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Plantão Psicológico na FEBEM

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ImaginrioversoimpressaISSN1413-666XImaginariov.11n.11So Paulodez.2005PART IAcompanhamento psicolgico individual na FEBEM/SP: um convite a cuidar de siIndividual psychological accompaniment in the FEBEM/SP: an invitation to take care of yourselfHenriette Tognetti Penha Morato*; Lucas Souza de Carvalho; Maria Gertrudes Vasconcellos Eisenlohr; Natlia Felix de Carvalho Noguchi; Sshenka Meza MosqueiraInstituto de Psicologia da Universidade de So PauloEndereo para correspondncia

RESUMOElaborado com base na experincia em projetos de Extenso Universitria do Laboratrio de Estudos e Prtica em Psicologia Fenomenolgica e Existencial, do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo (LEFE/IP-USP), este artigo pretende propor questionamentos modalidade de prtica psicolgica oferecida como acompanhamento individual a adolescentes autores de ato infracional grave. O referencial terico que orienta nosso trabalho a abordagem centrada na pessoa e uma leitura da fenomenologia existencial. Partindo do pressuposto que o psiclogo tem em si o mais importante instrumento de trabalho, narraremos nossa experincia, articulando-a com reflexes tericas, a fim de comunicar e discutir nossa compreenso a respeito desse fazer no um fazer tecnicista, mas crtico e baseado na escuta, bem como na ateno do psiclogo a um sujeito situado em um determinado contexto.Palavras chave:Acompanhamento psicolgico individual, FEBEM, Institucionalizao.

ABSTRACTThis article intends to consider some questionings concerning a modality of psychological practice to individual accompaniment to adolescent who committed felonies. It was elaborated from the experience in projects of university extension of the Laboratory of Studies and Practices in Phenomenological and Existential Psychology, of the Institute of Psychology of the University of So Paulo (LEFE/IP-USP). The theoretical reference that guides our work is the Person-centered Approach and a reading of the Existential Phenomenology. Considering that the psychologist has in himself the most important instrument of work, we will tell our experience, articulating it with theoretical reflections in order to communicate and argue our understanding in relation to it - not in a technical way, but in a critical one based on the psychologists listening and attention to a person in a given context.Keywords:Individual psychological accompaniment, FEBEM, Institutionalization.

O presente artigo tem, como ponto de partida, um projeto de extenso universitria em unidades da FEBEM/SP. Faz-se necessrio, ento, retomar o histrico do projeto. Em junho de 2002, a direo de duas unidades de internao da FEBEM/SP procurou o Laboratrio de Estudos e Prtica em Psicologia Fenomenolgica e Existencial do Instituto de Psicologia da USP (LEFE/IP-USP), solicitando atendimento psicolgico individual para adolescentes que recebessem, do juiz responsvel pela permanncia na medida de internao, encaminhamento para a mencionada modalidade. Essas unidades tm capacidade para cerca de 40 adolescentes cada, aos quais, em sua maioria, so adolescentes autores de ato infracional grave, em sua primeira internao. O pedido da direo tinha como referncia um trabalho de planto psicolgico por ns realizado em unidades pertencentes a outros complexos, no qual estagirios e profissionais colocavam-se disposio, semanalmente, por um determinado perodo de tempo, a quem quisesse procur-los adolescentes e funcionrios.Com o objetivo de conhecer a dinmica da instituio e esclarecer o pedido que chegava at o LEFE, em agosto de 2002, nossa equipe1iniciou sua interveno. Por meio de encontros com a direo e com os membros da equipe tcnica2, revelou-se, em decorrncia de uma sobrecarga de funes, a dificuldade, por parte das psiclogas, em definir uma atuao perante os adolescentes com encaminhamento judicial. Para falar da nossa prtica, portanto, necessria uma contextualizao sumria dessa instituio, alardeada no imaginrio social como abrigando a excluso social e a negao do ser humano como cidado.Pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), em vigor desde 1990, considera-se adolescente, no Brasil, todo e qualquer cidado de 12 a 17 anos e 11 meses. Ao cometer ato infracional, este considerado inimputvel, no cabendo receber uma sentena judicial, mas a aplicao de medidas socioeducativas, previstas no mesmo Estatuto. A internao em estabelecimento educacional, medida privativa de liberdade, s pode ser aplicada em caso de ato infracional grave, reiterao no cometimento de outras infraes graves ou quebra de medida anteriormente imposta. A medida tem durao mxima de trs anos e deve ser cumprida em estabelecimento exclusivo para adolescentes, bem como obedecer a critrios de idade, compleio fsica e gravidade da infrao. Cabe, ainda, FEBEM cuidar da educao regular, da profissionalizao, realizao de atividades culturais, esportivas e de lazer desses adolescentes internos.Porm, uma unidade de internao da FEBEM em So Paulo pode ser considerada uma instituio total, conforme definio de GOFFMAN (1961: 11) local de residncia e trabalho onde um grande nmero de indivduos com situao semelhante, separados da sociedade mais ampla por um considervel perodo de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.Ainda de acordo com esse autor, pensamos que a FEBEM viola territrios; ou seja, a fronteira pessoal invadida por um modo de viver institucional que apresenta particularidades, como a maneira de gesticular, de se vestir, de se comunicar, promovendo um engessamento do viver individual. Movimentos contrrios a essas regras, aparentemente incontestveis, levam adolescentes e/ou funcionrios a punies, degradaes e humilhaes.Alm de um sistema de homogeneizao e institucionalizao, numa unidade de internao, todos os comportamentos e as condutas dos adolescentes so descritos em um relatrio, encaminhado ao juiz responsvel pela sentena, como se fosse possvel contabilizar o comportamento do adolescente, que passa a ser objeto de mensurao. Opera, assim, por meio de uma vigilncia constante, um sistema panptico3(FOUCAULT, 1987/2001) que se pretende educacional, pois com base