A Falência
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Transcript of A Falência
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UBLIPRESS
BLASSIUS UF BRAZILIAN LITERATURE
%
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A EALNCIA
JLIA LOPES DE ALMEIDA
1901
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O Rio de Janeiro ardia sob o sol de dezembro, que escaldava as
pedras, bafejando um ar de fornalha na atmosfera. Toda a rua de
S. Bento, atravancada por Veculos pesades e estrepitosos,
cheirava a caf cru. Era hora de trabalho.
Entre o fragor das ferragens sacudidas, o giro ameaador das
rodas e os corcovos de animais contidos por mos brutas, o povo
negrejava suando, compacto e esbaforido.
porta do armazm de Francisco Teodoro era nesse dia grande
o movimento. Um carroceiro, em p dentro do caminho, onde
ajeitava as sacas, gritava zangado, voltando-se para o fundo negro
da casa:
_ Andem com isso, que s onze horas tenho de estar nas
Docas!
E os carregadores vinham, sucedendo-se com uma pressa
fantstica, atirar as sacas para o fundo do caminho, levantando
no baque nuvens de p que os envolvia. Uns eram brancos, de
peitos cabeludos mal cobertos pela camisa de meia enrugada de
algodo sujo: outros negros, nus da cintura para cima, reluzentes
de suor, com olhos esbugalhados.
Ao cheiro do caf misturava-se o do suor daqueles corpos
agitados, cujo sangue se via palpitar nas veias entumescidas do
pescoo e dos braos.
No desespero da pressa, o carroceiro soltava imprecaes, aosberros, furioso contra os outros carroceiros, que passavam
raspando-lhe a caixa do caminho, todo derreado para a aniagem
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das sacas, respirando a poeirada que se levantava delas. Os outros
respondiam com iguais improprios, que os cocheiros dos
tlburis, em esperas foradas, ouviam rindo, mastigando o cigarro.
Os carregadores serpeavam por meio de tudo aquilo, como
formigas em correio, com a cabea vergada ao peso da saca,
roando o corpo latejante nas ancas lustrosas dos burros.
Transeuntes recolhiam-se apressados, de vez em quando, para
dentro de uma ou outra porta aberta, no pavor de serem
esmagados pelas rodas que invadiam as caladas, resvalando
depois com estrondo para os paraleleppedos da rua.
Aqui, ali e acol, pretinhas Velhas, com um leno branco
amarrado em forma de touca sobre a carapinha, varriam lpidas
com uma vassoura de piaava os gros de caf espalhados no
cho. Com o mesmo aodamento peneiravam-nos logo em uma
bacia pequena, de folha, com o fundo crivado a prego. Era o seu
negcio, que aqueles dias de abundncia tornavam prspero.
Enriqueciam-se com os sobejos.
Assim, em toda a rua s se viam braos a gesticular, pernas a
moverem-se, vozes a confundirem-se, chocando nas pragas, rindo
com o mesmo triunfo, gemendo com o mesmo esforo, em uma
orquestra barulhenta e desarmnica.
A no serem as africanas do caf e uma ou outra italiana que se
atrevia a sair de alguma fbrica de sacos com dzias deles
cabea, nenhuma outra mulher pisava aquelas pedras, s afeitas
ao peso bruto.
Dominava ali o trabalho viril, a fora fsica, movida por
msculos de ao e peitos decididos a ganhar duramente a vida. E
esses corpos de atletas, e essas vozes que soavam alto num
estridor de clarins de guerra, davam velha rua a pulsao que o
sangue vivo e moo d a uma artria, correndo sempre com vigor
e com mpeto.
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J de outras ruas descia aquela onda quente, arfante de
trabalho, Vinha da rua dos Beneditinos e Vinha dos armazns da
rua Municipal, todos atulhados de caf, que esVaziaVam em
profuso para os trapiches e as Docas, tornando-se logo a encher
famintamente.
Em uma ou outra soleira de porta trabalhadores sentaVam-se
descansando um momento, com os cotovelos fincados nos joelhos
erguidos, saliVando o sarro dos cigarros, a saborear uma fumaa,
olhando com indiferena para aquela multido que passava aos
trancos e barrancos, na nsia da Vida, num torVelinho de p e
gritaria.
De Vez em quando, grupos de rapazinhos, na maior parte
italianos, surgiram nas esquinas e percorriam todo o quarteiro, s
gargalhadas, enchendo os bolsos com o caf das africanas Velhas,
cujos guinchos de protesto se perdiam abafados pelo rudo
complexo da rua.
Dentro dos armazns a mesma lufa-lufa.
No de Francisco Teodoro no haVia paragem.
O primeiro caixeiro, seu Joaquim, um homem moreno, picado
das bexigas, de olhos fundos e mas do rosto salientes,
gesticulaVa em mangas de camisa, apressando os carregadores
esbaforidos.
A porta, um capataz de tropa, mulato, furaVa com um furador
tubular de ao e lato todas as sacas que saam, para que se
escapasse pela abertura uma mancheia de gros. Os carregadores
apenas retardaVam os passos nessa operao, e o caf caia
cantando na soleira.
Ao fundo, um rapazinho magro e amarelo, o Ribas, apontaVa
num caderno o nmero de sacas que leVaVam, rente escada de
mo por onde os carregadores subiam para as tirar do alto das
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pilhas, correndo depois pelo asfalto desgastado e denegrido do
solo.
Tudo era feito numa urgncia, obrigada a grande movimento.
Um sopro ardente de Vida, uma lufada de incndio bafejada por
cem homens arquejando ao mesmo tempo na febre da ambio,
VaraVa todo aquele extenso poro negro, sem janelas, ladeado de
sacos sobrepostos e adornado nas Vigas sujas do teto por infinita
quantidade de teias de aranha, enredadas, como longas sanefas
Viscosas de crepe russo.
De Vez em quando, um rudo de cascata rolava pelo interior do
armazm. Era o caf, que ensacavam na rea do fundo, e que na
queda das ps desprendia um p sutil e um cheiro Violento.
Fora, chicotadas cortaVam o ar com estalidos, e pragas
rompiam alto, no som confuso, em que Vozes humanas e rodas de
Veculos se amalgamaVam com o estrupido das patas dos animais.
Alguns carregadores eXaustos paraVam um pouco, limpando osuor, mas corriam logo, chamados pelos olhos de seu Joaquim,
que ia e Vinha, muito trfego, sungando as calas que lhe
escorregaVam pelos quadris magros.
_ AViem-se! aViem-se! temos hoje muito que fazer!
Era o seu estribilho.
E haVia sempre muito que fazer naquela casa, uma das mais
gradas no comrcio de caf. Dir-se-ia que o dinheiro aprendera
sozinho o caminho dos seus cofres, correndo para eles sem
interrupo.
A0 lado do armazm e comunicando com ele por uma portinha
estreita, haVia esquerda o corredor e a escada, que leVaVa ao
escritrio, acima, no primeiro andar.
Em uma sala ampla, quadrada, de madeiras Velhas e papel
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\barato, o Senra, guarda-livros, escrevia em p, junto a
escrivaninha colocado ao centro. Em outra carteira trabalhavam
mais dois ajudantes, um velho, o Mota, de sorriso amvel e
modos submissos; e o outro, um moo bilioso de barbinhas
pretas, mal plantadas em um queixo quadrado.
Nessa sala o trabalho era silencioso. As penas no paravam,
mal dando tempo s mos para folhearem os livros e as diversas
papeladas. Diziam-se frases sem se levantar os olhos da escrita, e
as perguntas eram apenas respondidas por monosslabos.
A um canto, sobre uma mesinha slida, entre uma das janelas e
a parede, estava a prensa de copiar; e no outro canto, em um altobanco de madeira pintada, a talha de filtro j enegrecida pelo uso.
Pelas paredes, pastas de molas, rotuladas, em filas, prenhes de
contas, recibos e cartas a responder. Ao fundo, entre a talha e o
corredor da entrada, abria-se uma janela para o negrume do
armazm, sob uma claraboia estreita, de pouca luz.
Era em um gabinete, ao lado, com uma janela para a rua e igual
avareza de moblia, que o dono da casa escrevia a sua
correspondncia, bem repousado em uma larga cadeira de braos.
Ele ali estava, acabando de fechar uma carta.
Toda a sua pessoa ressumava fartura e a altivez de quem sai
vitorioso de teimosa luta.
Gordo, calvo, de barba grisalha rente ao rosto claro, com os
olhos garos tranquilos e os dentes brancos e pequeninos, tinha
um belo ar de burgus satisfeito.
No era alto e quando andava fazia tremer a casa, tal a firmeza
dos seus passos pesados.
Um ou outro empregado vinha de vez em quando fazer-lhe
uma pergunta, a que ele respondia com pacincia, indicando
claramente as coisas, com mincias, para evitar confuses.
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Francisco Teodoro, sua larga secretria de peroba, dava a
face para o cofre de ferro, de trincos e fechaduras abertas.
Tinha ele por hbito, tornado j em cacoete, remeXer com a
mo curta e gorda o dinheiro e as chaves guardadas no bolso
direito das calas. No comeo da sua vida, dura de trabalho e de
spera economia aquilo seria feito com inteno; agora
representava um ato maquinal, alheio a qualquer pensamento de
avareza ou de orgulho de posse.
Depois de muitas horas de trabalho febril, sem repouso, vinha o
momento de paragem, a hora do caf, que um mulato moo, o
Isidoro, levava primeiro ao escritrio, servindo depois os
empregados do armazm.
Os degraus j gastos da escada rangiam ento ao peso de um
comissrio vizinho, o Joo Ramos, e do ensacador Lemos, da rua
dos Beneditinos, do Negreiros, da rua das Violas, e do Inocncio
Braga, recentemente associado ao grupo. As duas horas reuniam
se sempre ali para o cafezinho, descansando o corpo e
desanuviando o esprito com palestras de seu interesse e do seu
gosto.
Nesse dia tinham soado j as duas, quando os negociantes
apareceram.
Francisco Teodoro levantou-se e bateu com os ps,
desenrugando as calas.
_ Homem! vocs tardaram...
_ Culpa do Lemos...
E depois:
_ O senhor est com a casa repleta!
_ Tenho exportado muito caf!
_ Felizardo! aproveite a poca, que no pode ser melhor!
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Corria ento o ano de 1891 em que o preo do caf assumira
propores extraordinrias. O movimento crescia e casas
pequenas galgavam aos saltos grandes posies.
_ O que eu te invejo, disse o Ramos, nico que ousava tratar
Teodoro por tu, no a fortuna, a mulata que te engoma as
camisas!
Os outros olharam rindo para o alVo e lustroso peitilho do dono
da casa, que saboreava o caf, com ar satisfeito, de p, com o
pires muito afastado do corpo, seguro na ponta dos dedos.
_ No m essa, regougou o Lemos, o comendador Lemos,
da Beneficincia, franzindo o narizinho, submerso entre duas
bochechas, que nem de criana.
Depois de um riso fraco e desafinado, ouviu-se a Vozinha
aflautada do Inocncio, perguntando a Teodoro:
_ Aqui seu Vizinho Gama Torres que fez um caso de um
dia para o outro, hem?
