A propósito dos 125 anos da lei áurea: inserção negra no segmento evangélico

download A propósito dos 125 anos da lei áurea: inserção negra no segmento evangélico

of 11

description

Este artigo aborda aspectos históricos e sociais presentes nos processos deinserção de pessoas negras no segmento evangélico. O texto é desenvolvidoseguindo uma linha histórica desde a chegada do protestantismo ao Brasil atéa atualidade. Este artigo tem a pretensão de compreender fenômenos sociaise religiosos presentes nas ações de resistência e de formação de identidadesnegras evangélicas.

Transcript of A propósito dos 125 anos da lei áurea: inserção negra no segmento evangélico

  • Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v18n1p13-23

    13

    A propsito dos 125 anos da lei urea: insero negra no segmento evanglico

    Concerning the 125 years of the Golden Legislation [Brazilian abolition from slavery]: the presence of Afro-Brazilians in Protestant and Pentecostal churches

    El propsito de los 125 aos de la Ley de Oro [de la abolicin de la esclavitud]: la insercin negra en el segmento evanglico

    Din da Silva Branchini

    RESUMOEste artigo aborda aspectos histricos e sociais presentes nos processos de insero de pessoas negras no segmento evanglico. O texto desenvolvido seguindo uma linha histrica desde a chegada do protestantismo ao Brasil at a atualidade. Este artigo tem a pretenso de compreender fenmenos sociais e religiosos presentes nas aes de resistncia e de formao de identidades negras evanglicas. Palavras-chave: Protestantismo; religio; negros/as; racismo; pentecostalismo.

    ABSTRACTThis article approaches historical and social aspects present in the processes social insertion of the black people Brazilian in the evangelical segment. The text is developed following a storyline, from the arrival of Historical Protestantism, until the present moment. This article has the pretention of understanding social and religious phenomenon presents in the actions of resistance and formation of black identities evangelical social Key Words: Protestantism; religion; black people; racism; pentecostalism.

    RESUMENEste artculo enfoca aspectos histricos y sociales presentes en los procesos de insercin de personas negras en el segmento evanglico. El texto sigue una lnea histrica desde la llegada al Brasil del protestantismo hasta la actualidad. Este artculo pretende comprender fenmenos sociales y religiosos presentes en las acciones de resistencia y de formacin de identidades negras evanglicas. Palabras clave: protestantismo; religin; negros/as; racismo; pentecostalismo.

    IntroduoAs comemoraes dos 125 anos de abolio remetem no s ao ato

    legal, mas tambm ao tempo do advento da Lei urea, enquanto tempo de esperana de liberdade, por parte dos/as negros/as escravizados/as, e de uma vida digna, em igualdade de direitos civis e sociais com a populao branca.

  • 14 Din da Silva Branchini: a propsito dos 125 anos da lei urea

    A esperana e a busca de experincia de processos libertrios tm sido uma constante em vrias reas da vida das pessoas negras. A religio representa uma dessas dimenses de libertao e insero negra; e as igrejas evanglicas constituem o segmento de maioria negra. Neste texto, so consideradas igrejas evanglicas as igrejas histricas ligadas ao pro-testantismo - metodista, batista, presbiteriana e outras - implantadas desde a segunda metade do sculo 19, seguidas das igrejas pentecostais, que surgiram no sculo 20, e das neopentecostais, a partir da segunda metade do sculo 20. As questes que transitam neste texto esto relacionadas aos aspectos socioculturais da populao negra aps a promulgao da Lei urea e, particularmente, aos impactos das igrejas evanglicas na vida de seus/suas seguidores/as negros/as.

    Para o entendimento destas questes, no pode deixar de ser evidenciado o fenmeno do racismo, o qual, apesar de ser produto de ideologias racistas formuladas na sociedade europeia moderna (sculos 18 e 19), foi disseminado entre a elite intelectual, poltica e empresarial brasileira na transio dos sculos 19 e 20. Assim, tanto a Lei urea quanto o segmento evanglico tambm sero analisados sob o aspecto do fenmeno do racismo, enquanto promotor das desigualdades socio-culturais que afetam negativamente o segmento negro.

