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201 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15(29): 201-221, jul.-dez. 2015 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v15n29p201-221 A precarização do direito social ao trabalho e o fenômeno da terceirização The Precariousness of the Social Right to Work and the Outsourcing Phenomenon VANESSA ROCHA FERREIRA Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará (Ufpa). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (Ucam/RJ). Especialista em Direito Processual pela Uni- versidade da Amazônia (Unama/PA). Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestranda em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia (Unama/PA). Professo- ra universitária de Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e Legislação Trabalhista e Previdenciária (Unama/PA). Vice-coorde- nadora do Departamento de Direito do Trabalho da Escola Superior de Advocacia (ESA/PA) - OAB/PA (Resolução nº 03, de 02 de janeiro de 2013. Triênio 2013-2015 - Gestão do Presidente Jarbas Vasconcelos). [email protected] ZAÍRA MANUELA CASTRO DE PEREIRA Advogada. Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia (Unama). Pós-Graduanda em Direito do Trabalho pelo Centro Univer- sitário do Estado do Pará (Cesupa/PA). [email protected] RESUMO O presente artigo tem por escopo evidenciar a precarização do direito social ao trabalho quando praticado o fenômeno da terceiri- zação. Visa-se destacar a nocividade desta prática que tende a acentuar a vulnerabilidade do trabalhador. Será ressaltado que a terceirização transforma a mão de obra em mercadoria decorrente de um ajuste em- presarial, considerando que o valor pecuniário é estabelecido tão so-

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A precarização do direito social ao trabalho e o fenômeno da terceirização

The Precariousness of the Social Right to Work and the Outsourcing Phenomenon

Vanessa Rocha FeRReiRaAdvogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará

(Ufpa). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (Ucam/RJ). Especialista em Direito Processual pela Uni-

versidade da Amazônia (Unama/PA). Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestranda em Direitos

Fundamentais pela Universidade da Amazônia (Unama/PA). Professo-ra universitária de Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho

e Legislação Trabalhista e Previdenciária (Unama/PA). Vice-coorde-nadora do Departamento de Direito do Trabalho da Escola Superior de Advocacia (ESA/PA) - OAB/PA (Resolução nº 03, de 02 de janeiro de 2013. Triênio 2013-2015 - Gestão do Presidente Jarbas Vasconcelos).

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ZaíRa Manuela castRo de PeReiRaAdvogada. Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia

(Unama). Pós-Graduanda em Direito do Trabalho pelo Centro Univer-sitário do Estado do Pará (Cesupa/PA).

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Resumo O presente artigo tem por escopo evidenciar a precarização do direito social ao trabalho quando praticado o fenômeno da terceiri-zação. Visa-se destacar a nocividade desta prática que tende a acentuar a vulnerabilidade do trabalhador. Será ressaltado que a terceirização transforma a mão de obra em mercadoria decorrente de um ajuste em-presarial, considerando que o valor pecuniário é estabelecido tão so-

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mente entre a empresa prestadora e a empresa tomadora do serviço. Uma das características da terceirização é a ausência do caráter da pes-soalidade nos moldes da relação de emprego convencional, sendo esta naturalmente afastada. E ao revés da própria sorte do trabalhador, o Projeto de Lei nº 4.330/2004, que atualmente tramita no Senado Fede-ral, tende a consagrar a precarização da relação de emprego para, assim, legalizar uma prática já vivenciada por muitos trabalhadores. Para a consecução deste artigo, utilizou-se o método dedutivo a partir da reali-zação de pesquisa bibliográfica e descritiva a fim de melhor embasar a análise do tema trazido à baila.Palavras-chaves: PRincíPio da dignidade da Pessoa huMana; teRcei-RiZação; diReito social ao tRabalho; PRecaRiZação; PRincíPio do não RetRocesso social.

Abstract The scope of this paper is to highlight the precariousness of the social right to work in face of the outsourcing phenomenon. The aim is to highlight the harmful effects of this practice, which tends to enhance the workers’ vulnerability. It will emphasize that outsourc-ing turns labor into commodities resulting from a business adjustment, whereas the cash value is established solely between the service pro-vider and the contracting firm. One of the characteristics of outsourcing is the lack of a personal character compared to the conventional em-ployment relationship, which is naturally removed. And inconsiderate of the workers’ own fate, the Draft Law No. 4,330 / 2004, now before the Senate, is designed to consolidate the precariousness of the employ-ment relationship, thereby legalizing a practice already experienced by many workers. To produce this paper, we used the deductive method after a literature and descriptive research in order to better support the analysis.Keywords: PRinciPle oF huMan dignity; outsouRcing; social Right to woRk; PRecaRiousness; PRinciPle oF non social RegRession.

