Acervo PerformAre Performance e Processos Criativos Edmus Wstorolli

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    PERFORMANCE E PROCESSOS CRIATIVOS

    Wnia Storolli

    RESUMO: Neste artigo pretende-se investigar as questes relativas performatividade e criao artstica dotrabalho que se desenvolve a partir das relaes entre movimento, respirao e canto, fundamentado na prticada Respirao Vivenciada. Prope-se primeiramente uma contextualizao desta experimentao prtica,

    procurando inseri-la no panorama mais amplo da criao performtica. Parte-se da hiptese de que estatendncia, que surge da utilizao de prticas corporais na gerao de trabalhos artsticos, seja uma consequnciadireta e atual de um processo histrico que tem incio ainda no comeo do sculo XX e que tem levado consolidao de novos ideais artsticos.PALAVRAS-CHAVE:Arte da Performance; Criao Artstica; Respirao Vivenciada; Movimento; Voz.ABSTRACT:The purpose of this paper is to research the aspects of performance and artistic creation related tothe work with body-movement, breathing and singing, which is based on the practice known as BreathingExperience. Firstly it is intended to place this experimentation in the larger context of the performance art. Thetrend to develop art from a body-practice is supposed to be a direct and actual consequence of a historical

    process, which has started at the beginning of the twentieth century leading up to new artistic ideals.

    KEYWORDS:Performance Art;Art Creation; Breathing Experience; Movement; Voice.

    INTRODUOEntre meados e final do sculo XIX comea a se instaurar na Europa um movimento

    cultural que se caracteriza por um retorno corporeidade. Segundo esta nova tendncia, quese estabelece e se expande durante todo o sculo XX, o corpo humano passa a ser o centro dasatenes, tornando-se objeto de constantes pesquisas nas mais diversas reas doconhecimento. Ao se tornar palco de mltiplas investigaes, o corpo humano tambm retomao seu lugar de meio principal para a expresso artstica, passando frequentemente a serencenado como obra de arte. Paralelamente, representantes de todas as artes iniciam um re-estudo dos objetivos da arte, estabelecendo caminhos que iriam posteriormente levar Body-

    Art, aosHappenings e finalmente s performances.A arte da performance inicia-se com aqueles que se dedicam investigao do corpo,

    interessando-se principalmente pelo processo de trabalho, pelas improvisaes, pelomovimento do corpo, por suas aes e sua relao com o tempo e o espao. Como caminhonatural surge a possibilidade de integrar mtodos de investigaao do corpo criao artstica.

    Neste contexto tem surgido um interesse adicional em se investigar os princpios criativos decertas prticas corporais. Originalmente criadas para o auto-conhecimento e odesenvolvimento de uma conscincia corporal mais acurada, algumas prticas corporaistambm carregam em si um potencial que pode funcionar como estratgia para a criaoartstica. Deste fato surge a questo central deste estudo, que tem como objetivo investigar asrelaes entre a utilizao da prtica da Respirao Vivenciada 1 e a criao artstica,

    especificamente as questes relativas a seu aspecto performtico, propondo-se umacontextualizao desta forma de experimentao ao se procurar inseri-la no contexto maisamplo da criao performtica. Aponta-se tambm para esta forma de atividade prtica comouma possibilidade na sociedade atual de se garantir um espao para a manifestao artsticacriativa de pequenos grupos. Observa-se ainda que o surgimento destas questes torna-seapenas possvel num contexto artstico especfico, que se desenvolve principalmente a partir

    Doutoranda em Msica pela Universidade de So PauloBolsista FAPESP

    E-mail: [email protected] A Respirao Vivenciada, trabalho desenvolvido pela alem Ilse Middendorf, uma prtica de respirao queenvolve movimento e voz. Fundamentando-se nos princpios desta prtica tem sido desenvolvido um trabalho decriao a partir da interao entre movimento, respirao e canto.

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    das ltimas dcadas do sculo XX, quando o prprio conceito de arte passa por profundastransformaes, que sero aqui brevemente apontadas.