    O interesse pelas questes levantadas neste texto est relacionado ao fato de que, aps 125 anos da Abolio e de insero negra no meio evanglico, permanece a desigualdade sociocultural, e o segmento negro, tanto o social como o evanglico, continua enfrentando preconceitos so-cioculturais que impedem a libertao das pessoas negras para desfrutar de cidadania plena em igualdade com o segmento branco. Falar sobre racismo ainda tabu na maioria das igrejas evanglicas, provocando reaes e discusses de base emocional.

    comum o silenciamento das pessoas negras, quando vtimas de racismo, dentro ou fora do contexto das igrejas, devido aos sentimentos de vergonha e constrangimentos, bem como a sujeio s relaes so-ciorraciais estabelecidas. Nos dias atuais, ainda so frequentes discursos e teologias intolerantes em relao cultura e s religies de matrizes africanas, bem como de satanizao do continente africano, as quais so aceitas como dogmas por muitos cristos evanglicos.

    O texto aborda as relaes existentes entre o segmento evanglico e as pessoas negras adeptas a ele, por meio de um dilogo entre a viso de Bastide (1985) sobre o negro protestante e o pensamento de Foucault (1979) e Bourdieu (2001) sobre relaes de dominao; e de Hall (2003) e Rivera (2001) sobre a construo de identidades contemporneas.

    A Lei urea marco na vida da populao negra e, em pleno pro-cesso de abolio, o protestantismo chega ao Brasil. A insero negra no

  • Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v18n1p13-23

    15

    segmento evanglico, de hoje, tem suas razes no protestantismo histrico. A questo como se d esta inter-relao entre o negro evanglico e a sua identidade negra?

    A autora desenvolveu, no mestrado, o tema: Religio e Identidade: um estudo sobre negros metodistas da regio metropolitana de So Pau-lo, o qual manteve como foco de estudo e atuao durante o perodo em que esteve frente do Ministrio Regional 3 RE - de Aes Afirmativas Afrodescendentes e da Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, ambos da Igreja Metodista no Brasil.

    Negros evanglicos: assimilao ou recriao de identidades? A dimenso religiosa, em seu aspecto histrico e atual, uma fora

    marcante e contraditria no desenvolvimento individual e coletivo das pessoas negras, ora como fora libertadora ora como fora opressora. A questo principal compreender a dinmica inter-relacional entre as identidades religiosa e etnicorracial das pessoas negras evanglicas.

    Religio uma instituio humana presente nos diferentes grupos e mediadora na relao com o sagrado, o transcendente. Por sua dimenso social, a religio est interconectada com outras reas da sociedade e envolve relaes de poder, de classe, de gnero, de raa/etnia (SOUZA, 2006, p. 8). um poder legitimador das normas e crenas dos grupos aos quais representa ao mesmo tempo em que legitimado e sacralizado pela prpria crena dos fiis (BOURDIEU, 2001, p. 52-53).

    Este poder institucionalizado habilita os agentes religiosos, legitima-dos pela sociedade, a desfrutarem do prestgio e do poder de falar em nome de seu deus. Desta forma, esto autorizados a impor, aprovar ou reprovar condutas morais, com poderes divinos de vida e de morte.

    Dentro do campo religioso, as tradies africanas e indgenas, re-presentantes de grupos subalternizados, sofreram, historicamente, per-seguies pelo segmento cristo, detentor do poder religioso por mais de quatro sculos, apesar de ser representativa a presena de pessoas negras dentro das igrejas crists, catlicas e evanglicas.

    Segundo Setiloane, pesquisador sul africano, metodista, o fato de os africanos terem como princpios: integralidade, valor da comunidade, respeito pessoa e fora vital facilitou a aceitao, por eles, da f crist. Foi essa conscincia de Deus e esse temperamento religioso que torna-ram possvel a evangelizao da frica e que forneceram base para ela (SETILOANE, 1992, p. 47).

    Porm, a evangelizao fundamentada na viso racista contribuiu para desqualificao da espiritualidade dos povos africanos e consequen-te subalternidade poltica, econmica e sociocultural aos colonizadores europeus.

