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    cadernos de campo, São Paulo, n. 19, p. 1-384, 2010

    A construção da religião como uma categoria

    antropológica

    T  ALAL A SAD

    tradução: BRUNO R EINHARDT  E EDUARDO DULLO

    Em muito do pensamento evolucionário doséculo XIX, a religião era considerada uma con-dição humana primeira a partir da qual o direito,

    a ciência e a política modernos emergiram e sesepararam1. Neste século, a maioria dos antropó-logos abandonou as ideias evolucionárias Vito-rianas, e muitos desafiaram a noção racionalistade que a religião é simplesmente uma forma pri-mitiva e, portanto, ultrapassada das instituiçõesque hoje nós encontramos em sua forma verda-deira na vida moderna (direito, política, ciência).Para esses antropólogos do século XX, a religiãonão é um modo arcaico do pensamento cientí-fico, nem de qualquer outra empreitada secular

    que nós valorizamos atualmente: ela é, ao contrá-rio, um espaço distintivo da prática e da crençahumanas que não pode ser reduzido a nenhumoutro. Disso parece seguir que a essência da re-ligião não deve ser confundida com, digamos, aessência da política – embora em muitas socie-dades as duas possam se sobrepor e se entrelaçar.

    Com a sutileza que lhe é característica, LouisDumont nos conta que a cristandade medievalfoi uma sociedade compósita desse tipo:

    Eu tomo como dado que uma mudança nas rela-ções implica uma mudança naquilo que está re-lacionado. Se ao longo de nossa história a religiãoimpulsionou (em grande medida, havendo algu-mas outras influências em jogo) uma revoluçãonos valores sociais e deu à luz, como por cissipa-ridade, a um mundo autônomo de instituições e

    especulações políticas, então, certamente, a pró-pria religião terá se transformado nesse processo.Da existência de algumas mudanças importantes

    e visíveis, todos temos consciência, mas acreditoque não estejamos conscientes das mudanças queafetaram a própria natureza da religião como elaé vivida por um indivíduo qualquer, digamos,por um católico. Todos sabem que a religião era,anteriormente, uma questão coletiva e que setornou uma questão individual (em princípio,e também na prática, ao menos em vários am-bientes e situações). Mas se concluirmos que estamudança está correlacionada com o nascimentodo Estado moderno, não estamos mais no lugar-

    -comum da proposição anterior. Avancemos umpouco mais: a religião medieval foi um grandemanto – penso aqui no manto de Nossa Senho-ra das Mercês. Uma vez que ela se tornou umaquestão individual, perdeu sua capacidade to-talizante e se tornou apenas um dentre outrosfatores em aparente pé de igualdade, entre osquais o político foi o primeiro a nascer. Cada in-divíduo pode, é claro, e talvez o faça, reconhecerna religião (ou na filosofia) a mesma capacidadetotalizante com que antes ela era dotada social-

    mente. No entanto, no nível do consenso socialou da ideologia, a mesma pessoa migrará parauma configuração de valores distinta, na qualvalores autônomos (religiosos, políticos, etc.) sãoaparentemente justapostos, assim como os indi-víduos estão justapostos na sociedade. (Dumont,1971, p. 32; ênfase no original).

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    De acordo com essa visão, a religião medie-val, mesmo infiltrando ou englobando outrascategorias, ainda seria identificável analitica-

    mente . É este fato que torna possível dizer quea religião teria hoje a mesma essência que tinhana Idade Média, apesar de que sua extensão efunção sociais fossem diferentes nas duas épo-cas. A insistência na tese de que a religião teriauma essência autônoma – que não poderia serconfundida com a essência da ciência, da polí-tica ou do senso comum – convida-nos, con-tudo, a definir a religião (assim como qualqueressência) como um fenômeno trans-histórico etranscultural. Talvez seja uma feliz coincidên-

    cia que esse esforço de definição da religião sejaconvergente com a exigência liberal de nossaépoca: que ela seja mantida bem separada dapolítica, do direito e da ciência – espaços nosquais diversos poderes e razões articulam nossavida distintamente moderna. Essa definição é,ao mesmo tempo, parte de uma estratégia deconfinamento (para os liberais seculares), e dedefesa (para os cristãos liberais) da religião.

    No entanto, essa separação entre religião epoder é uma norma Ocidental moderna, pro-

    duto de uma singular história pós-Reforma. Atentativa de compreender tradições muçulmanasinsistindo em que nelas religião e política (duasessências que a sociedade moderna tenta manterconceitual e praticamente apartadas) estão conec-tadas induz, na minha visão, necessariamente aoerro. Em sua forma mais dúbia, essas tentativasnos estimulam a assumir uma posição a priori  naqual os discursos religiosos na arena política sãovistos como um disfarce para o poder político.

