadas a nos co­mo postulados acerca do espac;;o. Nesse caso, 0 que urnser submetido a urn determinado conjunto de circunstan­cias entende par espa,o sera diferente daquilo que entendeurn ser submetido a outro conjunto de circunstancias.Conseqiientemente, ao compararmos duas observac;;5esemitidas sob circunstancias diversas, devemos indagar:"Entenderao os dois observadores a mesma coisa por es­pac;;o e a mesmacoisa por tempo?" 0 surgimento da mo­derna teoria da relatividade deveu-se ao fato de certasperplexidades quanta aconcordancia de algumas observa­,6es delicadas como a do movimento da Terra pelo eter,o perielio de Mercurio e as posic;;5es das estrelas nas vizi­nhanc;;as do Sol terem sido solucionadas via referencia aesse significado puramente relativo do espa,o e do tempo.

Quero chamar a atenc;;ao de voces novamente paraa Obelisco de Cleopatra, sabre a qual ainda nao esgoteiminhas considerac;;5es. Ao caminharem pela avenida quernargeia 0 Tarnisa, voces subitarnente erguem os olhose dizern: "Ei, vejam so 0 obelisco." Em outras pala­vras, voces 0 reconhecem. EimposSIve! reconhecer urnevento, pais quando este se foi, se foi. Voces podem ob­servar outro evento de carMer analogo, mas a porc;;aoatual da vida da natureza e inseparavel de sua ocorren­cia singular. Epossivel, no entanto, reconhecer 0 cara­ter de urn evento. Todos sabemos que se formos ate amargem do Tfunisa nas proximidades de Charing Crossobservaremos urn evento que tern 0 carater que reco­nhecemos como a Obelisco de Cleopatra. Denominareiobjetos as coisas que reconhecemos dessa forma. Urn ob­jeto esta situado naqueles eventos ou naquela correntede eventos cujo carater ele expressa. Existem muitas clas­ses de objetos. Segundo a defini,ao acima, par exem­pIa, a cor verde e urn objeto. A finalidade da cienciae enunciar as leis que governam a rnanifestac;;ao dos ob­jetos nos diferentes eventos em que se constata sua pre­senc;;a. Com vistas a essa finalidade, podemos nos con­centrar basicamente em dois tipos de objetos, aos quaisdenominarei objetos materiais ffsicos e objetos cientifi­cos. Urn objeto material f(sico e uma fra,ao comum demateria, a Obelisco de Cleopatra, par exemplo. Trata­se de urn tipo bern mais complicado de objeto do queuma simples cor, como a cor do Obelisco. Denomina­rei a esses objetos simples, como as cores ou sons, obje­tos dos sentidos. Urn artista se treinara para atentar maisparticularmente aos objetos dos sentidos, enquanto a pes­soa comum atenta normalmente aos objetos materiais.

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Portanto, se estiverem caminhando com urn artistaquando disserem "Ali esta 0 Obelisco de Cleopatra":ele talvez exclame simultaneamente "Ali esta uma belapbn;ao de COf." Ambos, no entanto, estadio expressandoseu reconhecimento de diferentes caracteres componentesdo meSilla evento. A ciencia, porem, levou-nos ades­coberta de que, quando de posse de urn conhecimentointegral das aventuras entre os eventos de objetos f(si­cos materiais e de objetos cientfficos, estamos de possecia maior parte das informac;;5es relevantes que nos per­mitirao antever as condic;;5es sob as quais deveremos per­ceber os objetos dos sentidos em situa,oes especfficas.Por exemplo, quando sabemos que ha urn fogo intenso(i. e., objetos materiais e cientfficos submetidos a dife­rentes e interessantes aventuras em meio a certos even­tos) e, no lado oposto a este, urn espelho (outro objetomaterial), e as posi,oes do rosto e dos olhos de urn ho­mem com 0 olhar fixo no espelho, sabemos que ele po­ded. perceber a vermelhidao da chama situada em urnevento atras do espelho - assim, em larga medida, amanifesta,ao dos objetos dos sentidos esta condicionadapelas aventuras dos objetos materiais. A analise dessasaventuras nos leva a perceber outro carater dos eventos,a saber, seus caracteres enquanto campos de atividadeque determinam os eventos subsequentes aos quais elespassarao os objetos neles situados. Esses campos de ati­vidade sao por nos expressos em termos de fon;as e atra­~6es gravitacionais, eletromagneticas ou qufmicas. Con­tudo, a exata expressao da natureza desses campos deatividade nos obriga, intelectualmente, a reconhecer apresen~a de urn tipo menos obvio de objetos nos even­tos. Refiro-me as moleculas e eletrons, objetos que nao

sao reconhecidos isoladamente. E improvavel que dei­xemos de atentar para 0 Obelisco de Cleopatra se esti­vermos em suas imediac;6es; ninguem, contudo, ja viuuma molecula isolada ou urn eletron isolado, embora oscaracteres dos eventos somente nos sejam explicaveis seexpressos em termos desses objetos cientfficos. Sem du­vida, as moleculas e os eletrons Sao abstra~6es. Nestecaso, porem, 0 mesmo se pode dizer do Obelisco de Cleo­patra. Os fatos concretos sao os eventos em si - ja lhesexpliquei que seu carater de abstra,ao nao significa queuma entidade nada seja. Significa simplesmente que suaexistencia e apenas urn fator de urn elemento mais con­creto da natureza. Assim, urn eletron e abstrato porquenao podemos eliminar integralmente a estrutura doseventos e, ainda assim, manter 0 eletron em existencia.Da mesma forma, 0 sorriso do gato e abstrato; e a mo­lecula se encontra realmente no evento, no mesmo sen­tido em que 0 sorriso se encontra no semblante do gato.Ora, as ciencias mais fundamentais como a qufmica ea fisica nao podem expressar suas leis ffsicas em termosde objetos vagos como 0 Sol, a Terra, 0 Obelisco de Cleo­patra ou urn corpo humano. Tais objetos pertencem maispropriamente aastronomia, ageologia, aengenharia,a arqueologia ou a biologia. A quimica e a fisica lidamcom eles apenas enquanto manifesta,oes de complexosestatfsticos dos efeitos de suas leis mais basicas. Em cer­to sentido, eles apenas se introduzem na ffsica e na quf­mica enquanto aplica,oes tecnologicas. A razao para tale serem e1es por demais vagos. Onde se inicia 0 Obelis­co de Cleopatra e onde termina? Sera a fuligem partedele? Sera urn objeto diferente quando dele se despren­de uma molecula ou quando sua superffcie entra em uma

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combina~ao qufmica com 0 acido de urn nevoeiro londri­no? 0 carater definitivo e permanente do obelisco nadarepresenta para 0 passivel carater definitivo e permanen­te de uma molecula, tal como concebida pela ciencia,e 0 carater definitivo e permanente de uma molecula,por sua vez, se cleve a este mesma caniter em urn ele­tron. Portanto, em sua formula<;ao mais fundamentalda lei, a ciencia busca objetos imbuidos da simplicida­de de carater mais permanente e inequfvoca, e em ter­mos destes expressa suas leis fundamentais.