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IntRodução: delImItando a dIscussão

Atualmente vivemos um momento bastante peculiar na seara la-boral, pois, ao mesmo tempo em que se defende a jusfundamentalidade do direito social ao trabalho e o respeito à dignidade do trabalhador, encontramos, como consequência da globalização e da busca excessiva pelo lucro, propostas de mudança substancial em direitos que foram conquistados paulatinamente ao longo de séculos, o que, certamente, ocasionará a precarização de direitos dos trabalhadores, parte mais vul-nerável na relação jurídica existente.

Essa relação existente entre conquistas sociais e a diminuição dos custos da atividade empresarial é o principal ponto de discussão quando vem à tona o assunto: terceirização e a aprovação do Projeto de Lei nº 4.330/2004.

Acredita-se que a aprovação de tal Projeto de Lei, com a possibi-lidade de terceirizar qualquer tipo de atividade, seja ela meio ou fim, ocasionará a supressão de diversos direitos trabalhistas, como a redução de salários e benefícios, piorando as condições gerais de trabalho.

Nota-se que quando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988) consagrou o direito social ao trabalho, em seu artigo 6º, fê-lo dentro do capítulo destinado aos direitos e garan-tias fundamentais, exatamente por entender que a efetivação plena de tal direito está associada ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois é por meio do trabalho que o homem obtém o suporte material, ou seja, o mínimo necessário a uma subsistência digna.

O que se pretende neste artigo é traçar os aspectos nocivos da ter-ceirização, os quais seguem na via contrária do Direito do Trabalho. Para isso, utiliza-se o método dedutivo, partindo dos conceitos cons-truídos pela doutrina sobre os princípios e a relação de trabalho nos moldes da terceirização, no ensejo de melhor analisar a precarização do direito social pelo Projeto de Lei nº 4.330 (BRASIL, 2004), bem como analisar a forma pela qual a doutrina e a jurisprudência tem se posicionado no que tange a este tema. Para melhor consubstanciar a utilização do método dedutivo, realiza-se pesquisa bibliográfica com

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o objetivo de reunir referências teóricas relevantes sobre terceirização em artigos, livros e websites, além da utilização da pesquisa descritiva para a caracterização do fenômeno da terceirização, que é uma “nova” modalidade de trabalho tão presente na seara laboral. Tudo isso para, ao final, defender, sob o argumento da prevalência do princípio do não re-trocesso social, consagrado em nosso ordenamento jurídico, a impossi-bilidade de admitir-se a legalização de uma prática – muito embora tão altamente rentável sob a perspectiva financeira para as empresa – tão tendente a reduzir direitos sociais fundamentais já conquistados pelos trabalhadores, o que certamente acontecerá com a aprovação do Projeto de Lei nº 4.330.

o pRIncípIo da dIgnIdade da pessoa humana no contRato de tRabalho

Antes de adentramos especificamente no tema da terceirização, é necessário estabelecer a relação existente entre o direito social ao traba-lho e o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Consagrado pela Constituição da República Federativa Brasileira1 como um dos fundamentos do Estado Social e Democrático de Direi-tos, em seu artigo 1º, o princípio da dignidade humana é considerado um dos dogmas de nosso ordenamento jurídico, devendo ser respeitado tanto nas relações públicas quanto nas relações privadas. Neste sentido, José Afonso da Silva (1998, p. 84-94) ratifica que: “a dignidade não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana”, o que alude à ideia de que a dignidade humana pree-xiste em favor do ser humano, independentemente da previsão expressa no texto constitucional, o que demonstra a relevância deste princípio para o ordenamento jurídico.

1 “Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: […] III – a dignidade da pessoa humana” (BRA-SIL, 1988).

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Neste mesmo sentido, posiciona-se a desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 21ª Região, Maria do Perpétuo Socor-ro Wanderley de Castro, enfatizando que o princípio da dignidade da pessoa humana é um valor primário e básico à própria existência do ser humano e que, por isso, o indivíduo é merecedor de uma vida digna ali-cerçada no respeito à sua integridade moral, psíquica e física, devendo, ao menos, o mínimo ser-lhe garantido (2009, p. 106-119). Este enten-dimento coaduna-se com o posicionamento de Ingo Wolfgang Sarlet:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e considera-ção por parte do Estado e da comunidade, implican-do, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existências mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2012, p. 73) (grifos do autor).

