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A dupla face da cidade: o Rio de Janeiro nas crônicas do início do século XX The Double face of a city: Rio de Janeiro in the chronicles in the beginning of the last century Guilherme Mendes Tenório, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, gtenorio6@gmail. Cesar Augusto Miranda Guedes, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, [email protected]

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Aduplafacedacidade:oRiodeJaneironascrônicasdoiníciodoséculoXX

TheDoublefaceofacity:RiodeJaneirointhechroniclesinthebeginningofthelastcentury

GuilhermeMendesTenório,UniversidadeFederalRuraldoRiodeJaneiro,gtenorio6@gmail.

CesarAugustoMirandaGuedes,UniversidadeFederalRuraldoRiodeJaneiro,[email protected]

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DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

RESUMO

NoiníciodoséculoXX,acidadedoRiodeJaneiropassouporumconjuntodereformasempreendidopeloprefeitoPereiraPassosemconjuntocomogovernofederal.Taisreformascompreenderamsejaaaberturadeavenidas comoaAvenidaBeira-MareaAvenidaCentral sejaaadaptaçãodoportoparaembarcações de maior calado. Articuladas a este processo esta a adoção de novos hábitos como afreqüênciaasalasdecinemaeospasseiospelacidadeànoite.

Nestecontexto,ascrônicas funcionamcomomodosdeexpressãosubjetivaesimultaneamentesocialdasconseqüênciasdoplanejamentourbanobemcomododesejodeconstruirumacidademoldadanospadrões europeus, ressaltando as tensões entre a cidade real e a cidade ideal como quer o criticouruguaio Angel Rama. Deste modo, este texto objetiva captar novos sentidos para um período dahistóriadacidadedoRiodeJaneirofecundodeinterpretações.

Palavras-chave:RiodeJaneiro,crônicas,urbanização

ABSTRACT

InthebeginningofthelastcenturythemajorofRiodeJaneiroPereiraPassosandtheBrazilianfederalgovernment promoted a several improvements on the Rio de Janeiro urban space, such as the newavenues Avenida Central and Avenida Beira Mar. Also, in this period new habits of leisure weredeveloped,forexamplethecinemasandnighttours.

Inthiscontext,thechroniclesexpressboththeconsequencesoftheurbaninterventionsandthedesireof a new city, inspired in the European pattern of urbanization. So they indicate to us the conflictsbetween the ideal and the real city,which are expressions createdby theUruguayan literary criticalAngelRamainhisanalysisofLatinAmericancities.Therefore,thispaperhastheobjectivetothinkupnew meanings for a period in the history of Rio de Janeiro city that is rich of interpretations andmemory.

Key-words:RiodeJaneiro,chronicles,urbanization

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INTRODUÇÃO

Oobjetivodeste textoépensar a cidadedoRiode Janeironasprimeirasdécadasdo séculoXXtomando comobase a construção simbólicado seuespaçonas crônicaspublicadaspor JoãodoRio,OlavoBilaceLimaBarreto.Naquelecontexto,acidade foi tomadacomomotedereflexõespor uma geração de intelectuais que encontrava na imprensa um espaço adequado para aexpressãodeseusanseiosindividuaisecoletivos.

NãoépormeracoincidênciaaliasqueestaplêiadedehomensdeletrashabitouoRiodeJaneirono momento no qual o prefeito Pereira Passos e o presidente Rodrigues Alves encetaram umconjunto de transformações que se sobrepuseram aquelas que ocorriam pelo menos desde achegadadafamíliarealem1808.Pormaisquesurtosdeváriasenfermidadesaindaocorressem,não é factível esquecermos que a cidade recebida por Pereira Passos nada tinha de um burgocolonial, como querem nos fazer acreditar uma historiografia apologista das ações do prefeitoPassosedoisdoscronistasaquicitados,OlavoBilaceJoãodoRio.

Tambémos cronistas citados não foram os únicos a inserir seu olhar para a cidade. Um poucoantesMachadodeAssisescreverauma interessantecrônicanaqualpareciaanteverofuturodoRio de Janeiro, inclusive se referindo a possibilidade do então Distrito Federal sediar os JogosOlímpicos.

AconclusãoéqueoRiodeJaneiro,desdeoprincipio,achouquenãodeviasercapital da União, e este voto pesamuito. É o decapitado “par persuasion”.Assiméquetemoscontraaconservaçãodacapital,obeneplácitodopróprioRiodeJaneiro.Eleserásempre,comodisseumdeputado,anossaNovaYork.Não é pouco; nem todas as cidades podem ser uma grande metrópolecomercial.Nãolevarãodaquianossavastabaia,asnossasgrandezasnaturaiseindustriais,anossaRuadoOuvidor,comoseuautômatojogadordedamas,nemas próprias damas. Cá ficara o gigante de pedra, amemória da quadraromântica, abelaTijuca,descritaporAlencaremumacarta celebrea LagoaRodrigodeFreitas,aEnseadadeBotafogo,seatélánãoestiveraterrada,masé possível que não; salvo se alguma companhia quiser introduzir (commelhoramentos) os jogos olímpicos, agora ressuscitados pela jovem Atenas.(ASSIS,1896)1

Como título de “A capital”, a crônica foi publicada a 7 de Junhode 1896.O seu assunto era atransferênciadacapitalparaointeriordopaís,comoprevistonacartaconstitucionalde1891.Naargumentação deMachado, a transferência da capital em nada incorreria para a perda de seustatus. Continuaríamos sendo uma metrópole e estariam mantidas as nossas característicasnaturais,salvoseumdiaacidadeviesseasediarosJogosOlímpicos.