    JUSTIFICATIVAA investigao do corpo a partir de prticas corporais tem exercido uma influncia

    crescente sobre a criao artstica. Embora seja cada vez mais frequente o uso didtico demuitas destas prticas na formao de msicos e atores, ainda resta muito a ser investigado noque diz respeito a seu potencial criativo. O estmulo para este estudo surge a partir daobservao emprica, apresentando-se como um desdobramento natural resultante daaplicao prtica dos fundamentos da Respirao Vivenciada de Ilse Middendorf, assim comode tcnicas correlatas que tem sido utilizadas no trabalho prtico.

    A prtica parte basicamente do movimento do corpo em conexo respirao e voz ed grande nfase s improvisaes, estimulando-se tambm o ato de criar e no apenasreproduzir, gerando o gesto e o som criativo. Assim, tem sido observado que o processo detrabalho que se desenvolve a partir destes princpios, pode eventualmente apresentar umaconexo com a linguagem da performance. Em consequncia surge o interesse pela arte da

    performance e pelo papel do corpo na criao desta, indicando a necessidade de umainvestigao mais detalhada deste aspecto.

    Parte-se primeiramente da discusso sobre a questo da performatividade e dossignificados que o termo performance pode assumir e que sejam pertinentes questo

    proposta. Procede-se ento a uma contextualizao histrica da corrente performtica com ainteno de inserir esta experimentao prtica neste panorama, apontando-se tambm para ascaractersticas desta nova forma de arte, tais como a aproximao entre arte e vida.Finalizando, esboa-se uma reflexo sobre a experimentao prtica, onde alguns aspectosque caracterizam a arte performtica so nela apontados.

    1. A QUESTO DA PERFORMATIVIDADEO tema da Performance tem adquirido relevncia crescente em diversos campos de

    pesquisa da atualidade, tornando-se mesmo uma rea autnoma de estudos. Em relao sartes este fato pode ser visto como consequncia da produo das vanguardas do sculo XX,

    perodo em que a criao artstica caracterizou-se pela tendncia de privilegiar o corpo e seusmecanismos. Praticamente uma reao contra um mundo que at ento havia se desenvolvido

    predominantemente sob o jugo da palavra escrita.2 De fato esta reao ocorre tanto na prticaartstica como paralelamente nas diversas correntes tericas que se dedicam anlise dastransformaes provocadas pela re-introduo da corporeidade. Embora o interesse terico

    pela questo da performance tenha se intensificado na medida em que ocorre a multiplicaodos eventos performticos especialmente a partir dos anos 60, essa orientao terica pode ser

    detectada muito anteriormente. Para Erika Fischer-Lichte, terica alem que prope umateoria da performatividade, essa virada performtica na cultura europia no ocorre apenascom a cultura da performance dos anos 60 e 70, com a ecloso dos happenings e surgimentoda arte da performance, mas j tem incio no comeo do sculo XX. Nesta poca estabelecem-se novas bases para o trabalho de investigao das manifestaes rituais e das Cincias doTeatro, propondo-se uma inverso das posies dentro da hierarquia: do mito para o ritual,do texto literrio para a apresentao teatral 3 (FISCHER-LICHTE, 2004, p.45). De acordo

    2 Essa nova tendncia, na qual o corpo torna-se o centro, predominante na produo artstica do sculo XX.Apenas no final do sculo, a partir de 1990, a palavra novamente integrada s performances, mas na maior

    parte das vezes como material autobiogrfico. Segundo Carlson: a nfase inicial no corpo e no movimento, com

    uma rejeio geral pela linguagem discursiva, gradualmente tem dado lugar para a performance com a imagemcentrada e um retorno linguagem nos anos 90 (CARLSON, 2004, p.128).3 A prpria Fischer-Lichte faz a ressalva de que ainda bastante polmica entre os pesquisadores esta viso devirada performtica na cultura europia, que em geral se considera aps o perodo que vai da inveno da

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    com esta nova fundamentao, considera-se como manifestao primordial o ritual, sendoteatro e texto posteriores a ele. O impacto desta nova orientao no deixa de ser relevante,

    pois ressalta a importncia dos rituais, especialmente para os gneros performticos.4 Aquesto do ritual desperta tambm um interesse pela questo da corporeidade, j que o corpo o instrumento primordial para as manifestaes rituais. O ritual, forma de expresso que alia

    num nico fazer manifestaes de vrias linguagens, provavelmente o exemplo mais antigode arte da performance.

