Adriana Marcelino
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
A GESTO POLICIAL DA VIDA:
Consideraes sobre como governamos e somos
governados no contemporneo
ADRIANA SANTANA MARCELINO
Niteri/RJ
2008
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ADRIANA SANTANA MARCELINO
A GESTO POLICIAL DA VIDA:
Consideraes sobre como governamos e somos
governados no contemporneo
Dissertao de mestrado apresentada no Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, rea de Subjetividade, Poltica e Excluso Social, sob orientao da Prof. Dra. Ceclia Maria Bouas Coimbra.
Niteri/RJ 2008
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ADRIANA SANTANA MARCELINO
A GESTO POLICIAL DA VIDA
Consideraes sobre como governamos e somos
governados no contemporneo
Dissertao de Mestrado apresentada no programa de Ps-
Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense
UFF.
Data da aprovao: ____ / ____ / ______.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof Dra. Ceclia Maria Bouas Coimbra - UFF
_______________________________________________
Prof Dra. Vera Malaguti Batista ICC/UFF
_______________________________________________
Prof Dra. Heliana Conde Rodrigues De Barros - UERJ
_______________________________________________
Prof Dra. Maria Lvia Nascimento - UFF
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Agradecimentos
Ceclia Coimbra, mestra genuna, pelo carinho, amizade e dedicao com que cuida das flores ao seu redor. Pelo exemplo de vida e resistncia, fundamental nesse processo antes mesmo dele comear. Sem sua energia instigante, esse trabalho no resistiria. Agora ele resiste e vive, como ns. Obrigada por tudo. Vera Malaguti Batista, pelo acolhimento, disponibilidade e importantes contribuies e anlises trazidas com tanta doura e firmeza. Uma bela e rara combinao de fortes convices e muita ternura. Heliana Conde, pelas aguadas anlises Foucaultianas, pela postura admirvel com o conhecimento, pelo acolhimento e riqueza das suas aulas e, principalmente, da sua presena. Aos Professores amigos da UFS, que plantaram sementes que agora esto brotando fortes e bonitas. Ao Programa de ps-graduao da UFF, espao importante na produo de conhecimento crtico e possibilitador de belos encontros. Aos pensadores, escritores e artistas, cujas sensibilidades e inquietaes nos acompanharam nesse trabalho, no nos deixando desamparados nas angstias, anlises, experincias e utopias. Aos colegas e amigos, mestres e mestrandos da UFF, pelas trocas, amizade e carinho em tantos momentos inesquecveis. Aos companheiros do grupo de estudos de Foucault, Fernando, Chris, Luiz, e Fernanda, pela busca incessante por viver o conhecimento. Aos amigos companheiros desorientados, que buscam seus caminhos cultivados por nossa querida jardineira. Para o alto e avante! Aos amigos Jana, Ia, Dani, Pepedro, Fbio, Cris, Al e Rafael, pela amizade valorosa, por compartilhar tantas descobertas, estudos, cachaas, angstias, alegrias e sonhos. Verdadeiros presentes desse mestrado. As neuroses criadas e desencadeadas nesse processo mesTRAdstico ficam pequenas quando comparadas ao que vivemos juntos. Estamos nos tornando mais fortes na busca de modos diferentes e mais potentes de vida, seja l onde estivermos. Aos camaradas de capoeiragem nas rodas da vida, especialmente na Escola de Capoeira Angola Vamos Vadiar, pelas conversas, jogos, cantos e
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danas com que procuramos e experimentamos as possibilidades de liberdade do corpo e da alma. Ax! Aos amigos somticos, em especial, Verinha, Stfanis, G, Didi, Hugo, Manu, Bela, Nilton e Tati, por compartilhar a vontade e as dificuldades de viver com sade, teso e liberdade. muito bom estar juntos nessa. Amo vocs. Babi e Tonico, e agora Ana e Jubirana, pelo amor e pela vida compartilhados sob um mesmo teto. Aos amigos sergirocas, mais ou menos prximos, por me permitirem sentir um pouco do cheiro de casa em outros ares. Aos amigos que a distncia fsica atrapalha, mas acima de tudo, fortalece, no conseguindo separar nossos coraes. Vocs so a prova de que pertencemos a uma famlia maior, unida por sentidos que a razo desconhece. A todos os coraes amigos que encontrei e reencontrei nos caminhos, descaminhos e tropeos no Rio de Janeiro, nos corredores e arredores das universidades, nas ruas, praias, praas e botecos. Pessoas que ficaram e no apenas passaram na urgncia de (sobre)viver no medo e na pressa das grandes cidades. O amor pela vida digna de ser vivida nos uniu. Estamos juntos e tenho certeza que nos veremos na vida que estamos construindo. A todas as vidas que resistem vida que lhes imposta. Vidas ricas de vida. Annimas e ilustres. Vidas que, olhando com outros olhos, seguem ao nosso lado, nos inspirando e nos fazendo no apenas acreditar nos sonhos, mas viv-los. So essas vidas que, juntando-se a nossa, engrandecem a sensao de ser humano. Subvertem as regulaes externas e correm o risco de viver verdadeiramente. A todos ns que estamos tentamos governar nossas prprias vidas na companhia de outras vidas, sem nos submeter ou submet-las.
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Ah meu amigo, a espcie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lgica, mas algo ou algum de tudo faz trincha para rir-se da gente... e ento? (Guimares Rosa)
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Resumo A vida tornada objeto de governo. A polcia enquanto tcnica de governo das vidas. A partir da instigao de experincias cotidianas vividas dentro e fora de uma instituio policial, so analisados alguns dispositivos de segurana utilizados atualmente na gesto das vidas. A manipulao do medo, a busca por segurana e a defesa da vida se mostram importantes mecanismos nas engrenagens das relaes sociais e de governo dos outros e de si mesmo. Tais mecanismos se explicitam nas polticas de Estado e principalmente na produo de subjetividades policialescas sob a forma de cuidado e mediao. O olhar controlador e as vidas normalizadas compem os modos de existncias policiais que vemos hoje. Nas formas como governamos e somos governados atualmente, a vida sobressai sob um aspecto jurdico-poltico, que se regulam a partir da gesto das leis e ilegalidades. O que est em jogo a produo e manuteno de um certo modelo de vida, a partir do qual outras formas de vida so desqualificadas e mesmo exterminadas do convvio social dos normais. O que se chama vida hoje uma tentativa de controle das expresses de Vida que teimam em transgredir as regras estabelecidas para o viver. Vidas que ignoram ou mesmo no se submetem s tentativas de controle total. Vidas que sonham e realizam seus sonhos no presente. Palavras Chave: Governo, controle, segurana, polcia, vida, produo de subjetividade, utopia.
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Abstract Life made a government object. The police as a technique to govern lives. Starting from the instigation of day-by-day situations experienced inside and outside a police institution, some safety devices used nowadays in the management of lives are analyzed. The manipulation of fear, the search for safety and the defense of "life" are important mechanisms in the engine of social relationships and of the govern of others and of itself. Such mechanisms are explicit in the State policies and mainly in the production of the police subjectivity in a way of protection and mediation. The controlling look and the normalized lives are the basis of the police modes of existence that are seen nowadays. In the way we govern and are governed at the present time, life prevails in a political and juridical aspect which rule themselves through the management of the laws and illegalities. The important matter is the production and maintenance of a certain way of life, from which other ways of life are disqualified and even exterminated from the social relationships of the "normal" ones. That what is called "life" today is an attempt to control the many expressions of "life" that insist in disobey the established rules for living. Lives that ignore or even do not submit to the total control attempts. Lives that dream and whose dreams come true in the present. Key words: Government, control, safety, police, life, subjectivity production, utopia.
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SUMRIO
COLAR DE HISTRIAS 09 PARA COMEAR A CONVERSA 12 A DEFESA DA VIDA 25 A (In)segurana Pblica 28 Os Discursos Oficiais de Segurana 30 Estratgias de Poder e Saber Integradas 35 A Emergncia da Polcia Disciplinar no Brasil 39 Condies de Emergncia das Instituies Policiais 46 A Polcia como Instrumento de Interveno do Estado 50 VIDAS VIVIDAS, MORRIDAS E MATADAS 54 Terrorismos Contemporneos 57 Guerras Ordinrias: estados e Estados de Exceo 59 Viver () Direito 62 Vidas Secas na Cidade: A Manada dos Normais 67 Estado Mediador e Juridicizao do Cotidiano 76 Riscos Reais e Produzidos: Efeitos de Subjetivao e Objetivao dos Mecanismos de Segurana 82 Cuidando da vida alheia 87
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Agentes da Lei e Gesto das Ilegalidades 90 GOVERNAR A VIDA 92 Painel de Controle 98 Como Aceitamos Ser Governados... 102 Os Bois Esto Rodando Sozinhos 111 Utopia Energia Vital Renovvel 113 O QUE MAIS DIZER NESSE MUNDO SEM PORTEIRA? 117 REFERNCIAS 126 ANEXO A 132 ANEXO B 136 ANEXO C 137 Colar de histrias Nossa regio o reino dos paradoxos. Tomemos o caso do Brasil, por exemplo: Paradoxalmente, Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais altas belezas da arte da poca colonial; Paradoxalmente, Garrincha, arruinado desde a infncia pela misria e a poliomielite, nascido para a desgraa, foi o jogador que mais alegria ofereceu em toda a histria do futebol; E, paradoxalmente, Oscar Niemeyer, que j completou cem anos de idade, o mais novo dos arquitetos e o mais jovem dos brasileiros. ***
Ou, por exemplo, a Bolvia: em 1978, cinco mulheres derrubaram uma ditadura militar. Paradoxalmente, toda a Bolvia zombou delas quando iniciaram sua greve de fome. Paradoxalmente, toda a Bolvia terminou jejuando com elas, at que a ditadura caiu.