MuitodoqueMachadopreviunãoaconteceu.AhistóriadacidadenoscontaqueatransferênciadacapitalparaBrasíliaensejouumasériedeconseqüências,notadamentedecarátereconômico.Os jogosolímpicosporsuavezacabaramdeacontecereaindanãodaparamediroseu legado,mas sabemos que a Enseada de Botafogo não é amesma desde a década de 1960, quando oprefeitoCarlosLacerdaresolveuporaterraraqueleespaço.TambémaLagoadoRodrigodeFreitas

1ASSIS, Machado. “A capital”. In: RIBEIRO, Luiz Cezar de Queiroz. (Coord). Rio de Janeiro: Transformações da ordemurbana.RiodeJaneiro:LetraCapital;ObservatóriodasMetrópoles,2016.p.51

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vemconhecendovárias intervençõespelomenosdesdeadécadade1920,quandosedeuoseuaterramento.

Contudo,éinteressantequeumacrônicaescritanofinaldoséculoXIXjápensassenapossibilidadedo Rio de Janeiro sediar os jogos olímpicos e ainda refletisse quais seriam as possíveisconseqüências do processo. O texto de Machado é uma demonstração de como os temposdialogam entre si e por isso as crônicas são pontos de observação sobre as mudanças epermanênciasdacidade.Aindanamesmacrônica,épossívelobservarummovimentoqueprocuraeternizarcertosespaçosdoRiodeJaneiro,entreelesa“belaTijuca”descritaporJoséAlencareaEnseadadeBotafogo,oquenosremeteaopensamentodocríticoliteráriouruguaioAngelRama,2nosso interlocutor neste texto. Conforme veremos a seguir, Rama defendia a divisão da cidadeentrecidade idealecidadereal,assinalandocomoos intelectuais foram importantesnosentidodeconferirumcaráteratemporalàsurbes latino-americanasadespeitodastransformaçõesquesofressemnomundofísico.

Deste modo, o texto se dividirá em três partes além desta Introdução. Na primeira parte,apresentaremos alguns dados acerca do Rio de Janeiro no início do século XX e da inserção doBrasil na economia internacional. Em seguida, analisaremos com mais detalhes algumas dascrônicaspublicadaspor JoãodoRio,OlavoBilaceLimaBarreto.Por fim,asconsiderações finaisfarãoumaaproximaçãoentreocontextodaBelleÉpoqueeodoiníciodoséculoXXI.

UMACIDADEEMCONSTANTETRANSFORMAÇÃO

Conformeditoacima,aentãoCapitalFederalatravessouumperíododetransformações iniciadocomaeleiçãodeRodriguesAlvesem1902.Taistransformaçõessomaram-seaquelasquevinhamafetandoavidaurbanadoRiode Janeiropelomenosdesdeachegadadacorteportuguesaem1808,quandoforaminstaladosoJardimBotânicoeaBibliotecaNacional,transformandoacidadenasededoreinolusitano.

Porsuavez,nasegundametadedoséculoXIXoMunicípioNeutroedepoissededacorteimperialconheceu a introdução de serviços como a iluminação a gás e elétrica, as linhas de bondes, otelegrafoeoesgoto.Istoparanãofalardaconstruçãode4ramaisdelinhaférreaqueexpandiramacidadeparaoqueviriaaserdenominadodesubúrbioeaconexãoférreacomestadosdeMinasGeraiseSãoPaulo.

Porém, estas mudanças não eram suficientes para dissipar a imagem de uma cidade colonialassolada por doenças como a varíola, a febre amarela e a peste bubônica e com ruas malplanejadas. Além destas questões, faz-se necessário olhar para a inserção da cidade nodesenvolvimentodocapitalismonoquadrodasegundarevoluçãoindustrial.

Seguimos, portanto as sugestões do historiadorNicolau Sevcenko3no primeiro capítulo do livroLiteratura comoMissão, a qual traz uma série de referências factuais em relação aos aspectos

2RAMA,Angel.AcidadedasLetras.SãoPaulo:Brasiliense,1982.3SEVCENKO,Nicolau.“AinserçãocompulsóriadoBrasilnaBelleEpoque.In:SEVCENKO,Nicolau.Literaturacomomissão:tensõessociaisecriaçãoculturalnaPrimeiraRepública.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2003.

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socioeconômicos brasileiros no início do século passado. Entre outros pontos, o autor cita ainadequaçãodo porto brasileiro para receber os navios demaior calado, problema solucionadopelasreformascomandadasporRodriguesAlvesepeloengenheiroLauroMiller,queentãoestavaà frente do Ministério da Viação. Essas transformaram o porto no terceiro maior da AméricaperdendoapenasparaNovaYorkeBuenosAireseodécimoquintodomundo.