_ Homem, sempre verdade aquilo?!
_ Se !... tenho provas... Afinal, eu inspirei-o um pouco no
negcio...
Fixaram todos a vista no Inocncio Braga. Era um homem
pequenino, magro, com uns olhinhos negros, febris e um fino
bigode castanho, quase imperceptvel.
_ Custa-me a crer nesses milagres... ponderou Teodoro,
pousando a Xcara na bandeja que o Isidoro oferecia.
_ Afirmo; questo de arrojo. Presumiu alta, abarrotou o
armazm e esperou a ocasio. O sogro ajudou-o, est claro...
_ No meditou nas consequncias que poderiam sobrevir se
desse uma baixa.
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_ Quem fala em baixa?! Eu s lhe digo que o comrcio do Rio
de Janeiro seria o melhor do mundo se tivesse muitos homens
como aquele. Senhores, a audcia ajuda a fortuna. Fiquem certos
que o bom negociante no o que trabalha como um negro, e
segue a rotina dos seus antepassados analfabetos. O negociante
moderno age mais com o esprito do que com os braos e alarga
os seus horizontes pelas conquistas nobres do pensamento e do
clculo. O Torres de bom estofo; destes. Conheo os homens.
Olhavam. todos para o Inocncio com um certo respeito,
reconhecendo-lhe superioridade intelectual.
_ O Gama Torres teve dedo, teve; sentenciou o Lemos.
E logo o Inocncio acrescentou:
_ Tambm aquele est destinado a ser o nosso Rottschild!
Teodoro contraiu as sobrancelhas. Ser o primeiro negociante, o
mais hbil, o mais forte fora sempre o seu sonho...
Voltando-se, inquiriu dos outros explicaes midas acerca
daquele negcio fabuloso. O tempo favorecia as especulaes, e
ele meditaVa no assunto, alisando a barba grisalha, rente s faces
gordas e macias.
O Negreiros, tendo dado Volta sala e enfiado pela porta do
escritrio o seu enorme nariz de cavalete, virou-se para os outros
e disse a meia voz:
_ Que diabo! no posso acostumar-me a Ver aquele Velho
como ajudante de guarda-livros!
_ Que quer Voc? murmurou Teodoro; o Matos empenhou. se
por ele e afinal a aquisio foi boa. Precisa mais do que os moos,
e como d boa conta do recado no penso em substitudo.
assduo.
_ Outro esquisito que Voc tem c em casa l embaixo o
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Joaquim... ningum dir que o mesmo, l fora...
_ Muito carnavalesco e metido com as damas, hem? Que se
divirta, aqui trabalha como nenhum. E uma praa de arromba:
descansa-me.
_ Ouvi dizer que ele vai casar com a Delfina do Recreio...
_ Histrias! o rapaz srio.
_ Tolo que ele no , resmungou o Negreiros, procurando o
chapu.
O Inocncio despediu-se tambm; ia num pulo ao Torres. Os
afazeres eram tantos, que mal lhe davam tempo para engolir o
caf.
Quando ele saiu, olharam uns para os outros
interrogativamente. O comendador Lemos sentenciou:r
_ Este Inocncio e espertalho! Est aqui, est diretor do
banco. No duvido que o Torres tivesse sido empurrado por ele...
Tem uma lbia!
_ E sabe encostar-se a boas rvores. O Barros tem-lhe dado
boas comisses e no -toa que ele procura tanto agora 0
Torres... Mete-se sempre na melhor roda... Aquele no veio de
Portugal como ns, sem bagagem e cheirando a pau de pinheiro;
trouXe luvas e meias de seda... O patife!
_ So os que naufragam...
_ Quando no vm caa e no tm o jeitinho que este revela.
Canta que nem um pssaro, para atrair a gente!
_ E uma inteligncia superior! suspirou o Ramos, esticando
com ambas as mos o colete sobre a barriga arredondada. Depois,
refestelando-se no sofazinho austraco, teve uma ponta de censura
para as coisas desta terra: o governo era fraco, o povoindisciplinado. a cidade infecta.
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Inda nessa manh, vendo marchar um peloto de soldados, sem
cadncia nem ritmo, lembrara-se da maneira por que os soldados
da sua ptria andavam pelas ruas. As fardas eram mais bonitas, os
metais mais polidos, os passos iguaizinhos, um, dois, um dois;
fazia gosto. E assim, em tudo mais aqui, o mesmo relaxamento.
A maldita Repblica acabaria de escangalhar o resto. Veriam.
S no fim perguntaram pelas famlias.
_ A propsito, perguntou o Ramos a Teodoro, aquela menina
que vai tocar violino no concerto dos pobres sua filha?
_ Que concerto?
_ De amanh, no Cassino. Foi a minha madama que leu isso
num jornal...
_ Pode ser... so coisas l da me... a pequena tem um
talento; o prprio mestre espanta-se.
_ E bonita! vi-a um destes dias, observou o Lemos.
_ No, isso no! por enquanto ainda no se pode comparar
com a me... protestou Francisco Teodoro, com sinceridade e um
certo orgulho.
Os outros sorriram.
_ L isso, voc tem um pancado. Feliz em tudo, este diabo!
Houve uma pausa.
_ Realmente, insistiu Francisco Teodoro, o Gama Torres deu
um cheque valente. Pois olhem, eu no dava nada por ele: um
brasileirinho magro...
_ E comeou outro dia!
_ De mais a mais, parecia acanhado... tmido...
_ Qual! isso no! Conheci-o caiXeiro, ali do Leite Bastos. Foi
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sempre um atirado; ali est a prova: fez um caso de um dia para
o outro. Dou razo ao Inocncio; aquele est talhado para ser o
nosso Rottschild...
_ Vejam l, rosnou o Lemos com a papada trmula e um
brilho de cobia nos olhinhos pardos, eu quis fazer o mesmo
negcio e l o meu scio e medroso e: t, t, t, e melhor
esperar... Est a!
_ Fez bem, foi prudente! Deixem l falar o Inocncio.
Senhores, o comrcio do Rio de Janeiro honesto e no se tem
dado mal com o seu sistema, observou Teodoro.
_ Sim, o Inocncio aprecia isto de fora, por isso diz o
contrrio. Chama o comrcio do Rio de Janeiro de ignorante e de
porco.
_ Porco?! bradaram os outros, indignados.
_ Porco, confirmou o Ramos com solenidade.
_ Tudo mais aceito, o porco que no engulo, observou do
seu canto o Lemos, o anafado.
Ramos sentiu saltar-lhe na lngua esta resposta: "porque os
animais da mesma espcie no se devoram entre si". Ele
confessaVa-se seduzido pelas exposies de Inocncio. Que
talento!
_ Mas, afinal de contas, que quer o Inocncio?! perguntou
Teodoro de p, cruzando os braos sobre o fusto alVo do colete.
_ Queria... pensava encontrar aqui uma praa mais
desenvolvida, maiores transaes, casas de mais vulto. Diz que
no temos sabido aproveitar as aragens. Que s trabalhamos com
o corpo. No o ouviu?
_ Com que diabo quereria ele que trabalhssemos?
_ Com a inteligncia. Est claro. E ele explicou a coisa bem.
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O nosso comrcio formado por gente sem escola, vinda de
arraiais... Eu por mim, confesso, mal tive uns meses magros de
colgio! Apanhei muito e no aprendi nada.
Houve um curto silncio, em que passou pelos olhos de todos a
saudosa Viso de uma escola rudimentar, em um recanto plcido
de aldeia.
Depois de um suspiro, Teodoro concluiu:
_ Que Venham para c os doutores com teorias e
modernismos, e Veremos o tombo que isto leva!
Entreolharam-se. A Verdade que tinham todos eles um
soberano desprezo pelas classes intelectuais. Dai um sorrizinho
de expressiva inteno.
Mais um pouco de palestra sobre cmbio, transaes da bolsa e
assuntos lidos no Jornal do Comrcio do dia encheram um quarto
de hora, que passou depressa. Por fim saram, falando alto,
dizendo que aquela casa cheirava a dinheiro.
Francisco Teodoro foi dar o seu giro pelo armazm. Vendo-o
em baixo, seu Joaquim acudiu logo, limpando com a lngua o
bigode molhado de caf, a dar informaes.
_ Estamos esperando o caf do Simas.
O caminho j est ai perto, mas ficou entalado entre os
carroes do Gama Torres. Tem sido um despropsito o caf que
aquele armazm tem engolido.
_ J sei disso... bem. Mandou as contas para cima?
O outro disfarou um movimento de enfado e mal respondeu: -
sim, senhor; depois gritou para o fundo:
_ Seu Ribas!
O Ribas cruzou-se com Francisco Teodoro, que seguiu at a
-
rea, a ver ensacar o caf.
A gente do armazm tinha quizlia do escritrio: fazia valer
os seus servios, deprimindo os alheios. Seu Joaquim
considerava-se o melhor empregado da casa e gostava de mostrar
as suas exigncias. Os caixeiros temiam-no; mas o pessoal de
cima tratava-o com certa sobranceria, que ele no perdoava.
O velho Mota, ajudante de guarda-livros, ainda era o nico que
lhe dispensava amabilidades e cortesias; mas, mesmo
nisso, seu Joaquim lia uma adulao. Com certeza o velho s
pensava em impingir-lhe a filha, que mirrava os seus trinta anos
em um sobradinho da rua Funda.
Francisco Teodoro demorou-se um bocado na rea vendo
ensacar. Passou-lhe pela lembrana o tempo dos escravos, quando
esse trabalho era exclusivamente feito pelos negros de nao, com
a sua cantilena triste, de africanos. Era mais bonito.
As ps iam e vinham cantando, num compasso bem ritmado,
sempre seguido da voz: eh, eh! eh, eh! E agora mal se via um
preto nesse servio! E ainda acham que as coisas se alteram
devagar!
Rolavam pelo cho gros de caf, como contas de cimento, e
na atmosfera carregada mal se podia respirar. Francisco Teodoro
voltou. O caminho estava j porta e os carregadores andavam
nas suas corridas afanosas. Ia subir, quando foi abordado por um
dono de trapiche, o Neves, que, vendo-o da rua, entrou para lhe
pedir a freguesia, acrescentando para o estimular:
_ Agora mesmo venho ali do seu vizinho, o Gama Torres, que
me tem mandado l para o trapiche um nmero assombroso de
sacas!
O movimento do armazm interrompia-os de instante a
instante. Francisco Teodoro mal respondia, com as ideias
-
desviadas para outro sentido.
Pensava no Gama Torres, de quem toda a gente lhe falava com
elogio e pasmo. Aquele est destinado a ser o primeiro homem da
praa dissera-lhe o Inocncio, e o Inocncio era homem de bom
faro e de xito seguro em todas as suas previses... Mas esse
papel, de financeiro e negociante forte entre os mais fortes, fora o
ideal de toda a sua longa vida de trabalhos, de sujeies e de
amarguras! Seria justo que o outro, de um pulo, erigisse edifcio
mais alto e glorioso do que o seu, cimentado com lgrimas, com
sacrifcios, com tantos anos de esforo e de labor?