  • 16 Din da Silva Branchini: a propsito dos 125 anos da lei urea

    No Brasil, apesar das adversidades da escravizao, as crenas afri-canas sobreviveram; reinterpretadas na convivncia cotidiana, encontraram formas de passagem de um a outro universo religioso e se encarnaram no corpo social e se reproduziram de acordo com as tradies ancestrais entre diferentes grupos (BASTIDE, 1985, p. 85).

    As religies afro-brasileiras, como Candombl, Umbanda, Tambor de Minas, e outras, so configuraes mais recentes, resultantes de cons-tantes recriaes. Bastide (1985, p.117/120) e Munanga (2006, p. 140) consideram que estas religies desempenharam o papel de resistncia contra a dominao sociocultural europeia e de centro agregador e guar-dio das memrias culturais da frica. Contudo, elas sempre existem na marginalidade, sofrendo preconceitos e sendo identificadas como feitiaria, macumba e charlatanismo.

    At meados do sculo 20, seus cultos eram registrados como ocorrncias policiais (ORO; BEM, 2008, p. 307-311). Mesmo aps a Constituio de 1988, que declarou a liberdade religiosa, esses grupos sofrem perseguies, por parte de outros grupos religiosos, principalmente evanglicos, ocorrendo destruio de smbolos religiosos, de templos e ameaa fsica a seus seguidores.

    Assim, religio crist apresenta um significado dbio para a populao negra brasileira: discurso do amor cristo e apoio s foras de opresso. O catolicismo, religio oficial da monarquia portuguesa, em nome de um deus cristo, abenoou os suplcios sofridos pelas pessoas escravizadas. Por meio de teologias de justificao da escravizao e de conforto para os escravizadores, pregavam o castigo e a tortura como um bem prestado para a alma da pessoa escravizada, e o batismo compulsrio um meio de salvao da alma no do corpo.

    O povo negro, por sua vez, encontrou brechas ou formas de pas-sagens no catolicismo para praticar suas crenas, rituais e festas, como as Irmandades de pretos, que tinham a funo de ajuda mtua e de apoio financeiro para alforria de escravizados/as, e as congadas, com a representao da coroao dos reis de Congo, entre tantas outras (MU-NANGA, 2001, p. 147).

    Durante o processo abolicionista, a Igreja oficial no adotou, de incio, uma posio radical pela abolio, mas se manteve numa posio mode-rada e de tendncia emancipacionista gradual. Somente a partir de 1887, quando era inevitvel a extino do regime, houve manifestaes abertas de prelados catlicos, condenando a escravido, como incompatvel com o cristianismo, e defendendo a abolio (PEREIRA, 2011, p. 14,19).

    Sobre a insero negra no segmento evanglico, destacado, inicial-mente, o segmento protestante, que chegou ao Brasil com os imigrantes europeus, beneficiados pela abertura dos portos e pela abertura religiosa, a partir do incio do sculo 19; e na segunda metade do sculo, chegaram

  • Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v18n1p13-23

    17

    os missionrios norte-americanos. Porm, todos os grupos protestantes, inclusive os holandeses, no sculo 16, e os franceses, no sculo 17, no se manifestaram contra o sistema escravagista; ao contrrio, tambm se beneficiaram do trabalho escravo.

    Os protestantes tinham a viso de que o povo negro apresenta-va costumes degenerados e contrrios s virtudes crists. Portanto, a evangelizao desse grupo visava inculcar a submisso e obedincia. A evangelizao era para a integrao, converso e educao do negro dentro da cultura protestante [...] que o ensino religioso incuta [...] os deveres morais, a honestidade e o amor ao trabalho [...] que lhes mostre o caminho do dever [...] (BARBOSA, 2002, p. 155).

    O protestantismo imps sua cultura aos adeptos utilizando-se de tcnicas disciplinares para submisso supremacia branca e ordem por ela estabelecida. O ensino religioso, por meio de sermes e estudos bblicos, por um lado inculcou a naturalizao da inferioridade cultural/religiosa das pessoas negras e, por outro, sacralizou os rituais clticos e costumes protestantes como padro cristo.