LógicotambémqueoportodoRiodeJaneironãoexerciaomesmopapelqueoportodeSantosnasexportaçõesdecafé,aindamaisdepoisqueoValedoParaíbaentraraemdecadênciaeforasubstituídopeloOestePaulista.Contudo,oportodoRiodeJaneiroaindaeracentralnanavegaçãodecabotagemepormeiodestaarticulava-seapraçascomerciaisnoNordesteenoNorte.

Damesma forma, a cidade era um centropolítico e financeiro que abrigavao poder executivo,seusministérios,embaixadas,a sededoBancodoBrasil,daBolsadeValoresedeumasériedeinstituições estrangeiras e nacionais. Aqui aportavam navios com mercadorias originárias dosquatrocantosdomundo,notadamentedaFrança.

A cidade ainda recebeu um montante significativo dos capitais exportados pela Grã-Bretanha.Esses foram investidos na infra-estrutura urbana e principalmente naquilo que facilitasse aexploração de produtos como o café, o cacau, açúcar e a borracha. Assim, o Brasil ainda eranitidamente uma economia agroexportadora cujo papel dentro da divisão internacional dotrabalho era o de fornecer alimentos e matérias-primas. Nessa perspectiva, a sociedade e aeconomiabrasileiraseramconstituídasdearquipélagosmodernizadossecomparadosàs regiõesrurais. Além do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Belém eram pólos de modernizaçãointeressantes. São Paulo crescia impulsionada pelo café do Oeste Paulista, Recife tinhaimportância culturaldevidoa suaFaculdadedeDireitoeBelémapareceuaomundoapartirdociclo da borracha e doMuseu Emilio Goeldi. Nada que contrariasse o fato de que a populaçãobrasileiraaindaerapredominantementeruraloumesmoopesodasoligarquiasregionais.

Noplanodemográfico,astabelasveiculadasnolivrodourbanistaMarceloAbreu4indicamqueem1906oRiodeJaneiroeraumacidadede800.000habitanteseem1920estetotalultrapassouamarcadoummilhão.EstesnúmerosfaziamdaentãoCapitalFederalamaiorcidadedopaís,postoqueperdeuparaacidadedeSãoPauloapartirdosanos1960.Paraefeitodecomparação,cite-sequeatualmentesomosasegundamaiormetrópoledoBrasilcomseismilhõesdehabitantes,masque chegam a 12 milhões se contamos com a região metropolitana. Enquanto isso, São Pauloperfaz um total de 12milhões de habitantes que se transformam em 20milhões tomando emperspectivaaáreametropolitana.

Não devemos esquecer também das inúmeras instituições culturais e científicas sediadas nacidadedoRiodeJaneiro.Aprimeiradelas,aindanofinaldoséculoXIX,foiaAcademiaBrasileirade Letras. Com as reformas de Pereira Passos, foram construídos ainda uma nova sede para aBibliotecaNacional,outraparaaEscolaNacionaldeBelasArteseoTeatroMunicipal.Ademais,naAvenida Central e nas ruas adjacentes situavam-se prédios de periódicos como o Jornal doCommercio, o Paiz, Correio da Manhã e a Gazeta de Notícias. Sem esquecermos o InstitutoManguinhos, hoje Fundação Oswaldo Cruz. Inaugurado em 1900, pelo médico e sanitarista

4ABREU,MauríciodeAlmeida.AevoluçãourbanadoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:IPP,2013.p.80

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OswaldoCruz,oInstitutofoifundamentalnosentidodocombateasepidemiasdafebreamarelaedapestebubônica.

OselementoselencadosacimajustificamporqueoRiodeJaneiroeracaracterizadocomoacaixaderessonânciadoBrasil,espéciedecidade-modeloqueatraiatodososolhares.SeLimaBarretoeJoãodoRioeramnascidosnaCapitalFederal,aquitambémvieramaportarintelectuaisdeoutrosestadosemesmodoestadodoRiode Janeiro,quenaépocaeraumaentidadepolíticadistintacom capital na cidade deNiterói. Para a cidade do Rio de Janeiro, vieram o sergipanoGilbertoAmado, omaranhense Arthur Azevedo e o cantagalense Euclides da Cunha. Esta fusão entre oespaçourbanocariocaeasquestõesnacionais,aliás,acarretaramproblemasparaaformaçãodeumcampopolíticoautônomo,comodemonstramoshistoriadoresAméricoFreire5eMarlyMotta.6

ENTREACIDADEIDEALEACIDADEREAL:ORIODASCRÔNICAS.

Deacordo comoque foiditoanteriormente,nosso interlocutor seráo critico literáriouruguaioAngelRama.7Dissertandosobreascidadeslatino-americanas,Ramapontuaquedesdeoiniciodacolonizaçãoascidades instaladaspelosespanhóis secaracterizaramporapresentaraordenaçãodo espaço urbano como se fosse um tabuleiro de damas no qual as hierarquias sociaisorganizavam-seemcírculosconcêntricos.