Assim tambem, quando buscamos expressar defi­nitivamente as relac;6es entre eventos originadas de suaestrutura espa<;o-temporal, aproximamo-nos da simpli­cidade reduzindo progressivamente a extensao (tantotemporal como espacial) dos eventos considerados. Porexemplo, 0 evento representado pe1a vida da por<;ao danatureza que e0 obelisco durante urn minuto tern umarela<;ao espa<;o-temporal muito complexa com a vida danatureza compreendida em uma barcac;a a passar duran­te 0 meSilla minuto. Suponhamos, porem, que se reduzaprogressivamente 0 tempo considerado ate urn segundo,urn centesimo de segundo, urn milesimo de segundo, eassim por diante. Ao percorrermos uma tal serie apro­ximamo-nos de uma simplicidade ideal de re1a<;Des es­truturais entre os pares de eventos sucessivamente con­siderados, ideal este que classificamos como as re1ac;oesespaciais do obelisco com a barcac;a em um'determina­do instante. Mesma essas relac;oes sao por demais in­trincadas para nos, e passamos a considerar frac;5es pro­gressivamente menores do obelisco e do barco. Assim,atingimos finalmente 0 ideal de urn evento de tal modolimitado em sua extensao a ponto de estar desprovido

de extensao no espac;a au no tempo. Tal evento sera urnmero ponto-flash espacial de dura<;ao instantanea. Dou aesse evento ideal a denominac;ao de "particula de even­to". Nao devemos considerar 0 mundo como fundamen­talmente formado por partfculas de evento. 1sso e colocara carro<;a na frente dos bois. 0 mundo que conhecemose urn £luxo continuo de ocorrencias, que podemas dis­tinguir em eventos finitos a formar, por meio de suasmutuas sobreposic;oes, inclusoes e separac;oes, uma es­trutura espa<;o-temporal. Podemos expressar as proprie­dades dessa estrutura em termos dos limites ideais a ro­tas de aproximac;ao, aos quais denominei partfculas deevento. Conseqiientemente, as partfculas de evento saoabstrac;;oes com as quais os eventos mais concretos estaorelacionados. A essa altura, porem, vocesja terao com­preendido que eimpossivel analisar a natureza concretasem elaborar abstrac;5es. De mais a mais, as abstrac;5esda ciencia, repito, sao entidades efetivamente existen­tes na natureza, embora nao tenham nenhum significa­do isoladas da natureza.

o carater da estrutura espa<;o-temporal dos even­tos pode ser plenamente expresso em termos das re1a­c;oes entre essas partfculas de evento mais abstratas. Avantagem em se lidar com partfculas de evento e que,embora sejam abstratas e complexas com respeito aoseventos finitos diretamente observados, sao mais sim­ples do que os eventos finitos com respeito a suas rela­c;oes mutuas. Nesse sentido, expressam para nos as exi­gencias de uma precisao ideal e de uma simplicidade idealna demonstra<;ao de rela<;Des. Essas particulas de even­to constituem os elementos fundamentais do multiploquadridimensional espa<;o-tempo pressuposto pela teoria

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204 o CONCEITO DE NATUREZA RESUMO 205

da relatividade. Voces terao observado que cada partf­cula de evento etanto urn instante do tempo quanta urnponto do espago. Eu a chamei de ponto-flash instanta­neo. Assim, na estrutura desse multiplo espac;o-tempo,o espago nao e, por lim, diferenciado do tempo e per­manece aberta a possibilidade de diferentes modos dediferenciagao segundo as diferentes circunstancias dosobservadores. Eessa possibilidade que estabelece a dis­tinc;ao fundamental entre a nova maneira de se conee­ber 0 universo e a antiga. 0 segredo para 0 entendimentoda relatividade e 0 entendimento disso. E inutil acor­rermos com paradoxos pitorescos do tipo "Flagrado es­pac;o a se curvar", se voces nao dominaram esse con­ceito fundamental, subjacente a toda a teoria. Quandodigo subjacente a toda a teoria, quero dizer que deveriaser subjacente a esta, embora eu possa confessar algu­mas duvidas sobre ate onde todas as demonstragoes dateoria de fato compreenderam suas implicac;5es e pre­missas.

Nossos dimensionamentos, quando expressos emtennos de uma precisao ideal, sao medic;6es que expres­sam propriedades do multiplo espago-tempo. Existemdiversos tipos de dimensionamentos. Podemos mensu­rar distancias, angulos, areas, volumes ou tempos. Exis­tern ainda outras especies de medidas, como as dimen­sionamentos de intensidade de ilumina~ao,mas por oranao pretendo consideni-Ios, e sim concentrar a aten~ao

naqueles dimensionarnentos que particularmente nos in­teressam enquanto medigoes de espago ou de tempo. Efacil perceber que sao necessarias quatro medigoes taisde caracteres apropriados a lim de se determinar a po­sigao de uma partfcula de evento no multiple espago-

tempo em sua relagao com 0 restante do multiplo. Emum campo retangular, por exemplo, partimos de um can­to em urn momento dado, medimos uma distancia es­pecflica ao longo de um lado, depois nos langamos campoadentro segundo angulos retos, depois medimos uma dis­tancia especflica paralela ao outro par de lados, depoissubimos verticalmente por uma altura determinada emarcamos 0 tempo. No ponto e no momento assim al­cant;;ados estani ocorrendo urn ponto instantaneo espe­cHico da natureza. Em outras palavras, os quatro dimen­sionamentos determinaram uma partfcula de evento es­pecflica pertencente ao multiplo quadridimensionalespa~o-tempo. Tais dimensionamentos se afigurarammuito simples ao agrimensor e nao suscitam a menordiliculdade filos6lica em sua mente. Suponhamos, po­rem, que existarn seres suficientemente avanc;ados nocampo da inven~ao cientffica em Marte a ponto de se­rem capazes de observar em detalhe 0 processo dessa ati­vidade agrimens6ria na Terra. Suponhamos que anali­sem as opera~6es dos agrimensores ingleses por referenciaao espa~o natural de urn marciano, ou seja, urn espat;;omarciocentrico no qual esse planeta esta assentado. ATerra se desloca relativamente a Marte e em movimentode rota~ao. Para os seres de Marte, 0 processo de agri­mensao, analisado dessa forma, redunda em dimensiona­mentos os mais complicados possfveis. Segundo a doutri­na relativista, alem disso, 0 processo de dimensionarnentotemporal na Terra nao cdrrespondera exatamente a ne­nhum dimensionamento temporal em Marte.

Discuti esse exemplo a lim de que percebessem que,ao considerarmos as possibilidades de dimensionamen­to no multiplo espago-tempo, nao devemos nos restringir

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206 o CONCElTO DE NA TUREZA RESUMO 207

apenas aquelas varia<;6es menores que poderiam pare­eer naturais aos seres humanos sabre a Terra. Estabe­le<;amos, portanto, 0 postulado geral de que e passIvelidentificar quatro dimensionamentos, respectivamentede tipos independentes (como dimensionamentos de dis­tancias em tres direc;6es e de urn tempo), e tais que de­terminem uma partfeula de evento especffica em suasre!a~5es com outras partes do multiplo.