    A disciplina, na perspectiva de Foucault, a tcnica mais eficaz para circular os efeitos de poder de forma contnua, ininterrupta, adaptada e individualizada. Sem criar resistncias, o poder permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (FOUCAULT, 2006, p. 8).

    Nesta perspectiva, o ensino religioso contribuiu para o processo de branqueamento cultural, envolvendo crenas e costumes das pes-soas negras do segmento religioso protestante. Somando-se a isto, h o controle social do grupo religioso no sentido de no ocorrer algum desvio do padro; ou seja, a reinterpretao cultural africana dentro do contexto protestante (BASTIDE, 1985, p. 512). Esse controle exercido pelas comunidades locais por meio de falas, olhares, brincadeiras e conselhos para abandonar estas coisas, elementos da cultura e est-tica afro, como penteados com o cabelo ao natural/crespo, as tranas nags, rastafari e dreadlocks, o uso de roupas e adereos com cores e motivos africanos, associando-os esttica negativa, feiura, sujeira ou s religies afro-brasileiras.

    Bastide pesquisou, na primeira metade do sculo 20, o grupo negro protestante e concluiu que a insero de pessoas negras nesse segmento estava relacionada ao preferir ser assimilado por uma elite de brancos... em que h um mnimo de superstio e um mximo de puritanismo e no ao se exprimir enquanto homem de cor. E que pelo fato de no haver discriminaes nas seitas protestantes era reduzida ou inexistente a rein-terpretao da cultura africana, prevalecendo a assimilao (BASTIDE, 1985, p. 508, 512).

    Dois pontos a destacar:

  • 18 Din da Silva Branchini: a propsito dos 125 anos da lei urea

    1. Ser assimilado por uma elite de brancos... ou se exprimir en-quanto homem de cor?

    Os estudos de Bastide se referem ao contexto da poca, quando eram bem demarcadas as fronteiras entre pessoas brancas e negras. Neste caso, ser aceito/a por uma comunidade branca proporcionava a sen-sao de respeito e dignidade. Por outro lado, demonstrava a relao de dominao/sujeio, na qual as pessoas negras, mesmo que inconscien-temente, assumiam o silenciamento a respeito do racismo e sujeitavam-se a rejeitar qualquer coisa que se assemelhasse aos costumes africanos.

    Assim, o protestantismo foi um caminho utilizado pelas pessoas negras para a libertao social; porm um caminho que significava o rompimento com a identificao com o grupo sociocultural negro, ou seja, ser assimilado pelo grupo branco.

    No incio do sculo 20, com surgimento do pentecostalismo, que atualmente o segundo maior segmento religioso1, grande parte de pessoas pertencentes s classes mais empobrecidas da periferia dos centros urbanos foi atingida. Esta pode ser uma das razes da grande adeso de pessoas negras ao pentecostalismo; mas outra razo a ser considerada a identificao das pessoas negras com a proposta de ser igreja pentecostal, como: informalidade dos cultos; msica mais ritmada; liberdade de expresso corporal; o transe espiritual por meio do batismo do Esprito Santo, acompanhado do dom de lnguas (glossolalia); o fortalecimento da autoestima e empoderamento dos/as fiis perante as dificuldades da vida e a rede de apoio social formada pela comunidade religiosa. Segundo estudos liderados por Rivera (2010, pp. 62-70), as igrejas pentecostais representam, na periferia, espaos de acolhimento, assistncia e esperana para os moradores.

    Assim, o sentimento de pertencimento a um grupo cristo de maio-ria negra forma uma identidade coletiva negra crist, que se difere da identidade coletiva negra na sociedade. Porm ser pessoa negra, em nossa sociedade, significa ser marcado pela cor da pele; apenas uma caracterstica morfolgica. No entanto a identidade negra construda por meio de vnculos culturais e histricos. As histrias escravizao, racismo, formas de resistncias e as produes culturais unem pessoas africanas e afrodescendentes espalhadas pelo mundo.