Francisco Teodoro despediu-se do Neves sem o animar,
apertando-lhe a mo frouxamente, e subiu para o escritrio. Na
escada encontrou o mulato, o Isidoro, com uma vassoura na mo.
_ Cuidado!... no me tirem as teias de aranha do armazm...
_ No, senhor! Eu bem sei que aquilo d felicidade...
Francisco Teodoro deteve-se um momento no escritrio e
entrou depois para o seu gabinete.
Fora, o sol avermelhava as fachadas feias e desiguais das casas
fronteiras. Velhas paredes repintadas, outras com falhas de calia,
guardavam os seus segredos e as suas fortunas. Um hlito ardente
de vero bafejava toda a rua febril.
Os armazns, pelas bocas negras das suas portas escancaradas,
vomitavam ainda sacas e sacas de caf, que as locomotoras e as
carroas levavam com fragor de rodas e cascalhar de ferragens
para os lados da Prainha e da Sade, levantando do solo
esmagado camadas de p, que espalhavam no ar cintilao de
ouro.
-
II
Em caminho de casa, Francisco Teodoro, recostado em um
bonde, persistia em querer ler um jornal da tarde, sentindo que as
ideias lhe fugiam para um curso perigoso.
O xito do Torres quizilava-o. Parecia-lhe que o outro lhe
taparia o caminho, impedindo-o de chegar ao seu ltimo ponto de
mira. GalgaVa-lhe de assalto a dianteira, para se quedar sempre na
sua frente, como um obstculo.
Aquela conquista de fortuna, feita de relance, perturbava-o,
desmerecia o brilho das suas riquezas, ajuntadas dia a dia na
canseira do trabalho. A vida tem ironias: teria ele sido um tolo?
Talvez, e para se certificar reviu a sua Vida no Rio, desde
simples caixeiro, quase analfabeto, com a cabea raspada, a
jaqueta russa e os sapates barulhentos
Tinha ainda fresco na memria o dia do desembarque - estava
um calor! - e de como depois rolara aos ponta-ps, mal Vestido,
mal alimentado, com saudades da broa negra, das soVas da me e
das caadas aos grilos pelas charnecas do seu lugar.
Pouco a pouco outros grilos cantaram aos seus ouvidos de
ambicioso. O som do dinheiro msica; Viera para o ganhar,
atirou-se ao seu destino, tolerando todas as opresses, dobrando
se a todas as exigncias brutais, numa resignao de cachorro.
Assim correram anos, dormindo em esteiras infectas, molhando
de lgrimas o travesseiro sem fronha, at que o seu mealheiro se
foi enchendo, enchendo avaramente.
Aquela infncia de degredo era agora o seu triunfo. Vinha de
-
longe a sua paixo pelo dinheiro; levado por ela, no conhecera
outra na mocidade. Todo o seu tempo, toda a sua vida tinham
sido consagrados ao negcio. O negcio era o seu sonho de noite,
a sua esperana de dia, o ideal a que atirava a sua alma de
adolescente e de moo.
No podia explicar, como, s pelo atrito com pessoas mais
cultivadas, ele fora perdendo, aos poucos, a grossa ignorncia de
que viera adornado. A letra desenvolveu-se, tornou-se firme, e a
sua tendncia para contas fez prodgios, aguada com o sentido
na Verificao de lucros. Relendo cifras, escrevendo cartas,
formulando projetos, e observando atentamente o seu trabalho e o
alheio, tornara-se um negociante conhecedor do que tinha sob as
mos, e um homem limpo, a quem a sociedade recebia bem.
No pudera ser menino, no soubera ser moo, dera-se todo
deusa da fortuna, sem perceber que lhe sacrificava a melhor parte
da vida. Para ele, o Brasil era o balco, era o armazm atulhado,
onde o esforo de cada indivduo tem o seu prmio.
Fora do comrcio no havia nada que lhe merecesse o desvio
de um olhar...
Tempos de amargura e de esperana, aqueles!
Relembrando o passado, Francisco Teodoro procurava em si
mesmo elementos com que pudesse bater inuncias e opor-se s
especulaes de afogadilho; devia encontr-los espalhados pelos
dias speros da incerteza e os macios da prosperidade.
Esta retrospeco agradou-lhe; fixou Vrios perodos.
O tempo em que morara em um sobradinho do beco de
Bragana, sombreado pelo beiral muito estendido do telhado
coberto de erVagem e pela sacada de rtula de um verde sujo.
Embaixo e defronte, caixoteiros, martelavam em tbuas de
pinho, cujo cheiro dava ao beco imundo uma baforada fresca de
-
oresta. E as marteladas que lhe importavam, se poucas horas
estava em casa! De dia o trabalho; de noite o teatro ou a casa da
Sidnia. Que seria feito da Sidnia? Devia estar por a em
qualquer canto... e velha.\
Aos domingos na chcara do Matos, o solo, os jantares a
portuguesa, e a hospitalidade paciente da boa D. Vica... Tudo lhe
girava na memria, suavemente, suavemente.
Fora no conforto daquela chcara, vendo-se cercado de
consideraes, ao lado do amigo respousado e feliz, que ele
sentiu a sua importncia e se lembrou que deveria haver na terra
outras delcias; mas o seu corao, cansado de uma luta
formidvel, negava-lhe novas inclinaes. A ptria esquecida no
lhe acenava com o mnimo encanto: a me morrera, a sua nica
irm tinha-se recolhido a um convento. Fechara-se uma porta
sobre a sua meninice.
Sentia-se s; comeava a cansar-se e a enjoar as mulheres
fceis, com quem convivia em relaes momentneas. Mesmo a
Sidnia enervava-o com os seus arrufos... e as suas denguices.
Atirou-se a proteger as instituies do seu pas, a andar com
medalhes e fazer mordomias na Beneficincia. No fundo, no
era s a distrao que ele buscava, nem a caridade que ele
exercia; uma outra causa lhe filtrava nalma aquela vocao para o
beneficio...
E a comenda chegou.
Foi s depois de comendador que Teodoro se sentiu vexado
daquela habitao e se mudou para um segundo andar da rua da
Candelria, que mobiliou a vinhtico, com exuberncia de
cromos pelas paredes. Achou, ainda assim, que sua casa alegre
faltava qualquer coisa...
Viera-lhe a dispepsia. Que insnias!
-
Um mdico, consultado, aconselhara-lhe uma viagem a terra ou
o casamento, para a regularizao de hbitos. Ele achara cedo
para a viagem: solidificaria primeiro a fortuna. A ideia do
casamento parecia-lhe mais salvadora.
Para que lhe serviria o que juntara, se o no compartilhasse
com uma esposa dedicada e meia dzia de filhos que lhe
herdassem virtudes e haveres?
No seu sonho comeou a esboar-se a ideia de um herdeiro.
Teria um rapaz, que usasse o seu nome, seguisse as suas tradies
e fosse, sobretudo, um continuador daquela casa da rua de S.
Bento, que engrandeceria com o seu prestgio, a sua mocidade,
bem assente no apoio e na experincia paterna. O filho seria a sua
esttua viva, nele reviveria, mais perfeito e melhor. Esse ao
menos teria infncia, seria instrudo.
E tanto aquela ideia o perseguia, que num domingo de sol
abriu-se ao Matos, que acolheu com ar solene e discreto as
confidncias do amigo.
Lembrava-se muito bem da cara com que o outro lhe
respondera:
_ Sei o que voc quer. Tivemos aqui na vizinhana uma
famlia que est mesmo ao pintar... Gente pobre, mas de
educao. A filha mais velha a que lhe convm. Bonita e grave.
Muito digna.
Francisco Teodoro murmurou:
_ Pois uma mulher assim que me servia.
_ O diabo que elas vo de mudana para Sergipe...
Ento acabou-se.
_ No se acabou tal. Por enquanto esto hospedadas em casa
de umas tias, no Castelo. Ainda tempo de l irmos fazer uma
-
visita... O resto fica por minha conta.
Foi por uma noite escura que ele, j mais por condescendncia
que por curiosidade, entrou com o Matos na casa das senhoras
Rodrigues, no morro do Castelo.
Fazia frio; na rua um co uiVaVa longa, doloridamente.
Quem abriu a porta foi a mais velha das donas da casa, d.
ItelVina. senhora alta e seca, muito nariguda, Vestida de ls
pardas. Os outros ainda se cumprimentavam e j ela se sentava,
erguendo o joelho agudo sob a costura. No tinha tempo a perder.
A outra senhora da casa andava por fora; Teodoro conhecera-a
depois. Essa era toda confiante e muito religiosa. Tinha ido
novena do Carmo com as duas sobrinhas mais moas e o irmo, o
velho Rodrigues.
Em uma sala vasta, quase nua, mal clareada por um lampio de
querosene, viu Teodoro, pela primeira vez, d. Emlia, uma
senhora bonita, de ar majestoso e olhos trfegos, e as suas duas
filhas mais velhas - Camila e Sofia.
Camila fazia croch perto do lampio; Sofia refugiara-se para
um canto do canap. queixando-se da cabea. E a me comeou a
falar com ar de sinceridade, muito demonstrativa. A cada instante
o nome de Camila saia-lhe da boca com um elogio. Era a filha
mais velha e a mais instruda: pilhara os tempos das vacas gordas,
quando o pai exercia um cargo lucrativo.
Os dedos de Camila apressavam-se no croch; com certeza ela
havia de ter errado os pontos e sentido os olhares de Teodoro
queimarem-lhe a pele, que a tinha linda, de uma alVura azul de
camlia.
D. Emlia asseverava que a sua Mila, como a chamavam em
casa, esquecia-se das suas prendas, obrigadas pela necessidade a
fazer servios domsticos.
-
Francisco Teodoro comoveu-se com a ideia de que aquela
mulher, talhada para rainha, passasse os dias a picar os dedos na
agulha ou a calejar as mos com o uso da vassoura ou do ferro.
Trabalhar! trabalhar bom para os homens, de pele endurecida
e alma feita de coragem. Olhou para a moa com Venerao.
Era bonita, alta, com grandes olhos aveludados, cabelo
ondeado preto e uns dentes perfeitos, muito brancos, mas que ela
mostrava pouco, sorrindo apenas. Da irm Sofia, na sombra, mal
se adivinhavam as feies.
A uma das frases, em que a abundncia do amor materno lhe
debuxava as perfeies, Camila saiu de ao p da luz e foi para a
janela olhar para o escuro.
Como correu depressa aquela noite!
Francisco Teodoro saiu tonto. O amigo ria-se: no lhe tinha
dito? GabaVa-se de ser casamenteiro, levaria em breve tudo ao
fim.
E dias depois o Matos pedia a mo de Camila para o amigo.
Comeou ento a srie de presentes e de Visitas. Mila tinha
sempre o mesmo embarao e a mesma brandura de sorriso.
O que ela ouvia da famlia, no o podia adivinhar Francisco
Teodoro, que a sentia umas Vezes reservada, outras Vezes
confiante.
Adiou-se a partida para Sergipe; houVe doenas em casa,
prolongao do noivado. peregrinaes de Teodoro por aquele
morro do Castelo, com raminhos de Violetas para a Mila; todas as
douras de namorado...