Sendo (P" h, P3 e P4) urn conjunto de dimensio­namentos desse sistema, diremos que a partfeula de even­to assim determinada tera P" h, P3 e h como suas coor­denadas nesse sistema de dimensionamento. Suponha­mos que 0 chamemos de sistemaPde dimensionamento.Assim, no mesma sistema p, variando adequadamente(P" h, P3' h), e possive! indicar cada particula de even­to que foi, sera, au einstantaneamente agora. AIem dis­so, segundo qualquer sistema de dimensionamento pa­ra nos natural, tres das coordenadas serao dimensiona­mentas de espac;o e uma sera urn dimensionamento detempo. Tomemos sempre a ultima coordenada como re­presentando 0 dimensionamento temporal. Deverfamosdizer entao, naturalmente, que (P" h, P3) determina­ram urn ponto no espa~o e que a particula de eventoocorreu naquele ponto em um instante P4' Mas nao de­vemos incorrer no equfvoco de imaginar que existe umespa~o alem do multiplo espa~o-tempo. Esse multiploe tudo de que se disp5e para a determina~ao do signi­ficado do espa~o e do tempo. 0 significado de urn pontodo espa~o deve ser determinado em termos das parti­culas de evento do multiplo quadridimensional. Hoi umaunica forma de se ohter isso. Observem que se variar­mos 0 tempo e adotarmos tempos com as mesmas tres

coordenadas espaciais, as partfeulas de evento, assim in­dicadas, estarao todas no mesmo ponto. Porem a cons­tata~ao de que nada existe alem das partfculas de even­to apenas pode significar que 0 ponto (P" Pz, P3) do es­pac;o no sistema Pesimplesmente a reuniao de partfeu­las de evento (P" h, P3 [h])/ em que he varioivel e (P"Pz, h) se mantem fixos. E urn tanto desconcertanteconstatar que um ponto no espac;o nao e uma simplesentidade; mas e uma conclusao que decorre imediata­mente da teoria re!ativista do espa~o.

o habitante de Marte, por sua vez, determina suaspartfeulas de evento atraves de algum outro sistema dedimensionamento, ao qual denominaremos sistema q.Para esse marciano, (q" q2' q3 e q4) determinam umaparticula de evento, onde (q" q2' q3) determinam urnponto e q4 urn tempo. Mas 0 agrupamento de particulasde evento que e!e considera urn ponto difere totalmentede qualquer agrupamento congenere que 0 homem ter­restre considere urn ponto. Portanto, 0 espa~o q parao homem de Marte e muito diferente do espa~o P paraa agrimensor terrestre.

Ate este ponto de nossa discussao acerca do espa~o

estivemos falando sobre 0 espa~o atemporal da cienciafisica, au seja, de nosso conceito do espac;o eterno noqual se aventura 0 mundo. Mas 0 espa~o que percebe­mos ao olhar anossa volta eurn espac;o instantaneo. As­sim, se nossas percep~6es naturais forem ajustaveis aosistema P de dimensionamentos, perceberemos instan­taneamente todas as partfeulas de evento em algum mo­mento definido P4 e observaremos uma sucessao de taisespa~os amedida que 0 tempo avan~a. 0 espa~o atem­poral e a1can~ado pe!o encadeamento de todos esses espa-

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208 o CONCEITO DE NA TUREZA RESUMO 209

<;os instantaneos. AS pontos de urn espa<;o instantaneosao particulas de evento e os pontos de urn espa<;o eter­no sao encadeamentos de particulas de evento a ocorrerem Slicessao. 0 hornem de Marte, porem, jamais per­cebera os mesmos espa90s instantaneos que 0 hornemcia Terra. Esse sistema de espa90s instantaneos atraves­sara 0 sistema do hornem terrestre. Para 0 hornem ter­restre, existe urn espac;;o instantaneo que e 0 presenteinstantaneo, e existem espac;os passados e espac;os futu­ros. Mas 0 espa<;o presente do homem de Marte atraves­sa 0 espa<;o presente do homem da Terra. Assim, dentreas partfculas de evento que, para 0 hornem terrestre, ternsua ocorrencia agora no presente, algumas, para 0 ho­rnem de Marte, ja sao passado e pertencem aancestra­lidade, outras estao no futuro e outras, no presente ime­diato. Essa ruptura no claro conceito de urn passado,urn presente e urn futuro e urn importante paradoxo.A duas particulas de evento que, em urn sistema de di­mensionamento qualquer, se encontrem num mesmo es­pac;o instantaneo, denomino particulas de evento "co­presentes". Entao, e possivel que A e B sejam co-pre­sentes e que A e C sejam co-presentes, mas que Beenao sejam co-presentes. Por exemplo, a alguma incon­cebi'vel distancia de nos existem eventos co-presentes co­nosco neste momenta e tambem co-presentes com 0 nas­cimento da rainha Vitoria. Sendo A e B co-presentes,hayed. alguns sistemas em que A precede B e outros emque B precede A. Ademais, e impossive! a existencia deuma velocidade intensa 0 suficiente para transportar umapartfcula de materia de A para B ou de B para A. Essesdiferentes sistemas de dimensionamento com suas diver­gencias de computo temporal sao intrigantes e, em certa

medida, representam uma afronta a nosso senso comum.Nao e a maneira usual pe!a qual ponderamos acerca doUniverso. Pensamos em urn sistema temporal necessa­rio e urn espac;o necessario. Segundo a nova teoria, existeurn numero indefinido de series temporais discordantese urn numero indefinido de espa<;os distintos. Qualquerpar correlato, sistema temporal e sistema espacial, con­seguira encaixar nossa descric;ao do Universo. Consta­tamos que, sob determinadas condic;oes dadas, nossosdimensionamentos obedecem necessariamente a urn parqualquer que compoe nosso sistema natural de dimen­sionamento. A dificuldade no tocante aos sistemas tem­porais discordantes e parcialmente solucionada atravesda distin<;ao entre 0 que denomino 0 avan<;o criativo danatureza, que nao e propriamente serial em absoluto,e qualquer serie temporal. Costumeiramente embara­lham esse avanc;o criativo, 0 qual experimentamos e co­nhecemos como a perpetua transic;ao da natureza rumoao novo, com a serie unitemporal que naturalm.ente em­pregamos para fins de mensurac;ao. As diferentes seriestemporais dimensionam, cada qual, algum aspecto doavanc;o criativo, enquanto 0 conjunto das mesmas ex­pressa todas as propriedades mensuraveis desse avan­<;0. A razao pe!a qual deixamos de apontar anteriormenteessa diferen<;a de series temporais e a diferen<;a minimade propriedades existente entre quaisquer duas dessasseries. Quaisquer fenomenos observaveis devidos a es­sa causa dependem do quadrado da razao entre qual­quer ve!ocidade que se passe a observar e a ve!ocidadeda luz. Ora, a luz leva cerca de cinqiienta minutos parapercorrer a orbita terrestre; e a Terra leva algo alem de17.531 meias-horas para fazer 0 mesmo. Como conse-

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qiH~ncia, todos as efeitos decorrentes desse movimentosao da ordem da razao de 1 para 0 quadrado de to.OOO.Dessa forma, urn homem cia Terra e urn homem do Solterao apenas negligenciado efeitos cujas magnitudes quan­titativas contem, sem exce(ao, 0 fator 1/10B Tais efei­tos, evidentemente, apenas podem ser percebidos porintermedio das mais sofisticadas observa(oes. No entan­to, foram observados. Suponha-se que comparemos duasobserva(oes da velocidade da luz empreendidas com umunieD aparato ao deslocarmos 0 mesma segundo urn an­gulo reto. A velocidade da Terra relativamente ao Solse encontra em uma determinada direc;ao e a ve1ocida­de da luz relativamente ao eter deve ser a mesma emtodas as dire(oes. Portanto, se 0 espa(o tem 0 mesmosignificado quando admitimos 0 6ter em repouso e quan­do admitimos a Terra em repouso, deverfamos consta­tar que a velocidade da luz relativamente aTerra variade acordo com a dire(ao da qual a luz provem.

Essas observac;6es acerca cia Terra constituem 0

princfpio fundamental das celebres experiencias desti­nadas a detectar 0 movimento do planeta pelo eter. To­dos voces sabem que, para nossa grande surpresa, seuresultado foi nulo. 0 que e completamente explicado pelofato de que 0 sistema espacial e 0 sistema temporal pornos adotados sao, sob certos aspectos minimos, diferen­tes do espa(o e do tempo relativamente ao Sol ou relati­vamente a qualquer Dutro carpo com referencia ao quala Terra esteja se deslocando.