    A abolio de 1888 no contemplou a liberdade cultural, particu-larmente, a religiosa. Somente neste sculo, prximo aos 125 anos de vigncia da Leia urea, o Brasil est possibilitando este conhecimento, por meio das Leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008 que instituem:

    1 O segmento pentecostal apresenta o maior nmero de adeptos, com um percentual de 12,76%, aps a Igreja Catlica (68,43%) (NERI, 2011, p. 25-26).

  • Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v18n1p13-23

    19

    [...] o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indgenas no Brasil, a cultura negra e indgena brasileira e o negro e o ndio na formao da sociedade nacional, resgatando as suas contri-buies nas reas social, econmica e poltica, pertinentes histria do Brasil (LEI N 11.645-2008).

    No meio evanglico, prevalece a ideia de que a converso ao cris-tianismo implica assumir nova identidade, novos referenciais de vida e, consequentemente, rompimento com os vnculos culturais africanos e afro-brasileiros, incluindo os atributos corporais e estticos. As identidades tnicorracial e religiosa esto em oposio.

    O cenrio de crise das instituies religiosas, marcado pela plu-ralidade religiosa e trnsito religioso. O poder religioso est diludo e exerce menor influncia na vida das pessoas. Esta conjuntura possibilita a liberdade das pessoas em relao reinterpretao e recriao de suas identidades religiosas a partir de vrios referenciais.

    O mal-estar das instituies pela fluidez e instabilidade de seus adeptos no significa um mal-estar do sujeito religioso moderno. Pelo contrrio, a liberdade de escolha religiosa lhe bem mais cmoda (RI-VERA, 2001, p. 210).

    Na sociedade contempornea, as pessoas passam por vrios per-tencimentos, e desempenham diferentes papis, construindo durante sua existncia, mltiplas identidades, complexas e fluidas. A lgica do acopla-mento na constituio das identidades amplia o leque de potencialidades e de motivos da luta das polticas socioculturais (HALL, 2003, p. 326).

    Nessa perspectiva, h pessoas negras e crists, negras e candom-blecistas, negras e muulmanas, negras e ateias. Assumir-se negro/a uma postura existencial, autoidentificao, baseada tanto nas caracters-ticas fsicas, enquanto referncia cultural, quanto nos vnculos histricos e sociais com o segmento negro. uma opo sociopoltica de enfren-tamento ao racismo.

    2. Pelo fato de no haver discriminaes nas seitas protestantesContrariando a percepo de Bastide, apesar da representatividade

    do segmento negro evanglico, quer no protestantismo, quer no pentecos-talismo, verifica-se a existncia do racismo, em particular no pensamento religioso e nas relaes sociais.

    Este tema ainda silenciado por meio do mito da irmandade crist, expresso em frases como: somos todos filhos de Deus, Deus no faz acepo de pessoas. Deus no se importa com a cor da pele ou para Deus o importante o esprito. Estas so frmulas utilizadas para justificar o no enfrentamento ao racismo, preconceitos e discriminao.

  • 20 Din da Silva Branchini: a propsito dos 125 anos da lei urea

    Pensamentos desse tipo, repetidos por pessoas negras, podem sig-nificar tanto a sujeio ordem relacional vigente, quanto vergonha ou constrangimento de assumir ser vtima de alguma atitude racista. Assim, a negao da experincia de racismo reforada pela atitude de isto no me afeta.

    O racismo expresso em discursos religiosos fundamentalistas e racistas em relao ao continente Africano e cultura afro-brasileira, e relacionados maldio sobre os africanos, herdeiros de Cam, proferida por No. Tambm est presente em letras de hinos e em histrias infantis que associam o negro ou o preto, como cor do pecado, da impureza e do mal, como: Alvo ainda mais que a neve, sim neste sangue lavado, meu Jesus ficarei. (Hinrio Evanglico, Hino 36); ou a letra do cntico infantil: O meu corao era preto2 (ou sujo), mas Cristo aqui j entrou e com seu precioso sangue to alvo assim o tornou.