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Eu conheci uma dessas cinco obstinadas, Domitila Barrios, no povoado mineiro de Llallagua. Em uma assemblia de operrios das minas, todos homens, ela levantou e fez todos calarem a boca. Quero dizer s uma coisinha disse . Nosso inimigo principal no o imperialismo, nem a burguesia, nem a burocracia. Nosso inimigo principal o medo, e ns carregamos ele dentro. E, anos depois, reencontrei Domitila em Estocolmo. Havia sido expulsa da Bolvia e ela tinha marchado para o exlio, com seus sete filhos. Domitila estava muito agradecida pela solidariedade dos suecos, e admirava a liberdade deles; mas tinha pena deles, to sozinhos que estavam, bebendo sozinhos, comendo sozinhos, falando sozinhos. E dava-lhes conselhos: No sejam bobos dizia -. Fiquem juntos. Ns, l na Bolvia, ficamos juntos. Mesmo que seja para brigar, ficamos juntos. ***
E como tinha razo. Porque, digo eu: existem os dentes, se no ficarem juntos na boca? Existem os dedos, se no ficarem juntos na mo? Estarmos juntos: e no s para defender o preo dos nossos produtos, mas tambm, e, sobretudo, para defender o valor dos nossos direitos. Bem juntos esto, mesmo que de vez em quando simulem brigas e disputas, os poucos pases ricos que exercem a arrogncia sobre todos os outros. Sua riqueza come pobreza, e sua arrogncia come medo. Bem pouquinho tempo atrs, por exemplo, a Europa aprovou a lei que transforma os imigrantes em criminosos. Paradoxo de paradoxos: a Europa, que durante sculos invadiu o mundo, fecha a porta no nariz dos invadidos, quando eles querem retribuir a visita. E essa lei foi promulgada com uma assombrosa impunidade, que seria inexplicvel se no estivssemos acostumados a sermos comidos e a viver com medo. Medo de viver, medo de dizer, medo de ser. Esta nossa regio faz parte de uma Amrica Latina organizada para o divrcio de suas partes, para o dio mtuo e a mtua ignorncia. Mas somente estando juntos seremos capazes de descobrir o que podemos ser contra uma tradio que nos amestrou para o medo e a resignao e a solido e que cada dia nos ensina a no gostar de ns mesmos, a cuspir no espelho, a copiar em vez de criar. ***
Ao longo da primeira metade do sculo dezenove, um venezuelano chamado Simn Rodrguez caminhou pelos caminhos da nossa Amrica, no lombo de uma mula, desafiando os novos donos do poder: Vocs clamava o sr. Simn -, vocs que tanto imitam os europeus, por que no imitam o mais importante, que a originalidade? Paradoxalmente, no era ouvido por ningum este homem que tanto merecia ser ouvido. Paradoxalmente, chamavam-no louco, porque cometia a sensatez de acreditar que devemos pensar com nossa prpria cabea, porque cometia a sensatez de propor uma educao para todos e uma Amrica de todos, e dizia que a quem no sabe, qualquer um engana e a
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quem no tem, qualquer um compra, e porque cometia a sensatez de duvidar da independncia dos nossos pases recm-nascidos: No somos donos de ns mesmos dizia. Somos independentes, mas no somos livres. ***
Quinze anos depois da morte do louco Rodrguez, o Paraguai foi exterminado. O nico pas hispano-americano verdadeiramente livre foi, paradoxalmente, assassinado em nome da liberdade. O Paraguai no estava preso na jaula da dvida externa, porque no devia nem um centavo para ningum, e no praticava a mentirosa liberdade de comrcio, que nos impunha e nos impe uma economia de importao e uma cultura de impostao. Paradoxalmente, depois de cinco anos de guerra feroz, entre tanta morte sobreviveu a origem. Segundo a mais antiga de suas tradies, os paraguaios nasceram da lngua que os nomeou, e entre as runas fumegantes sobreviveu essa lngua sagrada, a lngua primeira, a lngua guarani. E em guarani falam ainda hoje os paraguaios na hora da verdade, que a hora do amor e do humor. Em guarani, e significa palavra e tambm significa alma. Quem mente a palavra, trai a alma. Se dou minha palavra, estou me dando. ***
Um sculo depois da guerra do Paraguai, um presidente do Chile deu sua palavra, e deu-se. Os avies cuspiam bombas sobre o palcio de governo, tambm metralhado pelas tropas de terra. Ele havia dito: Daqui eu no saio vivo. Na histria latino-americana, uma frase freqente. Foi pronunciada por vrios presidentes que depois saram vivos, para continuar pronunciando-a. Mas essa bala no mentiu. A bala de Salvador Allende no mentiu. Paradoxalmente, uma das principais avenidas de Santiago do Chile chama-se, ainda, Onze de Setembro. E no se chama assim pelas vtimas das Torres Gmeas de Nova York. No. Chama-se assim em homenagem aos verdugos da democracia no Chile. Com todo o respeito por esse pas que amo, atrevo-me a perguntar, por simples senso comum: no seria hora de mudar-lhe o nome? No seria hora de cham-la Avenida Salvador Allende, em homenagem dignidade da democracia e dignidade da palavra? ***
E atravessando a cordilheira, pergunto-me: por que ser que o Che Guevara, o argentino mais famoso de todos os tempos, o mais universal dos latino-americanos, tem o costume de continuar nascendo? Paradoxalmente, quanto mais manipulado, quanto mais trado, mais nasce. Ele o mais nascedor de todos. E pergunto-me: No ser porque ele dizia o que pensava e fazia o que dizia? No ser por isso que ele continua sendo to extraordinrio, neste mundo
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onde as palavras e os fatos muito raramente se encontram, e quando se encontram no se cumprimentam, porque no se reconhecem? ***
Os mapas da alma no tm fronteiras e eu sou patriota de vrias ptrias. Mas quero culminar este viagenzinha pelas terras da regio evocando um homem nascido, como eu, aqui pertinho. Paradoxalmente, ele morreu h um sculo e meio mas continua sendo meu compatriota mais perigoso. to perigoso que a ditadura militar do Uruguai no conseguiu encontrar nem uma nica frase sua que no fosse subversiva e teve que decorar com datas e nomes de batalhas o mausolu que erigiu para ofender sua memria. A ele, que se recusou a aceitar que nossa ptria grande se quebrasse em pedaos; a ele, que se recusou a aceitar que a independncia da Amrica fosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres, a ele, que foi o verdadeiro primeiro cidado ilustre da regio, dedico este ttulo, que recebo em seu nome. E termino com palavras que escrevi para ele algum tempo atrs: 1820, Paso del Boquern. Sem virar a cabea, voc afunda no exlio. Estou vendo, estou vendo voc: desliza o Paran com preguia de lagarto e ao longe se afasta flamejando seu poncho esfarrapado, ao trote do cavalo, e se perde na mata. Voc no diz adeus sua terra. Ela no iria acreditar. Ou talvez voc no sabe, ainda, que est indo para sempre. Acinzenta-se a paisagem. Voc est indo, vencido, e sua terra fica sem alento. Iro devolver-lhe a respirao os filhos que nasam dela, os amantes que a ela chegarem? Aqueles que dessa terra brotem, aqueles que nela entrem, far-se-o dignos de tristeza to funda? Sua terra. Nossa terra do sul. Voc ser muito necessrio para esta terra, Dom Jos. Cada vez que os cobiosos a firam e humilhem, cada vez que os tolos acreditem que est muda ou estril, voc far falta. Porque voc, Dom Jos Artigas, general dos simples, a melhor palavra que ela j disse. No dia 3 de julho (de 2008) os pases do Mercosul concederam a Eduardo Galeano o ttulo de primeiro Cidado Ilustre da regio. Estas foram suas palavras de agradecimento. Redao - Carta Maior
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_____________________________________PARA COMEAR A CONVERSA
Hoje, talvez mais do que nunca, a exaltao da vida est sendo utilizada
como princpio orientador das diversas atividades humanas, produzindo isto
que chamamos de mundo contemporneo. No podemos mais conceber
tal mundo sem levar em conta os vrios atravessamentos que constituem
esse processo de produo de realidade. Transitoriedade, excesso, crises,
paradoxos, transformaes. Estes so apenas alguns dos elementos que
caracterizam esse perodo em que nos encontramos e a defesa da vida
o que parece apaziguar os efeitos, muitas vezes incmodos, da
complexidade de tais fenmenos. Uma expresso clara desse nosso
momento que mesmo diante da crise generalizada de sentidos que
expliquem o mundo em que vivemos ao mesmo tempo em que os universos
dos significados so abalados, urge a necessidade de se compreender o
presente e, para tanto, atribuir-lhe algum sentido. atravs desses processos
de subjetivao, das formas de significao das experincias cotidianas,
que vo se constituindo os modos de existncia atuais, simultaneamente
produtos e produtores de realidade.
Dentre os efeitos dos modos de vida ditos modernos, encontra-se a ampla
sensao de insegurana gerada pela instabilidade tornada uma constante.
aqui que o sistema de produo capitalista em sua atual configurao se
efetiva, criando e operando valores que tentam preencher o vazio deixado
pela velocidade das transformaes do real. O engendramento das
configuraes do mundo expanso do sistema econmico capitalista e
aos modos de produo da existncia nos indica que a complexidade das
mltiplas relaes que so estabelecidas permeia qualquer tipo de relao
humana. a partir desse entrelaamento que percebemos a capitalizao
das formas de vida produtora e reprodutora de sentidos, em um processo
contnuo de captura das foras criativas, mobilizando-as de acordo com
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finalidades especficas, em geral, afinadas com os interesses de quem est
em condio de obter algum proveito dos acontecimentos atuais.
assim que, em nome da vida, se constrangem os corpos. E tambm
vida que se recorre para se contrapor aos constrangimentos. Apontam-se
culpados, mas ainda assim estamos longe da possibilidade de achar
solues para as problemticas que surgem. No se sabe o que nem onde
est o perigo porque tambm as ameaas so fluidas. A busca por
segurana uma das maiores preocupaes atuais. Os medos so os mais
variados: guerras, terrorismo, desemprego, roubos, abusos policiais, impostos,
doenas, fome, desequilbrios da natureza, avanos tecnolgicos, etc.
Vive-se ento na produo e reproduo de uma cultura que instiga o
medo e que tenta vender solues ineficazes, mas ainda assim procuradas
incessantemente.
por tambm nos encontrarmos mergulhados nesse contexto de
insegurana e supervalorizao da vida que propusemos uma anlise
sobre as funes da polcia nos modos de existncia contemporneos. A
princpio, partimos da compreenso da polcia como uma instituio
oficialmente encarregada de zelar pela to aclamada segurana pblica.