Toda essa discussao quanto a natureza do tempoe do espa(o ergueu em nosso horizonte uma grande di­ficuldade que afeta a formula(ao de todas as leis funda­mentais da ffsica - por exemplo, as leis do campo ele-

tromagnetico e a lei cia gravitac;ao. Tomemos comoexemplo a lei da gravita(ao. Sua formula(ao e a seguinte:dais carpas materiais atraem-se mutuamente com umaforl;a proporcional ao produto de suas massas e inver­samente proporcional ao quadrado de suas distancias.Presume-se, nesse enunciado, que os corpos sejam sufi­cientemente pequenos para serem tratados como partf­culas materiais em relal;ao a suas distancias, de modoque podemos deixar de nos preocupar com esse pontode somenos importancia. A dificuldade para a qual querochamar a atenl;ao de voces e a seguinte: na formulal;3.0da lei, sao presumidos um tempo definido e um espa(odefinido. Parte-se do pressuposto de que as duas mas­sas ocupam posil;oes simultaneas.

Contudo, 0 que e simultaneo em urn sistema tem­poral pode nao se-Io em outro. Assim, segundo nossasnovas concepl;oes, nesse aspecto a lei nao esta formula­da de modo a conter algum significado exato. Alem disso,uma dificuldade anMoga se apresenta quanto aquestaoda distancia. A distancia entre duas posil;oes instanta­neas, i. e. entre duas partfculas de evento, e diferente emsistemas espaciais diferentes. Qual espa(o deve ser es­colhido? Se aceita a relatividade, portanto, a lei aindase ressente da ausencia de uma fonnulal;ao precisa. Nossoproblema consiste em buscar uma nova interpretal;aoda lei da gravidade em que tais dificuldades sejam con­tomadas. Em primeiro lugar, devemos evitar as abstra­(oes de espa(o e tempo na formula(ao de nossas ideiasfundamentais e recorrer aos fatos basicos da natureza,ou seja, os eventos. Assim tambem, a fim de encontrara simplicidade ideal na expressao das rela(Oes entre even­tos, devemos nos restringir a partfculas de evento. Desse

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212 o CONCE/TO DE NATUREZA RESUMO 213

modo, a vida de uma partlcula material esua aventuraem meio a uma trilha de partfculas de evento encadea­das como uma serie au caminho contfnuo no multiploquadridimensional espa~o-tempo. Essas partfculas deevento sao as diferentes situa~6es da partfcula material.Normalmente expressamos esse fata atraves cia adoc;aode nosso sistema espa~o-temporalnatural e falando dopercurso da partfcula material no espa~o tal como esteexiste em sucessivos instantes do tempo.

Devemos nos perguntar quais sao as leis cia nature­za que levam a partfcula material a adotar exatamenteesse caminho e naD outro entre as particulas de eventos.Pensemos no caminho como urn todo. Que caracterfsticado caminho DaD seria compartilhada por nenhum Dutro

caminho ligeiramente diverso? Nossa pergunta pede algomais que uma lei da gravidade. Queremos leis do mo­vimento e uma ideia geral do modo como formular osefeitos das forps ffsicas.

Para responder a nossa pergunta, coloquemos aideia da atra~ao das massas em segundo plano e con­centremos a atenc;ao no campo de atividade dos eventosnas imediac;oes do caminho. Assim procedendo, estamosagindo em conformidade com a tendencia geral do pen­samento cientffico nos ultimos cern anos, que vern con­centrando cada vez mais a aten~ao no campo de for~a

enquanto agente imediato cia direc;ao do movimento, emdetrimento da considera~ao da influencia mutua ime­diata entre dois corpos distantes. Precisamos encontraro meio de expressar 0 campo de atividade dos eventossituados nas imedia~6esde alguma partfcula de eventoE especffica no multiplo quadridimensional. Introduzi­rei agora uma ideia fisica fundamental, que chamo de

"fmpeto", a fim de expressar esse campo fisico. A par­tfcula de evento E est"- relacionada a qualquer partfculade evento P de sua vizinhan~apor urn elemento de fm­peto. 0 conjunto de todos os elementos de fmpeto querelacionam E ao conjunto das partfculas de evento nasimedia~6es de E expressa 0 carater do campo de ativi­dade na vizinhan~a de E. 0 ponto em que divirjo deEinstein e que ele concebe essa quantidade a que deno­mino fmpeto como expressando simplesmente os carac­teres espa~o-temporais a serem adotados e, assim, ter­mina falando do campo gravitacional a manifestar umacurvatura no multiplo espa~o-tempo.Nao consigo per­ceber uma concep~ao clara em sua interpreta~aodo cs­pa~o e do tempo. Minhas formulas diferem ligeiramen­te das suas, embora concordem naqueles aspectos emque os resultados de Einstein tern sido comprovados.Nem e preciso dizer que, no tocante a formula~ao dalei da gravita~ao, inspirei-me no metodo geral de pro­cedimento que constitui sua grande descoberta.

Einstein mostrou como expressar os caracteres doconjunto de elementos de fmpeto do campo circunjacentea uma partfcula de evento E em termos de dez quanti­dades, as quais chamarei Fll, F12 (~F21), F22, F23 (F32),etc. Poderemos observar que existem quatro dimensiona­mentos espa~o-temporaisa relacionar E com seu vizinhoP, e que existem dez pares de tais dimensionamentos,se nos for permitido tomar cada dimensionamento in­dividual duas vezes para formar tal par. Os dez Fs de­pendem simplesmente da posi~ao de E no multiplo qua­dridimensional, e 0 elemento do fmpeto entre E e P po­de ser expresso em termos dos dez Fs e dos dez paresdos quatro dimensionamentos espa~o-temporaisque re­lacionam E e P. Os valores numericos dos Fs depende-

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rao do sistema de dimensionamento adotado, parem detal modo estao ajustados a cada sistema particular queo mesmo valor e obtido para 0 elemento de fmpeto en­tre E e P, seja qual for 0 sistema de dimensionamentoadotado. Tal fato e expresso pelo enunciado de que osdez Fs formam urn "tensor". Nao sera exagerado dizerque, quando divulgada pela primeira vez a comprova­gao dos progn6sticos de Einstein, 0 anuncio de que nofuturo os ffsicos teriam de estudar a teoria dos tensorescriou urn verdadeiro panico entre des.

Os dez Fs em qualquer partfcula de evento E po­dem ser expressos em termos de duas fungoes as quaisdenomino 0 potencial e 0 "potencial associado" em E.o potencial e praticamente aquilo que se entende pelagravita~ao potencial COillum, quando nos expressamosem termos do espago euclidiano em referencia ao quala massa que exerce a atra-;ao se encontra em repOllSO.o potencial associado e definido pela modificagao resul­tante da substituigao da distancia inversa pela distanciadireta na definigao de potencial, e pode-se facilmente fa­zer depender seu caIculo daquele do potencial tradicional.Assim, 0 caIculo dos Fs - os coeficientes de fmpeto, co­mo as chamarei - nao envolve nada de muito revolu­cianario no conhecimento matematico dos fisicos. Vol­tamos agora ao caminho da partfcula atrafda. Se somar­mas todos as elementos de fmpeto no caminho como urntoda, obteremos, como resultado, aquila que denomi­no "irnpeto integral". A caracterfstica do caminho efe­tivo quando comparado a caminhos altemativos das ime­dia~5es e que nos, caminhos efetivos nao haveria nemganho nem perda em termos do fmpeto integral, casoa partfcula se desviasse, oscilante, por urn caminho al-

ternativo pequeno e extremamente proximo. Os mate­maticos expressariam isso dizendo que ° fmpeto integrale estacionario para urn deslocamento infinitesimal. Nesseenunciado da lei do movimento, negligenciei a existen­cia de outras forgas. Mas isso me afastaria demasiado dotema em questao.