    2. PERFORMANCE E CORPOREIDADEAo se examinar o termo performance constata-se que pode assumir diversos sentidos

    sem que estes sejam necessariamente excludentes entre si. Performance pode significaratuao, mais especificamente desempenho. Richard Schechner aponta para a dificuldade emse definir o termo performance, citando Erving Goffman, para quem a performance umcomportamento que pode caracterizar qualquer atividade, e John Cage, para quem basta quese veja uma atividade como performance para que ela se torne uma. Schechner, por outrolado, pensa a performance como algo mais limitado, como uma atividade realizada por um

    indivduo ou grupo na presena de e para outro indivduo ou grupo (SCHECHNER, 1988,p.30). J o terico Paul Zumthor coloca que o termo e a idia de performance tendem (...) acobrir toda uma espcie de teatralidade(...) (ZUMTHOR, 2000, p.22). Marvin Carlsontambm aponta para esse uso do termo, que tradicionalmente sempre designou eventosteatrais (ou eventos da dana e da msica). Mas ressalta que embora o termo performancetenha se tornado extremamente popular em diversas reas de atividade, no existe umconsenso conceitual sobre o termo. Essa atmosfera de disacordo apontaria para a prpriariqueza conceitual da performance, que reside na diversidade e que capaz de abarcar em simanifestaes de diferentes naturezas. Carlson tenta mapear os mltiplos conceitos, que oradivergem entre si, ora se sobrepem. Ao se questionar sobre o que transforma as artes emartes performativas, parece chegar ao centro da questo, pois coloca que estas artes requerema presena fsica de seres humanos treinados ou com habilidades, cuja demonstrao a

    performance (CARLSON, 2006, p. 3).Paul Zumthor, cujo pensamento sobre performance parte de suas consideraes sobre a

    tradio potica oral, tenta cercar o termo e chegar ao que de fato essencial para que existauma performance. Considera que de modo mais imediato, a performance refere-se a umacontecimento oral e gestual. Tambm chega noo de que o elemento irredutvel seriaa idia da presena de um corpo, e portanto, conclui que recorrer noo de performanceimplica ento a necessidade de reintroduzir a considerao do corpo no estudo da obra(ZUMTHOR, 2000, p. 45). Parte-se aqui portanto do corpo como elemento mais importante

    para o estudo dos eventos performticos. O corpo traz consigo a noo de espao e essa

    relao traz consigo outra caracterstica a da teatralidade, qualidade que passa a integrarquase todo o fazer artstico, especialmente a partir das ltimas dcadas do sculo XX.

    3. CORRENTE PERFORMTICA E DISSOLUO DE FRONTEIRASA presena e importncia do corpo na realizao artstica confundem-se com a prpria

    gnese de suas primeiras manifestaes. Nas cerimnias rituais o corpo humano o sujeito e afora motriz, podendo-se considerar os primeiros eventos no mbito das manifestaes rituais

    impresso e consequente expanso do domnio do livro at o final do sculo XIX. Por isto, observa que se tratamuito mais de uma primeira virada no prprio sculo XX (FISCHER-LICHTE, 2004. p.45).4 Inclui-se aqui a msica. Para Richard Schechner o ritual uma das diversas atividades relacionadas ao teatro.

    As outras so brincadeiras, jogos, esportes, dana e msica... Juntas estas atividades representam o conjunto deatividades performticas dos seres humanos, sendo primordiais e estando presente em todas as sociedades(SCHECHNER, 1988, p. 6).