Portanto,ascidadescoloniaisrepresentavam,segundoRama,umidealdeordemeracionalização,oumelhor,estaseriaa intençãodosplanejadoresde todosos tempos.Poisnaverdadeexistiriaumabismoentre a cidade real, palmilhadapeloshabitantesem seu cotidiano; e a cidade ideal,concebidanacabeçadosplanejadores.Nestecontexto,os intelectuaisteriamsidofundamentaisenquantoportavozesdestaperspectivaordenadoraeracional.

Entretanto,cronistascomoJoãodoRio,OlavoBilaceLimaBarretovivenciaramcotidianamenteacidadedoRiode Janeirono iníciodoséculoXX.FreqüentavamambientescomooCafé JavaeaConfeitariaColombo.Visitavamcortiçoseosmorros.Pegavamotrementreosubúrbioeocentrocomofazia tododiaLimaBarreto.Trata-sepoisdeuma tensãoentre acidade idealeacidadereal.

Eporquetensão?PoisfoijustamentenesteperíodoqueacidadedoRiodeJaneiroatravessouumconjuntodereformascapitaneadopelopresidenteRodriguesAlvesepeloprefeitoPereiraPassos.Taisreformasdialogamcomodesejodaselitescoloniaisemconstruirespaçosdaordemapartirdaracionalizaçãodascidades.Édifícilnaverdadesepararosplanosdorealedoideal,vistoqueacidadeconcebidanomundodasidéiasacabaporseimiscuirnacidadequetodosvivenciavamnemépossíveltraçarumafronteirarígidaentreacidadedasletraseacidadedocotidiano.

Noentanto, a análisedeRama sugerequeahistóriadas reformasurbanasnaAmérica Latinaéanterior ao final do século XIX e desconstrói a vinculação automática que geralmente traçamosentreoqueaconteceunoRiodeJaneiroeoquesedeuemPariscomasreformasdeHaussman.

5FREIRE,Américo.Sinaistrocados:oRiodeJaneiroeaRepública.RiodeJaneiro:7Letras,2012.6MOTTA,MarlydaSilva.RiodeJaneiro:decidade-capitalaEstadodaGuanabara.RiodeJaneiro:EditoraFGV,2001.7RAMA,Angel.Op.cit,1982.

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ComPereira Passos, a ordem continuava a ditar a cabeça daqueles que intervinhamna cidade,basta que pensemos nas posturas que visavam à correção de hábitos anteriores como andardescalçoeosquiosques.

Poroutrolado,cabepensarasreformasdoRiodeJaneiroemumcontextoespecífico,namedidaemquenoséculoXIXcidadescomoBarcelona,Florença,Paris,VienaeBuenosAirespassaramportransformações. Ademais não nos esqueçamos de que o período colonial não assistiu aodesenvolvimentodenovastecnologiascomoocinema,a luzelétrica,obondeeoautomóvel,asquais as cidades modernas passariam a estar atreladas. Tecnologias essas que, por sua vez,evidenciavamumanovaetapanodesenvolvimentocapitalista,vinculadaaosdesdobramentosdasegundaRevoluçãoIndustrial.

Entretodososcronistascitados,OlavoBilacfoiomaisfavorávelàmodernizaçãoempreendidaporPereiraPassos.Paraele,portanto,a cidade real surgidaapartirdaspicaretasdePereiraPassoscomoqueseigualaacidadeideal.AntesmesmodeaAvenidaCentralficarpronta,elecoloca:“AAvenida...Parece-mequeavejoacabada,amplaeformosa,comassuasarvores,osseuspalácios,assuas lâmpadaselétricas,osseus“refúgios”,echeiadeumamultidãocontentee limpa.(Bilac,1903)

Noanoseguinte,aAvenidafoiinauguradaesobreelaBilacescreve:

Mas o meu sonho animou tudo aquilo: comecei a ver, ao longo da cidadederramadaaosmeuspés,rasgar-seagrandeAvenida;diantedosmeusolhosdeslumbrados relampejavam jatos de luz elétrica, e vi desenhar-se a cidadefutura,resplandecenteerica,maisbeladequetodasassuasirmãs,irradiantenagloriadacivilização.(BILAC;1903)

Em muitas das outras crônicas, Bilac repete o tom alvissareiro com que tratou a abertura daAvenidaCentralhojeAvenidaRioBranco.Talfatoconstituiumasumuladachegadadacivilizaçãoaentão Capital Federal. Se valendo de recursos poéticos como “relampejavam jatos de luzelétricos”,ocronistaconfereumtomalegóricoaaberturadaAvenida.Nestamesmacrônica,aliás,Bilacdescreveumapersonagemquerepresentariaa“Tradição”,o“Progresso”,“aProdução”,queemcertomomentodiz:

Oh!oprogresso!Pobredestacidade!Pobresdestasboascasasquemorrem!Pobresdestasboasruasquedesaparecem!Pobresdasminhasalegriasqueseesvaem!EstaAvenida,menino,vaiserocaminhodaPerdição!OcaminhodocéuéestreitoefeiocomooEscorrega;ocaminhodoinfernoéqueéamplo,rasgado,cômodoebonito!Pelasveredasapertadassópassamasalmaspuras,mas pelas avenidas largas passam todas as multidões pecadoras... (BILAC;1904)

Apersonagemacimaaludeaoproblemadodescompassoentreacidaderealeacidadeidealporoutra perspectiva, qual seja: a cidade ideal não era aquela que se projetava coma abertura daAvenidaesimaqueladopassado,provavelmentedoséculoXIX.Domesmomodo,éinteressanteassinalar como a personagem se vale de um tropo bíblico para advertir sobre os perigos dasavenidaslargas,transformandooRiodeJaneironumafuturaBabilônia.