nesse relatrio que se conclui se o adolescente est apto para a desinternao. Esse fato torna-se importante porque, a partir do momento em que o jovem sabe que est sendo vigiado, ele aprende que determinados tipos de fala e comportamento so mais aceitveis e facilitam sua desinternao. Eles apresentam um discurso pronto s tcnicas da instituio4, evitando relatar situaes para no se comprometerem.Nesse contexto, tomando como base a experincia anterior em outras unidades e partindo da ateno psicolgica como interveno para acolher o sofrimento em situaes de crise, dispusemo-nos a receber esses adolescentes em planto psicolgico como modalidade de prtica clnica. O encaminhamento para acompanhamento individual sistemtico s seria feito caso a demanda ficasse esclarecida. Partimos de uma concepo de planto em que a funo do conselheiro dispor-se no modo do acolhimento que permite explorar, com o cliente, no apenas a chamada queixa, mas tambm a forma mais adequada de lidar com ela (por dirigir-se demanda) (SCHMIDT, 1987:7), pretendendo menos responder a uma pergunta que fazer uma sugesto sobre a continuao de uma histria que est sendo narrada (BENJAMIN, 1985: 200).Sendo assim, o planto consiste em um pronto-atendimento aos adolescentes no momento da emergncia de uma questo que este considere importante e que requeira certo cuidado. um atendimento que possibilita a retirada do sujeito da institucionalizao, a retomada de sua histria e a apropriao, por parte dos adolescentes, de suas escolhas. Uma experincia como esta rompe com o simples atuar sem reflexo, caracterstico de uma instituio total como a FEBEM, implicando novos sentidos para que a histria do adolescente possa tomar outras direes.Os adolescentes passaram, ento, a ser recebidos em planto psicolgico, na clnica-escola do Instituto de Psicologia da USP. Cabe destacar a peculiaridade desse planto, considerando que, nesse primeiro momento, no s o adolescente escolhe ir ao atendimento, como tambm comparece obedecendo a uma indicao. Nessa fase, esclarecamos a independncia do trabalho em relao internao (tcnicas, relatrios e juiz), enfatizando o compromisso com o carter sigiloso dos encontros. Dessa forma, oferecamos nossa disponibilidade para estabelecer uma relao de confiana qual o adolescente poderia retornar caso assim o escolhesse.A deciso de continuar, ou no, a freqentar o atendimento no implica nenhuma conseqncia na elaborao do relatrio do adolescente. Nessa perspectiva, o atendimento no favorece nem prejudica o andamento do processo de avaliao dentro da instituio dessa forma, o trabalho configura-se como uma espcie de ilha que, embora esteja atenta dinmica institucional, no se submete a ela. A manuteno do sigilo priorizada, caso no haja troca de informaes sobre nenhum dos adolescentes atendidos com o corpo tcnico e a direo da unidade. Se pensarmos na dimenso do panoptismo, nosso trabalho visa romper com esse esquema de vigilncia constante e contnua a que esses adolescentes encontram-se submetidos. Acreditamos que, depois de uma relao de confiana, o adolescente pode se sentir livre para tratar de qualquer assunto, sem temer juzos ou preconcepes. Ao priorizarmos a relao com o adolescente, resgatamos com ele o fato de ser um sujeito de direitos, a possibilidade de decises e escolhas, assim como a apropriao destas.Porm, dificuldades institucionais fizeram com que a dinmica do nosso trabalho fosse modificada. Cabe FEBEM no s garantir acesso sade e educao, mas tambm segurana e conteno. Considerando essa necessidade, os adolescentes atendidos na USP eram acompanhados por funcionrios da FEBEM, que se ausentavam da unidade nesse perodo. A direo props, ento, que os atendimentos fossem realizados na prpria unidade. Solicitamos transporte e salas adequadas, com condio necessria para a realizao do trabalho. Assim, os atendimentos atualmente acontecem com encaminhamentos da equipe tcnica, nas dependncias da unidade, toda semana, sendo por ns priorizadas a constncia e a presena. No que se refere ao dilogo com a instituio, reunies so realizadas pelo menos uma vez a cada semestre, com a finalidade de avaliar o trabalho, questionar o sentido dos encaminhamentos e interrogar sobre as expectativas da FEBEM.O que tem chamado nossa ateno neste trabalho com os adolescentes autores de ato infracional grave , sem dvida alguma, a prtica: estar diante deles, conhecendo-os e ouvindo sua histria em vrios meandros, narrada em inmeros detalhes, que apontam para uma experincia de sofrimento, embora muitas vezes eles no cedam dor dessa experincia. Alm disso, os relatos frios e distanciados causam-nos incmodo e estranheza, bem como os comportamentos bizarros, os silncios obstinados, ainda que, por vezes, apresentem imagens poticas e percepes afetivas de experincia que nos emocionam. dessa prtica que surgem questes sobre nosso trabalho, fazendo emergir nossa busca por explicitaes tericas desse fazer. Por isso, optamos por apresentar trs relatos de atendimentos realizados, a fim de, por meio deles, podermos iniciar questionamentos a serem encaminhados quanto especificidade dessa prtica, ainda por ns referida como na modalidade de planto psicolgico.Fernando5Por volta dos seis meses de internao, Fernando foi encaminhado pelas tcnicas. A queixa justificava um reduzido estabelecimento de contato com os outros adolescentes, funcionrios e sua tcnica. Trata-se de um adolescente alto e forte, apesar de sua pouca idade, 15 anos. Geralmente, falava baixo e no costumava usar grias em nossos encontros; quando o fazia, preocupava-se em me explicar o significado. Nunca soube que crime cometera, visto esse assunto nunca ter sido abordado quando nos encontrvamos.O incio de todos os atendimentos mostrava-se sempre difcil: ele nunca falava nada, sendo necessrio que eu comeasse um dilogo por meio de alguma pergunta. Opto, aqui, por relatar um trecho do ltimo atendimento, anterior s frias.Dessa vez, comecei retomando sobre o encerramento dos nossos encontros ainda que temporrio. Notei que minha fala parecia-lhe meramente expositiva, j que dela no participava. Conversamos sobre a sua apresentao musical ocorrida no dia anterior e sobre as que viriam. Perguntei se tinha recebido as fotos de sua filha, ao que disse, de maneira