No entanto, mais que o mero papel institucional de uma organizao, ficou
evidente que o que realmente nos interessa neste trabalho so os
transbordamentos que constituem os mapas sem fronteiras que a polcia
ocupa. E que ocupam a polcia. O que tentamos, talvez mais que explicar,
foi acompanhar o funcionamento e os efeitos desse mecanismo que
visivelmente se encontra muito alm de um simples aparelho de Estado.
atravs de inmeros processos e atravessamentos que a noo de polcia
toma tal configurao institucional e que nossas existncias so configuradas
como policiais da vida dos outros e de ns mesmos.
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Entendemos que vivemos em uma poca em que o prprio Estado Moderno
j no funciona mais do mesmo modo e com os mesmos mecanismos
utilizados quando de sua formao. As populaes, cada vez maiores, no
so mais governadas somente atravs do autoritarismo aliado ao uso
indiscriminado da fora fsica, mas tambm atravs de dispositivos muito
mais sutis que garantem um maior controle, em geral por instigar uma
espcie de autocontrole relativamente controlado. Curiosamente a polcia
aparece nesse cenrio sendo utilizada para as mais variadas funes, quase
sempre paradoxais, quase sempre ineficazes, algumas vezes ditas como
necessrias. A noo de polcia e seus diversos usos ao longo do tempo
fazem bastantes sentidos quando situamos a utilizao inicial do termo
enquanto uma tcnica de governo da vida. So nesses sentidos que as
contribuies de Foucault so fundamentais quando afirmam que podemos
buscar na histria indicaes para tentar entender o presente e, se for o
caso, dar sentido ao que no parece ter sentido algum, mesmo que seja um
sentido refutvel.
Quando nos deparamos com preocupaes que nos levam a pensar sobre
os sentidos possveis da realidade que vivemos, no convm deixar de lado
a indissociabilidade das prticas a que esto relacionadas essas questes.
At porque, de fato, estamos tratando de atividades de produo de
sentidos. As mais diversas atividades cotidianas incluem no s a significao
de prticas como tambm participao nas prticas que se pretende
significar ou, no nosso caso, analisar. Paul Veyne (1998) chama a ateno
para a nfase dada por Foucault s prticas, que nada mais so do que as
atividades das pessoas. Isso porque se fundamenta na idia de que o objeto
de qualquer anlise sempre proveniente de prticas. No h uma noo
anterior que as defina, posto que as anlises apenas podem ser realizadas a
partir das prticas provenientes de mudanas histricas. Caso contrrio,
estaramos caindo em uma ideologizao, entendendo os objetos como
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naturais, eternos e indiscutivelmente necessrios1. Essa relao de
anterioridade das prticas fica mais visvel quando, em virtude da inegvel
constatao de que as pessoas freqentemente agem sem estar cientes do
que as impeliu a agir deste ou daquele modo, deixamos de lado a iluso de
uma escolha racional atravs da qual uma mentalidade poderia determinar
as atividades humanas. E isto fica mais claro ainda diante da dificuldade
que se apresenta quando, por exemplo, tentamos entender a polcia a partir
de uma mentalidade que funciona como centro de comando das aes
policiais, ao invs de procurar entend-la a partir das prticas que a
constituem e lhe do existncia. Inclusive porque, como ainda nos diz Paul
Veyne, se tentamos explicar as prticas atravs de crenas, como se
poderia ento explicar tais crenas? por isso que Foucault indica as
prticas para se pensar a histria e tambm por isso que enfatizamos as
prticas e os discursos (tambm entendidos como prticas) para realizar
estas anlises.
Diante das possveis confuses acerca do uso do termo polcia, convm
fazermos uma distino entre aquilo que poderamos chamar de
subjetividade policial (nos referimos aos modos de ser daqueles que
ocupam os cargos da polcia, sobretudo marcando as implicaes do
exerccio de uma funo oficialmente legitimada pelo Estado) e um modo
de subjetivao contemporneo policialesco. Embora as subjetividades
contemporneas no se separem das subjetividades policiais, estando a
todo tempo misturadas, entrelaadas, constituindo-se simultaneamente,
importante dar ateno ao fato de que as funes policiais dizem respeito
s atitudes assumidas em algum momento por qualquer um de ns, sem
relao direta com a profisso policial.
1 Por esse motivo no nos convm o uso do termo ideologia neste trabalho. Concordamos com Guattari & Rolnik (1986) que prefervel falar em subjetivao e produo de subjetividade por entender que se trata de uma natureza subjetiva que maqunica, ou seja, fabricada, modelada ao invs de uma natureza humana predefinida a qual comumente remete o termo ideologia.
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Tambm tentando dar sentido ao que vemos e estamos tentando
compreender/analisar, acreditamos que estamos vivendo em uma poca e
em uma sociedade em que o poder sobre a humanidade exercido atravs
do poder sobre a vida biolgica dos indivduos, principalmente enquanto
populaes. Segundo Foucault (2002), a partir da segunda metade do
sculo XVIII surge uma nova tecnologia de poder dirigida aos homens
enquanto multiplicidade. Tecnologia diferente daquela utilizada
anteriormente no modelo de soberania, que se voltava principalmente para
os corpos individualizados. A nova tcnica de poder, chamada de
biopoltica, lida com a regulamentao da populao ainda com a
finalidade de maximizao e extrao das foras dos corpos. No modelo de
poder soberano, o direito sobre a vida e a morte consistia no direito de fazer
morrer e deixar viver, visto que se obtinha o poder sobre as vidas atravs do
poder de matar. No modelo do biopoder as tecnologias de poder passam a
utilizar o direito de fazer viver e deixar morrer atravs da regulamentao
dos processos biolgicos e da desqualificao progressiva da morte. O que
Foucault (2002) chama de racismo de Estado, o qual se apia em uma
teoria evolucionista, o meio encontrado para estabelecer uma distino
entre aquele que deve viver e aquele que deve morrer. Em uma sociedade
em que cada vez mais prevalece o domnio sobre a vida, tal como prefigura
o biopoder, esse tipo de racismo a justificativa para tirar a vida ou expor
morte alguns grupos. A criminalizao e as guerras so exemplos disto.
O que entendemos por polcia hoje, segundo Foucault (1995), seria
simultaneamente um aparelho disciplinar e um aparelho de Estado, que
articula mecanismos disciplinadores dos corpos e regulamentadores da
populao. Procurar saber quais atravessamentos constituram (e
constituem) o que comumente se entende por polcia torna-se ento
fundamental para tentar pensar as atuais preocupaes com a vida, a
violncia, a insegurana pblica, a utilizao e o sistemtico apelo ao uso
da fora policial e, enfim, com a forma como governamos e temos sido
governados.
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Somamos a essas questes o fato de todos estarmos suscetveis a alguma
situao de violncia, no apenas por ser um problema do contemporneo
como faz supor o sensacionalismo miditico, mas por ser uma possibilidade
inerente a qualquer relao social, visto que so tambm relaes de fora
mergulhadas em um plano virtual. Pensar a (in)segurana pblica ganhou
um interesse especial quando tivemos a oportunidade de vivenciar
diretamente o cotidiano de um estabelecimento2 policial. Contato este
possibilitado pelo ingresso, aps concurso pblico, no quadro de funcionrios
da polcia civil de Sergipe como agente de polcia judiciria. Anlises com
este nvel de envolvimento tornam-se ainda mais interessantes e at
bastante teis. Podem ser usadas como instrumentos para evidenciar os
discursos e prticas, muitas vezes paradoxais, no apenas da instituio em
questo, como tambm dos modos de subjetivao atuais. Ademais, sem
cair em um utilitarismo, acreditamos que a psicologia, enquanto campo de
pesquisa de processos de subjetivao e enquanto campo de interveno
institucional, deve se servir de anlises desse tipo e mesmo com este tipo de
implicao, para pensar sua sustentao e utilidade nos diversos universos
em que est inserida ou busca sua insero.
Dito isto, faz-se importante afirmar, mesmo que j esteja subtendido, nosso
total envolvimento com o tema a ser analisado. Implicao essa que no se
restringe ao envolvimento direto com tal aparelho de Estado, mas tambm
ao fato de que independente de ser membro dessa corporao, vivemos e
2 Aqui vale apontar a distino entre estabelecimentos e instituies utilizada no mbito da Anlise Institucional. De acordo com Lapassade (1977), em um ponto de vista tpico do sistema social, os estabelecimentos estariam mais prximos das organizaes, relacionando-se a uma dimenso mais visvel, concreta, como uma escola, uma empresa, etc e as instituies se apresentariam em um nvel jurdico-poltico. Tal distino serve tambm para determinar nveis para a anlise institucional, no entanto ressalta que o sistema institucional ultrapassa essas significaes. Sobre esse assunto discorreremos com mais detalhes oportunamente.
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estamos expostos a condies de vida no mundo contemporneo que so
semelhantes as de qualquer um que esteja exercendo qualquer outra
funo social, seja como policial, psiclogo, jornalista, operrio, turista, me,
etc. O que talvez seja mais importante ressaltar o nvel de exposio e
afetao em certas situaes, o que neste caso apostamos que conta a
favor da perspectiva de uma pesquisa mais prxima do campo de estudo.
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Levando-se em conta as especificidades desta pesquisa, utilizaremos
tambm a perspectiva da Anlise Institucional como eixo norteador das
anlises pretendidas. Em especial faremos uso da anlise de implicaes
como instrumento, visto que sero indispensveis os questionamentos sobre a
posio do pesquisador frente produo de conhecimento e da
realidade, inclusive porque as anlises partiro da experincia pessoal deste.