Considerando essa perspectiva, no contrato de trabalho, o prin-cípio da dignidade da pessoa humana deve ser concebido tanto sob o aspecto financeiro, de modo que a contraprestação do trabalho seja capaz de garantir a subsistência do trabalhador de forma digna e ho-nesta, como, também, na própria prestação do trabalho, a qual deverá respeitar a sua integridade moral, física e psíquica. Para a supracitada desembargadora,

a dignidade da pessoa humana no contrato de trabalho tem como tônica o arbítrio da pessoa de se modelar e de se fazer, por si mesmo, o que é confrontado, por nume-rosas vezes, com as situações decorrentes da caracte-rística da subordinação como elemento essencial desse

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contrato. Deve-se, todavia, cuidar hoje, em paráfrase ao escritor inglês, de conhecer o valor da pessoa e não o preço das coisas. Não é a onerosidade do contrato que confere a subordinação: trata-se de elementos parale-los e que concorrem para a configuração do contrato. De outra parte, esse caráter oneroso não agrilhoa o empregado às situações de menoscabo à sua dignida-de mediante a pressão pela produtividade; não é ocioso lembrar que o direito à saúde é afirmado como um dos direitos que compõem, inequivocamente, o âmbito da dignidade da pessoa humana. Não deve, contudo, ser enfocado esse direito somente na última instância, isto é, das doenças gravíssimas, dos estados de debilitação da saúde, mas também em razão de procedimentos que venham a comprometê-la. Com efeito, a nova ética so-bre a pessoa humana propugna como pressuposto da dignidade humana o preceito da intangibilidade da vida humana e, ao referir o conjunto de condições – físicas, materiais e culturais, como consequências do princípio, exorta a observância das condições mínimas de exis-tência e alude aos direitos à liberdade e à igualdade. (CASTRO, 2009, p. 112).

A partir da consideração mencionada acima, compreende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana no contrato de trabalho vai muito além do aspecto econômico, pois ao trabalhador deverá ser per-mitido o direito de autodeterminar-se e não ser vítima de ações dis-criminatórias, dada sua condição de fazer uso da razão. Posto isto, é indubitável que, quanto maior a vulnerabilidade do empregado, menor será o exercício do direito de autodeterminar-se na relação de emprego.

Por força do princípio em voga, ao trabalhador deverá ser garantido o respeito aos valores morais, econômicos e físicos, de modo a respeitar sua qualidade de ser humano, tornando inadmissível que um contrato de trabalho seja utilizado como meio para negar-lhe esta qualidade.

Ratificando a importância do respeito à dignidade da pessoa hu-mana quando da realização de qualquer tipo de trabalho, a magistrada Carla Romar escreve que:

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a relação existente entre a dignidade humana e o trabalho abrange três questões iniciais: (a) a dignidade se afirma a partir da garantia ao trabalho, ou seja, o fato de ter tra-balhado assegura ao homem dignidade; (b) a dignidade somente é assegurada se o trabalho é decente, ou seja, não basta ter trabalho é preciso que o trabalho decorra de circunstâncias que asseguram ao trabalhador e à sua fa-mília uma vida digna; e (c) o ordenamento jurídico deve assegurar ao trabalhador direitos fundamentais e deve prever mecanismos de proteção e efetivação de tais di-reitos. (ROMAR, 2008, p. 1287) (grifos da autora).

Assim, é importante destacar que o trabalhador, para ter sua digni-dade respeitada, precisa ter acesso a um trabalho digno, decente,2 com-patível com sua natureza de ser humano, não podendo ser tratado como um meio, um objeto, passível de atribuição de valor econômico, o que poderia desencadear abusos morais e físicos, por exemplo, não receber como contraprestação uma quantia capaz de proporcionar-lhe o mínimo necessário para garantir sua subsistência.

Refutar o princípio da dignidade da pessoa humana na relação de trabalho é um meio de reduzir o trabalhador à condição de coisa, ao passo em que a busca pelo maior lucro muitas vezes sobrepõe-se a este princí-pio, e tal redução não é compatível com a ideia de dignidade humana.3

a teRceIRIzação e a pRecaRIzação do dIReIto socIal ao tRabalho

O contrato de terceirização é constituído a partir de uma estrutura triangular, com três partes distintas, o tomador do serviço terceirizado, 2 “Trabalho decente, então, é um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que

corresponde: (i) ao direito ao trabalho; (ii) à liberdade de trabalho; (iii) à igualdade no trabalho; (iv) ao trabalho com condições justas, incluindo a remuneração e que preservem sua saúde e segurança; (v) à proibição do trabalho infantil; (vi) à liberda-de sindical; e (vii) à proteção contra os riscos sociais” (BRITO FILHO, 2013, p. 55).

3 Sobre o tema, temos a clássica frase de Immanuel Kant: “Quando uma coisa tem preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando um coisa está acima de todo preço, e portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade” (KANT, 2003, p. 77-78).

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a empresa prestadora e o empregado terceirizado, configurando uma forma atípica de relação de trabalho, posto que as relações convencio-nais são, em regra, bilaterais.