triste, que no. Seu irmo havia tirado a foto, mas no havia tido tempo de revelar.Assim como outras vezes, essa nossa conversa assumia um carter interrogatrio: respondia apenas ao que lhe perguntava. Resolvi, ento, sustentar o silncio que se fazia. Olhando para baixo, percebi que ele me fitava. Ocorreu-me, ento, a idia de retomar com ele o sentido e a funo dos nossos encontros. Comentei que, apesar de haver a recomendao judicial para o atendimento psicolgico, no era eu o responsvel pela execuo dessa medida; assim, poderia aproveitar nossos encontros como um momento um lugar no qual poderia falar o que quisesse. De novo, pareceu ser apenas mais uma outra explicao meramente expositiva, dada a ausncia do retorno por parte dele. A isso, seguiu-se outra longa pausa. Talvez por isso, pensei em encerrar o atendimento, achando que realmente pudesse ser difcil acontecer alguma coisa, considerando que este era apenas nosso terceiro encontro, e que ele estava ciente de que haveria uma interrupo de dois meses.Foi, quando, rompendo o silncio, ele me perguntou quantos meninos eu atendia, quando eu voltaria e se essa interrupo era em virtude das frias. Respondi s suas perguntas, e, novamente, silenciamos. Pensando a respeito de tais perguntas, ocorreu-me que pudesse estar investigando meu trabalho. Procurei, ento, saber se ele tinha mais alguma dvida sobre o que eu fazia l. Caso houvesse, disse-lhe para sentir-se vontade, pois, s vezes, ocorre de termos questionamentos sobre determinadas coisas, embora no nos sintamos com abertura para perguntar.Ele me respondeu que no tinha nenhuma dvida. Pensou, ficou me olhando, parecendo estar formulando algo. Foi ento que falou: A6: O que que o senhor quer que eu fale aqui? Que desabafe? Minha me disse que eu sou muito fechado... no confio em ningum... s vezes... eu fico com uma coisa aqui... (e apontou para seu estmago)...P: O que eu fao aqui um atendimento psicolgico... e... em um atendimento psicolgico... acredito no ser eu que direciono... Aqui se fala sobre o que voc quiser... Por exemplo... na semana passada... voc me contou da alegria em rever sua ex-namorada em uma apresentao sua... Conversamos sobre sua filha e... foi voc quem trouxe essas coisas... Ele me interrompeu, como se j tivesse entendido e comeou a falar:A: Minha me acorda todo dia s 4h30 da manh e vai trabalhar... Ela passa debaixo de uma ponte e... vai andando porque perto... Um dia... ela passou e... l embaixo... tinha uma casa que mora gente necessitada... Ento... saiu um cara e ficou assoviando para ela... A... passou um amigo dela por cima da ponte e ela gritou... Ento... ele desceu e foi at a porta da casa... e ficou chamando o cara... Mas ele entrou e no saiu... Eu que deveria estar l fora com ela... e estou aqui preso...P: Voc est bastante preocupado com a segurana dela, n? A: Estou sim, senhor!... Quem levava todo dia ela era eu mais meu pai... Agora... meu irmo trabalha... minha irm tambm... e ela vai sozinha...O pai dele faleceu enquanto ele estava preso. Nessa ocasio, e diferentemente do que costuma acontecer nessa instituio, a ele foi permitido ir ao enterro do pai.P: Deve ser difcil sentir-se to impotente... sem poder fazer muita coisa... estando aqui preso!...A: Eu tenho um pouco de culpa com essas coisas... Meu pai tem problema de sade h muito tempo... Mas quando eu vim preso... ele piorou. Antes eu sentia mais culpa... agora, eu sinto menos... Minha me disse que ele teve uma crise e foi para o hospital. Estava to inchado!... S mexia a mo... como se tivesse em coma. Quando ela veio me visitar, eu falei para dizer para ele que eu gostava muito dele!... Ela depois me disse que estava com ele no hospital... segurando sua mo... e... quando ela disse o que eu tinha dito... ele apertou a mo dela mais forte... assim... (e fez um gesto de uma mo apertando a outra).Nesse momento, ele silenciou, parecendo camuflar sua emoo. Enxugou o rosto e me fitou. E eu?! Eu me concentrei para no chorar... Sabia que se no prestasse ateno em mim, naquele momento, poderia vir a lacrimejar tambm.Continuamos a sesso falando sobre seu sentimento de culpa e luto em relao ao pai, e de como ele, Fernando, tem carregado isso sozinho. Retomei a proposta da utilizao desse espao para que ele pudesse falar das coisas que ele quisesse, fossem elas tristes ou alegres. As frias iriam iniciar, mas nos despedimos com a perspectiva de nos reencontrarmos dali a dois meses, caso ele ainda estivesse l e quisesse voltar a estar comigo. Contudo, quando retornei, soube que ele havia sido libertado.O trabalho com esse adolescente apontou, por um lado, a necessidade de nos atermos possibilidade de que, nessa prtica psicolgica em instituio, o encontro com o cliente pode ser nico, independentemente da modalidade que esteja sendo atuada. Mahfoud refere-se a essa forma de estar presente na situao de planto psicolgico. Nas suas palavras (1987: 75): Do profissional, esse sistema pede uma disponibilidade para se defrontar com o no planejado e com a possibilidade (nem um pouco remota) de que o encontro com o cliente seja nico. Contudo, no concreto desse atendimento, estava empenhado um compromisso de acompanhamento para alm de apenas o esclarecimento de uma demanda. Desse modo, dizia respeito mais a um atendimento que se aproximava do que ao de um processo teraputico.No entanto, ainda assim, fazia-se presente esse modo de disponibilizar-se ao encontro, a cada vez, como se pudesse ser o nico, dada a nossa reiterada experincia de planto psicolgico para adolescentes internados na FEBEM, no qual, para alm da modalidade de prtica, o prprio contexto apresentava a possibilidade de ser um encontro nico. No caso de Fernando, independentemente de sua vontade e de nossa disponibilidade, no nos foi mais possvel encontrarmo-nos pela situao de liberdade do adolescente, decidida pela instncia judiciria, para alm da determinao inicial de acompanhamento psicolgico. Dada essa situao limitante e externa aos envolvidos, surgiram os questionamentos iniciais: O que, ento, de fato seria nossa prtica nesse contexto: planto ou processo?Por outro lado, no decorrer desse relato, pudemos compreender e acompanhar a trajetria da narrativa de Fernando, desde o seu fechamento inicial at a