Casaram-se em um dia lindo.
Ele dera grandes esmolas aos pobres da igreja; Mila parecia um
anjo entre nuVens brancas...
-
Depois. a famlia partiu para Sergipe. O pai era chocho, mas
levava a carteira gorda. A me, com o seu modo de rainha
destronada, e as irms iam bem enroupadas e todas tranquilas
sobre o futuro de Mila e do filho mais velho, o Joca, por quem
Teodoro prometera olhar, e que andava por a, -toa.
A sua maior comoo fora ao entrar em casa, na rua da
Candelria. Supusera sempre que ela apalpasse, com sofreguido,
todo o seu ninho, na alegria de ser a dona, a senhora de tantas
coisas compradas para o agasalho do seu amor. Mas no: em vez
de ir para o interior, Camila fora para a sacada. Ele acompanhou
a.
Em frente, os telhados mais baixos sucediam-se irregulares,
cortando-se em linhas angulosas de um vermelho sujo; as casas,
desiguais, acumulavam-se, paredes ameaando paredes,
janelinhas de stos espiando as telhas estriadas de limo, de onde
emergiam chamins negras e curtas, baforando fumo.
Camila murmurava, como quem fala s:
_ Se ao menos se Visse o mar...
Disse; e curvava-se para a rua quando a badalada de um sino
reboou perto, formidvel, prolongando-se num som que era como
um gemido da cidade inteira. Mila ergueu-se com um estremeo
e voltou para o perfil da igreja o olhar esttico.
Ele sorrira do susto, enquanto ela dizia:
_ Como alto!
Depois desse, vieram dias tranquilos. A mulher bordava
almofadas para o sof e emoldurava os cromos com musgo e
ores secas.
Tinham-se acostumado um ao outro, viviam em paz, quando a
Sidnia reapareceu na vida de Teodoro, obrigando-o a desvios e
infidelidades. Nem a pobre Camila desconfiara nunca... Tambm,
-
nada lhe tinha faltado e j devia ser um regalo para ela cobrir de
boas roupas o seu corpo de neve, ter mesa farta, e andar pela
cidade atraindo as vistas, no deleite da sua graa...
Ento iam grandes remessas para Sergipe.
Um sorvedouro, aquela famlia, sempre exalando lamrias em
todas as cartas, na sede insacivel de dinheiro.
Por esse tempo o seu grande desgosto era o cunhado, o Joca,
que se lhe metia em casa, com os seus maus costumes de vadio.
Ele fora o causador de tantssimas querelas! E agressivo na sua
indolncia, mal humorado pelas dividas do jogo, e ingrato! M
raa. Alm do mais, pespegara-lhe depois com a filha em casa,
aquela pobre Nina, to enfezada nos seus primeiros tempos, fina
como um canio, e com uma tosse de co, que repercutia pelos
corredores. Enfim, essa, ao menos, servira depois para ajudar
Camila a criar as filhas, que o Mrio, esse j ela o encontrara
forte como um heri!.
O Mrio...
No percurso da Carioca praia de Botafogo, Teodoro foi assim
reconstruindo a sua vida, solidificando-a, pondo-a de p. Era com
essas memrias de famlia e de trabalho, que ele se entrincheiraria
contra os assaltos das novas ambies.
O mar, muito azul, paletado de ouro aqui, desenhava j acol
em grandes sombras negras o perfil dos morros. Uma aragem
forte sacudia as rvores, e folhas vinham redemoinhando no ar
em voos tontos. Uns pequenos atiravam um co da Terra Nova
gua, e as janelas dos palacetes mal se abriam aos esplendores de
fora.
Perto do colgio, subiram para o bonde duas irms de caridade,
com ramalhetes de rosas. Teodoro conhecia-as, eram professorasda filha, e distinguiam-no sempre, por sab-lo religioso. Iam levar
-
ermida da Copacabana aquelas ores, prometidas pela salvao
de uma aluna, que estivera s portas da morte.
Uma conversa simples, em dois minutos, foi como blsamo
para o esprito fatigado do negociante.
Demais, ele achou bonito, comovedor aquilo: uma criana s
portas da morte, duas religiosas, um ramo de flores e a viso de
uma ermida sobre o mar...\
Quando Francisco Teodoro chegou a casa, as suas filhas
gmeas, Raquel e Lia, brincavam na chcara. Ao V-lo abrir o
porto, as crianas atiraram-se para ele, que mal lhes passou os
dedos pelos cabelos; elas tambm pouco se detiveram e Teodoro
atravessou o jardim.
O seu palacete era um dos mais lindos de Botafogo. No centro
de um parque, ele erguia os seus balces por entre palmas
estreladas de coqueiros e copas de rvores bem escolhidas.
Aquilo no fora obra sua; tinha comprado a Vivenda a um titular
de gosto, cuja runa o obrigara a hipotec-la quando a construo
ia em meio e a Vend-la logo depois de concluda.
A esquerda, uma escada de pedra, ladeada por uma grade
orida, conduzia ao terrao alpendrado do andar superior, onde
muitas Vezes a famlia palestrava, espera de descer para o jantar.
Nessa tarde s estava ali o filho mais velho, o Mrio, todo
derreado numa cadeira de balano. O pai foi andando, e ele mal
esboou um movimento para levantar-se e dar-lhe as boas tardes.
Era j homem, muito moo ainda, e todo ele revelava
preocupaes de luxo e cuidado da sua pessoa.
Na sala da frente falava-se com alegria.
_ Temos visitas - pensou Teodoro, vendo chapus de homem
no cabide da saleta.
Quando ele entrou na sala, a mulher dizia filha:
-
_ Vai ensaiar, Ruth!
A seu lado, sentado no mesmo div, o dr. Gervsio Gomes
desenhava a lpis na carteira qualquer coisa que a fazia sorrir. Ele
gabaVa-se de ter jeito para a caricatura. Era um homem magro,
nervoso, de quarenta e trs anos, trigueiro, e apurado
na toilette. Era ligeiramente calvo, tinha um olhar de que as lentes
de mope no atenuavam a agudeza, e um sorrizinho irnico, que
lhe mostrava os dentes claros e midos como os dos roedores.
Camila guardava um vio prodigioso de mocidade. Todo o Rio
a apontava como mulher formosa. Tinha herdado da me aquele
ar de majestade, que tanto impressionara Teodoro na primeira
entrevista do Castelo, adoado por uma grande expresso de
calma e de bondade.
Francisco Teodoro foi direito a eles e cumprimentou-os, sem se
atrever a roar os lbios na face da mulher, com todo o
escrupuloso pudor das suas aes em famlia. Sentava-sej,
quando ela lhe disse com leve censura:
_ Voc no cumprimenta o capito Rino nem o maestro?
Os outros estavam ao canto da sala, junto ao piano para onde
Ruth se dirigia com o Violino na mo. Pedidas as desculpas,
Teodoro Voltou-se para o capito Rino:
_ Muito me alegro de o Ver aqui, capito; quando chegou da
sua viagem?
_ Ontem.
_ Voc no imagina, interrompeu Camila; o capito trouxe
me um presente lindssimo!
_ Que foi? perguntou a meia voz o dr. Gervsio.
Francisco Teodoro enxugava com o leno a calVa rosada e
luzidia. Mila, voltando-se para o mdico, explicou:
-
_ Uma coleo de orqudeas do Amazonas; e prometeu
mandar vir para o lago uma Vitria Rgia.
O doutor murmurou por entre dentes, em tom que s Camila
pudesse ouvir:
_ Isso de prometer que no bonito...
A moa relanceou-lhe um olhar, como a pedir misericrdia
para o outro, que palestrava agora com o dono da casa. - No era
bonito, por que?!
O capito Rino destacava-se entre todos na sala pelo seu tipo
de louro e pela robustez do seu corpo. Era alto, de ombros largos.
Tinha as mos grandes, os olhos claros, de um azul de faiana, o
bigode sedoso, como que acabado de nascer, e a pele queimada
pelos ventos do mar. S se lhe percebia a alvura da tez nos pulsos
ou na raiz do pescoo, quando ele atirava a cabea e os braos nos
seus gestos largos e desajeitados. Havia qualquer coisa de infantil
naquele homem grande, uma interrogao tmida talvez no olhar,
e um certo abandono, de pessoa pouco afeita sociedade. Vestia
se mal, usava gravatas de cores vistosas, abusando do xadrez nos
seus casacos de casimira mal feitos.
Ruth ps-se em atitude; a me gritou-lhe:
_ Imagina que ests diante do auditrio!
Ela pareceu no a ouvir. Em p, ao lado do piano, alta e
espigada, com a cabea unida ao seu ombro estreito de menina, os
cabelos negros caindo-lhe em ondas sobre o pescoo moreno, os
olhos de um verde lmpido, de gua marinha, abertos para o
vcuo, tinha um ar de sonmbula perdida em sonhos divinos. As
mos, longas e esguias, moviam-se com segurana; o vestido
branco, salpicado de florinhas amarelas, mostrava-lhe um pouco
das pernas finas, caladas a preto.
O Llio Braga, recm-chegado da Alemanha, o gordo maestro
-
que s falava de msica ou de jogo, atacou o teclado
vigorosamente. Fez-se o silncio em volta, mas por pouco tempo.
Recomearam as conversas em tom mais baixo. Ruth no ouvia
ningum; um brilho quente. de sol, saia-lhe dos olhos verdes,
voltados para a luz.
S o capito Rino parecia escutar a msica, olhando de
esguelha para Camila. Abominava a confiana que ela dava ao
outro, ao magro dr. Gervsio, ali to agarrado s suas saias,
dizendo-lhe coisas que a faziam sorrir. Tudo naquele homem o
irritava: o seu luxo, o seu tipo escanifrado e o seu ar de ironia, s
vezes perversa. outras insulsa.
Francisco Teodoro, nunca interessado por coisas de arte, nem
mesmo pela msica, quebrava amide as reflexes do capito
Rino, interrogando-o sobre assuntos do Norte, de puro interesse
comercial.
Ainda vibrava no ar a ltima nota do violino, quando Nina,
sobrinha dos donos da casa, entrou na sala, com o seu modo
simples que a tornava simptica a toda a gente. No era bonita:
tinha o nariz grosso e alguns sinais alourados na pele plida.
_ Voc viu as parasitas? perguntou-lhe Camila.
_ Sim; e, voltando-se para o capito:
_ Devemos conserv-las ao ar livre ou na estufa?
O capito fez um gesto de ignorncia.
S hora do jantar, Mrio se reuniu famlia. A mesa, cheia de
cristais e de prataria, tinha um aspecto festivo.
O dinheiro ganho custa de trabalho gosta de impor-se a
admirao alheia. O dono da casa, refrescado no palet de brim,
no se cansava de elogiar os seus vinhos e aludia amide
excelncia do cozinheiro.
-
Se algum se esquiVaVa a um copo de Bordeaux ou a um clice
de velho Madeira, ele acudia animadoramente: - Beba, que esse
legtimo; igual no se encontra com facilidade por ai.