Rodrigo Coimbra Santos aponta, como elementos necessários para a caracterização da relação terceirizada, além da existência de uma relação triangular, o vínculo jurídico de natureza contratual, cujo objeto é a prestação de um serviço especializado sob a direção da empresa prestadora do serviço e a boa-fé (SANTOS, 2008, p. 94).

Nota-se que, embora a terceirização consista em uma relação ju-rídica triangular, no que diz respeito ao vínculo empregatício este é estabelecido apenas entre duas partes: a empresa prestadora de serviço e trabalhador terceirizado.

Foi com a proposta de permitir que as empresas tenham foco voltado exclusivamente para suas atividades-fim que a terceirização surgiu, pois, ao repassar a responsabilidade a uma empresa prestadora de serviço terceirizado de sua atividade-meio, seria possível a obten-ção de uma maior produtividade e competitividade no mercado em que estão inseridas.

Acerca da conceituação do que seria atividade-meio, temos o po-sicionamento de Martins (2012, p. 10), que aduz tratar-se de uma forma de administração de empresas, cuja finalidade seria organizar e, ao mes-mo tempo, determinar os métodos da atividade empresarial. Dispõe a doutrina que a terceirização consiste na possibilidade de contratação de um terceiro para a realização de atividades não relacionadas ao objeto principal da empresa tomadora, e esta contratação poderá compreender tanto a produção de bens como a realização de serviços que não estão diretamente relacionados com sua atividade-fim.

Desta forma, a terceirização importa na dinamização das ativida-des-fim das empresas, tornando suas ações mais eficazes e produtivas, com a tendência a reduzir custos e despesas. Neste sentido, é enten-dimento de Barros que o escopo da terceirização é a diminuição de custos e a melhoria da qualidade do produto ou do serviço, apontando a denominação “especialização flexível”, que consistiria no surgimento de empresas com elevado grau de especialização determinada, com ca-

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pacidade de atender a mudanças de pedidos de seus clientes (BARROS, 2011, p. 357).

Diante disto, os contratos de terceirização representam a possi-bilidade de verdadeiros benefícios às empresas tomadoras destes ser-viços, ocorrendo a possibilidade da transferência da atividade-meio a um terceiro, a quem caberá gerenciar efetivamente toda a execução do trabalho a ser desenvolvido no âmbito da empresa tomadora.

Sob a perspectiva empresarial, econômica, a terceirização revela--se muito eficaz e com muitos pontos positivos, porém, na perspecti-va trabalhista, social, há muitos aspectos negativos, que passaremos a abordar agora.

Em princípio, a prestação do trabalho afigura-se a uma mercado-ria, ao ser tratada como objeto do contrato de terceirização, sendo ir-relevante o caráter da pessoalidade. Ressalte-se que a Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) firmou o conceito de que trabalho não é mercadoria (CASTRO, 2014, p. 64).

A doutrinadora Maria Vitoria Queija Alvar acentua aspectos negativos existentes nas terceirizações, conforme suas lições colacionadas abaixo:

A terceirização é forma de flexibilização da legislação protetiva do trabalho, sendo festejada por aqueles que entendem o Direito do Trabalho como amarra ao pro-gresso econômico, certamente desconhecendo o papel fundamental desse ramo do Direito na busca da cidada-nia. Concretamente qualquer modalidade de terceiriza-ção que seja analisada, retira do trabalhador conquistas históricas de proteção, o trabalho terceirizado, rompen-do com o conceito basilar, que o trabalho não é merca-doria, na medida em que, a empresa de colocação de mão-de-obra [sic], tem como único e principal objeto a comercialização do trabalho humano. Nesse diapasão em países como o Brasil que possuem capitalismo pri-mário, com um empresariado emergente e ansioso pela lucratividade do custe o que custar, onde a legislação é descumprida sem qualquer pudor, verificasse [sic] o solo fértil para a semeadura de “técnicas de gestão de

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pessoal”, em flagrante descumprimento da legislação trabalhista, como a terceirização. (ALVAR, 2009).

Tal posicionamento deve-se ao fato de a terceirização afastar os requisitos da relação de emprego entre a empresa tomadora e o traba-lhador terceirizado, pois evidencia-se que a execução dos serviços por empregados da empresa prestadora dá-se nas dependências da empresa tomadora, sob a responsabilidade daquela, o que ensejaria a não cons-tituição do vínculo de emprego entre o empregado terceirizado e a em-presa tomadora de serviços.

Deveras, uma das maiores características do contrato de terceiriza-ção é a ausência dos requisitos para a formação do vínculo empregatí-cio entre o empregado terceirizado com a empresa tomadora, visto que este vínculo existe apenas entre o empregado terceirizado e a empresa prestadora destes serviços.