possibilidade da exposio de experincia afetivamente intensa e dolorosa. Desse modo, torna-se possvel refletir que essa mobilidade pode ocorrer pela disponibilidade oferecida naquele momento ao adolescente, abrindo-o ao resgate de sua experincia, ainda que sem a garantia de uma continuidade para sustentao dessa abertura ao sofrimento. Nessa medida, retornamos a Mahfoud (1987: 81) ao clarear a perspectiva terica da abordagem centrada no cliente na modalidade de planto psicolgico:Que seja o referencial do prprio cliente a definir a direo do processo no significa ausncia ou passividade do conselheiro, ao contrrio, a sua presena clara e atenta que permite ao cliente uma clarificao maior de seu referencial.Assim, mais uma vez, o planto poderia ser a explicitao do que fazamos. Mas, por esse referencial terico, e segundo Rogers (1978), no h uma distino entre aconselhamento psicolgico e psicoterapia, dos quais a diferena se assinala no prprio processo da prtica. Novamente, uma encruzilhada de questionamentos.GabrielAps 11 meses de internao, Gabriel, encaminhado para acompanhamento psicolgico pelas tcnicas da unidade. As principais queixas, apresentadas como justificativas para o encaminhamento, eram as ameaas de fuga feitas por ele, geralmente acompanhadas de comportamento agitado e indisciplina, presentes com certa freqncia.O primeiro encontro com Gabriel fica marcado por apresentaes que beiram a formalidade. De um lado, meus esforos por apresentar nosso trabalho como outro, diferente daquele desenvolvido pelos psiclogos da unidade e, do outro, Gabriel bastante distante, mostrando-se altamente institucionalizado. Ou seja, o modo como se apresentava a mim seguia o formato ensinado a ser usado com toda e qualquer funcionria da Fundao.Com as mos para trs e chamando-me constantemente de senhora, proporcionava-me dados sobre si que o definiam como um adolescente infrator. Gabriel mora na periferia da cidade de So Paulo, e a infrao que causara sua internao fora um assalto mo armada, seguido de tentativa de homicdio. Afirmou que comeou a usar drogas desde cedo e que, em virtude da dependncia qumica, envolvera-se tambm com o crime. Porm, aps alguns meses de internao, tomara a deciso de mudar de vida e ficar de boa. Relata, tambm, que seus pais so separados desde que ele era pequeno e que sempre morou com o pai e com as irms mais velhas. Sobre a me, Gabriel diz que sempre morou na mesma rua e que mantinham contato.Os encontros subseqentes foram bastante difceis. Gabriel pouco falava e, quando o fazia, valia-se de discursos repetitivos, tentando justificar sua histria no crime e convencer-me de que estaria disposto a mudar de vida. A percepo era de que o convite a fazer uso daquele tempo e espao, sem receios de julgamentos, no estava sendo aceito ou compreendido. A partir de certo momento, suas falas no diziam mais dele nem de sua situao singular de institucionalizao. Embora marcasse repetidas vezes o carter opcional do atendimento, Gabriel no deixava de vir aos nossos encontros, tampouco pedia para sair mais cedo. Revelava-se, dessa forma, a constncia tanto dele quanto minha, permitindo a construo de uma relao de confiana.Durante algumas semanas, longos e desconfortveis silncios marcavam nossos encontros, at o dia em que o modo pelo qual Gabriel chegou ao atendimento pareceu anunciar uma outra aproximao. Aps alguns minutos de silncio, perguntou-me sobre o porqu do fato de eu no fazer perguntas sobre assuntos que poderiam me interessar. Sem dvida, ele nos levou a questionar o sentido daquele espao! No entendia porque, naquele atendimento comigo, no eram feitas algumas perguntas que ele pudesse responder sem muita dificuldade, ainda mais, considerando a arguta capacidade de argumentao de Gabriel. A dificuldade qual ele se referia fazia-se presente diante do oferecimento de uma escuta que no restringia assuntos que pudesse abordar, sempre que estes fossem de seu interesse. Esta foi a oportunidade de dizer que minha presena ali s ganhava sentido se ele pudesse fazer uso daqueles encontros para falar de si, possibilitando uma aproximao entre ns e dele consigo, permitindo que eu o acompanhasse em reflexes que abrissem outras possibilidades de compreenso de seu modo de se apresentar no mundo. Gabriel no ficou satisfeito com essa fala, dizendo ach-la um pouco estranha. Entretanto, voltou na semana seguinte. E, havia algo diferente: os olhares, em meio ao silncio, diferentemente de outras vezes, misturavam-se a um sorriso, que parecia buscar cumplicidade ou simplesmente companhia. Aps retomar o sentido do atendimento, Gabriel comeou a se mostrar por meio de relatos do seu cotidiano, contando dele e de suas preocupaes.Revelou insatisfao com as formas de organizao dos adolescentes e funcionrios dentro do ptio da unidade. Reclamou da postura de alguns e questionou as exigncias provenientes destes e dos prprios funcionrios. Manifestava grande expectativa em relao possvel chegada de um parceiro na unidade. Acreditava que, com a ajuda deste, algumas mudanas poderiam acontecer na casa, deixando-o mais tranqilo. Diferenciava parceria de amizade, afirmando que no crime no d para confiar em ningum; referiu-se a vrios exemplos de traies entre pessoas prximas, o que demonstrava a concretizao de uma realidade de insegurana constante tanto no mundo do crime como dentro da prpria Fundao. Quando questionado sobre como se sentia dentro dessa realidade, Gabriel pareceu no compreender e no respondeu. Depois de um curto tempo, lembrou-se do nico amigo que teveno Mundo.Com alegria, narrou algumas experincias vividas com ele, parando para pensar e responder pergunta referente confiana que tinha nele ou no. A resposta foi:Confiava, senhora!... Ele sim era firmeza!Abordar a questo da confiana, com base nos relatos que Gabriel trazia e nas intervenes que se faziam possveis durante os encontros, constituiu-se a forma de inaugurar o atendimento como espao e tempo, de fala e escuta singulares, dentro do cotidiano da instituio e da institucionalizao. Isso foi um dado significativo: qualquer que fosse a denominao dada a nosso trabalho, ela precisaria contemplar como o cuidado inaugura a singularidade do sujeito num contexto coletivo pela possibilidade do confiar