Acreditamos na anlise das implicaes como uma restaurao de um elo
perdido. Como uma busca de viver a inseparabilidade entre ns e o mundo
que teimamos em conhecer. Aqui, gostaramos de deixar claro que
pensamos em uma metodologia para ser utilizada nesse trabalho de anlise,
sem a pretenso de aplicar modelos e tcnicas padres, por mais modernos
que estes sejam. Entendemos que, assim como os objetos de estudo j no
podem mais ser pensados como categorias estanques, tambm os
instrumentos utilizados para lidar com tais objetos devem ser maleveis a
ponto de serem modificados e construdos durante o processo. Se h algum
objetivo/utilidade a ser alcanado em uma pesquisa que os sentidos
produzidos sirvam para pensar, e a partir da serem utilizados, distorcidos e
at mesmo recusados.
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Sabe-se que a pesquisa-ao3, mesmo tentando afastar-se do modelo
positivista, ainda permanece com carter utilitarista, colocando o
pesquisador como agente de mudanas voltado para modificao de
comportamentos afinados com certo ordenamento social. Conforme
aponta Benevides (2007), a pesquisa-interveno surge, no para substituir a
ao, mas como contestao da perspectiva conscientizadora e
adaptacionista da pesquisa-ao, no intuito de produzir outra relao entre
teoria e prtica, sujeito e objeto. Essa crtica da pesquisa-ao foi
impulsionada pelo movimento institucionalista a partir da dcada de 1960.
Esse movimento recebeu influncias da psicanlise e de movimentos
poltico-sociais, em especial, da corrente da Anlise Institucional
desenvolvida na Frana naquele perodo. A idia de interveno passa
ento a relacionar a ao da pesquisa ao questionamento dos territrios
institudos, a fim de provocar a constituio de novas instituies. A questo
da implicao do pesquisador, j trazida pela pesquisa-ao, ganha ento
nova configurao. Ciente da impossibilidade do pesquisador se manter fora
do campo de pesquisa busca-se, no a neutralizao de suas implicaes,
mas uma anlise de tais implicaes, posto que se trata de parte
indissocivel do processo de pesquisa. Tenta-se, portanto, escapar da
dicotomia em que sujeito do conhecimento se separa do objeto a ser
conhecido que at ento orientava as prticas de pesquisa, para se situar
em uma perspectiva que inclui sujeito e objeto como resultantes de um
mesmo processo.
Faz-se necessrio lembrar - como j tnhamos afirmado antes - que, embora
usualmente identificado com estabelecimentos e organizaes, o termo
instituio est sendo utilizado aqui em um sentido conceitual reconstrudo a
partir da perspectiva da Anlise Institucional, referindo-se a um processo de
produo constante em que esto em jogo foras instituntes e os produtos
3 Modalidade de pesquisa desenvolvida por Kurt Lewin que contribuiu para diversas correntes de pesquisa posteriores. A pesquisa-ao tenta articular teoria e prtica, levando-se em conta a participao do pesquisador e visando a otimizao do funcionamento social.
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j cristalizados deste processo. Segundo Lourau (1975), as instituies seriam
algo como rvores de ordenamento lgico da organizao social que
regulariam as atividades humanas. So normas, mas tambm incluem a
concordncia, ou no, de participar dessas normas. A instituio no um
nvel da organizao social (regras, leis) que atua a partir do exterior para
regular a vida dos grupos ou as condutas dos indivduos; atravessa todos os
nveis dos conjuntos humanos e faz parte da estrutura simblica do grupo, do
indivduo (LOURAU, 2004). Ou seja, so [...] certas formas de relaes
sociais, tomadas como gerais, que se instrumentam nas organizaes e nas
tcnicas, sendo nelas produzidas, re-produzidas, transformadas e/ou
subvertidas. (RODRIGUES; SOUZA, 1987) Essas mesmas autoras nos
esclarecem ainda que a anlise dessas instrumentaes (anlise de
implicaes) se refere anlise dos vnculos (afetivos, profissionais e polticos)
com as instituies que estariam em anlise em determinada organizao
ou mesmo com todo o sistema institucional. Deste modo, trabalhar com tal
perspectiva institucionalista exige a anlise permanente das implicaes do
pesquisador na interveno, inclusive para desnaturalizar especialismos
profissionais institudos. Se no, como algum poderia pretender colocar
instituies em anlise sem se questionar acerca de seu prprio lugar no
sistema institucional?
Visando dar consistncia a uma metodologia cujas intervenes fujam da
pretenso de usar instrumentos para obter o mximo de dados que
possibilitariam uma apreenso fiel da realidade, a utilizao do conceito de
analisador4 tambm se tornou bastante til como ferramenta de construo,
utilizao e anlise de instrumentos e instituies no decorrer do nosso
trabalho.
4 Por analisador pode-se entender tudo aquilo que mesmo no sendo previamente considerado como tal quer seja construdo, quer seja um fato histrico possa servir para por algo em anlise. Sendo assim, podem ser qualificados como analisadores, por exemplo: situaes histricas, discursos, hbitos, construes arquitetnicas, os prprios pesquisadores ou qualquer fato do cotidiano.
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A proposta de multi-referencialidade da Anlise Institucional vem a calhar
com os nossos propsitos tambm pelo fato de que lida com o [...] apelo a
diferentes mtodos e ao uso de certos conceitos j existentes, a fim de
construir um novo campo de coerncia [...] (LOURAU, 1993). E tambm
porque trabalha com as contradies5 existentes nas instituies, as quais
mostram diferentes formas de pensar e agir. Alm disso, enfatiza a
importncia da libido e dos afetos nas implicaes do pesquisador durante a
construo de novos campos de coerncia ao tempo em que se afasta da
pretenso de uma neutralidade cientfica.
A despeito da pretenso, talvez ingnua, de explicar fatos to complexos -
como os que tentamos a todo o momento delimitar como campo de nossa
pesquisa - sob a luz de um sistema terico especfico, buscamos antes de
qualquer coisa, colocar em questo as totalizaes e/ou centralizaes que
qualquer viso de mundo possa apresentar. Com isso, no queremos dizer
que no poderemos dispor de instrumentos tericos formulados em termos
gerais, mas que estes, ao serem utilizados aqui, jamais sero tomados como
absolutos e universais, inclusive porque o prprio uso implicar em sua
possvel reformulao.
Em nosso percurso - balizado por temas como segurana, insegurana,
polcia, governo, violncia, vida - inevitavelmente nos deparamos com a
histria. No pretendemos que esse encontro se torne um critrio de
julgamento dos fatos atuais, nem que ocorra o inverso. Pensar essas
questes, no pressupe nenhuma obrigatoriedade de enquadr-las sob
determinada tica nem de seguir, ou no, determinada tradio, muito
menos servir a algum propsito predeterminado. Mesmo que isto seja
efetivamente possvel, mais parece perda de tempo. O interesse aqui ,
acima de tudo, levantar questes e problematiz-las, assinalando o
emaranhado de foras que as constituem sem deixar que se perca a o que
5 Embora a Anlise Institucional trabalhe com contradies, preferimos o uso da noo de paradoxo, pois no pretendemos recorrer a uma concepo dialtica da realidade a qual nos remete o termo contradio.
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h de singular. visualizar efeitos de acontecimentos que so apontados
pela histria, assim como pela cincia, poltica, arte, filosofia, assim como
tambm pelos jornais, conversas informais e vivncias cotidianas. S ento
faz sentido pensar em propsitos e utilidades. No queremos mais
julgamentos e condenaes. Queremos olhar e fazer histrias como
verdadeiros aprendizes, como guerreiros infames da Verdade. No como
juzes, donos da verdade, mas como aqueles que com sabedoria escolhem
seus prprios caminhos. Caminhos onde as verdades falam por ns, porque
esto em ns, ou melhor, so ns mesmos. Por isso, tambm no podemos
deixar de pr na mesa das implicaes os interesses e expectativas de que
tal estudo possa servir para pensar ou mesmo para orientar prticas que
envolvam modos de vida menos autoritrios e violentos, evidentemente sem
escorregar na iluso da paz universal.
Como nos diz Foucault (1997), trata-se de pr em questo snteses
acabadas, agrupamentos aceitos de antemo e j familiares, unidades que
se impem de modo mais imediato. Esses so grandes tipos de discursos, so
conjuntos de enunciados que se tornam individualidades histricas, mas no
passam de princpios de classificao, regras normativas, tipos
institucionalizados que no tm caracteres universalmente reconhecveis.
Portanto, so discursos que merecem ser analisados ao lado de outros com
quem mantm relaes complexas, de modo que se aceite os conjuntos
propostos para desfaz-los e recomp-los legitimamente de forma no
arbitrria. Ou seja, afirmando-os, negando-os ou reformulando-os a partir de
decises controladas e depois de se saber que relaes esto em jogo,
definindo claramente as condies em que so formadas tais unidades.
Para tanto, esse autor e companheiro de trabalho enfatiza que preciso
debruar-se sobre a descontinuidade, sobre os acontecimentos dispersos a
partir dos quais se pode pensar em conjuntos e unidades. As regularidades
so concebidas sempre como um recorte provisrio.
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24
O carter desestabilizador do tipo de anlise proposta por Foucault fica
especialmente evidente ao se tentar trabalhar com uma metodologia de
pesquisa que no se aceita a priori como modelo, tal como foi nossa
pretenso aqui. Segundo ele, h como que uma repugnncia e uma
dificuldade em [...] desintegrar a forma tranqilizadora do idntico [...]
(FOUCAULT, 1997, p. 14). Em suas palavras, [...] como se tivssemos medo
de pensar o outro no tempo de nosso prprio pensamento (FOUCAULT,
1997, p. 14) e a razo que a continuidade histrica, na medida em que
est intimamente ligada funo fundadora do sujeito, se torna a promessa
de que este pode se apropriar de tudo o que foi disperso pela diferena
atravs da soberania da conscincia. Estamos enfrentando medos e antigas
certezas, acadmicas e mundanas, e a instabilidade tem se revelado uma
grande aliada.
Assumimos os riscos e dificuldades que se colocam nessa espcie de
mosaico metodolgico tentando, inicialmente, reconfigurar as ferramentas
da Anlise Institucional e de uma certa metodologia foucaultiana.