    Nas relaes sociais, h manifestaes de racismo perceptveis tanto na espontaneidade de frases, como eu nunca esperava que minha filha fosse casar com um nego; Quando voc parou de alisar o cabelo? An-tes voc era to bonita!; Por que esta irmzinha (negra) no se coloca em seu devido lugar?3 como no isolamento, hostilidades e escolhas de amizades, entre outras.

    Esta tese de Roger Bastide sobre a ausncia de discriminao nas igrejas protestantes rebatida pela militncia negra protestante que desde a dcada de 1960 denuncia o racismo existente nestas igrejas. Desde a dcada de 1970, vem surgindo grupos de militncia negra dentro do contexto evanglico e, atualmente, o movimento negro evanglico di-versificado e atuante dentro e fora do contexto religioso.

    Dentre os grupos negros evanglicos, vale destacar: Pastoral de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, criada em 1985; Comisso Ecumnica Nacional de Combate ao Racismo - CENACORA, em 1986; Centro Ecumnico de Cultura Negra CECUNE, em Porto Alegre, em 1987 (LIRA, 2006, p. 11-13); Coral Resistncia Negra de SP, em 1988, (METODISTA, 2011, pp. 20-22). AGAR (Sociedade Teolgica de Mulheres Negras), em 1995; Pastoral da Negritude do Conselho Latino americano de Igrejas - CLAI, em 2009; Fruns Permanentes de Mulheres Negras do Rio de Janeiro e de So Paulo, criados pela CENACORA, o grupo de So Paulo cessou atividades em 2006; Sociedade Cultural Misses Qui-lombo; Ao e Reflexo Martin Luther King; Aliana de Negras e Negros Evanglicos do Brasil ANNEB; Grupo de Negr@s Identidade, ligado academia, hoje denominado Grupo Identid@de das Faculdades EST-RS.

    2 Quando se usa a verso era sujo, geralmente se utiliza um carto com o desenho de um corao preto.

    3 Depoimentos colhidos por ocasio da pesquisa de mestrado

  • Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v18n1p13-23

    21

    Apesar da atuao e resistncia da militncia negra evanglica, as igrejas em geral permanecem indiferentes ou mascaram interesse em atender s denncias e reivindicaes.

    Talvez esta seja uma das razes do surgimento de grupos negros independentes das igrejas tradicionais ou novas igrejas negras, como: Igreja de Deus em Cristo em So Paulo, de origem norte-americana, com forte apelo musical estilo black music; Igreja COPATZION, na Bahia, que se atribui ser a nica igreja no Brasil que reconhece e propaga o Cristianismo de Matriz Africana como um dos seus principais alicerces doutrinrios (PASSOS, 2008); as redes virtuais negras, como Afrokut--brasilidade (SILVA, 2009, p. 15, 16), com mais de seis mil membros, e multiplicidade de temas sobre negritude.

    O Movimento negro evanglico constitudo de grupos independen-tes. Alguns adeptos, porm, seguem a doutrina ou ensinamentos com base nas suas igrejas de origem, ligadas aos segmentos protestante, pentecos-tal ou neopentecostal; outros so compostos por pessoas procedentes de diferentes igrejas e, at mesmo, por pessoas de outra religio ou ateias.

    O que caracteriza esses grupos so as aes de resistncia e de-nncia sobre racismo, preconceitos e discriminaes. Realizam encon-tros e oficinas de conscientizao e capacitaes voltadas para temas e questes da populao negra e reinterpretao da Bblia, a partir de referenciais histricos, culturais e geogrficos africanos. Combatem a intolerncia religiosa, os preconceitos em relao s religies de matri-zes africanas; fazem reivindicaes e resgate histrico de protagonistas negros/as cristos/s.

    Consideraes finaisEste texto provocou algumas consideraes a respeito do processo

    de libertao do povo negro. Dentro do segmento evanglico, tanto o protestantismo como o pentecostalismo so espaos de acolhimento e de ascenso social de pessoas negras por meio do pertencimento religioso. Existem, porm, a dominao cultural de origem ocidental e a imposio de ruptura com as tradies culturais africanas e afro-brasileiras. Esta do-minao tem como um dos fatores a existncia do racismo que influencia a viso evanglica a respeito da frica, seus habitantes e costumes, per-cebidos como inferiores e amaldioados. As pessoas negras convertidas tm, ento, que se desligar de sua tradio.