A ausência do vínculo de emprego é típica no contrato de terceiri-zação, ao tempo em que os encargos trabalhistas estariam sob a respon-sabilidade da empresa prestadora dos serviços, que, de fato, mantém vínculo de emprego com os trabalhadores terceirizados, pois, na tercei-rização lícita, a responsabilidade pelo pagamento das verbas trabalhis-tas é da empresa prestadora de serviços (terceirizada contratada), e não do tomador de serviços (contratante).

Nota-se que, no caso da terceirização, o serviço é prestado, não nas dependências do real empregador, mas nas da empresa tomadora. O empregado terceirizado não mantém com esta relação de subor-dinação jurídica ou pessoalidade, permitindo a possibilidade de ser substituído por outro empregado. As condições caracterizadoras da relação de emprego são vislumbradas com a empresa prestadora, que é, de fato, seu real empregador.

Apesar de a ocorrência da prestação ser feita nas dependências da empresa tomadora, Martins (2013, p. 202) destaca que a forma pela qual a Súmula nº 331 do TST (BRASIL, 2003) foi redigida importa no entendimento de que somente se admitiria a terceirização na atividade--meio, e não na atividade-fim da empresa.

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A pessoalidade e subordinação hierárquica são dois dos requisitos ausentes na terceirização, considerando que a empresa tomadora não contrata o empregado terceirizado por suas qualidades próprias, mas, sim, os serviços ofertados pela empresa prestadora. Por outro lado, não cabe à empresa tomadora gerenciar e coordenar a execução das ativida-des, mas, sim, à empresa prestadora.

Destaca-se que a ausência de características como a subordinação e a pessoalidade decorre diretamente do objeto do contrato de terceiri-zação que trata da prestação de serviço especializado na atividade-meio, ou de serviços de vigilância ou conservação e limpeza, de forma que estas atividades não tenham qualquer relação com a atividade-fim da empresa tomadora. A doutrina prescreve que, ausentes tais característi-cas, o trabalhador terceirizado mantém seu vínculo de emprego com a empresa prestadora, que, por outro lado, detém o poder de direção sobre os serviços prestados; logo, se a empresa tomadora estiver insatisfeita com o trabalho prestado, deverá reportar-se à empresa intermediadora, e não ao trabalhador diretamente (MIESSA; CORREIA, 2013, p. 121).

Por outro lado, vislumbra-se que, neste tipo de contrato, há possibilidade do reconhecimento do vínculo empregatício nas hipóteses em que não forem atendidos os requisitos necessários para a caracterização de uma contratação de serviço terceirizado lícito. É neste sentido que versa a Súmula nº 331 do TST,4 ao dispor sobre a possibilidade do reconhecimento de vínculo de emprego na hipótese 4 Súmula nº 331 do TST - CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGA-

LIDADE. I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o

vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho tempo-rário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). […]

III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações traba-lhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação pro-cessual e conste também do título executivo judicial. […] VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condena-ção referentes ao período da prestação laboral (BRASIL, 2003).

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da contratação de trabalhadores por empresa interposta, pois é im-prescindível a contratação ser feita entre empresa tomadora e empresa prestadora de serviços especializados para a realização da atividade--meio, vigilância privada e serviços de conservação e limpeza. A ter-ceirização deve seguir os moldes desta súmula, cujo propósito é coibir fraudes trabalhistas.

Diante desta Súmula, resta o entendimento que atribuirá à empresa tomadora do serviço de terceirização a responsabilidade subsidiária em relação ao empregado terceirizado. Segundo Delgado (2015, p. 487), com a Súmula nº 331 do TST houve a ampliação de incidência da res-ponsabilidade trabalhista em situações de terceirização, a qual poderá ser subsidiária na hipótese em que houver o inadimplemento das obri-gações trabalhistas, podendo recair sobre todas as parcelas contratuais que seriam devidas ao empregado submetido a este contrato. Ressalta--se que, para isto, nos moldes da referida Súmula, deverá a empresa tomadora participar, não só da relação processual, mas também constar no título executivo judicial.

Com o entendimento pautado na doutrina de Martins (2013, p. 160), há duas importantes distinções entre terceirização legal/lícita e ilegal/ilícita. Da primeira, a terceirização ocorre atendendo às normas do direito do trabalho, inexistindo a pretensão de fraude e, diante disso, ocorre um distanciamento das características das relações de emprego; da segunda, ocorre com a permanência da locação de mão de obra, o que enseja a ocorrência de fraudes e consideráveis prejuízos ao traba-lhador, um terreno fértil para a precarização do trabalho.