Continuamos reconfigurando-as no decorrer desse estudo com a cautela
necessria para se manter um nvel de coerncia com os propsitos de tal
pesquisa. em virtude de tais propsitos, afinados com esses norteadores
terico-metodolgicos, que utilizamos e reorganizamos informaes de
fontes diversas. Tratamo-las, em primeiro lugar, como uma populao de
acontecimentos que serviram de analisadores dentro de um campo
amplo, mas delimitado, no intuito de evidenciar as relaes possveis que
permeiam os recortes temticos que nos interessam (polcia, vida, governo,
etc.). Para tanto, lanamos mo de algumas fontes tericas que nos
acompanharam, foram sugeridas ou encontramos nesse percurso.
Utilizamos tambm algumas informaes disponibilizadas por agncias de
informao miditica e por rgos oficiais do governo do Estado, em
especial, mas no exclusivamente, da Secretaria Nacional de Segurana.
No nos apoiamos em dados estatsticos, por opo. E porque as evidncias
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25
que buscamos so mais da intensidade dos sentidos que das quantificaes
dos acontecimentos6.
Pretendamos utilizar documentos de arquivos oficiais dos rgos de
Segurana Pblica de Sergipe, tais como: relatrios, correspondncias,
ofcios e leis em que pudessem ser encontradas referncias acerca das
atividades policiais desempenhadas na sociedade e no Estado sergipano.
No entanto, os obstculos que surgiram e os poucos documentos oficiais
encontrados nos fizeram mudar o rumo da pesquisa, redefinindo estratgias
e instrumentos. Somando-se s foras dos acontecimentos, as dificuldades e
inconstncias prprias dos objetos que se recusam a ser objeto serviram
para reorganizar nosso campo de pesquisa, reformulando-o com uma forma
menos quadrada, impossvel de delimitar suas fronteiras, a menos que por
alguns instantes e atravs de certas conexes.
Eis ento que sobressaindo ao impossvel de ser pesquisado, outros
acontecimentos ganharam fora e vida prpria: a variedade de discursos
informais presentes na mdia e nas conversas cotidianas da populao;
textos literrios; msicas; poesias; contos de terror e de fadas; histrias em
quadrinhos; filmes de grande circulao e outros nem tanto assim; eventos
acadmicos, culturais, festivos e etc. Foram esses dados acontecidos e
experimentados, e nem tanto buscados, que tomaram o lugar do que se
pretendeu pesquisar e se constituram como objeto de anlise. Foram
experincias vivenciadas enquanto pesquisador do mundo, enquanto ser no
mundo e enquanto membro de uma organizao policial, com a aspirao
de que tenha havido liberdade e coragem suficientes para as necessrias
anlises de implicao. Algumas dessas experincias foram relatadas em um
tipo de dirio de campo rememorado. Gostaramos que essas experincias
6 O termo acontecimento bastante utilizado por Foucault geralmente em relao com as noes de atualidade e crtica, para referir-se irrupo de singularidades, ruptura de continuidades. Em Nietzsche a Genealogia e a Histria Foucault (1990) afirma que o corpo a superfcie de inscrio dos acontecimentos, que so marcados pela linguagem e dissolvidos pelas idias.
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estivessem mais presentes no texto, mas o prazo implacvel estipulado pelas
agncias acadmicas reguladoras, desconsiderando a intempestividade do
processo de escrita, no nos permitiu tanto. Lembramos aqui, que com esses
dados no se tem a pretenso de chegar a fontes mais verdadeiras que
outras, mas apenas esboar a variedade de discursos que esto circulando
e as suas relaes com as prticas sociais que lhes so inerentes.
A respeito do dirio de campo como uma escrita fora texto, ou seja, fora
dos textos institucionais acadmico-cientficos, sabe-se que at hoje essa
escrita, em muitas pesquisas, tem sido preterida em relao ao texto oficial,
havendo uma grande distncia temporal nas suas publicaes. No entanto,
esse um material indiscutivelmente rico das pesquisas que entre outras
caractersticas permite o conhecimento da vivncia cotidiana do campo,
uma melhor compreenso das condies de produo intelectual e,
portanto, das condies de emergncia dos dados da pesquisa, evitando
assim a iluso em torno da cientificidade-neutralidade dessa produo. O
uso de um dirio como dispositivo serve tambm para revelar as implicaes
do pesquisador frente a sua produo cientfica (LOURAU, 1993). O que
tentamos nesse trabalho, ou melhor, o que esse trabalho fez conosco foi
apagar a linha que supostamente coloca o dirio de campo e de
experincias fora do texto oficial.
***
Indicados de antemo algumas das implicaes presentes nesse trabalho e
o esboo de uma metodologia que foi construda efetivamente medida
que foi sendo utilizada, comeamos em um primeiro captulo percorrendo
algumas questes explicitamente contemporneas e especialmente
relacionadas aos temas: segurana, vida e polcia. Questes essas suscitadas
por vivncias cotidianas que evidenciam o jogo das relaes estabelecidas
em uma sociedade cujo eixo central parece ser cada vez mais a valorizao
da vida. Tal princpio decorre e serve de argumento para as mais diversas
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prticas, definindo os modos de existncia que vemos atualmente. A polcia
aparece neste cenrio como um dispositivo de segurana em que esto
presentes determinadas estratgias de saber e de poder. Inicialmente
contextualizada na situao scio-poltica do Brasil, a emergncia da
instituio policial e seus mecanismos no nosso pas tambm situada
historicamente em relao aos modelos de sociedade de soberania e de
sociedade disciplinar indicados por Michel Foucault a partir do estudo de
algumas sociedades europias. Tais anlises sobre a emergncia da polcia
apontam ainda para suas estreitas ligaes com a formao do Estado
Moderno, de modo que ela aparece como um dos principais instrumentos
de interveno estatal, atravs do uso legtimo da fora fsica no governo
das vidas.
No segundo captulo h um mergulho um pouco mais profundo na vida,
para compreender que vida esta que est sendo investida pelo poder
como objeto de governo. Que vidas so consideradas matveis e quais
vidas esto sendo defendidas? Para isso, diferenciamos a vida biolgica das
formas de vida qualificadas. Diferenciamos a vida de fato e a vida de direito.
Analisando simultaneamente como o Estado defensor da vida, no papel de
mediador, age em um paradigma de exceo que lhe permite matar em
nome dessa vida. Nesse mesmo processo tambm so produzidos tipos de
vidas normais atravs de um modelo jurdico das existncias. A cultura do
medo aparece como um importante fator na constituio dos sujeitos e
aparece intimamente ligada exploso dos mecanismos de segurana. O
controle se traveste de cuidado com o outro e a polcia cuida das vidas na
gesto lei e das ilegalidades.
Por fim, no terceiro captulo, nos encontramos com um olhar controlador que
vigia a todos cada vez mais com apoio do desenvolvimento tecnolgico.
Esse olhar policial aparece em todas as esferas da vida junto com os
mecanismos de segurana e constituem modos de existncia policialescos.
A polcia analisada como uma tcnica de governo de vidas que culmina
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em um policiamento da prpria vida e que expressa a forma como
aceitamos ser governados e como nos governamos atualmente. Neste
mundo policiado os fluxos de utopias ativas surgem alimentando as
alternativas crticas que se recusam a viver, governar e ser governado desse
modo extremamente controlado.
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_________________________________________A DEFESA DA
VIDA
Use a proteo residente Da mesma maneira que na vida real, a melhor
proteo contra os vrus a preveno. Proteja-se agora! A Proteo residente pode ser ativada no cone com o smbolo do avast!.7
O demorado funcionamento do computador, reiniciado aps a instalao
do Avast antivrus, lembrou de imediato o porqu da anterior desinstalao
deste tipo de programa em uma mquina antiga cujo uso se faz quase que
exclusivamente para armazenar e digitar arquivos de texto. Irritantes
segundos que pareciam longos minutos. Acompanhada pelo cigarro, aceso
no intuito de aplacar a ansiedade, a leitura desta dica para novos usurios
remeteu s reflexes sobre segurana e os nossos modos de vida atuais,
tema absolutamente central nesse estudo. Mais um mecanismo de
segurana, como se no bastasse a infinidade de dispositivos com que nos
deparamos, seja solicitando, exigindo e at mesmo sendo obrigados a utilizar
nas atividades aparentemente mais simples do cotidiano, como sair de casa
e ir ao supermercado do bairro, por exemplo.
Tranca-se bem a porta de casa, guarda-se o dinheiro/cheque/carto em
algum lugar seguro e no visvel para no chamar a ateno. Acreditando
estar em um horrio seguro para sair rua, procura-se um caminho bem
movimentado e iluminado, olha-se para todos que passam evitando
aproximao daqueles de aparncia suspeita, anda-se ligeiro, chega-se ao
supermercado. Segurana privada na porta de entrada, cmeras filmando,
fiscais no interior do estabelecimento. Sem sacolas para lacrar, a entrada
fica mais tranqila. No caixa, nos pedem a carteira de identidade para
comparar aos dados do carto, mas esta ficou em casa junto com outros
documentos como forma de prevenir futuros aborrecimentos. No entanto, o
7 Contedo da pgina de ajuda ao usurio do Avast antivrus (Alwil software).
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aborrecimento no deixou de comparecer na demora e desconfiana do
funcionrio do caixa para liberar as pequenas compras. J de volta casa,
junto com o computador criado para facilitar nossas vidas e possibilitar o
trabalho no conforto do lar, mais dispositivos de segurana. Como
conseguimos viver com tantas parafernlias emperrando o desenrolar das
nossas atividades mais banais? nesse clima de insegurana e com estes
infindveis mecanismos para aplac-la, como ns do mundo ocidental
moderno vivemos atualmente. Ou melhor, como sobrevivemos.