Havia sempre excesso de iguarias; Voltavam para dentro pratos
complicados intactos. A fartura passava ao desperdcio. A copa
atulhava-se de peas grandes, em que as folhas de alface e os
desenhos a rodas de limo, de ovo, azeitonas e gelatina no
disfaravam a opulncia das carnes.
cabeceira da mesa, Francisco Teodoro gostava de,
espalhando a Vista por toda a longa superfcie branca da toalha,
v-la bem coberta de coisas caras e vistosas. Assim comia com
apetite, gostosamente. Era o seu triunfo na vida, que todo esse
luxo representava, na nica ocasio em que lhe sobrava tempo
para admir-lo.
Os convivas eram instados para que comessem mais,
comessem sempre! Com o dr. Gervsio havia menos instncias:
conheciam-lhe os hbitos de homem delicado. O capito Rino era
muito mais moo e trazia da sua Vida de mar valentias de
estmago.\
As crianas comiam a mesa, dirigidas por Nina, e faziam
algazarra e exigncias.
Mrio repreendia-as. achando intolervel que o pai consentisse
aquilo!
_ O nome do seu Vapor ...? perguntou ao capito o dr.
Gervsio, ajeitando a luneta no nariz.
_ Netuno.
_ Amado de Anfitrite e das nereidas. O patrono deve pr-lhe
em perigo o sossego...
-
_ Por que?
_ Porque assim moo, bonito, e com tal sugesto, de forte
envergadura precisa o senhor para resistir as sedues das
sereias...
_ Que ningum Viu nunca em mares brasileiros; respondeu o
capito ingenuamente.
_ ConVir no afirmar que no as haja tambm em terras do
Brasil, sublimou o doutor com um sorrizinho, descendo o olhar
para a pera que descascaVa.
Riram-se do embarao do capito, que murmurou, desviando a
vista de Camila:
_ Os cantos das sereias no me seduziriam...
_ Pois pena; sem imaginao a vida do mar no pode ter
encantos. Se eu, em Vez de mdico, obrigado a deter-me com o
que h de mais prosaico na natureza. fosse... o capito do navio...
perdo. do Vapor Netuno, apegar-me-ia mitologia, faria dos seus
deuses a minha florida e alegre religio, e afirmo que seriam de
gozo para mim as noitadas no convs, Vendo ao claro das
estrelas Vnus surgir das espumas e boiarem tona da onda negra
os dorsos brancos das cinquenta filhas de Nereu. Estou certo de
que no sentiria a tal melancolia das guas, de que s Vezes os
senhores se queixam. Um homem de esprito nunca est s...
O capito sorriu e Francisco Teodoro falou com o seu modo
sentencioso:
_ Eles gozam a seu modo.
_ No gozamos, no; a Vida do mar dura.
O dr. Gervsio no pode sentir com sinceridade o que disse...
_ Assevero-lhe que sim, capito; e que parti de um princpio
de que parto para todos os atos da Vida, convicto de que est no
-
prprio homem o remdio dos grandes males que o afligem.
_ Se vai dizer isso ao p dos seus doentes, ningum mais o
chamar, replicou Camila.
_ Chamaro; infelizmente chamam sempre. Ningum tem
absoluta confiana em si. O homem, por mais que digam, ignora
a fora de que vem revestido para a sua funo. Para ns, a
natureza representa apenas o papel secundrio da paisagem; o
acessrio, a mise-en-scne da Vida, em que nos atormentamos
mutuamente num alarido de inferno: No valia a pena criar coisas
to bonitas para serem to mal aproveitadas. Palavra de honra! se
fosse possvel conceber o riso, ou apenas o sorriso na face
tremenda do Onipotente, eu diria que Ele s vezes escarnece de
ns. A sua sade, capito!
_ Obrigado...
_ Um dia meto-me no seu Netuno e atiro-me para o Norte.
Curiosidade, simplesmente; tenho mais vontade de ver os
crocodilos do Amazonas do que... eu sei l, as bailarinas da
Grande pera.
_ Homem, dizem que a carne do crocodilo boa, disse
Francisco Teodoro.
_ H tambm quem afirme que a das bailarinas ainda
melhor! observou o mdico.
Camila riu-se; e depois:
_ E eu que nunca vi um grande vapor por dentro!
_ Quer ir comigo a Manaus?
_ No; mas quero que o capito Rino nos convide para visitar
o Netuno.
O moo martimo balbuciou, corando:
-
_ Oh! minha senhora...
Interrompeu a frase, porque ia dizer: - eu no desejo outra
coisa! mas achou mais acertado e mais simples acrescentar
somente: - quando quiser.
_ Ser num domingo, para que meu marido v tambm. E as
crianas podero ir?
_ Por que no?
Lia e Rachei bateram palmas.
Ao caf, no terrao, Camila declarou preparar um grande baile
para o S. Joo, quando Ruth completasse os seus quinze anos.
O dr. Gervsio protestou: que viesse o baile, mas com outro
pretexto.
_ Por que?
_ Porque a noitada de S. Joo mete medo s casacas e assusta
os decotes. um santo que s quer luz de fogueiras, com altas
labaredas e crepitaes, e ainda h de ser no campo, entre gente
rude que dance em torno s chamas.
E uma festa que me d ideia de uma cerimnia ritual, de povo
primitivo. Deixe o seu baile para outro dia.
_ Mas depois eu no terei pretexto...1
_ Meu Deus! no e preciso descer uma pessoa a dar
explicaes aos amigos, quando se trata de os divertir...
Francisco Teodoro ouvia o dr. Gervsio com muito
acatamento, reconhecendo-lhe superioridade intelectual.
Devia-lhe a vida dos filhos, confessava, e dessa dvida no se
cansava de se dizer devedor.
Aprovou a ideia do baile, fizessem o que quisessem, a bolsa
estava aberta. E a propsito, deixando os outros a tagarelar no
-
terrao, ele fechou os olhos e pensou na felicidade do Gama
Torres... Quem sabe?... talvez que ele pudesse fazer o mesmo; a
poca era favorvel, o caf rendia como nunca e ainda havia
esperanas de alta... Se fugisse aquela ocasio... perderia o ensejo
de triplicar de um dia para o outro a sua j grande fortuna... Fora
sempre um homem de ao, de recursos, como ficar na
retaguarda, imbecilmente, deixando que a outro, novato, se
conferisse o ttulo de Rottschild brasileiro? O cime do seu nome
de negociante enchia-o at aos olhos. Encadeou e desencadeou
pensamentos calculistas.
Ter a maior fortuna, tendo partido do nada, era toda a sua
ambio. Repetia a qualquer a humildade da sua origem,
espreitando o efeito dessa confisso. Ser o mais poderoso, o mais
rico, o mais forte, tendo partido do nada, no seria ter alcanado a
suprema glria na terra?
E, ali mesmo, bem recostado na sua cadeira de balano, com o
papo cheio de timas iguarias, as mos descansadas nos braos da
cadeira, ele insensivelmente passou do sonho ao sono.
Na meia sombra do lusco-fusco, os olhos do capito Rino
fulguravam, espiando com raiva os rostos do mdico e de Camila,
que se contemplavam. Mrio atravessou o terrao de charuto na
boca, em direo rua.
_ Onde vais? perguntou-lhe a me.
_ Ao teatro; respondeu ele sem se deter. descendo a escada.
_ Este rapaz... este rapaz... resmungou por entre dentes o dr.
Gervsio, em modo de censura.
Camila desculpou-o; o filho tinha gnio e era muito
independente. No queria contrari-lo; para qu? a Vida curta,
cedo viriam as amofinaes. O juzo havia de Vir com a idade...
Em baixo, no jardim, entre os grupos rescendentes de
-
heliotropo e de jasmins do Cabo, as crianas e Ruth faziam roda
Noca, mulata antiga na famlia, que lhes contava histrias de
fadas e de prncipes encantados. Vendo Mrio dirigir-se para o
porto, a mulata chamou-o com familiaridade de amiga Velha:
_ Seu Mrio, escuta aqui!
_ Que , Noca?
_ Onde que vai?
_ Se eu no morrer pelo caminho, hei de chegar ao teatro.
_ No morre; eu ainda esta noite sonhei que V. estava
amortalhado e que d. Nina chorava sangue... Sonhar com morte
sinal de sade. Traga umas balas para mim.
_ V esperando.
O capito Rino despediu-se e desceu tambm para a rua,
ouvindo a Voz da Noca recomear numa melopeia:
"Minha Varinha de condo, pelo poder que Deus Vos deu,
fazei..."
Nina, encostada grade, Via Mrio afastar-se; e l em cima, no
terrao, ao lado do marido adormecido, Camila curvou-se para o
dr. Gervsio e beijou-o na boca.
-
III
Com preguia de ir visitar as velhas tias do Castelo, Camila
mandava s vezes as filhas pequenas abra-las em seu nome, em
companhia da Noca. As senhoras Rodrigues moravam ainda na
mesma casa, do alto do morro, muito antiga, com janelas de
guilhotina e paredes encardidas. D. Itelvina raramente punha os
ps na rua, e era tida como a criatura mais sovina do bairro. A
outra, d. Joana, pouco parava ali, sempre voltada para Deus. Era
viva de um colchoeiro rico, morto de anasarca, de quem sofrera
os maus tratos que, na inconscincia das bebedeiras, ele lhe
ministrava.
Viviam as duas, desde crianas, na mesma casa. herana dos
pais, conservando os seus hbitos de vida mesquinha, amando
ideais diversos: uma concentrando-se, outra expandindo-se,
consistindo para uma todo o prazer da vida em aferrolhar,
esconder bens que as mos apalpam, e para a outra s em querer
bens dos cu, com que a alma sonha.
Nada sorria naquela habitao rida e velha. No quintal, nem
um canteiro de flores; uma horta raqutica a um canto, algumas
laranjeiras e um coradouro de grama pisada e sem vio,
estendendo-se ao lado de um tanque de cimento, coberto por um
telheiro de zinco. Dentro, o mesmo desconforto: salas com
poucos mveis e esses antiqussimos, alcovas vazias e uma
cozinha de tijolos desgastados pelas pancadas do machado na
lenha.
D. Itelvina percebia bem que para conservao daquela casa
deveria fazer-lhe grandes consertos; mas queria obter da irm que
os fizesse todos por sua conta, o que lhe parecia mais justo.
-
A irm que no olhava para os buracos dos ratos e pouco lhe
importava isso, desde que a sua Senhora do Carmo e o Santo
Cristo do seu oratrio estivessem alumiados, a sua alma em
graa, e que ela pudesse fazer todas as semanas as suas confisses
aos frades capuchinhos. Esta era, para tudo mais, uma senhora
aptica, gorda, de uma brancura anmica, com uns olhos
castanhos muito doces e um cabelo grisalho, curto, que ela cobria
com uma touca preta de folhos encrespados. A saia, redonda e
muito franzida, mostrava-lhe os ps largos calados em duraque,
e nas mos finas e cor de leite tinha, ora o livro de oraes, de
folhas j denegridas nos ngulos, ora um rosrio de mbar
benzido pelo bispo.
D. Itelvina no parecia crente. Ningum a vira nunca de joelhos
em frente ao oratrio da irm. Nenhum trao comum lembraria a
outrem o parentesco entre ambas. Esta era alta, morena, de narizforte e lbios finos.