sua histria a um outro disponvel a ouvi-la.Os meses foram passando, e, a cada encontro, bem como a partir de seu dia-a-dia, Gabriel desvelava grande parte da histria de seus 15 anos. Com jeitomalandro, narrava situaes de violncia, vividas dentro e fora da unidade. Ora vtima, ora agressor, porm, sempre provocador, passava uma imagem de fortaleza e resistncia quase inabalveis. isso a senhor... Sua cara bater e a minha apanhar!... Mas... um dia... a gente se encontra l fora...,disse Gabriel a um funcionrio que o agrediu no perodo em que permaneceude tranca, por causa de sua participao em galinhagens7. Segundo Gabriel, asgalinhagens sempre eram carregadas de maldade.Em muitas oportunidades, chegava ao atendimento muito revoltado, reclamando e desabafando muito. Dizia que, quando sasse, no voltaria para a casa do pai. No estava mais agentando ficar preso e, assim, estava pensando em participar de um plano de fuga com outros meninos. Todas essas informaes iam contramo da imagem deadolescente recuperado, que inicialmente tentara passar, escancarando a diferena no modo de ocupar o espao do acompanhamento psicolgico.Desde criana, preferia passar a maior parte do tempo na rua com os amigos a casa do pai. Embora encontrasse a me na rua, e com certa freqncia, nunca mantiveram uma relao prxima. Sobre sua me, Gabriel falou algumas vezes, mas quando aparecia a oportunidade de falar sobre como se sentia em relao ao distanciamento entre eles dois, encerrava a conversa dizendo que achavanormalzol porque ela s me porque foi dela que eu nasci... Mas cuidar?... Nunca cuidou!.... Apesar da aparente tranqilidade e normalidade com que disso falava, demonstrava um descontentamento que o impedia de dar continuidade ao assunto, afastando de si o quanto esse modo de no-relao com a me o afetava.Aos 11 anos, contou ter fugido para o centro de So Paulo, onde permaneceu por, aproximadamente, dois anos e meio. O Viaduto do Ch, o Vale do Anhangaba, So Bento, Repblica e o Largo do Paissandu so locais que lhe traziam vrias lembranas. Era muito bom l senhora! - dizia, sem saber dizer o que era bom e do que gostava tanto por l. Dormia em portas de boates, onde algumas pessoas deixavam cobertores e colches nos dias de frio. Para se sustentar, roubava celulares para depois troc-los por algum dinheiro que usava para comprar comida. Muitas vezes, a polcia pegava os menor que roubavam, mas nunca lhe aconteceu nada de grave no centro.Passei frio... mas nunca passei fome... Andava pelas ruas noite... tudo cheio de luzes... Era mil grau senhora!...No centro, Gabriel conheceu sua primeira namorada: Priscila, menina bem mais velha e que trabalhava em uma boate. Com ela morou cerca de um ano. Durante o perodo em que permaneceu na unidade, tentou contat-la, mas ficou sabendo que ela tinha mudado de cidade. Apesar de ter namorado outras meninas, diz querer re-encontr-la e voltar para o centro da cidade.Indagar e questionar sobre como se sentia ao lembrar e narrar sua prpria histria de vida, nem sempre fazia sentido para Gabriel. Na maioria das oportunidades, no entendia as intervenes, nem mesmo a simples pergunta: O que voc sente?. A resposta vinha sempre acompanhada de um sorriso: senhora... no sei responder isso no... Diante desse contedo de interrogao, Gabriel ficava sem resposta. Aparentemente, no sabia dizer sobre como se sentia, abrindo-nos um questionamento: ser que alguma vez aprendeu como se sente? Ser que desaprendeu? Ou apenas esqueceu? Ou seria esse seu modo prprio de estar no mundo, permitindo-se, de alguma forma, proteger-se e mostrar-se pouco vulnervel perante o abandono de outros e o seu prprio? Gabriel dizia nunca ter parado para pensar sobre o qu e como sentia e, de fato, inicialmente, se recusava a faz-lo. Aps algum tempo, surgiram alguns ensaios para procurar identificar como estava se sentindo diante de determinadas situaes. Raiva, desesperana, frustrao e medo foram os sentimentos mais recorrentes em seus relatos.O Natal estava chegando. Na porta do ptio, na despedida do ltimo encontro, e antes da interrupo de frias, fui surpreendida com um presente feito por Gabriel: uma cestinha de dobraduras de papel com duas bonequinhas, embrulhadas de forma muito caprichosa. A despedida de fim de ano foi distinta: Gabriel tinha se dedicado cuidadosamente para se despedir, comunicando a importncia que dava ao trabalho que desenvolvamos juntos, bem como ao afeto implicado no relacionamento comigo.Na volta das frias, o assunto que predominou nos nossos primeiros encontros foi a elaborao do presente dado a mim e o resgate do sentido de dar presentes. No era a primeira vez que fazia, no sentido de produzir, um presente; narrou como j havia feito outras cestas de dobraduras de papel e tapetes do mesmo material. Em todas as oportunidades, o presente tinha sido preparado com um tempo de antecedncia, e sempre para famlia e amigos. Lembrou de cada presente, de cada pessoa e de como cada um havia sido por um motivo diferente, mas sempre mantendo como denominador comum o que Gabriel chamava deuma considerao.At o fim do ano, segundo informaes de funcionrios e professores da Fundao, Gabriel tinha melhorado bastante seu comportamento na unidade. At mesmo, havia sido anunciada a elaborao de seu relatrio conclusivo que, finalmente, seria encaminhado ao juiz a cargo do processo, recomendando a to esperada liberdade.Com quase dois anos de internao, Gabriel era um dos adolescentes mais antigos da unidade, tendo, assim, acompanhado, com certo receio, a mudana da populao interna, embora negasse veementemente tal temor. Relatava mudanas de regras no ptio que o surpreendiam e das quais tentava se manter afastado. Embora fosse referncia para a maioria dos adolescentes do ptio, em razo do tempo da permanncia na unidade, ele no gostava de ser chamado de lder, mas era um dos que mais opinava sobre o andamento da rotina dos internos.No demorou muito tempo para se tornarem recorrentes os relatos do prprio Gabriel referentes a envolvimento em brigas tanto com adolescentes quanto com funcionrios, alm de provocaes aos professores em sala de aula.Gabriel foi transferido para o outro ptio da unidade e, apesar de dizer que achavanormalzo, no conseguia esconder sua preocupao. Dizia no