A problemtica que surge como parte de nossas experincias nos coloca de
encontro com a necessidade que se impe de uma conscincia histrica
da situao presente. Mais para conhecer as condies que motivam
nossa conceituao dos problemas a serem tratados, que para fundar uma
teoria do objeto, o que pressuporia uma objetivao prvia que no
poderia se afirmar como base para um trabalho analtico (FOUCAULT, 1995)
Com os dados histricos que pretendemos lanar mo, no pretendemos
buscar uma origem dos problemas relativos segurana, como em um
esforo de reconhecer e revelar a verdadeira identidade desse objeto
atravs da tentativa de reconstituio de uma grande continuidade
histrica. O sentido histrico nos interessa aqui quando escapa da metafsica
e reintroduz no devir tudo que se acreditava incontestvel. J afastados da
idia de uma origem natural, o que poderamos pretender encontrar no
comeo histrico seria mais da ordem do acaso, dos acontecimentos, que
de uma inteno prvia. apostando na idia de fazer uso genealgico da
histria que Foucault (1990) recorre s consideraes de Nietzsche sobre os
termos utilizados para designar origem, os quais remetem a sentidos
diferentes e at opostos, embora sejam empregados como similares. Por isso,
assinalar as particularidades do uso de tais termos e assim falar em
provenincia, enquanto marca das diferenas, singularidades que
possibilitam ordenao e, portanto, no funda categorias de semelhanas,
mas mostra a heterogeneidade de tais categorias. Por isso, falar de
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emergncia, como um ponto de surgimento marcando a entrada em cena
de um jogo de foras, de um afrontamento no qual se pode notar a
singularidade dos acontecimentos histricos.
Voltamo-nos para a histria, a princpio, atentando para as anlises a partir
das quais se pode notar a emergncia disto que Foucault chama de
dispositivos de segurana8 e dos quais ouvimos falar com freqncia em
casa, na escola, no noticirio, no botequim, etc. Sabe-se que estes
dispositivos, longe de originarem-se de uma racionalidade (embora estejam
ligados a alguma) devem-se mais s transformaes nas tecnologias de
poder que ocorreram ao longo destes ltimos sculos. Resultaram em uma
exploso de tcnicas diversas e numerosas de sujeio dos corpos e controle
da populao, que marca a era de um biopoder, de uma modalidade de
poder que passou a preponderar a partir do sculo XIX (FOUCAULT, 2002).
Essa nova modalidade do poder que passa a investir sobre a vida biolgica
do ser humano, se inclina para uma espcie de estatizao do biolgico e
assume a funo de gerir a vida. No que a vida j no fosse alvo de
ateno no modelo de poder soberano que prevaleceu at o sculo XVIII,
mas a questo fundamental que a partir de ento ela deixou de ser
administrada pelo soberano pelo direito de matar, o que j revelava
assimetria no poder sobre a vida. Eis ento que ao velho direito soberano de
deixar viver ou fazer morrer, vem se juntar o direito de fazer viver ou deixar
morrer, caracterstico desta nova modalidade de poder que vem se
estabelecer.
J a partir de meados do sculo XVIII, aparece no cenrio a biopoltica, uma
nova tecnologia de poder mais complexa e que foi tornada possvel pelas
tcnicas disciplinares que predominavam at o momento. O surgimento
8 Foucault (1990, p. 244) entende por dispositivo, um conjunto heterogneo de elementos do dito e no dito que engloba discursos, instituies, organizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas, morais, filantrpicas com uma funo estratgica de responder a uma urgncia em dado momento histrico.
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dessa nova tecnologia de poder no suprime as tcnicas anteriores.
Atuando em nveis diferentes, acabam se sobrepondo e articulando-se estas
de modo a continuar maximizando e extraindo as foras dos homens. A
antomo-poltica dirige-se aos homens enquanto corpos individuais,
operando atravs de tcnicas disciplinares que separam, alinham, colocam
em srie e em vigilncia, a multiplicidade de corpos. J a biopoltica vai se
dirigir ao homem-espcie, centrando suas tcnicas na subtrao de foras
da populao, enquanto fenmenos de massa. Assim, vemos se estruturar
todo um campo de interveno do poder pela colocao dos processos de
vida, morte, produo, doena da populao e etc. como objetos de saber
e alvos de controle biopolticos. Aqui tambm se inscrevem a medicina, a
higiene pblica e a regulamentao da vida atravs da interveno no
nvel dos fenmenos coletivos, aleatrios e imprevisveis, aliada
disciplinarizao dos corpos. O biopoder uma modalidade de poder que
se incumbiu do corpo e da vida, talvez pela inoperncia da modalidade de
poder soberano na regncia do corpo econmico e poltico de uma
sociedade em processo de exploso demogrfica e de industrializao.
A (In)segurana Pblica
Praa da S, centro de So Paulo, maio de 2007. Show do grupo de rap
Racionais MCs na Virada Cultural (evento que reuniu vrios gneros de
artistas de diversas partes do Brasil). No dia seguinte, o confronto entre
policiais e o pblico tornou-se um dos principais assuntos da semana nos
meios de comunicao e nas conversas de esquina de quase todo o pas. O
que aconteceu ningum sabia explicar ao certo, mas chovia opinies e
indignao com a to temida violncia, to amplamente exposta nos meios
de comunicao atravs de imagens que espetacularizam os modos de
vida. O terror, produzido e lembrado diariamente nos noticirios. Mais um
grande espetculo que incita diversas reflexes sobre a causa da violncia e
as formas de cont-la. Atribui-se os fatos ao Rap, massa de jovens pobres
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que compe grande parte do pblico do show, s atitudes excessivas dos
policiais. Procuram-se culpados, procuram-se solues. E, enquanto as
informaes circulam, aumenta a sensao de insegurana desencadeada
por uma situao que aconteceu a quilmetros de distncia, mas que
chegou aos lares aparentemente seguros, atravs de uma caixa luminosa.
Rap nacional: Heri ou vilo? Um debate na MTV emitido alguns dias aps o
episdio juntou dois rappers que atuam de modos diferentes, um
representante de um site especializado, um crtico musical, um jornalista da
grande mdia e um coronel da PM. Dentre os discursos que circundavam o
tema surgiram questes sobre a incitao da violncia pelas letras do rap,
opinio essa defendida pelo jornalista presente que se justifica citando um
trecho de uma msica do Racionais MCs: eu no confio na polcia raa do
caralho9. Esse mesmo jornalista acrescenta que a realidade de que os
rappers falam como sendo do cotidiano em que surgiram no eram
reportadas pela grande mdia, pois os prprios grupos so bairristas, dirigindo
suas msicas para o pblico jovem e negro. A esse respeito, o rapper
integrante do Racionais MCs afirmava que no s no tinham a inteno
de chegar mdia, pois j chegam no pblico que pretendem alcanar (os
prprios jovens negros da periferia) como no tm inteno de incitar a
violncia. Se suas letras falam desse assunto porque ela (a violncia) uma
realidade, e uma realidade com a qual as pessoas tm que se acostumar. O
outro rapper acrescenta que existem trabalhos como os dele, em que as
letras das msicas no falam de violncia, mas de amor e auto-estima. Alm
disso, afirma que o rap no to bairrista como dizem argumentando que,
se a mdia pde chegar at eles e colocar no cenrio nacional bandas
como o Racionais MCs, porque tambm jovens playboys puderam
chegar ao rap. O representante do site especializado em rap parece
corroborar com as argumentaes indicando que o perfil dos usurios que
9 Msica: Um homem na estrada Racionais Mcs. Conferir Anexo A.
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34
acessam informaes sobre o universo do rap composto por jovens de
todas as classes, embora se perceba que h uma quantidade maior de
jovens de classes mais baixas. Alm disso, fora do circuito nacional, outros
rappers esto crescendo, inclusive aqueles cujo estilo no primordialmente
denunciativo.
Sobre o confronto com a polcia propriamente dito, o coronel da PM
responsvel pelo policiamento de grandes eventos em so Paulo afirma que
os policiais esto preparados para atuar em um show com letras como as do
grupo Racionais MCs, que ao retratar a realidade da periferia tambm
falam das relaes com a polcia. Segundo ele, no h problema nenhum
com o pblico do grupo, que deve mesmo participar mais da vida no centro
da cidade para que saibam como se comportar em um espao que deles
tambm. Segundo o coronel, a confuso foi provocada por uma minoria
que no estava ali para ver o show. Esses jovens j haviam subido em uma
banca de revista diversas vezes, e diversas vezes foram solicitados [grifos
nossos] a descer pelos policiais que estavam de servio. Segundo o coronel,
a atuao da polcia s se deu de forma mais efetiva no momento em que
os jovens comearam a destruir a banca, pois a partir de ento estavam se
consumando atitudes criminosas. Esclarece ainda que, para a corporao,
o uso de armas qumicas considerado o melhor instrumento para evitar
confronto direto e agresses fsicas. Em resposta a uma mensagem
eletrnica enviada ao programa por uma telespectadora sobre a bomba de
gs no metr, local onde estavam presentes outras pessoas e crianas,
negou que houve excesso da polcia na conteno dos nimos. Pensar que
houve excessos , segundo ele, a opinio das pessoas que s viram uma
parte da confuso, no viram o incio. Outra telespectadora ainda
participou do debate afirmando que em qualquer show musical de qualquer
gnero pode haver violncia tal como aconteceu nessa ocasio,
questionando a colocao em debate do rap como o vilo.
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35
Esse evento e os discursos que se produziram sobre ele, se colocam apenas
como uma ilustrao de fatos comuns, mas no to corriqueiros como nos
faz supor especialmente a imprensa televisiva. Esta pode ser considerada
como um analisador (entre muitos outros possveis e talvez muito mais
prximos de nossas experincias cotidianas), para pensar as vrias formas
com que prticas, discursos e imagens constroem realidades. Sem
aprofundar todas as questes que se apresentam, o que com certeza j
daria um extenso trabalho de anlise, podemos pegar alguns ganchos para
comear a pensar os modos de existncia atuais e os modos de
subjetivao policial, que no esto separados, mas cuja distino se faz
interessante para fins de anlise.
Por enquanto, atravs do relato deste caso em que se misturam polcia,
violncia e populao, a implicao que nos parece mais til destacar
como ponto de partida para as reflexes pretendidas, a atuao dos
membros da polcia enquanto instituio oficialmente encarregada de
manter a segurana pblica. As perguntas que se fazem de incio, vm
acompanhadas de vrias outras, algumas das quais trataremos adiante. So
elas: De que segurana se est falando? Segurana de qu, de quem?