O supracitado autor assevera em sua doutrina que algumas regras devem ser observadas para que a terceirização seja concebida de for-ma lícita, que são: idoneidade econômica da terceirizada; assunção de riscos pela terceirizada; especialização nos serviços a serem prestados; direção dos serviços pela própria empresa terceirizada (2013, p. 162). Tais requisitos mostram-se relevantes para avaliar a própria capacidade da empresa prestadora de serviço no tocante às obrigações trabalhistas, com quem o empregado estabelece vínculo de emprego.

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Ademais, é importante considerar que o trabalhador terceirizado é um trabalhador permanente da empresa prestadora dos serviços, ainda que o trabalho seja prestado fora das dependências desta empresa.

Em suma, para que a terceirização seja considerada lícita, no atu-al ordenamento jurídico brasileiro, é necessário que os requisitos da relação de emprego não sejam evidenciados na relação jurídica estabe-lecida entre a empresa tomadora e o trabalhador terceirizado, porque o que é contratado é apenas o trabalho prestado de forma global, sem que ocorram escolhas ou determinações das pessoas que irão prestar os serviços especificados no contrato de terceirização (pessoalidade), e também que as atividades desenvolvidas pelos trabalhadores terceiriza-dos sejam distintas da atividade-fim da empresa tomadora.

Essencialmente, a terceirização é a própria precarização do direito social ao trabalho, que hodiernamente tem sido utilizada como meio de mascarar o objetivo de obter maior lucratividade, refutando os direitos trabalhistas próprios da relação de emprego, maior lucro e menor cus-to, evidenciando um terreno fértil para fraudes trabalhistas, tal como ocorre na indústria têxtil, razão pela qual grande parte das constatações de trabalho em condições análogas às de escravos – trabalho escravo contemporâneo, por assim dizer – são feitas em oficinas de confecções clandestinas que admitem trabalhadores oriundos de países vizinhos, como a Bolívia, que, muitas vezes, imigram ilegalmente para o territó-rio nacional. Este aspecto é negativo, pois tende a contribuir para que o trabalhador permaneça à mercê das garantias trabalhistas e constitucio-nais. Assim entende Rodrigo Schwarz:

A clandestinidade, por sua vez, acentua ainda mais a vulnerabilidade dos imigrantes, gerando maior inse-gurança quanto a seu estatuto, dependência total em relação ao empregador, submissão à arbitrariedade das autoridades e falta de procedimentos de recurso: os imigrantes irregulares ficam, assim, mais vulneráveis à exploração em todos os níveis e fundamentalmente à exploração laboral. Os estrangeiros irregulares, mesmo quando são vítimas, são considerados culpados pela sua

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situação. Isso faz com que os Estados centrais sintam--se menos à vontade para regularizar os trabalhadores que estão em seus países e para fomentar políticas de integração. Entretanto, a clandestinidade tem gerado, na Europa, a reinvenção da escravidão. Nos países centrais, o escravismo contemporâneo está diretamen-te relacionado ao trabalho de imigrantes irregulares. Levados para os países centrais, muitos trabalhadores imigrantes em situação irregular são empregados clan-destinamente no setor agrícola, no trabalho doméstico, na construção civil, etc., em situações de extrema vul-nerabilidade. (SCHWARZ, 2009).

Logo, a clandestinidade importa em um aspecto nocivo à situação dos imigrantes ilegais que se sujeitam às condições de trabalho impos-tas nas terceirizações promovidas pelas oficinas de confecções. Outro fator também influencia a sujeição do trabalhador, que é seu estado de vulnerabilidade diante das péssimas condições em que vive no seu local de origem, como assevera Camila Correia (2014, p. 125), vulnerabili-dade por si só já ressaltada nos moldes da terceirização, admitidas de acordo com o entendimento jurisprudencial consolidado na Súmula nº 331 do TST.

Em maio de 2014, na cidade de São Paulo (SP), durante a fisca-lização promovida em uma oficina clandestina encarregada pela con-fecção de peças da marca M. Officer (SANTINI, 2014), o procurador do trabalho e representante regional da Coordenadoria de Combate ao Trabalho Escravo (Conaete), Tiago Cavalcanti, destacou um padrão na prática do trabalho escravo no âmbito da indústria têxtil no que diz respeito à prestação do trabalho, que basicamente inclui: jornada exaus-tiva, pagamento reduzido e condições de trabalho degradantes.