    No que se segue, gostaria de examinar as

    maneiras como a busca teórica por uma es-sência da religião nos convida a separá-la con-ceitualmente do domínio do poder. Farei istoao explorar a definição universalista de reli-gião oferecida por um eminente antropólogo:“Religião como sistema cultural”, de CliffordGeertz2. Enfatizo que não se trata aqui primor-

    dialmente de uma revisão crítica das ideias deGeertz acerca da religião – se fosse este meu ob- jetivo, teria me ocupado da totalidade de seus

    escritos sobre religião na Indonésia e no Mar-rocos. Minha intenção neste capítulo é tentaridentificar algumas das alterações históricasenvolvidas no processo de produção de nossoconceito de religião como o conceito de umaessência trans-histórica – e o artigo de Geertzservirá apenas como meu ponto de partida.

    Faz parte do meu argumento básico que asformas, as pré-condições e os efeitos socialmenteidentificáveis daquilo que era considerado reli-gião durante a época cristã medieval eram muito

    diferentes dos [efeitos, pré-condições e formas]que são considerados religião na sociedade mo-derna. Quero chegar a este fato largamente re-conhecido sem incorrer em mero nominalismo. Aquilo a que chamamos de poder religioso eradistribuído de outra forma e tinha um ímpetodistinto. Eram diferentes as maneiras pelas quaisesse poder criava e atravessava instituições jurí-dicas; eram diferentes as subjetividades [selves ]que ele formava e às quais se reportava; eramdiferentes as categorias de conhecimento que

    ele autorizava e tornava disponível. Contudo,uma consequência é que aquilo com que o an-tropólogo se confronta não é apenas uma cole-ção arbitrária de elementos e processos que poracaso chamamos de “religião”. Pois o fenômenointeiro deve ser visto, em grande medida, nocontexto das tentativas cristãs de alcançar umacoerência em doutrinas e práticas, regras e regu-lamentos, mesmo que esta situação nunca tenhasido plenamente alcançada. O meu argumentoé que não pode haver uma definição universal

    de religião, não apenas porque seus elementosconstituintes e suas relações são historicamenteespecíficos, mas porque esta definição é ela mes-ma o produto histórico de processos discursivos.

    Uma definição universal (i.e., antropológi-ca) é, no entanto, exatamente aquilo que Ge-ertz pretende: uma religião, ele propõe, é

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    (1) um sistema de símbolos que atua para (2)estabelecer poderosas, penetrantes e duradourasdisposições e motivações nos homens através da

    (3) formulação de conceitos de uma ordem deexistência geral e (4) vestindo essas concepçõescom tal aura de factualidade que (5) as disposi-ções e motivações parecem singularmente realis-tas (Geertz, 1989, p. 67).

     A seguir, examino esta definição não ape-nas com a finalidade de testar suas proposiçõesinterconectadas, mas também para dar subs-tância à alegação em contrário de que uma de-finição trans-histórica de religião não é viável. 

    O conceito de símbolo como umapista para a essência da religião

     

    Geertz percebe como sua primeira tarefa adefinição do conceito de símbolo: “qualquerobjeto, ato, acontecimento, qualidade ou rela-ção que serve como vínculo a uma concepção– a concepção é o ‘significado’ do símbolo” (Ge-ertz, 1989, p. 67-68). Mas esta afirmação clara

    e simples – na qual símbolo (qualquer objeto,etc.) é diferenciado de, mas conectado à concep-ção (seu significado) –, é posteriormente suple-mentada por outras que não são inteiramenteconsistentes com ela, pois o símbolo não é umobjeto que serve como veículo para uma concep-ção: ele é a própria concepção. Assim, na afirma-ção “O número 6, escrito, imaginado, dispostonuma fileira de pedras ou indicado num pro-grama de computador, é um símbolo” (Geertz,1989, p. 68), o que constitui todas essas diversas

    representações como versões do mesmo símbolo(“o número 6”) é, claro, uma concepção. Ademais,Geertz parece sugerir em algumas ocasiões que,mesmo como uma concepção, um símbolo temuma conexão intrínseca com eventos empíricos,dos quais ele é separável apenas “teoricamente”:“a dimensão simbólica dos acontecimentos so-

    ciais é, como a psicológica, ela mesma abstraívela partir desses acontecimentos como totalidadesempíricas” (Op. cit.). Em outras ocasiões, entre-

    tanto, ele enfatiza a importância de se manteremsímbolos e objetos empíricos bem separados:“é preciso dizer algo para não confundir nossotráfico com os símbolos com nosso tráfico comobjetos ou seres humanos, pois estes últimos nãosão símbolos eles mesmos, embora muitas ve-zes funcionem como tal” (Op. cit.). Com isso,“símbolo” é, às vezes, um aspecto da realidade e,em outras, de sua representação3.