A voz de d. Joana tinha inflexes brandas, de alma tranquila; a
voz de d. Itelvina tinha sibilaes desafinadas, rouquejava ou
tinia, como se sasse de rgos de bronze. Nem as duas sabiam se
se amavam.
Os bons dias e as boas noites eram trocados sem o beijo que
confraterniza as almas. Toleravam-se, talvez, apenas; apoiavam
se mutuamente, guiadas pelo hbito.
Quando Noca bateu porta, ouviu gritos dentro: e calculou
logo que haviam de ser da Sancha, a negrinha rf que d. Itelvina
explorava nos arranjos da casa.
Abriu-se uma janela com bulha impaciente e apareceu a cara de
d. Itelvina, indagando de quem batia.
_ Ah!... voc, Noca! espera um pouco, eu j vou.
Dentro, a mulata explicou:
-
_ Nh Mila mandou fazer uma visita e saber das senhoras
como esto... ela no pde Vir, porque...
_ J sei. Isto muito alto... se fossem as escadas do Lrico,
muito que beml... casa de pobres...
_ No, senhora! no por isso, nem as senhoras so pobres!
at dizem todos o contrrio...
_ Dizem? mentiras! mentiras s... Como vai seu Teodoro?
_ Muito bem.
_ Excelente homem; aquilo que foi sorte grande. bem Noca?
_ Foi. sim. senhora; ele bom... tem as suas impertinncias...
mas a gente j sabe que do gnio...
_ Qual o qu! Mila deve adorar o marido de joelhos! Neste
tempo j no fcil uma moa pobre e sem proteo encontrar
um casamento assim!
_ Isso verdade... Ela tambm muito boa.
_ Voc se lembra de quando eles moravam na Lapa, que at
voc levava as Vezes comida da casa de pasto para dar s
meninas?
A mulata sorriu com ar contrafeito e modesto, lembrando-se
que no fora da Lapa que ela levava os restos dos jantares da casa
de pasto do amigo, mas que subira muitas Vezes a ladeira do
Castelo, com a trouxinha das carnes na mo, para matar a fome de
Mila e das irms, ento hospedadas em casa de d. ItelVina.
_ De quem que Voc matava a fome, Noca? perguntou uma
das crianas.
_ De uma Viva que j morreu, emendou Noca. impelindo as
duas crianas para o quintal. Vo Ver a vista... vo Ver os sinais
dos vapores... dizia ela.
-
D. Itelvina olhou para as duas meninas e no pde conter-se
que no exclamasse:
_ Tanta gente com fome e tanto dinheiro esperdiado em
vestidos de crianas! Mila teVe sempre propenso para o
desperdcio... Bonitos aqueles Vestidos! onde os compraram?
_ Vieram de Paris...
_ Uhm... no haviam de ser baratos... aquilo seda, no ?
_ E, sim, senhora. D. Joana saiu?
_ J se sabe! anda pelas igrejas... Se no fosse eu, no sei
como havia de ser!...
Noca reparou, olhando para a alcoVa do oratrio, aberta para a
sala, que a lamparina estava apagada.
D. Itelvina continuou:
_ Joaninha s Vem a casa para comer e dormir. Tem quem lhe
faa tudo... Ela no tem aparecido por l?
_ No, senhora...
_ Ruth por que no veio?
_ Ficou dando lio. Ela tocou no concerto e foi muito
festejada.
_ H de lucrar muito com isso... Aposto em como no sabe
ainda pregar um remendo ou fazer um Vestido.
_ Graas a Deus, ela no precisa disso!...
_ O futuro o dir...
_ Credo!
_ Pois sim. Cada vez bendigo mais a educao que minha me
nos deu. Havia dias, que era desde manh at de noite a fazer
balas...
-
_ Tal! e d. Joana no deu pra outras coisas?
_ Ela sempre foi religiosa, mas depois de viva refinou! E
ainda se queixa de doente, que tem faltas de respirao e pernas
inchadas!
_ Coitada!
_ Minha filha! ela vai daqui a p a So Francisco, ao Carmo, a
Penitncia, a S. Bento a qualquer igreja da cidade!... As cinco
horas j est nos Capuchinhos; e tarde aqui na igreja do hospital
ela canta com as Irms e com os soldados. E cada ladainha que
Deus nos acuda!
Algum batia porta, e d. Itelvina, tendo espreitado pela
janela, voltou-se apressada e foi reacender a lamparina do
oratrio.
Sancha apareceu, com os beios inchados pelo excesso do
choro, e, dependurando a chave da porta da rua, segura pela
argola a um prego na sala, olhou com ar de queixa muda para a
Noca.
A negrinha no teve resposta: a outra disfarava, contemplando
as paredes nuas e desbotadas da sala. Pela janela aberta via-se
parte de um paredo desmoronado, e l em baixo, em um fundo
largo e fresco, um trecho de mar muito azul.
D. Joana entrou, arfando de cansao, e sentou-se logo na
primeira cadeira, ao p da porta. Sancha tirou-lhe a touca,
guardou-lhe o livro e os rosrios, e sumiu-se, sem ter descerrado
os lbios nem enxugado os olhos vermelhos e inundados.
_ Hoje a igreja estava repleta; falou monsenhor Nuno... foi
um grande sermo, de muito proveito e de muita f! disse d.
Joana, e depois de uma pausa: O Noca! Mila no vai nunca s
solenidades religiosas?
_ Vai todos os domingos missa.
-
_ Bem! que no deixe perder a sua alma! Entretanto, eu rezo
por todos. A pena que eu tenho de me custar tanto a ajoelhar...
estou com as pernas cada vez mais inchadas...f
_ Isso e cisma, resmungou d. Itelvina, retirando-se para o
interior. Noca aconselhou logo um remdio prodigioso, benzido
com cinco cruzes. Ela sabia dessas coisas. Todos de casa a
consultavam. A botica era a chcara, com as suas folhas,
cultivadas umas, agrestes outras; conhecia-lhes os segredos,
roubava-lhes os filtros mais sutis e aplicava-os acompanhando-os
com oraes especiais dos santos mrtires. Era sempre a Noca
quem avisava s pessoas da famlia qual o melhor dia para cortar
o cabelo, para fazer uma viagem ou para tomar qualquer mezinha.Sabia as voltas da lua, e traduzia os sonhos que lhe contavam,
com palavras de convico inabalveis. Criara todos os filhos de
Mila, desde o Mrio at a Biju, a pequena mais nova, j morta.
Quando ela descia o morro, as crianas queixaram-se de fome e
confessaram que no queriam voltar a visitar aquelas tias, que no
lhes davam nada. Nem um bocadinho de po!
Na praa do Castelo, Noca, com pena, entrou numa quitanda,
posta de nova, brilhando ainda nas tigelas lavadas e no barro das
panelas e das moringas venda, e comprou frutas para as duas
meninas.
Portuguesas, de saias curtas e grandes arrecadas de ouro, iam e
vinham, parando umas porta, com pimpolhos ao colo, e outras
falando alto, para dentro. A dona do negcio respondia a todos,
conversando em ar de mexerico disfarado, com a mulata, a quem
via pela primeira vez.
_ A senhora vem morar por aqui?
_ No; vim fazer uma visita.
_ A quem, inda que mal pergunte?
-
_ As senhoras Rodrigues; conhece?
_ As duas velhotas da travessa de S. Sebastio?
_ Essas mesmo.
_ No conheo outra coisa!... E depois de uma pausa, em que
procurou conter-se, abalou a falar sem interrupo. As senhoras
Rodrigues eram muito conhecidas no bairro. Diziam que d.
ItelVina passava horas da noite escavando o quintal, procura dos
afamados tesouros guardados pelos jesutas. Os vizinhos viam
uma luz de lanterna movendo-se na sombra do ptio, rente do
cho, e olhavam-na com desconfiana.
A outra era uma beata de igreja e j constava que legaria os
seus haVeres ao frei ngelo, dos Capuchinhos. A quitandeira
afirmava que elas haviam de passar mal da barriga: decorriam
semanas sem que lhe comprassem nem um triste feixe de
espinafres ou molho de cenouras!
Quando a Noca atravessava o largo. com uma criana por cada
mo, para a ladeira do Seminrio, sentiu que algum, que viera
correndo, lhe puxaVa pela saia; Voltou-se e viu Sancha, com ar de
medo, de quem foge.
_ U! que que voc quer?
_ Quero pedir um favor, disse a negrinha, meio engasgada,
tirando do seio uma nota de quinhentos ris amarrotada e imunda.
_ Que favor, gente?
_ Quando Voltar c, traga isto de arsnico, disse ela apontando
o dinheiro que oferecia mulata.
_ Arsnico... pra qu?! voc t doida?!...
_ Pra nada! faa esta esmola...
E como Noca no estendesse a mo, a negrinha atafulhou-lhe o
-
dinheiro, rapidamente, pela gola aberta do Vestido, e voltou como
uma seta para casa.
As cabritas andavam soltas, pastando nas ervas altas; o sol,
muito quente, alvejava roupas estendidas nas ruas, e na torre
repintada dos Capuchinhos o sino badalava, convidando orao.
Noca apressaVa-se, arrastando as duas meninas. Logo que
chegaram em baixo, ao largo da Me do Bispo, Viram Mrio
passar no seu phacton, que ele mesmo guiava numa posio
correta. O lacaio, sem descruzar os braos, sorriu para as
crianas; o moo passou sem reparar nas irms, que ficaram com
ar despeitado, agarradas saia da ama.
O carro de Mrio rodava j pela Guarda Velha, e Noca pensou:
_ Ele Vai ali, vai direitinho pra casa da tal Luiza, o diabo da
mulher que lhe come os olhos da cara. Uhm! eu gostava de Ver
s!
O Dionsio dizia-lhe que a francesa era bonita e muito chic, e
ela sentia no fundo uma curiosidade doida de conhecer a amante
daquele rapaz que embalara nos braos e cujo corpo redondinho e
nu suspendera tantas Vezes no ar para o fazer rir. E fora uma
criana alegre; agora no era; pelo menos em casa mostrava-se
to arredio e to srio... Noca suspirou e, depois de um levantar
de ombros, prosseguiu nos seus pensamentos:
_ Afinal de contas, faz ele muito bem: a mocidade passa e o
dinheiro foi inventado para se gastar. Ele gosta dela, acabou-se!
Sabe Deus o que o pai teria pintado tambm; agora fala e quer dar
leis ao corao do filho... Est-se ninando! Aquele! pois sim!
Cada um sabe de si...
Ao mesmo tempo sentia piedade pela Nina. Em casa a nica
pessoa que percebera aquele segredo fora ela. Sabia, mas calava
se muito bem calada; para que arranjar barulhos? Era to boa, a
-
pobre, to fcil de contentar... Bastava ver os vestidos e os
chapus que ela usava: tudo restos de Mila e de Ruth, que ela
fuchicava a seu jeito... Nunca pedia nada, nunca se punha em
evidncia, ningum se lembrava at quando ela fazia anos! Talvez
houvesse em casa um pouco de ingratido para com a moa; masde quem era a culpa? Mrio era um rapaz rico e de bom gosto,
havia de escolher mulher mais bonita, que fizesse vista numa
sala.