AindaestemesmotrechopodeseranalisadoapartirdassugestõesdeRaymondWilliamsemseuclássicosobreasrepresentaçõesdocampoedacidadenaInglaterra,poisoautorafirmaqueumsupostocampoidealseriaummitoquesemprerecuarianotempo,cadavezmaisremotamente.

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Podemostransporissoparaasrepresentaçõesdascidadesesupor,porexemplo,queumviajantedo tempoquechegasseaoRiode Janeirono séculoXIXpensariaquea cidadecolonial foraumépocadouradaemcomparaçãoaquela.

Destemodo, a imagem de um Rio de Janeiro com vielas tortas e estreitas acabou passando amemória como representação fidedigna do que era a Cidade Maravilhosa antes das obras dePereiraPassos,fazendo-nosesquecerdastransformaçõesanterioresqueaatingiram.Assim,nãohaveria distinção significativa entre a cidade dos tempos de Estácio de Sá e da Capital Federal.Logo, afirma-semais uma vez o que foi ressaltado por Angel Rama acerca do papel da culturaletradadiantedacidadefísica:ascrônicassobreoRiodeJaneirodo iníciodoséculoXXacabampor construir uma memória sobre o que teriam significado as reformas de Pereira Passos nosentidodeumarupturatotalcomqueoeraacidadeanteriormente,comoqueeternizandoaquelemomentoparatodosempre.Portanto,oRiodePereiraPassosganhoumuitodasuaimportânciaemvirtudedotalentodeescritorescomoJoãodoRioeOlavoBilac.

BilacrepartecomArthurAzevedoarepresentaçãoalegóricadopassadoempersonagenscomoo“Carrancismo”.BastaolharparaotextodapeçaGuanabarinacomosugereapesquisadeTatianaOliveira Siciliano8e verificamos que no inicio do espetáculo Carrancismo solicita a Satanás queimpeçaoprogressodacidadeinvocandoumasériedecalamidadesnomeadascomoPoliticagem,InteressePessoaleDescrençaqueagirãopelasmãosdeumgêniodenomeAndrade,oquallutarácontraafadaGuanabarina,quecontacomasalegoriasdoProgresso,daIndústria,daCivilização,doPatriotismoparaimpedirosplanosmalignosdeAndrade.Nãoéatoaqueosdoisautores,BilaceArthurAzevedo,partilhavamacrençanotrabalhodePereiraPassoscomofatordeprogresso.

João do Rio, pseudônimo mais famoso do jornalista Paulo Barreto, foi outro adepto dastransformações urbanas promovidas por Pereira Passos. Mas João do Rio foi além, dando aconheceroutroladodacidade,aqueledosfumadoresdeópioedasmeninasquenamoravamasvitrines. Era, no dizer de Julia O’ Donnell, 9 um etnólogo da cidade real, permitindo quevisualizemos as conseqüências do furor modernizante liderado por Pereira Passos e RodriguesAlves. Primeiro, vejamos como ele se vale dos recursos da linguagem para descrever a novapaisagemurbana:

A praia de Botafogo apresenta um aspecto maravilhoso. A grande eesplendorosa avenida cintila de toiletes raras, de jóias coruscantes e debelezas admiráveis. Passam, sem cessar, automóveis caros, carros de luxonumafilainterminável.Sobosoldeinverno,omarachamolata-se.(Rio,Joãodo,1907)

Napassagemacima,ocronistadescreveanovaAvenidaBeiraMar,viaque ligavaaZonaSulaoCentroeque faziapartedoconjuntode reformaspromovidoporPereiraPassos.É interessantecomoJoãodoRiosevaledemetáforasrelacionadasàjoalheriaeamodapararessaltarafusãodaelegância das pessoas que passeavam na avenida com o próprio espaço. O próprio mar, aliás,ganhaa texturadeumtecido,namedidaemqueapalavra“achamolatar” remeteachamalote,umtecidodeorigemorientalfeitodepeledecabraoucamelo.

8SICILIANO, TatianaOliveira.ORio de Janeiro deArturAzevedo: cenas deum teatrourbano. Rio de Janeiro:MauadX:Faperj,2014.9O’DONNELL,Julia.Deolhonarua:acidadedeJoãodoRio.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd,2008.

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OquadropintadoporJoãodoRionacrônicacitadaacimalembramuitoasfotografiaspublicadasemrevistasilustradasdaquelemomentocomooMalho,aFon-FoneaKosmos.Esteeraomundonoqualaspessoasprocuravamimitarasúltimastendênciasdemodadomundoeuropeu,queàépocaerasinônimodemundocivilizado.