Para permitir a presenga do campo gravitacional, ateoria eletromagnetica deve sermodificada. Assim, as in­vestiga~5es de Einstein conduziram aprimeira descobertade qualquer re1agao entre a gravidade e outros fenomenosffsicos. Da forma como apresentei essamodifica<;ao, dedu­zimos 0 principio fundamental de Einstein, quanta ao mo­vimento da luz por seus raios, como uma primeira apro­xima<;ao, absolutamente verdadeira para ondas infinita­mente breves. 0 princfpio de Einstein, parcialmente com­provado, assim, e enunciado em minha linguagem, e0

de que urn raio de luz segue sempre urn caminho tal queo fmpeto ao longo do mesmo e zero. 0 que implica quetodo e1emento de fmpeto ao longo do mesmo e zero.

Para concluir, devo apresentar minhas desculpas. Emprimeiro lugar, empalideci consideravelmente as diversase interessantes peculiaridades da teoria original e a reduzino sentido de maior conformidade com a ffsica tradicional.Nao aceito que os fenomenos ffsicos se devam a eventuaiscaprichos do espago. Alem disso, contribuf para a aridezda conferencia, movido por meu respeito pela assistencia.Talvez tivessem apreciado uma conferencia mais popular,com alguns exemplos de deliciosos paradoxos. Sei tam­bern, contudo, que os senhores sao estudantes consciencio­sos, que aqui vieram porque realmente querem saber co­mo as novas teorias poderao vir a afetar suas pesquisascientfficas.

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CAPITULO IX

OS CONCElTOS FISICOSFUNDAMENTAlS

a segundo capitulo do presente livro estabelece 0

prindpia fundamental a seT observado na estrutura~ao

de nossos conceitos ffsicos. Devemos evitar a nociva bi­furcac;ao. A natureza nada mais e do que a reveIac;aocia apreensao sensfvel. Nao contamos com princfpio 31­gum que nos indique 0 que poderia estimular a menteno sentido cia apreensao sensfveI. Nossa unica tarefa eexpor, atraves de urn sistema deterrninado, os caracte­res e inter-rela~6es de tudo quanta eobservado. No to­cante a formulac;ao de conceitos ffsicos, nossa atitudefrente a natureza e puramente "comportamental".

Nossa conhecimento cia natureza euma experien­cia de atividade (ou passagem). As coisas previamenteobservadas sao entidades ativas, ou "eventos". Sao por­~6es da vida da natureza. Tais eventos guardam entresi rela<;5es que, para 0 nosso entendimento, se distin­guem em rela~6es espaciais e rela~6es temporais. Con­tuda, essa distinc;ao entre espac;o e tempo, embora ine­rente anatureza, ecomparativamente superficial; espac;:o

J

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218 o CONCEITO DE NA TUREZA OS CONCEITOS FislCOS FUNDAMENTAlS 219

e tempo sao, cada qual, express6es parciais de uma mes­rna rela-;ao fundamental entre eventos, que DaD e nemespacial nem temporal. A essa relal;ao denomino "ex­tensao". A rela~ao de "estender-se por sobre" ea rela­c;;ao de "inc1usao", em urn sentido espacial, temporalou em ambos. A simples "inclusao", todavia, e maisfundamental que qualquer das alternativas e nao requernenhuma diferencia~aoespa~o-temporal.Com respeitoa extensao, dais eventos estao mutuamente reIaciona­dos de tal sorte que (i) urn inclui 0 outro ou (ii) urnsobrep5e-se ao outro sem uma inclusao completa ou (iii)ambos estao completamente separados. Epreciso gran­de cautela, parem, na definic;;ao de elementos espaciaise temporais com base na extensao, a fim de se evitaralgumas limita~5esd.citas, na verdade dependentes derela~5es e propriedades indefinidas.

Tais falacias podem ser evitadas atentando-se paradais elementos de nossa experiencia, a saber, (i) nosso"presente" observacional e (ii) nosso "evento perci­piente" .

Nossa "presente" observacional e 0 que denomi­no uma "durac;;ao". E 0 todo da natureza apreendidoem nossa observac;ao imediata. Tern, portanto, a natu­reza de urn evento, mas possui uma inteireza peculiarque distingue tais dura~5es enquanto urn tipo especialde eventos, inerentes a natureza. Vma durac;ao nao einstantanea. Ela e tudo quanto existe da natureza comcertas lirnitac;6es temporais. Contrariarnente a outroseventos, uma durac;ao sera chamada infinita, enquantoos demais eventos sao finitos1. Em nosso conhecimento

1. Cf. nota acerca de "significado", pp. 232-3.

de uma dura~ao podemos distinguir (i) determinadoseventos nela inclufdos, particularmente discriminadosquanta a suas individualidades peculiares e (ii) os even­tos remanescentes inclufdos, que apenas sao conhecidoscomo necessariamente existentes em virtude de suas re­lac;6es com os eventos discriminados e com a durac;aocomo urn todo. A dura~ao como urn todo esigoificada2

por aquela qualidade relacional (com respeito it exten­sao) de que edotada a parte imediatamente sob obser­vaC;ao; em outras palavras, pelo fato de que existe es­sencialmente urn alem para tudo quanta e observado.Quero dizer com isso que todo evento e conhecido en­quanta relacionado a outros eventos nao inclufdos nomesmo. Esse fato, de que cada evento ereconhecido co­mo dotado da qualidade da exc1usao, mostra ser a ex­clusao uma qualidade tao positiva quanta a inclusao. Naoexistem, e claro, relac;6es apenas negativas na naturezae a exclusao nao e a simples negativa da inclusao, em­bora as duas rela~5es sejam opostas. Ambas dizem res­peito unicamente a eventos, e a exclusao e passfvel dedefini~ao 16gica em termos da inclusao.

Possivelmente a manifesta~ao mais 6bvia de sigoi­ficado resida em nosso conhecimento do carater geome­trico dos eventos compreendidos em urn objeto mate­rial opaco. Sabemos, por exemplo, que uma esfera opacapossui urn centro. Tal conhecimento nada tern a ver como material; a esfera pode ser uma s6lida e uniforme bo­la de bilhar ou uma bola de tenis oca. Tal conhecimen­to eessencialmente produto do significado, uma vez que

2. Cf. cap. III, pp. 6455.

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o carater geral dos eventos externos discriminados nosinformou cia existencia de eventos no ambito cia esferae tambem cia estrutura geometrica desses eventos.

Algumas criticas a "The Principles of NaturalKnowledge" indicam a dificuldade encontrada em seapreender as durac;6es enquanto estratifica<;6es reais cianatureza. Penso que tal hesita~ao tern origem na influen­cia inconsciente do noeivo prinefpia cia bifurcac;ao, taoprofundamente arraigado no pensamento filos6fico mo­derno. Observamos a natureza como estendida em urnpresente imediato que e simultaneo porem DaO instan­taneo e, por conseguinte, 0 todD imediatamente discer­nido ou significado como urn sistema inter-relacionadoforma uma estratifica~aoda natureza que e urn fato fi­sico. Essa euma conc1usao imediata, salvo se admitir­mos a bifurcac;ao na forma do princfpia dos acrescimospsiquicos, aqui rejeitado.