Noca adorava o Mrio; achava-o lindo, com o seu pequeno
buo alourado e os seus olhos negros e pestanudos. A flor da
famlia. Aquele sara me.
Passava um eltrico. As crianas sacudiram a mulata:
_ Vamos, Noca!
_ Vamos mesmo, que hoje de mais a mais tera-feira...
A conselho do dr. Gervsio, Camila, tinha marcado as teras
feiras para as suas recepes. No comeo houve relutncia em
casa. Francisco Teodoro gostava de porta franca em todos os dias
da semana; a mulher mesmo, criada em velhos hbitos, vexava
se, porque era da vontade do dr. Gervsio, e para esse o porto da
chcara estava sempre escanearado.
Ele no faltava, ia v-la todas as manhs, almoar no lugar de
Francisco Teodoro, que almoava sozinho duas horas antes, a um
canto da grande mesa vazia; e ali o mdico ensinava quela gente
o meio de se conduzir na sociedade, polindo-lhe o esprito,
alterando-lhe os gostos, fazendo-a preferir o queijo que ele
preferia, o vinho de que mais gostava, as aves e as caas com
molhos delicados, de fino paladar.
A docilidade dos ouvintes fazia-o abusar de frases que ele
formava para si, com o pretexto de as dizer aos outros, e que eles
todavia aceitavam, com agrado, num sorriso...
-
Nessa manh de tera-feira estavam ainda ao almoo, quando
palmas gordas estrondearam no jardim.
_ o Llio, exclamou Ruth, arrancando o guardanapo do
pescoo e correndo para fora.
Era o Llio; viram-lhe o gordo cachao, atravs dos vidros da
porta, quando ele passou pelo corredor.
Com o pretexto de mostrar ao mdico um anel novo, Camila
estendeu-lhe a mo, luminosa de pedrarias.
Ela segurou-a, e erguendo-a um pouco, observou:
_ Tal qual cinco raios de sol... Sim, senhora! muito perfeito
este brilhante... mas este outro ainda mais lmpido...
Ela sorria, e Nina excedeu-se em tratar das crianas, com o
propsito de desviar a ateno.
_ Ponha este anel fora... indigno da sua mo.
_ Brilha tanto!
_ do Cabo, muito amarelo.
_ Mas eu estimo-o muito. Foi o primeiro presente de meu
marido.
_ V l, que no so mal escolhidas as suas pedras, precisa
ainda de um brilhante negro, para este dedinho que est muito nu.
Tenho pena que no goste de prolas; s quer pedras que
fulgurem.
_ S.
_ Vamos para a saleta? trouxe-lhe um livro.
_ Versos?
_ No. Um romance.
_ Ainda bem; eu s gosto de versos quando o senhor mos l.
-
Uma monotonia...
Na saleta, ela abriu a Veneziana e aspirou com fora o aroma
dos reseds plantados junto parede. Gostava dos aromas fortes.
Que dia maravilhoso! depois, voltando-se:
_ O livro?
_ Est aqui.
_ J leu?
_ J. Trata-se de um amor um pouco parecido com o nosso.
_ Ento no leio. Sei que est cheio de injustias e de
mentiras perversas. Os senhores romancistas no perdoam s
mulheres; fazem-nas responsveis por tudo - como se no
pagssemos caro a felicidade que frumos! Nesses livros tenho
sempre medo do fim; reVolto-me contra os castigos que eles
infligem s nossas culpas, e desespero-me por no poder gritar
lhes: hipcritas! hipcritas! Leve o seu livro; no me torne a
trazer desses romances. Basta-me o nosso, para eu ter medo do
fim.
_ No tenha remorsos; o nosso no acabar!
_ Remorsos... remorsos de qu? Pensa, Gervsio, que, desde o
primeiro ano de casado, o meu marido no me traiu tambm?
Qual a mulher, por mais estpida, ou mais indiferente, que no
adivinhe, que no sinta o adultrio do marido no prprio dia em
que ele cometido? H sempre um vestgio da outra, que se
mostra em um gesto, em um perfume, em uma palavra, em umcarinho... Eles traem-se com as compensaes que nos trazem...
_ Isso tudo vago e abstrato.
_ No importa. E as denncias? e as cartas annimas? e os
ditos das amigas? Eu soube de muitas coisas e fingi ignor-las,
todas! No isso que a sociedade quer de ns? As mentiras que o
-
meu marido me pregou, deixaram sulco e eu paguei-lhas com o
teu amor, e s pelo amor! E assim mesmo o engan-lo pesa-me,
pesa-me, porque, quanto mais te amo, mais o estimo. uma
tortura, que parece que foi inventada s para mim!
Gervsio no respondeu. Tinha o rosto contrado por uma
expresso de cime. Passado um instante de silncio, murmurou:
_ extraordinrio! Nunca julguei possvel essa dualidade no
amor. Bem, levarei o livro. Adeus.
_ No v... E cedo... suplicou ela, com o rosto plido,
iluminado de paixo. Fique, to bom! Falarei noutra coisa.
Ensine-me a falar, Gervsio.
_ Ento, diga l: - amo-te!
E ela ia repetir as palavras, quando as gmeas entraram
ruidosamente.
Lia queria saber se aqueles navios pretos e pequeninos
espalhados no jornal eram do capito Rino.
_ So; disse a me abreviando explicaes. Vo brincar.
_ Ih! ento ele muito rico?
_ E. Vo brincar.
As meninas saram e o assunto voltou-se para o capito Rino.
O mdico ridicularizaVa-o; queria-lhe mal, achava-o medroso,
desenxabido, muito branco e muito louro, mal ajeitado nas suas
roupas. Faltava-lhe linha, faltava-lhe espirito, faltava-lhe tudo.
Camila negava alguns desses defeitos. No tivesse medo: ela s
o amaria a ele, em toda a sua vida.
Havia j muito tempo que duravam aquelas conversas na
saleta, com a porta escancarada para o corredor, por onde de
vez em quando Lia e Rachel passavam a galope, montadas nas
-
bengalas do pai.
Era despedida que o mdico e Camila marcavam, de vez em
quando, uma entrevista, longe, em uma casa da Lagoa,conservando o respeito por aquela habitao onde as filhas dela
viviam soltas, procurando-a a todos os instantes, irrompendo de
trs dos reposteiros ou dos mveis quando menos se esperava.
Ruth acabara a lio. Sentiram os passos do maestro na escada.
Gervsio ergueu-se.
_ Pois vou-me por a abaixo com o Llio. So horas das
moas bonitas na rua do Ouvidor...
_ Quem me dera que eu fosse uma delas... A velhice aterra
me por sua causa! E ela vem perto!...
_ Tontinha! e no sou eu mais velho?
_ Sim... mas os homens! Quando eu tiver os cabelos brancos,
voc...
_ Eu j no terei nenhuns; serei calvo como um ovo e
viveremos ambos com as doces recordaes destes dias lindos. O
nosso romance no acabar nunca. D-me as suas ordens, minha
senhora, aqui temos o Llio.
Camila acompanhou-os ao terrao.
_ Que me diz da sua discpula? perguntou o maestro.
_ Muito bem. Vai muito bem! Daqui a pouco ensina-me...
_ Ela estudiosa...
Enquanto os dois conversavam, o mdico passeou o olhar pelo
jardim; depois disse, voltando-se indignado para Camila:
_ O bandido do seu jardineiro est-lhe fazendo bordaduras de
horta nos canteiros! Aqueles feitios em gramas so de pssimo
gosto. No tem instinto, o desgraado! Hei de lhe arranjar outro,
-
um francs acostumado a lidar com as flores de Nice. Ver a
diferena.
Este errou a profisso: nasceu para tosquiador ou barbeiro.
Nem faz ideia do que seja a harmonia das cores; veja aquele
canteiro: o roxo ao p do escarlate, o amarelo ao p da cor de
rosa! Tudo mais, folhagens, folhagens e folhagens! Parece que
estes jardineiros fazem guerra s flores! Pois c ter o outro
amanh. Vamos, maestro?
Eles desceram e Camila ficou encostada a um pilar, at ver
sumir-se o mdico; j ele tinha desaparecido e ainda ela olhava,
pensativa...
Fora h anos... Gervsio morava j na mesma casa do Jardim
Botnico, bem instalado, mas muito metido consigo.
Uma noite algum lhe batera porta com desespero: era
Francisco Teodoro, que o chamava como o mdico mais prximo,
para ver uma filha que ardia em febre. Tinham ido
provisoriamente para a sua vizinhana, mudando o Mrio, que
tivera a palustre. O mdico no clinicava, mas cedeu splica e
salvou Ruth de um tifo. A doena fora longa; a menina s
aceitava remdios e alimento pela mo do seu amiguinho, que
tratou tambm de fortalecer Mrio.
Camila dizia ento em xtase, ao marido:
_ Devemos ao dr. Gervsio a vida de nossos filhos! A entrada
fora vitoriosa; justificava o ascendente do mdico na famlia...
Nem fora no comeo, que ele amara a Camila. Nesse tempo ela
no sabia ataviar-se, nem fazer sentir a sua formosura. Tinha os
modos de uma boa me tranquila, muito banal, com discursos
longos e choradeiras sobre a morte muito recente de uma filhinha,
que a tornavam fastidiosa. As gmeas, ento de meses, andavam
sempre pendentes do palet branco da me. Gervsio odiava
aqueles casacos e aquelas queixumeiras inspidas. Mas esse
-
tempo de prostrao foi passando, e ela ascendeu pouco a pouco,
vagarosamente, para a formosura e para a graa. A evoluo no
foi rpida, mas refletida e suave, como impelida por sopros
delicados. Quando o mdico percebeu quanto Camila mudava, e
que essa transformao lenta e visvel se fazia ao influxo dos seus
gostos, da sua convivncia e do seu espirito, comeou a observ
la com redobrada ateno, cultivando o prazer de a tornar outra,
como que uma obra sua.
Camila usava agora as cores claras, que lhe iam bem, e que ele
lembrara como mais propicias sua tez, adquiria expresses
novas, inflexes de voz em que nascia uma msica de tons
coloridos e harmoniosos, fazia outros gestos, mais graves e
adequados, pisava de maneira mais ritmada e linda, deixou os
perfumes misturados, sem escolha, por uma essncia branca; e
tudo isso o fazia sem esforo, obedecendo sugesto. O mdico
via nela um reflexo perfeito da sua alma, sentia-se Voltar-se, subir
para ele; e absorvido nesse estudo delicado - apaixonou-se por
ela.
Levada na fascinao, s tarde Camila percebeu o perigo que a
solicitava; ento quis fugir: fechou-se em casa, esquivava-se a Ver
o mdico; mas, atravs da distncia e do silncio, ele percebia o
amor dela a cham-lo, a envolv-lo todo com uma obsesso de
loucura.
Passaram-se assim longos meses, de saudades sem remdio, de
agonias mudas; at que um dia, cansados de uma resistncia
intil, deixaram-se vencer.
Para ele, aquela ligao foi uma Vitria; para ela como que uma
lei da fatalidade. Era, porque tinha de ser, e a sua culpa
salVaguardava-se nessa crena.