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    como ancestrais da arte performtica (GLUSBERG, 2003, p.11). Porm, os eventos maisrecentes que sinalizam um retorno performatividade no mundo ocidental encontram-se juntos manifestaes dos movimentos futurista e dadasta, assim como no surrealismo e na

    Bauhaus alem.A corrente performtica, que ganha fora e se expande at a atualidade, faz-se

    acompanhar por novos conceitos artsticos. Como uma das idias principais surge a questoda aproximao entre arte e vida. Tanto o dadasmo como o surrealismo, movimentos doincio do sculo XX, concebem como tarefa do artista a criao de uma arte alm do puro

    prazer esttico. Ambos pretendem acabar com a idia de arte pela arte e aproxim-la davida diria. A arte deveria afetar a vida das pessoas, faz-las ver e experienciar as coisas demaneira diferente (HOPKINS, 2004, p.3). Uma arte que tem compromisso com a experinciavivida coloca-se como polo oposto ao conceito de arte sagrada e separada da vida. A obra dearte, dita elevada, havia sido mantida durante sculos separada da vida profana na sociedadeeuropia. Neste processo, a presena do corpo tambm havia sido banida. Sem dvida, atendncia que se instaura de privilegiar o aspecto performtico, de incluso do corpo, sinalizauma reao a esta situao. Esta reao, pertinente aos movimentos acima citados, conduz

    desacralizao da criao artstica de maneira progressiva durante todo o sculo, levando auma concepo esttica radicalmente diversa da at ento predominante. Esta idia acompanhada por uma procura por novos materiais que refletem o meio ambiente e a vida dodia-a-dia, numa proposta onde os novos conceitos podem ser experimentados.

    O processo de experimentao de novos materiais provoca a integrao entre os gnerosartsticos. Desta forma, ocorre a dissoluo das fronteiras entre as diversas linguagens,

    principalmente entre as artes plsticas, o teatro e a msica, o que em ltima anlise leva aosurgimento de uma arte onde a caracterstica performtica predomina. No panorama daexperimentao e da interdisciplinaridade, algumas instituies tiveram papel determinante aocolocar em prtica, atravs da vivncia e do ensino, os novos conceitos de arte e pedagogia,estabelecendo condies ideais para a experimentao de novas estticas. De grandeimportncia so os eventos ligados a EscolaBauhaus na Alemanha, que tm influncia diretano desenvolvimento posterior da arte da performance, principalmente pela continuidade dadaa seus ideais pela instituioBlack Mountain College, fundada em 1933 nos Estados Unidos.Segundo Carlson, aBauhaus foi a primeira escola a estudar seriamente a performance comouma forma de arte (CARLSON, 2004, p.100). Fundada em 1919 por Walter Gropius, seusobjetivos eram o de buscar uma fuso das artes e dos artesanatos em geral, diminuindo aomesmo tempo, o intervalo entre as artes e a evoluo industrial (GLUSBERG, 2003, p.21).Oskar Schlemmer, responsvel pelo departamento de dana e teatro da Bauhaus entre 1925 e1929, tenta em suas produes integrar numa s linguagem a msica, o figurino e a dana.Para Schlemmer o teatro era um local de experimentaes que servia como gerador de novas

    idias. Alm disto, o teatro era visto como um local onde a juno de todas as artes, o sonhoda Gesamtkunstwerk, podia ser possvel, idia que foi perseguida pela Bauhaus, e que se fazsentir no desenvolvimento de grande parte da arte do sculo XX. Carlson aponta como

    principal conquista da experimentao artstica naBauhaus a superao de fronteiras entre asdiversas artes:

    (...)entre as artes plsticas e as artes performticas, entre as artes eruditas do teatro,ballet, msica e pintura, e as formas populares tais como o circo, o vaudeville, oteatro de variedades, de fato at entre arte e a prpria vida, como no conceito do

    bruitismo. (CARLSON, 2004, p. 101)

    A exemplo daBauhaus, tambm noBlack Mountain College as novas idias artsticas

    so no apenas ensinadas, mas diariamente vivenciadas, fazendo parte da troca diria entreseus participantes. O conceito de arte elevada, separada da vida, nelas recusado. Existe

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    tambm a crena de que todos possuem uma natureza criativa e podem desenvolver suapercepo sensorial, estando aptos a experienciar alguma forma de expresso artstica.