Os Discursos Oficiais de Segurana
Na falta de uma definio expressa e inequvoca da expresso SEGURANA PBLICA, possvel aduzir, do texto constitucional, que ela seja uma condio, ou estado, que incumbe ao Estado o dever de assegurar Nao, atravs do provimento de servios prestados pelos rgos referidos ao final do caput do art. 14410. Advm tambm daquele artigo do texto constitucional que o "provimento da segurana pblica", por definio
10 Art. 144. A segurana pblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, atravs dos seguintes rgos: I - polcia federal; II - polcia rodoviria federal; III - polcia ferroviria federal; IV - polcias civis; V - polcias militares e corpos de bombeiros militares
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semntica da expresso "segurana", bem como pela referncia aos rgos de execuo citados, implique em assegurar um estado de coisas em que a Nao esteja protegida da vitimizao pelo crime e pela violncia, sinistros, acidentes e desastres. 11
Esse trecho disponvel na pgina eletrnica da Secretaria Nacional de
Segurana Pblica toma como base um artigo da Constituio da
Repblica Federativa do Brasil de 1988, no qual se atribui s instituies
policiais civis, militares, federais (incluindo rodoviria e ferroviria) e corpos
de bombeiros militares, a responsabilidade estatal na preservao da ordem
pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio. Apoiando-se,
declarativamente, na falta de uma definio clara do que seja Segurana
Pblica e na considerao de que a materializao de tal preceito
constitucional cabe gesto do poder executivo nas esferas federal,
estadual e municipal, nos deparamos com a demarcao da segurana
como uma atividade cuja finalidade [...] proteger a cidadania,
prevenindo e controlando manifestaes da criminalidade e da violncia,
efetivas ou potenciais, garantindo o exerccio pleno da cidadania nos limites
da lei. (BRASIL, 2007a).
Atentando para o fato de que tais definies norteiam (ou ao menos se
propem a nortear) as aes estatais voltadas para o estabelecimento de
um efetivo Estado Democrtico de Direito, conforme pretenso da
Constituio brasileira, podemos nos debruar brevemente sobre a Poltica
Nacional de Segurana Pblica, utilizando-a como expresso das intenes
polticas da atual gesto do governo federal. Estamos cientes que, alm de
ser uma poltica (re)formulada recentemente, a extenso territorial brasileira
e suas particularidades regionais apresentam grandes empecilhos
pretenso de uma uniformidade nas medidas tomadas pelo poder pblico,
digo Estatal, no nosso pas.
11 Conferir conceitos bsicos em segurana pblica disponvel na pgina eletrnica da SENASP BRASIL (2007c).
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Embora algumas indagaes sejam incontornveis, no estamos
interessados aqui em uma crtica sobre a eficcia das propostas
apresentadas. Nosso intuito ao nos atermos ao plano de segurana ,
prioritariamente, buscar indicativos dos tipos de racionalidades aos quais
esto ligadas as intervenes estatais no que se refere segurana pblica.
A ateno dada racionalizao advm da evidente relao entre esta e
os abusos de poder poltico. Porm, no se trata mais de focalizar a
discusso em um dualismo entre razo e desrazo, obviamente intil,
conforme nos alerta Foucault12. O que se faz necessrio, em virtude dos
perigos potenciais vinculados s racionalidades, [...] analisar
racionalidades especficas mais do que evocar constantemente o progresso
da racionalizao em geral. (FOUCAULT, 1995, p. 233).
De imediato, o que se pode perceber orientando as argumentaes desta
poltica de governo a problemtica de um processo de construo social
da paz. O foco de tal projeto a modalidade de violncia criminal,
embora conceba a violncia nos mais variados aspectos. Por este motivo
referem-se a uma abordagem multidimensional, apontando a necessidade
de transformaes econmico-sociais e a conseqente necessidade de
medidas que integrem as mais variadas instncias. reestruturao da
instituio policial, so tambm colocadas como necessrias medidas que
englobem as reas da sade, educao e etc. No entanto, a prioridade
volta-se para a preveno da violncia e da criminalidade, com
intervenes focalizadas nas condies consideradas diretamente
relacionadas a estas prticas que se deseja eliminar. Recebem ateno
especial os crimes contra a vida, esta ltima considerada o bem mais
precioso da humanidade. H uma enorme preocupao com polticas
assistenciais voltadas para a juventude negra pobre. Isso em virtude de
alguns estudos apontarem esse estrato social como sendo o mais atingido
pelos crimes contra a vida. Alm de estar extremamente vinculado ao
12 Maiores informaes acerca do estudo das racionalidades conferir alguns textos de Foucault sobre a razo de Estado, como: Foucault (1990, 1995, 2006).
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trfico de drogas e armas, tambm considerado um dos fatores mais
importantes a serem combatidos atualmente, como forma de preveno da
violncia. Combate para a preveno.
Ainda que a presente discusso se proponha anlise dos dispositivos de
segurana que podem ser encontrados na regulao da sociedade
brasileira, no podemos deixar de dialogar com os estudos de Loic
Wacquant (2001) a respeito da influncia da internacionalizao de uma
variedade de termos e teses sobre crime, justia, violncia, responsabilidade,
etc. Segundo ele, essas noes vieram dos Estados Unidos da Amrica e se
inscreveram nos debates pblicos em nvel mundial, envolvendo agentes e
instituies nos campos poltico, econmico, jornalstico e universitrio.
No prprio Plano Nacional de Segurana Pblica que mencionamos h
pouco, podemos encontrar menes expressas em deferncia experincia
internacional nesta rea, alegando que algumas iniciativas [...] se
mostraram extremamente eficientes na reduo dos fatores de risco que
tendem a promover a delinqncia.. O que nos faz concordar com as
anlises de Wacquant quando se refere [...] amplitude e impacto
transcontinental dessa operao planetria de marketing ideolgico [...]
(WACQUANT, 2001, p. 19), que se faz sentir mais fortemente na Amrica
Latina e, ironicamente, em vrios pases da Europa ocidental. No entanto, o
autor tem a precauo de se contrapor a uma possvel heroificao
intelectual versus teoria da conspirao, ou seja, no acredita que os
intelectuais tm o dever herico de combater a fora inimiga. Inclusive
porque, segundo Wacquant, as anlises crticas tratam da concretizao
pessoal ou institucional de sistemas de foras materiais e simblicas que os
perpassam e ultrapassam e, portanto, so impossveis de serem controlados
por algum, por mais poderoso que seja. Com isso, acreditamos que seja
intil procurar um grande responsvel ideolgico em que se possa por a
culpa dos erros e acertos de um projeto de segurana. Mais interessante
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seria tratar dos efeitos concretos e da difuso do conhecimento que est
sendo produzido e utilizado em nvel mundial.
A rede de difuso desta razo penal que vai difundir-se no fim do sculo XX,
estreitamente relacionada ao estabelecimento do neoliberalismo
protagonizado pelos Estados Unidos, recebe contribuio fundamental do
setor privado americano atravs de fundaes e institutos de consultoria, os
chamados think tanks, que analisam problemas e propem solues nas
reas militar, social e poltica13. V-se forjar a partir da a doutrina de
tolerncia zero como instrumento de legitimao da gesto policial e
judiciria da pobreza que incomoda. (WACQUANT, 2001), reforando assim
o aparelho penal. A argumentao apia-se na considerao de que as
excessivas ajudas sociais aos mais pobres pelas polticas de Estado estariam
sendo responsveis pelo aumento da pobreza nos EUA, posto que
recompensariam a inatividade e incentivariam a degenerescncia moral
das classes populares, em uma relao direta com o que passaram a
chamar de violncia urbana. Essas idias foram endossadas por estudos
cientficos como, por exemplo, o do quociente intelectual (QI). Atravs das
desigualdades encontradas nas pessoas, acabaram por atribuir uma
natureza e uma propenso ao crime a certas diferenas, em geral
relacionadas a um baixo QI. Desse modo, postulavam a ineficincia da
atuao do Estado na vida social, delegando uma responsabilidade
individual para os pobres moradores das zonas consideradas de risco,
embasadas por estudos cientficos como este.
13 No Brasil, podemos observar uma tendncia proliferao de institutos e fundaes que atuam paralelamente e em conjunto com rgos estatais. No nosso caso, o prprio plano de segurana de que falamos foi construdo pelo Instituto Cidadania e pela Fundao Djalma Guimares. O Instituto cidadania foi criado na cidade de So Paulo h cerca de 09 anos com o objetivo de contribuir pessoal e profissionalmente para difundir os conceitos de cidadania, de forma que a democracia e o Estado Democrtico de Direito sejam exercidos plenamente. H 04 anos tornou-se uma Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico - OSCIP, podendo a partir de ento realizar parcerias subsidiadas pelo poder pblico e receber doaes de colaboradores. Sobre a Fundao Djalma Guimares, no conseguimos obter maiores informaes.
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O resultado prtico da propagao destas idias culmina na paradoxal
campanha de menos Estado social aliada a um mais Estado repressivo. A
supresso do Estado econmico, enfraquecimento do Estado social,
fortalecimento e glorificao do Estado penal[...] assinala o que Wacquant
(2001, p. 18) vem a chamar de declnio do Estado-providncia e ascenso
do Estado-penitncia.
Um dos efeitos de endurecimento do aparelho de Estado repressivo ainda
vai ser fortalecido pela vulgarizao do que nunca se chegou a comprovar
empiricamente: a teoria da vidraa quebrada, segundo a qual se evitaria
as grandes patologias sociais e criminais atravs do combate aos pequenos
delitos cotidianos. O que se segue ento a reorganizao das foras
policiais atravs do aumento do contingente de efetivos e equipamentos,
cobrana quantitativa de resultados, sistemas de informao
potencializados, etc. Estas medidas permitem uma interveno
praticamente instantnea das foras da ordem e resultaram na implacvel
aplicao da lei sobre pequenos delitos como a [...] embriaguez, a
jogatina, a mendicncia, os atentados aos costumes, simples ameaas e
outros comportamentos anti-sociais [...] (WACQUANT, 2001, p. 26). Isto
significou a perseguio dos pobres nos espaos pblicos, alm de uma
conseqente exploso da populao carcerria. Embora os pobres tenham
sido os principais alvos, essa poltica repressiva tambm vai cercar o
cotidiano de grande parte da populao, no necessariamente pobre.