Havia muito tempo j que o dr. Gervsio entrara na intimidade
da famlia: sabia-lhe os segredos, lia todas as cartas vindas de
-
Sergipe, com repetidas splicas de dinheiro. Conhecia a histria
do nascimento de Nina, filha natural do Joca, e da fugida dele,
comprometido em uma casa de comrcio; estava ao fato das
doenas de d. Emlia, das habilidades caligrficas do Velho
Rodrigues e da j alta soma de dotes dada por Francisco Teodoro
s cunhadas.
Tudo isto soubera-o ele naturalmente, sem indagaes; Vinha
na enxurrada dos desabafos, no desafogo da amizade.
Com o amor, ele tinha tambm sabido conquistar a estima.
Toda a gente em casa o ouvia com ateno.
Um pouco dessas coisas Vagou pelo esprito de Camila,
quando, de olhar alongado, seguia ainda a sombra de Gervsio.
Dias depois ela dava os ltimos retoques sua toilette, em
frente ao espelho, quando o marido entrou.
Camila Viu-o no cristal e perguntou-lhe mesmo sem se Voltar:
_ Por que que voc Veio to cedo?
_ Por duas razes...
E, como ele interrompesse a frase, ela, sobressaltada, acercou
se, indagando com interesse:
_ Voc est doente? Diga!
_ No tenho nada filha, descansa.
Camila sorriu e Voltou tranquila para defronte do espelho.
_ Ento que motivos so esses?
_ O primeiro, para pedir ao Gervsio que V Ver o Mota, que
quebrou hoje uma perna.
_ O velho?
_ Sim.
-
_ Coitado! como foi?
_ Foi no servio da casa; descendo de um bonde. J est
medicado, mas quero que o Gervsio lhe examine o aparelho. O
segundo motivo mais srio.
Sem afastar do rosto o pompon do p de arroz, Camila
interrogou com certa indiferena:
_ Que ?
_ Trata-se do senhor seu filho.
_ Meu s?! tem graa...
_ Tem graa? Olha, eu que lhe no acho nenhuma! Est um
bilontra, o tal senhor!
_ Aposto, meu velho, em como voc vem por a com
recriminaes?!
_ Certamente; porque afinal de contas a verdadeira culpada
das patifarias do rapaz s tu.
Camila voltou-se indignada, com os olhos chamejantes de
clera:
_ Hem?!
_ No dou um passo na rua que no encontre um credor do
senhor meu filho.
_ Ora, logo vi, por causa de dinheiro! murmurou com
desprezo Camila, olhando para o marido de alto.
Ele continuou:
_ preciso que tu o advirtas hoje mesmo, que isto no pode
continuar assim! Ele mantm agora uma mulher: d-lhe vestidos,
carro, casa, e com toda a imprudncia faz contas em meu nome!
J se viu coisa igual?!
-
_ a mocidade...
_ J me tardava! a pouca vergonha. Que trabalhe.
_ Trabalhar! Mrio tem s dezenove anos!
_ Faze mos de veludo para o acariciar; o costume! Mas por
que no lhe fala voc?
_ Por que?! Ora essa! porque lhe vou cara, se ele me retruca
com um desaforol... Esperarei mais alguns dias... fala-lhe tu
primeiro. No lhe metas caraminholas na cabea; dize-lhe que
trabalhe, que siga o meu exemplo, e que se deixe de fazer dvidas.
Isto competiria a mim, bem sei, se no me tirasses toda a fora
moral.
_ Eu?!
_ Sim. Acodes com panos quentes sempre que o repreendo, e
ai est o resultado... E viva um homem honrado para isto! Uma
vergonha...
_ Ora! tambm voc exagera. Mrio tem boa ndole. E
incapaz de uma ao m. Descanse; eu falarei com ele. Quer
ento que eu o aconselhe a deixar a tal mulher?...
_ Por fora! Uma perua velha, que o h de comer por uma
perna. No posso estar continuamente a desembolsar contos de
ris para os caprichos da tal madama. Podes dizer ao Mrio que,
ou ele toma caminho, ou o mando para a Marinha.
_ J no est em idade disso, nem eu me separo de meu filho!
_ Temos outra. Faze o que quiseres; hoje fala-lhe tu, e se ele
no seguir outro caminho, ter de se haver comigo. Diabo, tenho
outros filhos!
_ Coitado do Mrio! tu nunca o amaste muito...
_ Han! Eu?! eu que nunca o amei? Oh! senhores... est bom,
-
est bom, falemos noutras coisas... Acalma-te... e veste-te
vontade. As Gomes j esto ai: Vi-as no jardim com a Ruth.
_ Que me importam a mim as Gomes!\
Francisco Teodoro chegou-se a janela, afastou a cortina e
olhando por entre os vidros, informou com Voz amvel:
_ L est tambm o capito Rino... A estava um bom
casamento para a Nina, hem? Gosto dele, parece um excelente
rapaz... apesar da procedncia.
_ Que procedncia?
_ Homem! a me morreu s mos do marido, por crime de
adultrio... Enfim, isso j foi h tantos anos, que ningum se
lembrar do caso...
_ Voc lembrou-se.
_ Ora, porque ainda ontem me falaram nisso.. Bom casamento
para a Nina... bom casamento!...
Camila sorriu com desdm e tratou de abotoar melhor o seu
broche de prolas, sobre a escumilha cor de rosa do peitilho.
Coitada da Nina... pois sim!
_ Muito bem! l chegam o Llio e o Gervsio... Sou muito
amigo do Gervsio, mas olha que ele tambm um esquisito.
No diz nada a gente da sua vida, l dos seus princpios... Com a
intimidade que lhe damos era natural que soubssemos mais dele
que toda a gente; e afinal sabemos s o que todos sabem. Aqui
para ns, no simpatizam geralmente com ele por a; dizem que
ele nunca escreveu uma linha e que Vive a criticar livros e
autores... Realmente, ele no perdoa a ningum. Pois vou falar
lhe. At j.
Antes de sair, Teodoro contemplou a mulher, ajeitou-lhe os
caracis da nuca e, atraindo-a, quis beij-la; ela porm esquivou
-
se com um movimento rpido. Francisco Teodoro riu-se e saiu
pensando consigo:
_ Todas as mes so assim! S porque lhe falei do filho... Em
baixo, Ruth colhia flores para as Visitas, que se agrupavam sob as
ramas abundantes da mangueira. As Gomes, a me e duas filhas
moas, eram indefectveis: todas as teras-feiras l iam, houvesse
mau ou bom tempo. A velha era uma senhora toda cheia de
preconceitos e escrpulos, e com a cabea recheada de receitas,
tanto medicinais como culinrias, que ela oferecia a toda a gente
que lhe ficasse ao alcance da Voz. As filhas eram espertas,
cantavam ao piano e ao Violo e Vestiam-se com graa, fazendo
valer panos baratos.
O capito Rino examinava as palmeiras com a ateno de um
botnico, enquanto o maestro e o dr. Gervsio cumprimentaVam
as senhoras.
Francisco Teodoro apareceu risonho, com as duas mos
estendidas para a querida sra. d. Incia Gomes, que se levantou
remexendo as sedas farfalhantes do seu Vestido cor de pinho.
Que excelente seda aquela! j passara por trs feitios diferentes, e
ainda era aquilo que se Via!
_ Cara senhora, ento, o amigo Gomes?
_ Vem logo; ah! ele tem muito trabalho, no imagina.
_ Sei, sei... a Vida foi feita para as mulheres. E ainda elas se
queixam! S se fala por ai em emancipao e outras patranhas...
A mulher nasceu para me de famlia. O lar e o seu altar;
deslocada dele no Vale nada!
Todos concordaram; e Francisco Teodoro passou adiante,
puxando o dr. Gervsio para uma aleia mais solitria do jardim:
_ Vou pedir-lhe um obsquio. L um dos meus empregados,
um ajudante de guarda-livros, o Mota, quebrou hoje uma perna,
-
ao descer de um bonde. O homem foi tratado na farmcia do
Souto, mas... sabe que esses aparelhos feitos assim pressa no
inspiram confiana; peo agora ao amigo que amanh v l v-lo.
_ Perfeitamente. Onde mora?
_ Na rua Funda, tenho aqui o nmero...
Francisco Teodoro sacou de um bilhete escrito a lpis.
_ Rua Funda? Onde isso?
_ no outro mundo, l para os lados da Sade.
Enquanto Francisco Teodoro conversava com o mdico,
Camila desceu a escada exterior do palacete, olhando de relance
para todos.
As Gomes acharam-na muito bonita e, intimamente,
espantavam-se de no verem nela o menor sinal de decadncia.
Aquela pele alva e macia, aqueles cabelos negros sem um fio
branco, aqueles dentes perfeitos e brilhantes, sem um toque
sequer de ouro que atestasse a passagem dos anos e das mos dosdentistas, faziam-na parecer sempre a mesma Camila dos tempos
da Lapa, em que d. Incia a conhecera.
Vendo-a descer to bonita, o capito Rino corou at raiz dos
cabelos e foi ele o ltimo que se aproximou, tocando-lhe de leve
nos dedos estrelados de anis.
Nina, que espreitava de cima, achou a ocasio oportuna para
mandar pelo criado a bandeja de prata com o vermute.
_ Por que no subiram?
_ Estamos bem. A sua Ruth tem feito as honras da casa. E
como ela est crescida; j no lhe ficam bem os vestidos curtos...
_ No diga isso ao p dela; apesar de que estou certa de que
no toleraria as caudas; muito criana e tem modos de rapaz.
-
No imagina, d. Incia, que fantasia a desta menina! No sei
como se arranja, mas a verdade que se encarrapita nas rvores
com o seu violino; e faz gosto ouvi-la tocar l em cima. Diz que
para fazer concertos com os passarinhos. Veja se eu a posso por
de vestidos compridos. Que horror!
_ Ah! mas preciso perder este costume; ela j tem os seus
treze anos...
_ Quatorze... quase quinze! mas no parece.
_ Isso de trepar nas rvores para rapazes; uma menina de
educao tem deveres...
Ruth interrompeu o discurso da velha, trazendo-lhe uma
manga-rosa muito perfumada.
_ No fale mal de mim, d. Incia; aqui tem a senhora uma
fruta colhida por mim l nos cocurutos da rvore. Se eu no
tivesse ido busc-la a senhora no a teria agora...
_ Ai est...
D. Incia cheirou a fruta, com fora, cerrando os olhos
papudos; e depois, voltando-se:
_ Camila, voc j comeu geleia de manga?
_ No me lembra...
_ Pois gostosa e fcil de fazer; olhe...
Enquanto d. Incia desfiava a receita do doce, Camila olhava
para ela, ouvindo o murmro de outras vozes, querendo distinguir
as palavras do mdico e do capito, sorrindo imbecilmente,
destacando de longe em longe uma ou outra coisa, um elogio
ao Netuno, da esquerda, ou um - espreme-se e pe na peneira - da
direita.
Nesse dia Mrio no apareceu ao jantar e Francisco Teodoro
-
queixou-se dele ao dr. Gervsio,