ter problemas de ser transferido para qualquer outra unidade, mas era claro que Gabriel estava assustado. Provavelmente, com medo do que poderia acontecer em outra unidade e, porque no, com medo tambm de sair em liberdade. Ele voltara postura agressiva marcante no ano anterior. Brigava, contestava e respondia a provocaes de maneira indiscriminada, prejudicando-se visivelmente, embora soubesse as conseqncias imediatas, mostrando-se pouco apropriado com respeito ao modo como estava se relacionando com ele prprio e com os outros. Com estes e outros questionamentos sobre o decorrer dos acontecimentos, volto unidade para atender. Gabriel havia sido transferido na vspera. Em decorrncia de seu comportamento agressivo a adolescentes e a funcionrios, optou-se pela sua transferncia, e, conseqentemente, transferncia dos problemas que vinha causando, para outra unidade.Fui surpreendida pelo j conhecido funcionamento instvel dessa instituio: submeter quem participa dela a sensaes de desamparo, de descuido, de desorientao. O que fazer diante da interrupo inesperada? Qual o sentido do meu trabalho dentro desta instituio? Quais os limites deste atendimento? Como est Gabriel? Como eu estou? Inmeras questes surgiram.Algumas foram respondidas, outras mantm-se ainda interrogantes. Algumas consideraes surgem para auxiliar na elaborao da experincia vivida, acima relatada. Talvez, mais do que buscar compreender o que o nosso fazer nesse atendimento psicolgico nesta instituio, seja buscar responder a mesma pergunta que fazamos a Gabriel, provocando sua no-resposta como proteo ao sofrimento: como fazemos nosso trabalho, ou seja, como o compreendemos? Dessa forma, antes de uma formulao terico-tcnica, faz-se necessrio encontrar a destinao de nosso fazer. Sob a perspectiva fenomenolgica existencial, compreendemos a empreitada teraputica como lugar para a compreenso do cliente por meio de sua prpria existncia, recorrendo-se ao modo como ele se revela a si e ao psiclogo/terapeuta (CARDINALLI, 2000). Desse modo, podemos compreender como Gabriel buscava escapar de conhecer como se sentia, a fim de no se fragilizar perante a inospitalidade real do mundo habitado por sua existncia. Fugir de si mesmo era garantir-se no sofrer, j que tantos so os percalos e os descaminhos da vida sonhada.Gabriel mostrava-se assustado diante das possibilidades que invadem o curso de sua vida, vivida limitadamente dentro da prpria instituio e, mais ainda, fora dela. Segundo Pompia (2004: 169),Somos destinados, mas podemos nos perder: podemos perder nossa morada no sentido, no saber o que fazer com a liberdade, sentir dificuldade para prosseguir em nossa direo. Nesses momentos preciso cuidado....Sim, limites limitantes so reais, mas h o grau de liberdade que cada um de ns pode escolher, ainda que essa liberdade, como no caso de Gabriel, pudesse apenas configurar-se como poder escolher uma entre tantas possibilidades. Afinal, escolher poder exercer o modo de ser livre humano.Mas, na existncia de Gabriel, nem sempre se fazia possvel esse modo. A transferncia para outra unidade aconteceu em momento delicado e de extrema necessidade de cuidado, quando apenas comeava a insinuar-se seu poder ser si prprio. A responsabilidade de cuidar de si, no que diz respeito a responder pelos seus atos, comeava a fazer-se gritante para Gabriel, que transitava pela vida se perdendo de si. E, justamente a ele, coube viver e conviver no momento de seu adolescer humano para empenhar-se por si s, dentro de uma instituio que favorece precisamente o descuido e abandono de si mesmo como sujeito. Gabriel, impactado pelo no poder ser o que lhe parecia ser o melhor, abandona a si prprio como forma de resistir a ser o que apenas lhe seria possvel.Desse modo, o atendimento de Gabriel, para alm de um espao prprio para contar sua histria, configurou-se como uma possibilidade de compreenso de seu modo de ser. E, aqui, um questionamento. Ancorado numa perspectiva fenomenolgica existencial, como pressuposto para uma elaborao terica em psicologia, nosso fazer ofereceu-se como um diagnstico interventivo: um modo de compreender como Gabriel se conduz por sua existncia no mundo com outros. Eis outra possibilidade de engendramento terico desta prtica que clama por explicitaes.AndersonEle foi encaminhado pela equipe tcnica porque usava crack e, por isso, infracionou. Na FEBEM, a medida proposta para ele era a participao nas reunies do N.A., s quais no gostava de ir, dizendo ser uma mera repetio de algo com o que ele no se identificava; acreditava ser como uma lavagem cerebral, portanto, sem sentido. Chegou perguntando quem era eu, o que eu fazia, que atividade era aquela e para que aquilo serviria. Estava claro que a demanda, pelo menos inicial, no era dele e sim, da equipe tcnica, que no sabia como resolver a questo de sua drogao.Expliquei, assim como fao com todos. A pergunta seguinte foi:Mas sobre o que para falar aqui?Minha resposta, como sempre: Sobre o que voc quiser, sem que isso comprometa seu relatrio. No fiml desse encontro, ele quis voltar. E, assim aconteceu por muitas outras vezes. Em seus atendimentos, falvamos de assuntos do nundo, sem comentrios a respeito de sua entrada no mundo das drogas ele ficava sempre surpreso porque eu s fala va em drogas caso ele tocasse no assunto. Muito diferente da grande maioria dos internos das unidades, ele tinha pais com alguma condio de ajud-lo, boa relao com a famlia, gostava de estudar e queria, realmente, fazer uma faculdade. Muitos dos atendimentos foram informativos, dadas as suas perguntas sobre vestibular. Nos primeiros encontros, em seu quarto ms de internao, no apresentava muitos sinais de institucionalizao. De forma muito animada, com muita energia, falava com poucas grias, no parecendo ter adquirido trejeitos no modo de andar; no aprontava no ptio nem arranjava confuso com funcionrios. Passava o dia tocando violo, arte que aprendeu em famlia, alm de compor msicas. Difcil saber se ele vinha ao atendimento por ter percebido sua prpria demanda, ou se era porque gostava do atendimento, ou se por se sentir bem, ou, ainda, apenas porque acreditava ser bom para seu relatrio. Mas o fato que vinha, aproveitando os 50 minutos; voltava, na prxima semana, sempre