    NoBlack Mountain College o compositor John Cage encontra uma atmosfera propcias novas experimentaes e um ambiente onde suas idias podem ser colocadas em prtica,estimulando o surgimento de uma nova arte. Em sua obra escrita e nas inmeras palestras-

    performances que realizou, John Cage tentou deixar evidente a interpenetrao entre arte evida, idia fundamental de sua filosofia. Sua influncia fez-se sentir no apenas na msica,mas tambm nas artes plsticas e no teatro. Carlson coloca como as idias revolucionrias deCage, tanto em msica quanto em esttica, exerceram uma profunda influncia no processo deexperimentao de todas as artes (CARLSON, 2004, p.103). Segundo o pensamento Cageano,o teatro e a performance seriam formas mais apropriadas do que outras formas de arte, por

    possibilitarem uma multiplicidade de experincias, caracterstica que os fazem mais prximosda vida.

    4. A VISO DE UMA NOVA ARTEComo parte das mudanas propostas segundo os novos conceitos artsticos, a incluso

    da audincia de forma ativa torna-se um fato, assim como a utilizao de espaos edisposies cnicas no usuais traz uma nova perspectiva esttica para a arte em geral. O

    cerimonial formal, geralmente presente nos eventos musicais tradicionais, tende a ser

    substitudo por uma forma de ritual em que h real possibilidade de participao da audincia.

    De certa forma at o conceito de audincia passa por transformaes. Para a realizao de

    uma performance no h mais a necessidade de uma audincia tradicional, que pode ser at

    mesmo abolida. Audincia e performers se alternam na pessoa do mesmo indivduo. O

    importante a postura de vivenciar ativamente a experincia esttica, de participar, de

    construir conjuntamente a vivncia, o evento. A arte pode fazer parte da vida das pessoas,

    todos esto aptos para tal vivncia. Vivncias, eventos, processos, instalaes, performances...

    so os termos que passam a definir a arte e que se contrapem ao produto at ento conhecido

    como obra de arte.

    Se a partir da segunda metade do sculo XX esta nova esttica passa a ser realidade e se

    afirmar como fato, seu surgimento tem origem na experimentao contnua a partir das idias

    de pensadores visionrios, sendo talvez um dos mais importantes, Antonin Artaud. Embora

    Cage tenha o mrito de retomar e difundir os novos conceitos artsticos atravs de sua

    integrao criao musical, fundamental identificar que a origem de grande parte de suas

    idias encontra-se no pensamento de Artaud. O prprio Cage relata como o contato com as

    novas propostas de Artaud levou ao surgimento do primeiroHappening.5Em O teatro e seuDuplo, Artaudj identifica na dcada de 30 a necessidade de uma transformao radical da

    forma de fazer arte, afirmando que as obras-primas do passado so boas para o passado; no

    servem para ns (ARTAUD, 1984, p. 97), algo que ser defendido repetidamente por JohnCage. Para Artaud, a arte ocidental burguesa tornou-se absolutamente intil, pois a

    imobilidade caracterstica das obras-primas faz com que elas no consigam atender s

    necessidades do tempo por terem se tornado meramente literrias. Artaud ataca a idia de

    arte pela arte, da arte desligada da vida, da arte individualista, apontando para a necessidade

    de se acabar com a supremacia do texto escrito e de se tentar reencontrar apoesia que existesem forma e sem texto, atravs dos meios modernos e atuais. Afirma a urgncia do retorno ao

    5 Refere-se aqui a Untitled Event, que foi apresentado no festival de vero de 1952 noBlack Mountain College ecelebrizado como o evento que desencadearia a produo de inmeros happenings nos anos 50 e 60. Acomposio heterognea do grupo, composto pelos performers John Cage, Merce Cunningham, Robert

    Rauschenberg, David Tudor, Jay Watt, Charles Olsen e Mary Caroline Richards, provenientes de diversas reasartsticas, resultou numa ao multi-mdia que incorporava o acaso e a no-intencionalidade como elementosestruturais.