Nossa "evento percipiente" eaque1e evento inc1uf­do em nosso presente observacional que distinguimoscomo sendo, de algum modo peculiar, 0 nosso ponto devista para a percep~ao. Trata-se, falando grosso modo, da­quele evento que e nossa vida corporal no ambito da du­ra~ao presente. A teoria da percep~ao, tal como desen­volvida pela psicologia medica, baseia-se no significa­do. A situa,ao distante de urn objeto percebido apenasnos e conhecida enquanto significada por nosso estadocorporal, i.e., por nosso evento percipiente. Na verda­de, a percep~ao exige a apreensao sensivel dos signifi­cados de nosso evento percipiente, juntamente com aapreensao sensivel de uma rela~ao peculiar (de situa~ao)

entre determinados objetos e os eventos assim significa­dos. Nosso evento percipiente e preservado por ser a na-

tureza como urn todo segundo esse fato de seus signifi­cados. Tal e 0 sentido de chamar ao evento percipienteo nosso ponto de vista para a percep~ao. A trajet6ria deurn raio de luz esta ligada apenas derivativamente aper­cep~ao. 0 que efetivamente percebemos sao objetos en­quanto relacionados a eventos significados pelos estadoscorporais estimulados pelo raio. Esses eventos signifi­cados (como no caso das imagens vistas atras de urn es­pelho) podem ter pouca rela,ao com a trajet6ria efetivado raio. No curso da evolu~ao sobreviveram aqueles ani­mais cuja apreensao senslvel esta concentrada naquelessignificados de seus estados corporais relevantes, em me­dia, ao seu bem-estar. 0 mundo dos eventos e signifi­cado em sua totalidade, mas alguns destes impoem a pe­na de morte por desaten~ao.

o evento percipiente esta sempre aqui e agora nadura~aopresente associada. Possui 0 que se pode deno­minar uma posi~ao absoluta naquela dura~ao. Assim,uma dura~aodefinida esta associada a um evento perci­piente definido e, com isso, podemos nos aperceber deuma rela~ao peculiar que os eventos finitos podem guar­dar com as dura~oes. Dou a essa rela~ao 0 nome de "co­grediencia". A no~ao de repouso e derivativa daquelade cogrediencia e a no~ao de movimento e derivativa da­quela de inclusao em uma dura~aodesprovida de cogre­diencia com tal evento. Na verdade, 0 movimento e umarela~ao (de cad.ter variavel) entre urn evento observadoe uma dura~ao observada, enquanto a cogrediencia e 0

carater ou subespecie mais elementar de movimento. Re­sumindo, essencialmente envolvidos no carMer geral decada observa~ao da natureza ha uma dura~aoe urn eventopercipiente, sendo este cogrediente com a dura~ao.

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Nossa conhecimento dos caracteres peculiares de di­ferentes eventos depende de nosso poder de compara~ao.

DOll ao exercfcio desse fator de nosso conhecimento 0 no­me de "reconhecimento", enquanto a indispensavelapreensao senslve1 dos caracteres comparaveis denomi­no "reconhecimento senslve1". Reconhecimento e abs­tra(:ao envolvem essencialmente urn ao outro. Cada urncieles demonstra, para 0 conhecimento, uma entidade queesta aquem do fata concreto, mas que eurn fator real na­que1e fato. 0 fato mais concreto passive! de uma discri­mina~ao isolada e a evento. Nao pode haver abstra~ao

sem reconhecimento e nao pode haver reconhecimentosem abstra~ao. Percep~ao envolve apreensao do eventoe reconhecimento dos fatores de seu carater.

As coisas reconhecidas sao 0 que denomino "obje­tos". Nessa acep,;;ao geral do termo, a rela~ao de exten­sao e, em si mesma, urn objeto. Na pratica, todavia, res­trinjo 0 termo aque1es objetos capazes de serem consi­derados, em urn certo sentido determinado, dotados deuma situa~ao no evento; ou seja, na frase "Ei-Io ai no­vamente", restrinjo 0 "ai" afun~ao de indicador de umevento especial, a situa~ao do objeto. Ainda assim, exis­tern diferentes tipos de objetos, e as postulados que seaplicam a determinado tipo de objeto em geral nao seaplicam a objetos de tipos diferentes. Os objetos que nosdizem respeito aqui para a formula~ao das leis ffsicassao objetos materiais, como fra~oes de materia, mole­culas e eletrons. As re1a~6es entre urn objeto de urn dessestipos com os eventos diferem daque1as pertencentes acorrente de suas situa~6es. 0 fato de suas situa~6es noambito dessa corrente imprimiu em todos os demaiseventos determinadas modifica~oesem seus caracteres.

Na verdade, a objeto em sua totalidade pode ser conce­bido como urn conjunto especffico de modifica~oescor­re1atas nos caracteres de todos os eventos, com a pro­priedade de que essas modifica~oes redundam em umadeterminada propriedade focal naque1es eventos perten­centes acorrente de suas situa~oes. A soma total das mo­difica~6es nos caracteres de eventos, determinadas pelapresen~a de urn objeto em uma corrente de situa~5es,

eo que denomino "campo fisico" decorrente do obje­to. Na verdade, porem, nao se pode separar a objetode seu campo. 0 objeto nada mais e, em realidade, doque 0 conjunto sistematicamente ajustado de modifica­~6es no campo. A limita~ao convencional do objeto itcorrente focal de eventos em que dizemos que e1e esta"situado" e conveniente a algumas finalidades, mas obs­curece a fato fundamental da natureza. Desse ponto devista, a antitese entre a~ao a distan~ia e a~ao por trans­

.missao e desprovida de sentido. A doutrina desse para­grafo nada mais e do que uma outra maneira de expres­sar a indissoluve1 rela~ao mUitipla entre objeto e eventos.

Qualquer familia de dura~6es paralelas determinaa forma~ao de urn sistema temporal completo. Duas du­ra~6es sao parale!as se (i) uma inclui a outra, se (ii) elasse sobrep5em de modo a inc1uir uma terceira dura~ao

comum a ambas, au (iii) sao completamente isoladas.o caso exc1uido e a de duas dura~6es que se sobrep6emde modo a inc1uirem mutuamente urn agregado de even­tos finitos, sem inc1uir mutuamente, todavia, nenhumaoutra dura~ao completa. 0 reconhecimento do fato deurn numero indefinido de dura~6es paralelas e a que di­ferencia 0 conceito de natureza aqui apresentado do con­ceito ortodoxo, mais antigo, dos sistemas temporais es-

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sencialmente unlCOS. Sua divergencia com relac;;ao aoconceito de natureza defendido por Einstein sera indi­cada em linhas gerais mais adiante.

Os espac;;os instantaneos de urn sistema temporaldado sao as dura~6es ideais (inexistentes) de densidadetemporal zero indicadas pelas retas de aproximac;;ao aolongo das series formadas por dura~6esda familia asso­ciada. Cada espa~o instantaneo desses representa 0 idealcia natureza em urn instante e etambem urn momentodo tempo. Cada sistema temporal conta, assim, com urnagregado de mementos pertencentes unicamente a ele.Cada partfcula de evento esta situada em urn, em ape­nas urn momenta de urn sistema temporal dado. Sao tresos caracteres de uma partfcula de event03 : (i) seu cad.­ter extrfnseco, que eseu carcher enquanto rota definidade convergencia entre eventos, (ii) seu carater intrfnse­co, que ea qualidade peculiar cia natureza em sua cir­cunvizinhanc;;a, au seja, 0 caniter do campo ffsico de suacircunvizinhan~a, e (iii) sua posi~ao.