Recentemente, em 2005, tramitou no Senado Federal uma proposta de
emenda Constituio que acrescentava ao Art. 144 um rgo que
integraria as policias civil e militar nas funes de policiamento ostensivo, a
que chamariam Guarda Nacional. Esta nova fora repressiva do Estado seria
convocada pela Presidncia da Repblica e aprovada pelo congresso caso
seja necessrio restabelecer ou manter a ordem pblica e a paz social.
Mais uma medida entre outras que mostra as pretenses de potencializar a
funo repressiva do Estado.
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Estratgias de Poder e Saber Integradas
Pudemos obter uma idia, atravs das informaes fornecidas por
Wacquant, da produo e funcionamento de uma economia de discursos
de verdade especialmente localizados no mbito da criminologia, que vo
repercutir nas polticas de segurana de diversos pases. A constituio deste
domnio de saber, desta disciplina que vem a ser chamada criminologia, no
deve ser pensada em termos de produo ideolgica, embora possa ser
usada desse modo. Trata-se antes de uma resposta a situaes polticas
especficas, resultado de uma srie de prticas sociais. Segundo Foucault
(1979), a sociedade contempornea fortemente marcada pela emergncia,
no fim do sculo XVIII, de um tipo de poder disciplinar, mas tambm de um
tipo de saber disciplinar, inaugura uma era de controle social na qual
vivemos atualmente. Trata-se a partir da da entrada em cena de um tipo de
saber de vigilncia e de exame ao longo de toda a existncia dos
indivduos. Um saber-poder cujos mecanismos de controle dos corpos
englobam escolas, fbricas, prises, etc. Nas palavras de Foucault: [...] um
certo saber do homem, da individualidade, do indivduo normal ou anormal,
dentro ou fora da regra, saber este que, na verdade, nasceu das prticas
sociais, das prticas sociais do controle e da vigilncia. (FOUCAULT, 1979, p.
6)
Os discursos entendidos enquanto prticas descontnuas, aleatrias, que
adquirem sentido no contexto histrico de sua emergncia, atualizam e
mantm as lgicas institucionais gerando diversos efeitos de poder
(FOUCAULT, 2004a). Este o motivo pelo qual tanto se valorizam discursos
como o jurdico, que orienta as prticas judicirias. Assim, se concordamos
que por trs de todo saber, todo conhecimento, o que est em jogo uma
luta de poder, os discursos de verdade que constituem as diversas disciplinas
cientficas (como a psicologia, a sociologia, a psiquiatria, etc.), bem como os
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discursos jurdicos atuais, tm uma importncia poltica imensurvel. Embora
muitas vezes esses discursos no sejam questionados em termos polticos, mas
apenas na medida em que so mais ou menos verdadeiros que outros
discursos, eles fazem parte de prticas sociais, no caso, prticas judicirias.
Dentre essas prticas pode se localizar a emergncia de novas formas de
subjetividade e tambm o exerccio de controle social.
Conforme aponta Foucault (1979), as prticas jurdicas e judicirias (o modo
como se conceberam e se definiram as formas pelas quais as pessoas so
julgadas pelos seus erros, e que impem a reparao de algumas aes e a
punio de outras) se desenvolveram historicamente definindo formas de
verdades. Na funo policial o saber oriundo dessas verdades est presente
nas relaes que so estabelecidas, determinando as aes que
reproduzem tais verdades. O que se esquece que essas formas de verdade
no so naturais, mas construdas na histria de uma certa sociedade e vo
se modificando continuamente, visto que so resultantes de julgamentos de
valor. Especialmente na prtica judiciria, a normatizao de que falamos
se mostra mais explicitamente e de forma mais direta, atravs da
autoridade policial investida nas pessoas s quais se delegou esta funo.
No esqueamos, no entanto, que esta apenas a forma mais visvel de
disciplinarizao no controle dos corpos, visto que esse controle tambm se
d (e talvez de forma mais poderosa) atravs da produo de
subjetividades em que o efeito de controle automtico se faz muito mais
efetivo.
quando atentamos para as implicaes das estratgias de saber-poder de
uma medida aparentemente simples, cujo intuito aumentar a eficcia da
segurana no pas, que a proposta de implantao de um sistema de
informaes integrado ganha novas dimenses. Situao que se agrava
ainda mais quando j se faz idia de quais os principais alvos da polcia e as
possveis conseqncias de tal eficcia. Se a inteno da Plataforma
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Nacional de Informaes sobre Justia e Segurana Pblica14 era possibilitar
um conseqente aumento da sensao de segurana, no cremos que
tenha surtido o efeito esperado. Chega quase a causar pnico a idia de
que tal proposta seja realmente efetivada como instrumento de controle,
gesto e combate da criminalidade: a maximizao do controle sobre a
populao at o seu sufocamento o custo para se vender a idia de que
possvel mais um pouco de segurana. Comeam a ficar cada vez mais
claras as relaes entre a instigao da cultura do medo, bem como a
decorrente sensao de insegurana e a justificao do uso das foras da
ordem para promover a segurana perdida. A esse respeito, Pegoraro
(1996) chama a ateno para o fato de que este modelo de sociedade est
se produzindo a partir do paradigma da insegurana e do medo, portanto
necessita e utiliza novas ferramentas e estratgias de controle social que
funcionam como defesa e produo da ordem social.
Reforar a atuao policial hoje, mesmo prevendo um programa de
educao dos policiais e reestruturao da instituio, parece trazer mais
terror do que a atual situao de insegurana que vivemos. Hoje, qualquer
dito cidado de bem parece ter medo da polcia tanto quanto dos ditos
criminosos. No difcil ouvir tais afirmaes e at mesmo entender os
motivos. E para isso tambm no preciso ir atrs de depoimentos ou
estudos que confirmem tais preocupaes. Qualquer um j passou ou ouviu
relatos de alguma situao que pode servir de exemplo. A ttulo de
ilustrao, adiante segue o relato de uma nica noite em que tivemos a
oportunidade de ver/vivenciar alguns contatos com a polcia militar do
estado do Rio de Janeiro, em maio de 2007.
Comemorao em virtude do aniversrio de dois amigos (um deles colega
do curso de mestrado da UFF) em um bar localizado na Lapa, centro da
cidade do Rio de Janeiro. Lugar agradvel, boas companhias, msica de
14 Maiores informaes disponveis na pgina eletrnica da Secretaria Nacional de Segurana Pblica. BRASIL (2007b)
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qualidade. J na rua, prestes a retornar para casa, espervamos todos
sarem do bar para as despedidas de praxe, ocasio em que em um
movimento distrado, quase impensado, apoiei-me em uma viatura da PM
que estava estacionada no local. Quase imediatamente fui tocada no
ombro e simultaneamente ouvi um desencoste da viatura, por favor,
pronunciado por um policial com palavras que me soaram autoritariamente
educadas. A reao foi praticamente automtica: ah, t! Desculpe.
Rapidamente afastei-me do carro, um pouco sobressaltada pela simples
interveno policial. Enquanto o policial se mantinha imponentemente
presente a poucos passos dali, alguns amigos perguntavam o que houve e
eu respondia que ele apenas pediu para que me afastasse do carro.
Quando samos dali, longe da presena da autoridade policial, manifestei
meu desconforto com tal atitude garbosa e, a meu ver desnecessria, pois
no passava de uma banalidade. Mas possivelmente aquela atitude para
ele no fosse mais que o cumprimento do dever de manter a ordem, a sua
prpria autoridade e a de seus instrumentos de trabalho. Ainda aqui fica a
questo de como algum encostado em uma viatura policial poderia estar
atrapalhando a ordem pblica ou o trabalho de algum funcionrio. Mas o
que provavelmente me causou mais incmodo foi a minha subservincia
imediata. Ainda estava mergulhada nesses pensamentos quando passamos
(de carro) prximo aonde se encontrava a tal viatura e vimos uma correria.
Curiosos, passamos devagar para poder ver o que estava acontecendo,
ocasio em que nos deparamos com um rapaz de boa aparncia sendo
perseguido por policiais. Ao ser abordado por cerca de trs ou quatro
policiais, no foram poupadas agresses que variaram entre palavres,
empurres e culminaram em um estrondoso tapa no rosto, dodo s de ver e
agravado mais ainda pela visvel situao de impotncia do rapaz. Na
confuso de palavras ficou claro que, a despeito do que tnhamos
imaginado, no havia sido furto ou outra coisa do tipo cuja ocorrncia seria
mais comum naquele local, pareceu mais evidente uma situao de
desacato. Logo juntou mais gente no local e em um silncio que pesava no
ar, retomamos nosso trajeto para nossas casas, em Niteri. No caminho
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discutimos sobre os ltimos acontecimentos da noite unanimemente
indignados com a atitude da polcia e com o estado de impotncia do
rapaz, estendidos a nossa prpria impotncia. No conseguamos pensar no
que fazer se estivssemos no lugar dele ou o que fazer para que essas
situaes no ocorressem tanto. Todos tinham um caso semelhante para
contar. Eu j havia passado por situaes em que me encontrava ora em
um lado, ora em outro, mas naquele momento eu no consegui me colocar
no papel do policial. Tnhamos medo da polcia e o meu s aumentava e me
confundia quando pensava que o medo que eu tinha dos policiais era um
medo de mim.
J estvamos quase em casa e o assunto j tinha se exaurido quando
passamos por uma viatura policial ao lado da qual dois rapazes bem
vestidos estavam sendo revistados por outros policiais. Poderiam ser
criminosos, como tambm poderiam estar voltando para casa depois de
uma noite de lazer, assim como ns. Olhares apreensivos mais uma vez
naquela noite. Mais adiante, estvamos parando para deixar um dos amigos
que estavam no carro quando uma voz avisou em tom preocupado que
havia outro carro de polcia logo adiante. Mesmo sem entender
racionalmente a preocupao, pois em tese no tnhamos motivos que nos
preocupar com a polcia, tambm me senti desconfortvel e com uma leve
taquicardia. O amigo-motorista, notadamente nervoso, quase pegou uma
contramo. Assim, me dando conta do que estava acontecendo, apesar da
insegurana que me tomava, disse de modo firme que ele podia parar para
que nosso amigo descesse e pronto. No fim das contas chegamos em casa
assustados, inseguros e isso dev