Destarte, é latente que a terceirização, seja lícita por atender aos requisitos exigidos pela Súmula nº 331 do TST ou ilícita pela prática de trabalho escravo, tende a tornar o trabalhador uma mera mercadoria a ser objeto de negociação entre duas partes que se ocupam apenas em obter maiores vantagens sob a perspectiva empresarial, ao passo que o

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trabalhador torna-se facilmente substituível pela ausência do caráter da pessoalidade, conforme dito alhures.

pRIncípIo do não RetRocesso socIal e o pRojeto de leI nº 4.330/2004

Conforme já foi exposto anteriormente, a aprovação do Projeto de Lei nº 4.330 (BRASIL, 2004) pode representar uma precarização dos direitos trabalhistas, não só por ocasionar uma significativa supressão de direitos sociais arduamente conquistados, como, também, por viabi-lizar a possibilidade de um tratamento diferenciado entre trabalhadores contratados diretamente pela empresa tomadora de serviço e trabalha-dores contratados pela prestadora.

Na verdade, um dos principais argumentos para a aprovação do re-ferido Projeto de Lei é que ele viabilizaria a criação de novos postos de trabalho, o que não é verdade. Sobre o assunto, o Prof. Dr. José Claudio Monteiro de Brito Filho já opinou sobre a exploração do trabalhador:

O pior de tudo é que a falta de trabalho acaba gerando o discurso de que é necessário reduzir as condições de trabalho existentes para acolher os trabalhadores ex-cluídos do mercado, em lógica que somente favorece a concentração de riqueza e o alargamento das desigual-dades. (BRITO FILHO, 2013, p. 57).

Na seara trabalhista, os direitos reconhecidos e regulamentados pelo Estado são verdadeiras conquistas galgadas por um longo processo histórico e não podem ser suprimidos. Nesse diapasão, ganha destaque o princípio do não retrocesso social, que diz respeito à impossibilida-de de retroceder para níveis de proteção inferiores aos anteriormente consagrados em relação aos direitos fundamentais. Para a Desembar-gadora do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 21ª Região, Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro, ocorre um impedimento ao legislador no tocante à propositura de mudanças e reformas legislativas tendentes a suprimir direitos trabalhistas (CASTRO, 2014, p. 98).

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Acerca do princípio do não retrocesso social, destaca Barroso que:

por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patri-mônio jurídico da cidadania e não pode ser absoluta-mente suprimido. (BARROSO, 2001, p. 158).

Portanto, diante da relevância deste princípio no ordenamento ju-rídico brasileiro, o Poder Legislativo não pode se eximir de sua ob-servância no curso do processo legislativo, de modo a desconstituir o conjunto de direitos conquistados ao longo dos anos. Ainda sobre o princípio do não retrocesso social, observa Ingo Wolfgang Sarlet:

Neste contexto, a primeira noção a ser resgatada é a do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais que estejam sendo objeto de alguma medida retrocessiva. Como já restou suficientemente destacado, o legislador (assim como o Poder Público em geral) não pode, uma vez concretizado determinado direito social no plano da legislação do direito infraconstitucional, mesmo com efeitos meramente prospectivos, voltar atrás e, median-te uma supressão ou mesmo relativização (no sentido de uma restrição), afetar o núcleo essencial legislativa-mente concretizado de determinado direito social cons-titucionalmente assegurado. (SARLET, 2010, p. 452).

Exatamente pelo acima elucidado, o Projeto de Lei nº 4330/2004 parece estar em descompasso com este princípio, considerando as su-postas inovações que possam surgir no âmbito das relações laborais. Decerto, caso seja aprovado, este Projeto de Lei representará um retro-cesso ao ramo do Direito do Trabalho, marcadamente reconhecido pelo caráter protecionista, que se ocupou em desenvolver normas de direitos em prol da parte mais vulnerável, que é o trabalhador.

Observa-se que, com tal aprovação, também poderá ocorrer a re-dução do direito de se autodeterminar, e o trabalho humano passará a

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ser tratado como verdadeira mercadoria, passível de substituição, pois, na ausência do requisito da pessoalidade, é irrelevante quem prestará o serviço, ocasionando uma maior instabilidade laboral.

A partir da justificação contida ao final do texto do Projeto de Lei, depreende-se que a regulamentação da terceirização visa atender aos anseios da parte tomadora do serviço, que pode ser – tanto pessoa física quanto jurídica – grande beneficiária da execução do trabalho sem se preocupar com o vínculo de emprego. Neste ponto, prescreve a doutrina:

Esse projeto reforça o procedimento de terceirização, ao determinar que os contratos vigentes serão subme-tidos, mediante adequação, às suas disposições. De outra parte, verifica-se a amplitude dada à terceiriza-ção como mecanismo de fuga ao vínculo empregatí-cio, de forma expressa ao afastar a sua formação com a contratante tomadora. A precarização do trabalho se aprofunda, mediante a possibilidade da contratação sucessiva do trabalho se aprofunda, mediante a pos-sibilidade da contratação sucessiva do trabalhador por diferentes empresas prestadoras de serviços à mesma contratante de forma consecutiva, mecanismo que im-plica a coisificação do trabalhador, fazendo-o circular entre diferentes empregadores, sempre a serviço da mesma tomadora e na execução das mesmas tarefas, simples ou especializadas. (CASTRO, 2014, p. 118).