Esse era o ambiente pretendido pelos planejadores de uma cidade ideal, oposta àquela cidadereal, formada pelos hábitos populares. A ordem, portanto, não estava apenas nas avenidasretilíneas,mas dependia da aquisição de novos comportamentos, vendidos como se fossem osmais elegantes, ou para usar o linguajar da época, “smart”. Era uma nova disposição do corpodescritaemtermospoéticosporJoãodoRio,oumelhor,otreinamentodocorpoparaseadaptaraoutraconfiguraçãodoespaçourbano.

Nestecaso,JoãodoRioserviriadeexemploàsdiscussõestravadasporAngelRamanosentidodopapel desempenhado pela cidade das letras diante da cidade física, constituída pelastransformações sinalizadas pela abertura de novas avenidas. Lembremos que para Rama osintelectuaisseriamumdosencaminhadoresdacidadeideal,servindodesuportesimbólicoparaoplanejamentoeordenamentodoespaçourbano.

Porém, João do Rio não se limitou a ser um “pedagogo” da cidade ideal. Seu livro, “a AlmaencantadoradasRuas”, trazretratosdeumasériedeoutrascidadespossíveis,comoaquelados“comedoresdeópio”:

As lâmpadastremem,esticam-senaânsiadequeimaronarcóticomortal.Aofundoumvelho idiota, comaspernascruzadasemtornodeumbalde,atiracomdouspauzinhosarrozàboca.Oambientetemumcheiroinenarrável,oscorposmovem-secomoaslarvasdeumpesadelo,eestas15carasestúpidas,arrancadas ao balsamo que lhes cicatriza a alma, olham-nos com o sustocovarde de coolies espantados. E todosmurmurammedrosamente, com ospéssujos,asmãossujas(...)(RIO,Joãodo;1908)

Temos,pois,umcontrasteentreacidadequecirculaquepelaavenidadeautomóveleaquelaqueseescondeparafazerusodoópio.Contrasteestequesefaznotarpelaspalavrasutilizadaspelocronista para se referir aos chineses como “caras estúpidas”, “susto covarde”, “velho idiota”.Sumiramaavenidacintilanteeomaremformatodetecido.Agoraprevaleceasujeira,ocheiroputrefato,umaseriedecaracterísticasambientaisdescritasemtomnegativo,

Nestacrônica,seevidenciaadistânciaentreacidade idealeacidadereal. Essaé,comovimos,aquelavivenciadaporseushabitantesnodia-a-dia,nemsemprecorrespondendoaoplanejamentodos seus idealizadores. E que ficava, aliás, bem próxima a cidade inserida no plano de PereiraPassos. A bem dizer, os limites entre a cidade real e a ideal não são dos mais fáceis a seremdefinidos, sendo a literatura a grande responsável pela constante ultrapassagemdas fronteiras,poisnemestáapenas imaginandoumespaçourbano idealnemse restringeadescriçãodaquiloqueocronistavêaoflanar,istoé,caminharsemobjetivodefinido.

Comoestamosressaltandoconstantementeaolongodotexto,ascrônicasdeJoãodoRioeOlavoBilac eternizariam o momento fugaz das reformas promovidas por Pereira Passos e todas asconseqüências daí advindas. Como disse Angel Rama: os intelectuais da cidade das letras dãosentidoaossignificantesproduzidospelastransformaçõesurbanaseéapartirdelesquelemososmúltiplosviesesdomesmoprocesso.

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Em outro, “As Mariposas de Luxo”, João do Rio incide seu olhar sobre algumas jovens quenamoram uma vitrine da Rua doOuvidor, uma das artériasmais importantes do Rio “civilizado”.Vejamosdoistrechos:

São duas raparigas, ambas morenas. A mais alta alisa instintivamente osbandos,semchapéu,apenascompentesdeourofalso.Amontrareflete-lheoperfilentreasplumas,asrendasdedentro;eenquantoaoutraafundaoolharnosveludosquerealçamtodaaespetacularizaçãodo luxo,enquantoaoutrasofreaquelatorturadeTântalo,elamira-se,afinacomasduasmãosacintura,parecepensarcoisasgraves.Chegam,porém,maisduas.Apobrezafemininanãogostadosflagrantesdecuriosidadeinvejosa(...)

(...)Quantacoisa!Quantacoisarica!Elasvãoparacasaacanhadajantar,aturara rabugice dos velhos, despir a blusa de chita – amesmaque hão de vestiramanha ... E estão tristes. São os pássaros sombrios no caminho dastentações.Morde-lhesaalmaagrandevontadedepossuir,deteroesplendorqueselhesneganapolidezespelhantedosvidros.(Rio,Joãodo;1908)

Anteriormente,havíamosditoqueaaberturadenovasavenidasteve,entreoutrasmotivações,oensejodefacilitaracirculaçãodemercadorias.Étambémconsensoafirmarquea iluminaçãodestesnovosespaços facilitou o habito de passear pela cidade à noite. Tais emblemas da nova cidade estãosintetizados na crônica cujos trechos foram transcritos acima, na medida em que João do RiopoderáossignificadosdeumpasseioporumadasruasmaiselegantesdoRiodeJaneirodeentão.