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    gesto, a importncia dos meios fsicos. Em sua proposta, conhecida como Teatro da

    Crueldade, a sonorizao deve ser constante, sons, rudos, gritos so buscados primeiro por

    sua qualidade vibratria e, a seguir, pelo que representam (ARTAUD, 1984, p.106). O som,a luz e a ao so os elementos principais do teatro proposto por Antonin Artaud, que

    pretende ressuscitar a idia do espetculo total, defendendo um teatro que se dirija a todo

    organismo, portanto que atue sobre os sentidos e no meramente sobre o entendimento.Artaud tem poucas oportunidades de colocar suas idias visionrias em prtica, mas elas

    sero fundamentais para o fazer artstico do sculo XX, quando a ateno se volta para osprocessos que atuam sobre os sentidos, para a construo de eventos que atinjam as pessoasatravs de sua percepo sensorial e no atravs da razo. A investigao dos processos docorpo torna-se ainda mais importante. A voz passa a ser utilizada de maneira at entoinusitada, abrindo caminho para futuras experimentaes que iro proliferar tambm nocampo da criao musical. A atualizao das idias de Artaud e sua transposio para omundo da msica realizadas por Cage cooperam para o surgimento de novos processoscriativos. John Cage traz de maneira significativa para a msica e para os msicos o retornoao corpo. Isto possvel principalmente atravs da aproximao com o teatro e com a

    experimentao prtica a partir das idias de Antonin Artaud.O processo da criao e a percepo sensorial tornam-se no novo contexto artstico

    pontos centrais de interesse. O que primeiramente era pertinente apenas para os movimentosde vanguarda, expande-se cada vez mais. A arte aproxima-se da vida. No mais toimportante criar uma grande obra de arte. O conceito da arte contempornea parte dainteno de se criar algo que esteja integrado vida. Eventualmente algo, que possatransformar a percepo usual e a relao do observador com o assunto em questo. Estatransformao tambm deve ser perceptvel para o artista que toma parte neste processo decriao. Na verdade, o processo tornou-se mais importante do que o resultado e muitas vezeso ltimo quase no se diferencia do primeiro. Neste sentido, a obra artstica no precisa seruma grande obra, pois segundo John Cage, a caracterstica principal das grandes obras dearte o fato de que esto separadas da vida (NYMAN, 1981, p.1).

    Alm dos meios existentes no contexto dos movimentos artsticos, surgemparalelamente outras formas de se produzir uma arte mais prxima da vida. Para SimoneHeilgendorff, por exemplo, as prticas corporais que se desenvolvem no mbito da

    Freikrperkultur6, especificamente na Alemanha, constituem tambm um caminho que podelevar a uma arte que se aproxima da vida (HEILGENDORFF, 2002, p.65). Essa forma de

    pensar o trabalho corporal ir ter muitos desdobramentos e conexes com a criao artsticadurante todo o sculo XX, acompanhando-a de maneira cada vez mais intensa at os diasatuais. este contexto artstico especfico, representado pela corrente performtica em que asinvestigaes do corpo tambm se fundem com o processo criativo, que permite a

    considerao de que determinado uso de prticas corporais, tais como a RespiraoVivenciada, possa ser compreendido como uma manifestao artstica pertinente arteperformtica. De certa forma este panorama sugere as transformaes pelas quais tem passadoa prpria arte da performance, assim como as mudanas que tem ocorrido no mbito dosconceitos artsticos.

    5. RESPIRAO VIVENCIADA: PERFORMANCE E CRIAODa experimentao prtica com a Respirao Vivenciada no contexto do trabalho que

    envolve movimento, respirao e canto surge basicamente a questo que motiva este estudo eque estimula as reflexes relativas ao aspecto de criao e performatividade do uso da prtica.