com reflexes sobre o atendimento anterior.Eis que um dia aconteceu uma situao em que um professor, sentindo-se agredido por ele, o denunciou direo. Como punio, foi decidida sua permanncia em isolamento por um tempo. Eu, que o via semanalmente, pude acompanhar seu sofrimento. Na primeira semana, seu desespero tinha uma energia: a vontade e a crena de que ia sair logo daquela situao. Ocupava a cabea pensando nessa esperana. A ameaa de ser transferido o apavorava, por causa da situao em que todas as outras unidades da Fundao se encontravam. Tratamos disso com todo o cuidado e respeito. O risco de ser transferido era grande, e isso poderia fazer com que nosso atendimento fosse interrompido. Decidi, ento, fazer uma avaliao do trabalho com ele. A nica coisa que soube me dizer, nesse momento, era que aquele espao era bom porque ele podia falar sobre tudo o que quisesse. O que era esse tudo? Sonhar com o Mundo, pensar na faculdade, acreditar nessa possibilidade. Eu embarcava, com ele, nessa viagem.Mas, diferentemente de nossas expectativas, na outra semana, ele voltou. Chegou calado, com rosto cansado. Ao contrrio de todas as outras vezes, sentou-se, encostou a cabea na parede, ficou calado, respirou e disse apenas:Eu no agento mais!... Eu estou chapando.... Todo o tempo passado no isolamento havia sido de ociosidade: eram proibidas atividades para quem submetido a esse tipo de punio. Nesse dia, o atendimento transcorreu em meio a muito silncio, olhar perdido e desanimado, como se houvesse sido medicado com um calmante forte. No havia mais esperana de sair.Na semana seguinte, ele ainda continuava no isolamento. Com olhar ainda mais perdido e desanimado, sentou-se, encostou a cabea na parede, repetindo que no agentava mais e que estava enlouquecendo. Agradeceu muito o fato de ter o atendimento, porque o retirava daquela solido enlouquecedora. Disse que poderia ser transferido para outra unidade e, assim, acreditava que, na outra semana, no nos veramos mais. Pensou muito em fuga e chegou a planej-la, pela primeira vez. Dizia:Se eles acham que a FEBEM educa... isso aqui no reinsere ningum... Eles falam que eu preciso ter bom comportamento!... Mas eu no fao nada... e ainda estou l... O que eles querem? Que eu fale s o que eles querem ouvir?Ao dizer isso, deu margem para que falssemos da institucionalizao e de seu modo de tratar os adolescentes como massinhas de modelar, dando a todos a mesma forma ou a forma que melhor conviesse instituio.Como talvez no nos encontrssemos mais, um encerramento foi necessrio. Perguntei: O que voc achou de ter esse espao e dos nossos encontros? Ele agradeceu, dizendo ser um espao onde ele podia falar sobre o que quisesse, porque eu no fazia relatrios e nem acreditava ter o poder de decidir sobre a liberdade de algum. Disse agora entender para que servia:Para falar de mim!, porque o psiclogo como um amigo... Mas no fala dele... e escuta tudo o que eu quiser falar... E... a gente tem uma histria... a nossa histria!.... Na despedida, agradeci por atend-lo, e ele devolveu:A senhora foi um presente!... A gente bolou muita idia!.Muito triste perceber por intermdio dele como, cada vez mais, a instituio institucionaliza o sujeito. A FEBEM realmente engessa os adolescentes em algum formato que, desejado ou no, os subordina e os enlouquece. E o espao do atendimento servia para resgatar, nesse adolescente, esse fio de esperana na possibilidade de uma resposta autnoma ao que a ele se apresentava. Desse modo, o atendimento de Anderson evidencia, na FEBEM, a perda da individualidade e a institucionalizao do sujeito. A medida de privao de liberdade, ou at, como nesse caso, o isolamento que deveria ocorrer por um curto perodo no poderia significar, de modo algum, que o adolescente perdesse seu direito fala, integridade fsica e afetiva, bem como dignidade. Em nossos encontros, o sofrimento causado pela institucionalizao necessitava de um cuidado, sendo essa a questo emergente no momento. No podemos pensar nesses adolescentes como peas amorfas, em desenvolvimento, que necessitam ser moldadas. Afinal,a morte do sonho traz uma experincia muito forte de solido. Ao conversarmos com pessoas que vivem o drama de uma solido muito intensa, em geral, deparamos com um sonho que morreu (...) O fim de um sonho uma das formas de perda do sentido. Essa perda traz no apenas dor. A pessoa pode sentir que perdeu tambm exatamente o que fazia sua existncia ser digna de ser vivida. como se ela se sentisse ferida em sua dignidade (POMPIA, 2004: 166).Se, por todos os lados, por dentro e/ou por fora, o eu do adolescente mortificado, ainda que esta no seja a inteno, diretamente comunicada da instituio, e mesmo que essa mortificao ou mutilao do eu tendem a incluir aguda tenso psicolgica para o indivduo (GOFFMAN, 1961: 49), a proposta dos atendimentos surge como forma de criar um espao para que esse adolescente receba acolhimento, retome sua histria e singularidade, podendo re-significar sua experincia. O fim da possibilidade de falar da prpria histria (...) significa a diminuio e, no limite, a abolio de uma demanda de singularizao. (...) A questo da histria do sujeito central (CARDOSO, 1997: 190).Consideraes possveisA narrativa refletida durante a elaborao deste artigo acena-nos tendncia de nomear a modalidade de prtica psicolgica desenvolvida pela equipe. Por outro lado, percebemos que nomear e definir poderia, neste momento, ainda levar-nos a restringir o sentido da nossa ao a conceitos tericos aliados a tcnicas aplicveis ou a atuaes que incorram normatizao do fazer clnico e dos sujeitos atendidos. Trabalhar na diferena, considerando as peculiaridades do trabalho desenvolvido com os adolescentes, permite-nos escolher a expresso acompanhamento psicolgico individual como forma de reconhecimento de um lugar desse fazer inaugural, diante dos questionamentos levantados.Nosso fazer ancora-se em duas atitudes essenciais:ver e ouvir, que no se expressam por meio da emisso de juzos nem interpretaes; ao contrrio, constituem-se como elementos fundantes de reflexo, traduzindo-se por interrogaes investigativas, visando a uma compreenso que se expressa na forma de relatos descritivos da situao experienciada (MORATO, 1999: 431).Assim, retomamos