Tal posicionamento coaduna-se com ideia do trabalho sob a pers-pectiva da terceirização exposta alhures, sendo tratado como mercadoria.

Um dado importante sobre o Projeto de Lei diz respeito à possi-bilidade da contratação da prestação de serviço terceirizado em ambas as atividades da empresa, seja fim ou meio, tornando-se comum que empresas sejam constituídas exclusivamente por empregados tercei-rizados. Deve-se ressaltar que, nesse contexto, ainda que a tomado-ra seja grande beneficiária do trabalho empreendido pelo empregado terceirizado, sua responsabilidade limitar-se-á como subsidiária nas

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previsões dos artigos 10 e 14 do Projeto de Lei nº 4.3305, o que não mostrou ser sensato.

Enquanto estiver pendente a aprovação em definitivo deste Projeto de Lei, a Súmula nº 331 do TST persistirá como vetor das terceirizações celebradas, mantendo a vedação destas na atividade-fim das empresas e prevendo a responsabilidade solidária, quando for o caso, o que denota ser um mecanismo mais sensato por preservar a essência protecionista do Direito do Trabalho.

consIdeRações fInaIs

A ideia central deste trabalho foi discutir o direito social ao traba-lho e a impossibilidade de sua violação ou precarização tendo por base a ideia de respeito à dignidade humana por meio da efetivação de um direito ao trabalho de forma digna, o que poderá ser ratificado pela ideia de não retrocesso social.

O ponto-chave volta-se para a discussão do Projeto de Lei da ter-ceirização, traçando alguns aspectos nocivos que serão agregados à relação de trabalho, acentuando o grau de vulnerabilidade do trabalha-dor, reduzindo seu direito de autodeterminar-se, além de apontar sua incompatibilidade com o ordenamento jurídico vigente, que, até então, preserva o caráter protecionista do Direito do Trabalho.

Destacou-se a impossibilidade do retrocesso, pois o direito ao trabalho digno foi alçado à condição de direito fundamental, não se podendo admitir a violação ao núcleo mínimo de direitos do homem--trabalhador, o que ocorrerá inevitavelmente com a aprovação do Pro-jeto de Lei nº 4.330, cuja tendência será tratar o trabalho humano como

5 “Art. 10 - A empresa contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, ficando--lhe ressalvada ação regressiva contra a devedora.

[…] Art. 14. O contrato de prestação de serviços a terceiros deve conter, além das cláusulas inerentes a qualquer contrato:

[…] III – a obrigatoriedade de apresentação periódica, pela empresa prestadora de serviços a terceiros, dos comprovantes de cumprimento das obrigações trabalhistas pelas quais a contratante é subsidiariamente responsável” (BRASIL, 2004).

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uma mercadoria, o que foi demonstrado ser proibido pela Organização Internacional do Trabalho.

Dessa feita, fica evidente que este Projeto viola o princípio da proibição do retrocesso social, e assim haverá um novo marco nas re-lações laborais, na via contrária da essência protecionista do Direito do Trabalho, em detrimento do princípio da dignidade humana, por suas distintas vertentes, tudo para viabilizar a melhor forma possível de ob-tenção de lucro sob o menor custo com mão de obra.

Diante da conjuntura capitalista da sociedade contemporânea, per-meada pela busca incessante por uma maior lucratividade alicerçada pelo baixo custo da mão de obra, fica naturalmente acentuada a vulnerabilida-de daquele que tem no trabalho o meio de buscar a própria subsistência e, mais do que nunca, torna-se imprescindível a observância do princípio basilar do Direito do Trabalho, da proteção e do não retrocesso, por parte do legislador pátrio ao ter proposto o Projeto de Lei nº 4.330.

Utopicamente, tal projeto deveria extirpar a prática da terceiriza-ção da seara laboral, e não sacramentar uma prática tão nociva ao tra-balhador, mas isso parece muito distante da realidade, logo, ainda que a Súmula nº 331 do TST viabilize a terceirização, ainda preserva o caráter protetivo do Direito do Trabalho ao proibir esta prática na atividade-fim das empresas e possibilitando a responsabilidade solidária, uma vez que parece justo compartilhar o ônus das violações aos direitos trabalhistas entre a empresa prestadora e tomadora, esta, certamente, a maior bene-ficiária da terceirização.

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Submetido em: 30-7-2015

Aceito em: 18-9-2015