    O trabalho com a Respirao Vivenciada, desenvolvida pela alem Ilse Middendorf,

    teve incio com a inteno de proporcionar um processo de reorganizao da respirao junto

    6 (N. da T.) Cultura do corpo livre.

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    s atividades relacionadas ao canto, representando estratgia alternativa s tradicionais. A partir desta experincia e atravs da formao de grupos de trabalho, a pesquisa sobre asrelaes entre movimento, respirao e canto tem tido continuidade, adotando comofundamento principal a Respirao Vivenciada. Prticas complementares so introduzidas e otrabalho desenvolve-se livremente, porm sempre levando em conta a integrao e pesquisa

    dos trs componentes. Surgem questes decorrentes de um uso particular da prtica de IlseMiddendorf, que passa a ganhar contornos pessoais a partir do momento em que ainvestigao se concentra em seu potencial criativo. Como produto da vivncia da respiraosurgem ento improvisaes vocais e gestuais, resultado das relaes que a respiraoestabelece com o movimento e com a voz, sugerindo um evento performtico. O processo deexperimentao conduz assim questo central de investigao do aspecto performtico dautilizao da prtica.

    De que forma uma prtica como a da Respirao Vivenciada, baseada na vivncia dosprocessos respiratrios e criada para o auto-desenvolvimento e auto-conhecimento, podeestabelecer uma ligao com a criao artstica relacionada performance? Em que sefundamenta a experincia performtica da Respirao Vivenciada? Estas so as questes que

    mobilizam a investigao dentro do contexto da performatividade e que se situam comodecorrentes de um processo histrico especfico, aqui mencionado.

    A experimentao prtica com a Respirao Vivenciada carrega em si a possibilidade deexpresso artstica na medida em que a expirao pode se tornar um momento de aocriativa. Na vivncia prtica entra em ao a expresso do corpo que se manifesta atravs demovimento e voz. Uma dana da respirao e um canto da respirao, que se diferenciam dadana usual e da tradio do canto na medida em que representam o resultado do processo darespirao e com isso carregam a chance de trazer tona aspectos profundos do ser, tornando-se veculo para o processo criativo. Ilse Middendorf 7 comenta como a prtica quedesenvolveu o comeo de uma nova forma de ouvir, uma nova forma de cantar e de danar.E pode-se adicionar, uma nova forma de criar, pois no movimento que surge da respirao ha presena do artstico.

    O corpo nesta prtica o material fundamental para a criao. No apenas o corpo comoelemento fsico, mas principalmente enquanto processo representado pela respirao. O

    processo da respirao investigado pela prpria percepo e seu aspecto criativo despertado, podendo surgir como acontecimento performtico e ser compreendido destaforma, lembrando-se que a arte da performance mostra frequentemente interesse emdesenvolver as qualidades expressivas do corpo, especialmente em oposio ao pensamento efala lgica e discursiva, e em procurar a celebrao da forma e do processo sobre o contedo eo produto (CARLSON, 2004, p. 110).

    A experincia e a vivncia de todos os participantes so pr-requisitos para a

    representao performtica da respirao. Por sua vez, esse processo no pode ocorrer semconscincia e percepo. A performance compe-se do processo e o resultado no o maisimportante, pois muito mais importante a transformao de todos os participantes comoconsequncia da experimentao prtica. Em Performance como Linguagem, Renato Cohenchama ateno para o fato de que a busca do desenvolvimento pessoal um dos princpioscentrais da arte da performance e da live Art (COHEN, 2002, p.104). O que resulta do

    processo no previamente conhecido e no pode de fato ser repetido da mesma maneira. Oresultado algo novo, mesmo quando h similaridades. Improvisaes so aqui umaestratgia natural e acompanham a investigao da prpria respirao. Improvisaes, que seexpressam por meio de movimentos e canto, atravs dos quais surge um tipo de verdadehumana universal, que por sua vez traz consigo o conceito da autenticidade. Frequentemente

    surgem cantos que lembram os procedimentos ritualsticos, uma espcie de canto primordial