A crônicachamaatençãoparaosefeitosda formaçãoda sociedadedeconsumosobreapsiquedos indivíduos. Fala da tristeza com que as moças encaram a impossibilidade de consumir umobjetodesejadoouqueforamlevadasadesejar.É,pois,ochoqueentreacidadeidealdoshábitoselegantesdeconsumoeacidaderealdos“pássarossombriosnocaminhodastentações”,oqueremetemaisumavezametáforadacidademodernacomoBabilônia.

Vamosaonossoúltimocronista,AfonsoHenriquede LimaBarreto.Dos três, LimaBarreto foiomaiscríticoaoprocessodemodernizaçãoqueatingiuoRiodeJaneironoiniciodoséculoXX,sejaaquelepromovidoporPereiraPassossejaaqueledesenvolvidoporCarlosSampaio jánadécadade1920,simbolizadopeladerrubadadoMorrodoCastelo.

AindanosvalendododiapasãofornecidoporAngelRama,10LimaBarretoseriaointelectualmaispróximo da cidade real. Seus textos conferem uma perspectiva negativa às transformações doespaço urbano, tocando no que seriam os limites daquela ordem visada pelos planejadores.Vejamoscomoeletrabalha,porexemplo,oproblemadasenchentes:

ORiodeJaneiro,daAvenida,dossquares,dosfreioselétricos,nãopodeestarà mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vidaintegral.

O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade,descuroucompletamentedesolucionaressedefeitodonossoRio.

10RAMA,Angel.Op.cit,1982.

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Cidadecercadademontanhaseentremontanhas,querecebeviolentamentegrandesprecipitaçõesatmosféricas,oseuprincipaldefeitoavencereraesseacidentedasinundações.

Infelizmente, porém, nos preocupamos com os aspectos externos, com asfachadas, e não com o que há de essencial nos problemas de nossa vidaurbana,econômica,financeiraesocial.(BARRETO;1915)

DiferentementedeJoãodoRio,LimaBarretonãoenxerganasreformasurbanaspromovidasporPereira Passos nenhum traço de profundidade. Para ele, apesar de terem afetadovertiginosamenteocotidianodoscariocas, seriammudançasde fachadanamedidaemquenãolograram resolver o problema das enchentes, entre outros. Portanto, não é que Lima Barretorejeitassea civilizaçãoouoprogresso,mas simqueestesvaloresadquiriamemsuaperspectivaoutrafeição.

Damesma forma, se o autor também pensava em termos de uma cidade ideal esta não seriaaquelaplanejadaporhomenscomoPereiraPassos,RodriguesAlveseCarlosSampaio.Apartirdasindicaçõesbiográficasde FranciscoAssisBarbosa,11infere-sequeumasupostacidade idealparaLimaBarretoseriaaquelaqueatenderiaaosanseiosdasclassespopulares,àsquaissempreesteveligadopororigemsocial.OautordeVidaeMortedeGonzagaSámatinhaemperspectivacríticaosdesdobramentosdaspráticasordenadorasensejadaspelacidadedasletras,formadanãosópelosadministradorescomotambémpelosintelectuais.

TambémnãoseriacorretodizerqueLimaBarretosejaummeropassadista.Leiamos,porexemplo,o que o autor escreveu a respeito da demolição do Convento daAjuda para dar lugar ao novoprédiodaCruzVermelha:

Nãoseibemquevantagenstrarátalcoisa.Se,aomenos,fossemoslevantaralium Louvre, um Palácio dos Doges, alguma coisa de belo e grandiosoarquitetonicamente, era de justificar todo esse contentamento que vai pelaalmadosestetas;masparasubstituí-loporumhediondoedifícioamericano,enorme,pretensiosoepífio,oembelezamentodacidadenãoserágrandeeasatisfaçãodosnossosolhosnãohádeserdenaturezaartística.Umacoisavaleaoutra.

Nãoéqueeutenhagrandeadmiraçãopelovelhocasarão,maséquetambémnão tenho admiração nem pelo estilo nem pela gente, nem pelos preceitosamericanosdosEstadosUnidos.(BARRETO;1911)

Ficaclaropela leiturados trechosacimaqueoproblemadademoliçãodoConventodaAjudaésimultaneamente estético e de ideológico. Estético porque, para Lima Barreto, edifíciosamericanos não teriam a beleza de um Louvre,museu parisiense. E ideológico porque seguiriaprincípiosnorte-americanos,comosquaisnãodemonstrasimpatia.Sobreisso,obiografodeLimaBarreto assinala quenosso autor não era fã dos EstadosUnidos por duas razões: a situaçãodonegronaRepúblicadoNorteesuaspráticasimperialistas.

Escrita em1911, a crônica se refere à substituiçãodomodelo francêsde civilizaçãopelonorte-americano, simbolizadapela adoçãodos arranha-céus e nos anos 1920pelo Jazz. LimaBarreto

11BARBOSA,FranciscodeAssis.AvidadeLimaBarreto.RiodeJaneiro:JoseOlimpio,1975.