o questionamento inicial deste artigo para explicitar a percepo de algumas mudanas na atitude do plantonista proposta inicial da equipe de psiclogos foram sendo modificadas. A disponibilidade dos psiclogos em relao chegada dos adolescentes estendia-se para alm do momento de planto. Apesar de preservar os primeiros encontros como propcios para o esclarecimento da demanda de cada adolescente, percebamos uma expectativa de continuidade. Dessa forma, surgiram questionamentos que descaracterizavam nossa prtica como exclusivamente um planto psicolgico e a aproximava de um fazer clnico prprio de um processo teraputico.A manuteno de uma atitude que esteja atenta a cada encontro como nico ocorreu como forma de contemplar a possibilidade de escolha de quem participa de um processo teraputico pautado na liberdade de o cliente apropriar-se do espao de acordo com suas necessidades. Na medida em que propomos esse exerccio de liberdade por parte do adolescente, em seu lugar de cliente, estabelecemos um contraponto diante da institucionalizao imposta pela FEBEM/SP. A proposta do Acompanhamento Psicolgico Individual, que zela pela ateno e pelo cuidado s caractersticas de cada adolescente, vem contramo das prticas disciplinares que se propem nortear um processo socioeducativo dentro dessa instituio.Com base nos relatos anteriormente colocados, podemos encontrar, por ora, uma compreenso ainda inaugurante dessa modalidade de prtica, aqui chamada de acompanhamento psicolgico individual de adolescentes autores de ato infracional. Por ela, de um lado, torna-se perceptvel o desvelamento da sua experincia na direo de uma outra compreenso de si, do outro e da institucionalizao, possibilitando clarear modos alternativos de cuidar de si: uma ao realizada na concretude da existncia.Por outro, essa compreenso esclarecida permitiu-nos formular, de modo mais claro, nossos questionamentos crticos como sugestes para futuros encaminhamentos. Atentar a uma mudana na configurao do nosso trabalho demanda uma reflexo crtica referente a alguns aspectos tericos que possam estar presentes nessa forma de atendimento que estamos realizando e qual ainda, salvo melhor juzo, denominamos acompanhamento psicolgico individual. Nessa direo, ressaltamos a necessidade de uma discusso para compreender os aspectos apontados pelos relatos de alguns desses atendimentos. Nosso questionamento encaminha-se pelas seguintes dvidas: Como seria possvel nomear tal fazer? Seria planto? Seria psicoterapia? No poderia ser um diagnstico interventivo?De qualquer modo, este trabalho oferece-se como surgimento de interrogaes que, caso explicitadas, possam contribuir para uma reflexo cuidadosa, a fim de encontrar uma propriedade especfica para a prtica clnica do psiclogo em aconselhamento psicolgico. E mais ainda, permitir um esclarecimento da modalidade de planto psicolgico diante de outras possibilidades da prtica psicolgica como aconselhamento, hoje vista por ns como descaracterizada, dada multiplicidade de formas de atendimento sob essa denominao, mas sem uma pertinncia terica devidamente crtica e cuidadosa, pois, afinal, Aquilo que se procura no algo que vai acontecer l no fim do processo, mas algo que se d passo a passo (POMPIA, 2004: 156).ReferenciasBENJAMIN, W. Magia e tcnica, arte e poltica. InObras escolhidas, v. 1. So Paulo: Brasiliense, 1985.BRASIL.Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei Orgnica da Assistncia Social, Lei de Diretrizes e Bases. So Paulo: FABES & Prefeitura do Municpio de So Paulo, 1999.CARDOSO, I. A narrativa silenciada. In: CARDOSO, I. (org.)Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psicanalticas. So Paulo: Hucitec, 1997.FOUCAULT, M.(1987).Vigiar e punir. 24a ed. Trad. de R. Ramalhete. Petrpolis: Vozes, 2001.GOFFMAN, E.Manicmios, prises e conventos. So Paulo: Perspectiva, 1961.MORATO, H. T. P.Aconselhamento psicolgico centrado na pessoa Novos desafios. So Paulo: Casa do Psicolgico, 1999.POMPIA, J. A.Na presena do sentido: uma aproximao fenomenolgica a questes existenciais bsicas. So Paulo : Paulus: EDUC, 2004.ROGERS, C.R.Sobre o poder pessoal. So Paulo: Martins Fontes, 1978.SCHMIDT, M. L. S. Aconselhamento Psicolgico. In: ROSENBERG, R. L. (Org)Aconselhamento psicolgico centrado na pessoa. So Paulo: EPU, 1987.Endereo para correspondnciaHenriette Tognetti Penha MoratoR. Des. Joaquim Barbosa de Almeida, 36105463-010 So Paulo, SPTel. 3023 0167E-mail:[email protected] em 11/02/2005Aceito em 12/03/2005*LEFE/IPUSP (os autores deste artigo).1A equipe composta por trs psiclogos e uma supervisora.2Psiclogas e assistentes sociais contratadas pela FEBEM, responsveis pelo acompanhamento de cada adolescente interno. Dados divulgados na Folha de So Paulo em 08.06.04, no Caderno Cotidiano.3Referimo-nos, aqui, a um conceito trazido por Foucault (1987/2001) que designa um espao fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivduos esto inseridos em um lugar fixo, os menores movimentos so controlados, todos os acontecimentos so registrados e onde cada indivduo constantemente localizado constituindo um modelo compacto de dispositivo disciplinar. Ao compreender o panptico como modelo generalizvel de funcionamento, uma maneira de definir relaes de poder e pode ser aplicado ao funcionamento da FEBEM.4Psiclogas e assistentes sociais a cargo de quem fica a redao deste relatrio.5Os nomes verdadeiros dos adolescentes foram omitidos.6Nos dilogos, A refere-se fala do adolescente e P, do psiclogo.7Simulaes de brigas entre adolescentes, que facilmente ultrapassa a fronteira entre o que simulado e a real agresso.Todo o contedo deste peridico, exceto onde est identificado, est licenciado sob uma Licena Creative Commons Revista ImaginrioUniversidade de So PauloInstituto de PsicologiaLaboratrio de Estudos do ImaginrioAv. Prof. Lcio Martins Rodrigues, trav. 4, Bloco 17, sala 1805508-900 So Paulo - SP - BrasilTel.: +55-11 3091-4386 ramal 22Fax.: +55-11 3091-4475

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Formato Documento Eletrnico(ABNT)MORATO, Henriette Tognetti Penha et al . Acompanhamento psicolgico individual na FEBEM/SP: um convite a cuidar de si.Imaginario, So Paulo , v. 11,n. 11,dez. 2005 . Disponvel em . acessos em 17 jan. 2016.