A posi~ao de uma particula de evento origina-se doagregado de momentos (sem que haja dois de mesmafamilia) em que a mesma esta compreendida. Concen­tramos nossa aten~ao em urn desses momentos, do qualnos aproximamos atraves da breve dura~ao de nossa ex­periencia imediata, e expressamos a posi~ao como a po­si~ao nesse momento. Mas a partfcula de evento recebesua posi~ao no momenta M em virtude do agregado to­tal de outros momentos M', M", etc., nos quais tam­bern esta situada. A decomposi~ao de M em uma geo-

3. Cf. pp. 100 ss.

metria de partfculas de evento (pontos instantaneos) ex­pressa a diferencia~ao de M atraves de suas intersec~6es

com m?mentos de sistemas temporais que Ihe sao estra­nhos. E dessa forma que pianos, retas e as proprias par­tfculas de evento ganham existencia. Tambem 0 para­lelismo entre pianos e retas origina-se do paralelismo en­tre os momentos de urn tinico sistema temporal que cruzaM. Do mesmo modo, a ordem dos planas paralelos edas partfculas de evento em linhas retas origina-se daordem temporal desses momentos que se interseccionam.A explica~ao nao sera fornecida aqui4 . Por ora, bastasimplesmente mencionar as fontes das quais toda a geo­metria obtem sua explica~ao ffsica.

A correla~ao entre os varios espa~osmomentaneosde urn mesmo sistema temporal e efetuada atraves darela~ao de cogrediencia. Evidentemente, 0 movimentoem urn espa~o instantaneo e algo sem sentido. 0 movi­mento expressa uma compara~aoentre a posi~ao em urnespa~o instantaneo e as posi~oes em espa~os instanta­neos diversos do mesmo sistema temporal. A cogredien­cia revela 0 mais simples produto de tal compara~ao,

a saber, 0 repouso.Movimento e repouso sao fatos imediatamente ob­

servaveis. Sao relativos no sentido de que dependem dosistema temporal que esta na base da observa~ao.Vmacadeia de partfculas de evento cuja ocupa~ao sucessivasignifica repouso em urn sistema temporal dado formaurn ponto atemporal no espa~o atemporal daquele sis­tema temporal. Dessa forma, cada sistema temporal pos-

4. Cf. Principles oj Natural Knowledge e capftulos anteriores do presentetrabalho.

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sui seu proprio espac;o atemporal permanente, peculiarexclusivamente a si proprio, e cada urn desses espac;ose composto por pontos atemporais pertencentes aquelesistema temporal e a nenhum outro. Os paradoxos darolatividade surgem da negligencia ao fato de que dife­rentes pressupostos no tocante ao repouso envolvem aexpressao dos fatDs cia ciencia ffsica em termos de espa­c;os e tempos radicalmente diferentes, em que pontos emomentos possuem diferentes significados.

A fonte da ordem ja foi indicada e chegamos agoraaquola da congruencia. Esta depende do movimento. Dacogrediencia advem a perpendicularidade; e da perpen­dicularidade, conjuntamente com a simetria recfprocaentre as relac;6es de dais sistemas temporais quaisquer,define-se completamente a congruencia tanto no tempoquanta no espa<;o (cf. IDe. cit. ).

As formulas resultantes sao aquolas da leoria oletro­magnetica cia re1atividade au, conforme sua designac;aoatual, cia teoria restrita. Mas existe a seguinte diferenc;acrucial: a ve10cidade crftica c que figura nessas formulasnao tern agora a menor liga~ao com a luz ou qualqueroutro fato do campo ffsico (contrariamente aestruturaextensional dos eventos). Ela simplesmente assinala 0

fato de que nossa determina~ao de congruencia abarcatanto tempos como espa~os em urn tinico sistema uni­versal e, por conseguinte, se duas unidades arbitrariassao escolhidas, uma para todos os espa~os e outra paratodos os tempos, a razao entre ambas sera uma veloci­dade, e esta, por sua vez, uma propriedade fundamen­tal da natureza a expressar 0 fato de que tempos e espa­~os sao realmente comparaveis.

As propriedades fisicas da natureza sao expressasem termos de objetos materiais (e1etrons, etc.). 0 carater

ffsico de urn evento tern origem no fato de 0 mesmo per­tencer ao campo do complexo global de tais objetos. Soburn ponto de vista diferente, podemos dizer que essesobjetos nada mais sao que nosso modo de expressar acorrela~ao mutua dos caracteres fisicos dos eventos.

A mensurabilidade espa<;o-temporal da natureza de­corre (i) da rela<;ao de extensao entre os eventos e (ii)do carater estratificado da natureza resultante de cadaurn dos sistemas temporais a1ternativos e (iii) do repou­so e movimento, tal como revelados nas rela~6es entreeventos finitos e sistemas temporais. Nenhuma dessasfontes de medi~ao depende dos caracteres ffsicos doseventos finitos tal como manifestados polos objetos si­tuados. Elas sao completamente significadas para even­tos cujos caracteres fisicos sao desconhecidos. Assim, osdimensionamentos espa~o-temporais independem dos ca­racteres fisicos objetivos. Alem disso, 0 carater de nos­so conhecimento de uma durac;ao completa, essencial­mente derivado do significado da parte contida no campoimediato de nossa discrimina<;ao, olabora tal dura<;ao pa­ra nos como urn todo uniforrne e independente, no quese refere asua extensao, dos caracteres nao observadosde eventos remotos. Em outras palavras, existe urn to­do definido da natureza, simultaneamente presente nestemomento, seja qual for 0 carater de seus eventos remo­tos. Tal considera~aofortalece a conc1usao anterior. Essaconclusao conduz aasser~ao da uniformidade essencialdos espa~os momentaneos dos diversos sistemas tempo­rais e, dai, auniformidade dos espa~os atemporais, dosquais existe urn para cada sistema temporal.

A analise aqui proposta do carater geral da natu­reza observada se presta a explica~oes de diversos fatos

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fundamentais ligados a observa~ao: ("') Ela explica a di­ferencia~ao cia qualidade unica cia extensao em tempoe espa~o. ({3) Confere urn significado aos fatos observa­dos da posi~ao geometrica e temporal, da ordem geo­metrica e temporal e aqueles dotados das propriedadesgeometricas da reta e do plano. (1') Elege urn sistemade congruencia definido que abrange tanto 0 tempo co­mo 0 espa~o e explica, assim, a concordancia quanta aosdimensionamentos obtidos na pnitica. (0) Explica (coe­rentemente Com a teoria da relatividade) os fenomenosobservados de rata~ao, e.g. 0 pendulo de Foucault, 0

abaulamento equatorial da Terra, os sentidos fixos derota~ao de ciclones e anticiclones e a bussola giroscopi­ca. ISBa se terna passive! por sua admissao de estratifi­ca~5es definidas cia natureza, reveladas pelo proprio ca­rater do conhecimento que temos dela. (E) Suas expli­ca'.;oes do movimento sao mais fundamentais que aque­las expressas em (0), pois explica 0 que se entende pelomovimento em si. 0 movimento observado de urn ob­jeto estendido e a rela~ao de suas diferentes situa~6es

com a estratifica~ao cia natureza expressa pelo sistematemporal que esta na base da observa~ao. 0 movimen­to expressa uma rela~ao real entre 0 objeto e 0 restantecia natureza. A expressao quantitativa dessa relar;ao iravariar segundo 0 sistema temporal escolhido para suaexpressao.