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indiciacomoacidaderealestavaemconstanteprocessodeadequaçãoaumsupostomodelodecidade. Processo esse, como sugere Renato CordeiroGomes,12marcado pela esfuziante Idea deum rompimento como passado. Para lembrarMarx e umdos seus analistas,Marshall Berman,tudoqueésolidodesmanchanoar.

Se a cidade real está em constante transformação, a cidade ideal não se volatiza facilmentenotempo.LimaBarreto,porsuavez,eternizouumareformaPereiraPassosexcludente,visívelpeladerrubada dos cortiços e pelo controle de certos hábitos como andar descalço. Assim, quandoestudamosmaisumavezasreformasocorridasnoiniciodoséculotemossempreemmentetantoaimagemdeumaradicalmudançanoespaçocitadinocomoafaceexcludentedoprocesso.

CONSIDERAÇÕESFINAIS.

Escritos comoosdeOlavoBilac, JoãodoRioe LimaBarreto têm impulsionadoestudos sobreoPeríodoPereiraPassos.Tantoéassimquemesmoanalisescríticaseembasadasnasteoriassociaiscorroboramparaconsideraro iníciodoséculoXXcomoumperíododeradicaltransformaçãonaentão Capital Federal. A cidade que existia antes é quase sempre assumida como colonial emcontraposiçãoacidademodernaconstruídaporPassos.

Como já afirmamos anteriormente, não se negam aqui as dimensões das transformaçõesproduzidaspelareformalevadaacaboporPereiraPassos.Elasatingiramváriosbairrosdacidade,como Copacabana, Botafogo, Catete, Glória, Tijuca e mesmo Santa Cruz. Permitiram ainda aoscariocasaaquisiçãodenovoshábitosdelazercomoospasseiosnoturnos.Noentanto,ésempreimportante relativizar a profundidade da ruptura que provocaram, visto que a cidade já setransformavapelomenosdesdeachegadadafamíliareal.

Deste modo, seguimos as sugestões de Angel Rama no sentido de enquadrar as reformas dePereira Passos num espectro ideológico mais amplo do que aquele sintetizado pela palavra“modernidade”.Naverdade,aimplementaçãodenúcleosurbanosnaAméricaLatinaadquiriuumaspectoordenadorjánacolonizaçãoeuropéia,oqueproblematizasegundoindicaBarbaraFreitag,13a tesedeSergioBuarquedeHolandasegundoaqual, aocontráriodocolonizadorespanhol,oportuguêsnãotevemaiorespreocupaçõesaoinstalarsuascidadesnonovomundo.

Seforassim,porqueasreformasdePereiraPassosganharamtamanhafama?Pararesponderaestaquestão,chamamosRamaaodebatenovamenteeseguimossuasugestãonosentidodequea cidade das letras tem a força de controlar a passagem de tempo, conferindo aura adeterminados momentos da história e ajudando a construir uma memória dos mesmos. IssoaconteceucomoPeríodoPassos.

Acontecerácomoperíodoatual,noqualacidadedoRiode Janeirose transformounovamentepara adequar-se a CopadoMundo e principalmente aos JogosOlímpicos de 2016?Qual será ocomportamentodacidadedas letrasdiantedacidade física?ZuenirVentura,AldirBlanc,Arthur

12GOMES,RenatoCordeiro.Todasascidades,acidade:literaturaeexperiênciaurbana.RiodeJaneiro:Rocco,1994.13FREITAG,Barbara.Capitaismigrantes,poderesperegrinos:ocasodoRiodeJaneiro.Campinas,SP:Papirus,2009.

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Dapieve, JoaquimFerreiradosSantosserãoaquelesqueperpetuarãoamemóriadosdiasatuaisoujápassouotemponoqualacidadedasletrasaindaconversavacomoburburinhodasruas?

Alémdasquestõesconcernentesásrelaçõesentreespaçourbanoe literatura,devemos lembrarqueoRiodeJaneirofazpartedeumamegalópolecommaisde12milhõesdehabitantesdentroda qual osmunicípios componentes apresentam condições socioeconômicas dispares e que, noentanto, precisam coordenar-se a fim de solucionar problemas como o saneamento básico, amobilidadeurbanaeosimpactosambientaissobreaBaiadeGuanabara.

Somam-seaistoaherançaeoônusdetersidocapitalnosperíodoscolonial(1763-1822),imperial(1822-1889) e republicano,pois apesardoPoder Executivo ter sido transferidoparaBrasília em1960 aqui se manteve estrutura institucional vinculada ao governo federal, como algumas dasprincipais empresas estatais, a Biblioteca Nacional, o Museu Histórico Nacional, sem falar doshospitais(HospitaldosServidores,BonsucessoeAndaraí)edosórgãosadministradospelasForçasArmadas. Portanto,MachadodeAssis não estava tão errado ao apontar que o Rio de Janeiro,aindaqueperdesseostatusdesedeadministrativadanação,nãoseriatotalmentealijadodesuaimportânciasimbólica.

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