    Tanto no passado como no presente, as pessoas negras apresentam diferentes posicionamentos a respeito a sua autonomia: h pessoas ne-gras que esto sujeitas a esta relao de dominao cultural, enquanto que outras desenvolvem postura de sujeitos autnomos, resgatando seu pertencimento ao grupo sociocultural negro sem deixar de assumir sua

  • 22 Din da Silva Branchini: a propsito dos 125 anos da lei urea

    identidade crist. Assim, h um desenvolvimento da conscincia coletiva de negritude no meio evanglico, de forma que as duas identidades se complementam: ser negro/a e ser cristo/.

    O crescimento e a respeitabilidade da militncia negra dentro do contexto evanglico demonstram que a liberdade um alvo em processo de conquista e ocorre da mesma forma que em contextos no religiosos na sociedade

    Referncias bibliogrficasBARBOSA, J. C. O Negro no entra na Igreja: espia da banda de fora. Piracicaba, So Paulo: UNIMEP, 2002.BASTIDE, R. As religies Africanas no Brasil: Contribuio a Uma Sociologia das Interpenetraes de Civilizaes. So Paulo: Pioneira, 1985.BOURDIEU, P. A economia das Trocas Simblicas. So Paulo: Perspectiva, 2001.BRANCHINI, D. da S. Religio e Identidade: Um Estudo sobre negros Metodistas da Regio Metropolitana de So Paulo. 211p. (Dissertao de Mestrado) Uni-versidade Metodista de So Paulo. So Paulo, 2008.FOUCAULT, M. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, 22. ed., 2006.HALL, S. Da Dispora: Identidade e mediaes culturais. Liv Sovik (Org.); Traduo Adelaine La Guardi Resende ... [et al.). Belo Horizonte: UFMG, 2003.MUNANGA, K.; GOMES, N. L. O Negro no Brasil de Hoje. So Paulo: Global, 2006.RIVERA, P. B. Tradio, transmisso e emoo religiosa. Sociologia do protes-tantismo na Amrica Latina. So Paulo: Olho dgua, 2001.SOUZA, Sandra Duarte de (org.) Gnero e Religio no Brasil. So Bernardo do Campo: UMESP, 2006.SETILOANE, G. M. Teologia Africana: uma introduo. So Bernardo do Campo: Editeo, 1992.SILVA, H. F. da S. O Movimento Negro Evanglico, um mover do Esprito. So Paulo: Negritude Crist, 2009.

    Referncias eletrnicasBRASIL. LEI N 11.645, DE 10 MARO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira e Indgena. Disponvel em:. Acesso em: 27 mar. 2013.IGREJA METODISTA, Colgio Episcopal da. RACISMO: Abrindo os olhos para ver e o corao para acolher. Carta Pastoral dos Bispos e Bispa Metodistas. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 16 nov. 2012.

  • Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v18n1p13-23

    23

    JESUS, Il. F. Os desafios da formao poltica da militncia do Movimento Negro Unificado MNU. In: BLOG Movimento Negro Unificado. 2009. Disponvel em: . Acesso em: 10 set. 2012.LIRA, L. C. da S. P. de. O Centro Ecumnico de Cultura Negra (CECUNE) e suas aes educativas. 2006, 108 p. (Mestrado em Teologia), Escola Superior em Teo-logia, So Leopoldo - RS, 2006. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2012.NERI, M. C. (Coord). Novo Mapa das Religies. Fundao Getulio Vargas, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 14 out. 2012.ORO, A P.; BEM, D. F. de. A discriminao contra as religies afro-brasileiras: ontem e hoje. In: Cinc. let., n. 44, p. 301-318, 2008. Porto Alegre. Disponvel em: . Acesso em: 12 out. 2012.PASSOS, U. Culto de Inaugurao da Copatzion. In: Blog Bayah. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2012.PEREIRA, C. M. Abolio e Catolicismo: A participao da Igreja Catlica na Extino da Escravido no Brasil. (Mestrado), 2011, 140p. Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2012.