Essa teoria naD atribui a luz nenhum canlter pe­culiar alem daquele atribuido a outros fenomenos fisicoscomo 0 som. Nao ha fundamento algum para tal dife­rencia~ao. Alguns objetos nos sao conhecidos apenas pelavisao, outros apenas pelo som, enquanto outros nao saoobservados por nos quer pela luz ou pelo som, mas pelo

toque, 0 olfato ou outras vias. A velocidade da luz variasegundo 0 meio em que se propaga e 0 mesmo se da como som. Sob determinadas condi~oes, a luz se desloca emtrajet6rias curvas, eo mesmo se verifica com 0 som. Tan­to a luz quanta 0 som constituem ondas de perturba~ao

nos caracteres ffsicos dos eventos; e (conforme enuncia­do acima, p. 221) a trajetoria efetiva da luz em nadae mais importante para a percep~ao do que a trajetoriaefetiva do som. Basear toda a filosofia da natureza naluz e urn pressuposto infundado. A experiencia de Mi­chelson-Morley e outras do genera demonstram que,dentro dos limites da imprecisao observacional, a velo­cidade da luz e uma apraxima~aoa velocidade critica"c", que expressa a rela~ao entre nossas unidades detempo e espa~o. Epossive! provar que 0 pressuposto re­ferente aluz, atraves do qual se explicam tais experien­cias e a influencia do campo gravitacional nos raios lu­minosos, ededuzivel, enquanto aprOXimafO,o, das equa~oes

do campo eletramagnetico. 1sso elimina por completoqualquer necessidade de se diferenciar a luz de outrosfenomenos fisicos enquanto dotada de qualquer caraterfundamental.

Cabe observar que 0 dimensionamento da nature­za estendida por intermedio de objetos estendidos e des­provida de significado, aparte algum fato observado desimultaneidade inerente a natureza e nao urn simplesexercicio do intelecto. Do contrario, nao ha significadoalgum no conceito de uma apresentac;ao unica de nossaregua de medi~ao estendida AB. Por que nao AB', on­de B' e a extremidade B cinco minutos mais tarde? Pa­ra ser viavel, 0 dimensionamento pressupoe a naturezacomo uma simultaneidade e urn objeto presente entao e

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presente agora. Em outras palavras, 0 dimensionamentocia natureza estendida requer algum caniter inerente nanatureza que propicie a existencia de uma regra paraa apresenta~ao de eventos. Por outm lado, nao se podedefinir congruencia pela permanencia da regua de me­di~ao. A permanencia em si e despmvida de significa­do, it parte a1gum julgamento imediato de autocongruen­cia. Do contrario, como diferenciarfamos urn fio elasti­co de uma regua rigida de medi~ao? Cada qual perma­nece 0 meSilla objeto, identico a si meSillO. Por que ra­zao urn deles e uma regua de medi~ao posslvel e 0 outmnao? 0 significado da congruencia reside para a1em daidentidade do objeto consigo proprio. Em outras pala­vras, a mensura~ao pressup5e 0 mensuravel, e a teoriado mensuravel e a teoria cia congruencia.

Por outm lade, a admissao de estratifica~6es da na­tureza conduz aformulac;ao das leis cia natureza. Foi es­tabe1ecido que essas leis devem ser expressas em equa­~6es diferenciais que, tal como formuladas em qualquersistema geral de dimensionamento, nao devem guardarreferencia a nenhum outro sistema de dimensionamen­to particular. Tal requisito e puramente arbitd.rio, poisurn sistema de dimensionamento dimensiona algo ine­rente anatureza; do contrario, nao tera absolutamentevInculo a1gum com a natureza. E aquilo que e medidopor urn sistema de dimensionamento particular podeguardar uma rela~ao especial com 0 fenomeno cuja leise encontra em formula~ao.Por exemplo, podemos es­perar que 0 campo gravitacional gerado por urn objetomaterial em repouso em urn determinado sistema tem­poral apresente, em sua formulat;ao, referencia a gran­dezas espaciais e temporais daquele sistema temporal.

Ocampo, obviamente, pode ser expresso em qualquersistema de medida, mas a referencia particular perma­necent como a simples explicac;ao ffsica.

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NOTA:

DO CONCErTO GREGODE PONTO

As paginas precedentes foram encaminhadas aim­pressaa antes que eu tivesse 0 prazer de ler 0 trabalhode Sir T. L. Heath, Euclid in Greek'. A primeira defini­~ao de Euclides l no original, e

UTJJu:i:ov eU7LlI, oJ p,Epor; ov(J{v.

Citei-a na p. 104 na forma ampliada que me foi ensi­nada na infancia, "desprovido de partes e desprovidode magnitude". Seria preciso que eu tivesse consulta­do a edi~ao inglesa de Heath - urn c1assico desde 0

momenta de sua publica~ao - antes de me lan~ar auma declara~o acerca de Euclides. Esta, porem, e umacorre~ao trivial que nao afetara 0 sentido e nem justi­ficaria uma nota. Gostaria de chamar a aten~ao aquiit nota do proprio Heath a essa defini~ao em seu Eu-

1. Cambridge Univ. Press, 1920.

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did in Greek. Ele sintetiza a pensamento grego acerca danatureza do ponto desde as pitag6ricos, passando parPlatao e Arist6teles, ate chegar em Euclides. Minha ana­lise do carater indispensavel de urn ponto nas pp. 108e 109 esta em total consonancia com 0 surgimento ciadiscussao grega.

NOTA:

DO SIGNIFICADO E DOSEVENTOS INFINITOS

A teoria do significado foi ampliada e tornada maisprecisa no presente volume. Ela ja havia sido introdu­zida nos Principles ofNatural Knowledge (cf. subartigos 3.3a 3.8 e 16.1, 16.2, 19.4, e artigos 20, 21). Ao revisaras provas do presente volume, chego it conclusao de que,it luz desse desdobramento, minha limita~ao dos even­tos infinitos a durac;6es eindefensavel. Tallimitac;ao estaformulada no artigo 33 dos Principles e no infcio do Ca­pitulo IV (p. 91) do presente livro. Existe urn tinico sig­nificado dos eventos discernidos a abarcar a totalidadecia durac;ao presente, mas existe 0 significado de urnevento cogrediente envoIvenda sua extensao atraves detodo urn sistema temporal, para tras e para a frente. EmQutras palavras, 0 "alem" essencial cia natureza e urnalem determinado no tempo, bern como no espa~o [cf.pp. 66, 227]. Segue isso de toda minha tese quanta itassimila~ao do tempo e do espa~o e da origem de am­bos na extensao, alem de basear-se tambem na anaIisedo caniter de nosso conhecimento cia natureza. Dessa

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admissao decorre que epossivel definir as trilhas de pon­tos [i.e. os pontos de espa~os atemporaisJ como elemen­tos abstrativos. Ternos aqui urn grande aprimoramen­to, na medida em que se restaura 0 equilfbrio entre mo­mentos e pontas. Continuo defendendo, no entanto, aafirma~ao do subartigo 35.4 dos Principles, de que a in­tersec~ao de urn par de dura~5es nao-paralelas nao seapresenta a nos como urn evento unico. Essa corre~ao

nao afeta nenhuma das pondera~5es subseqiientes emambos os livros.

Aproveito a oportunidade para assinalar que os"eventas estacionarios" do artigo 57 dos Principles saomeros eventas cogredientes aos quais se tern acesso a par­tir de urn ponto de vista matemMico abstrato.

236 o CONCE/TO DE NA TUREZA

II

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