    7 Middendorf em entrevista a esta autora no dia 04 de julho de 2006, em Berlin.

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    que habita os seres sem que eles at ento soubessem disto. Os corpos entram em ressonncia.No espao, onde resulta a ressonncia dos corpos e vozes, os indivduos podem vivenciar umaespcie de comunho, como num ritual. Conjuntamente decide-se ento, quando este ritualdeve chegar ao fim. Cessa o som, cessa o movimento. Resta a noo de que houve umaexperincia que influe diretamente sobre a questo perceptiva. H uma mudana sutil na

    percepo de si prprio e do outro, assim como do espao ao redor.No h nada pr-determinado, com exceo de alguns movimentos iniciais que servemcomo estmulo para a vivncia da respirao. Pode-se, no entanto, observar umdesenvolvimento no decorrer da experimentao prtica. Quanto mais se exercita neste tipo deatividade e quanto mais o grupo de iniciados estabelece-se como grupo, maior a

    probabilidade de surgir uma espcie de ritual performtico. A experimentao prticaconcentra-se na trajetria sem que haja expectativas por um determinado resultado. No existeum objetivo calculado de se criar um produto artstico, porm o que se tem um eventoartstico onde todos podem participar, independentemente de suas habilidades eespecialidades. Existe a noo de que todos esto aptos a ter esta experincia esttica.Importante a expresso criativa dos participantes, que viabilizada atravs desse

    procedimento. Os movimentos, que aparecem durante a prtica, ligam tempo e espao numprocesso que se desenvolve constantemente e do qual surge uma espcie de coreografia.Linguagens artsticas distintas, em especial as provenientes das artes do movimento e damsica, so misturadas. A ressonncia da voz e suas diversas possibilidades de expresso soinvestigadas, assim como os movimentos do corpo. Audincia e performers fundem-se nomesmo indivduo. A observao da atuao do outro acaba por influir na prpria atuaoviabilizando assim um processo de contnua interao criativa. O trabalho prtico a partir dosfundamentos da Respirao Vivenciada resulta num processo de experimentao artstica,garantindo um espao para a atuao criativa no mbito do movimento e da voz acessvel aum pblico comum. Um espao onde passa a existir uma maior proximidade entre arte e vida,um espao para o desenvolvimento de uma arte onde predomina a atuao criativa e a

    performance. O desdobramento artstico resultante deste processo de experimentao provocaa transformao da percepo dos envolvidos e at mesmo a transformao da prpria prtica.Como Middendorf coloca: a transformao ocorre sempre, constante tanto no trabalhocomo na prpria audio. 8

    CONCLUSOA questo que naturalmente se coloca, em que medida os processos de uma prtica de

    auto-investigao podem ser interpretados como arte performtica. Possivelmente esta umaquesto do ponto de vista da observao, estando-se aqui de acordo com a posio de JohnCage, mencionada no incio deste estudo. O fim da importncia da obra de arte como objeto e

    a aproximao entre arte e vida so caractersticas h muito tempo perseguidas, presentes emdiversos movimentos artsticos desde o sculo XX. Da perspectiva do artista, tal prtica podeperfeitamente ser considerada uma performance artstica e que conduz para uma nova formade fazer artstico, possvel de ser assim compreendida devido afirmao de uma novaesttica e do surgimento de novos conceitos de arte. O retorno performatividade passou agerar trabalhos nos quais o corpo humano o propulsor da criao artstica. Mesmo que estemovimento de ateno extrema dispensada ao corpo possa ser visto como uma eventualconsequncia da postura individualista e materialista da sociedade ocidental, o que talveztenha sido pertinente em certos momentos, exatamente esta atitude de investigao do corpoe de tudo o que contm, que tem possibilitado uma reaproximao com a espiritualidade,assim como tem conduzido a um processo de desacralizao da arte e crescente

    8 Middendorf em entrevista a esta autora em 04 de julho de 2006, em Berlin.

  • 8/9/2019 Acervo PerformAre Performance e Processos Criativos Edmus Wstorolli

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    democratizao dos meios artsticos, numa espcie de re-inveno e atualizao dasmanifestaes rituais.

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