    Essas divergências são sintomas da misturapresente nesta narrativa entre questões cogniti-

    vas e comunicativas; isso torna difícil investigaros modos com que discurso e compreensão sãoconectados nas práticas sociais. Para começar,podemos dizer, assim como vários outros au-tores o fizeram, que o símbolo não é um obje-to ou evento que serve como veículo para umsignificado, mas um conjunto de relações entreobjetos ou eventos agregados singularmentecomo complexos ou conceitos4, tendo ao mes-mo tempo significância intelectual, instrumen-tal e emocional5. Se definirmos símbolo nessa

    linha 6, uma série de questões podem ser suge-ridas no que tange às condições que explicamcomo tais complexos e conceitos vieram a serformados, e em particular como a sua formaçãose relaciona a uma variedade de práticas. Meioséculo atrás, Vygotsky já nos mostrara como odesenvolvimento do intelecto infantil dependeda internalização da fala social7. Isso significaque a formação daquilo que chamamos, aqui, de“símbolos” (complexos, conceitos) é condicio-nada pelas relações sociais com as quais a criança

    em crescimento se envolve – pelas atividades so-ciais que a ele ou a ela são permitidas, encoraja-das, ou obrigadas a realizar – nas quais outrossímbolos (fala e movimentos significativos) sãocruciais. As condições (discursivas e não discur-sivas) que explicam como símbolos vêm a serconstruídos, e como alguns deles são estabele-

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    cidos como naturais ou autoritativos8 em oposi-ção a outros, tornam-se então objeto importanteda investigação antropológica. Deve-se destacar

    que não se trata de defender o estudo da origeme função dos símbolos em acréscimo ao de seussignificados – tal distinção é irrelevante aqui. Oque se está argumentando é que o status  autori-tativo das representações/discursos é dependenteda produção adequada de outras representações/discursos; ambos estão intrinsecamente, e nãoapenas temporalmente conectados.

    Sistemas de símbolos, afirma Geertz, sãotambém padrões culturais , e constituem “fontesextrínsecas de informações” (Op. cit.). Extrín-

    secas, porque “estão fora dos limites do orga-nismo do indivíduo e, como tal, nesse mundointersubjetivo de compreensões comuns noqual nascem todos os indivíduos” (Op. cit.). Efontes de informação no sentido de que “elesfornecem um diagrama ou gabarito em termosdo qual se pode dar forma definida a processosexternos a eles mesmos” (Op. cit.). Portanto,nos é dito que padrões culturais podem serpensados como “modelos para  a realidade” as-sim como “modelos de  realidade”9.

    Esta parte da discussão de fato abre possibili-dades ao falar em modelamento, isto é, permite apossibilidade de conceituar discursos no processode sua elaboração, modificação, teste, e assim pordiante. Infelizmente, Geertz rapidamente regressaa sua posição anterior: “padrões culturais têm umaspecto duplo, intrínseco – eles dão significado,isto é, uma forma conceptual objetiva, à realidadesocial e psicológica, modelando-se em conformi-dade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a elesmesmos” (Op. cit.). Essa tendência supostamente

    dialética em direção ao isomorfismo acaba portornar difícil o entendimento de como a mudan-ça social pode vir a acontecer. O problema básico,no entanto, não está na ideia das imagens espe-lhadas em si, mas na suposição de que existemdois níveis separados em interação: o cultural, deum lado (consistindo em símbolos), e o social e

    psicológico, do outro. Esse recurso à teoria par-soniana cria um espaço lógico para definir a es-sência da religião. Ao adotar essa teoria, Geertz se

    distancia de uma noção de símbolos que são in-trínsecos às práticas de organização e significação,e retorna a uma noção de símbolo como objetosque carregam significados, externos às condiçõessociais e aos estados subjetivos [self  ] (“realidadesocial e psicológica”).

    Isso não implica dizer que Geertz não con-sidera que os símbolos “fazem” algo. De ummodo que lembra as abordagens antropológicasmais antigas sobre rituais10, ele afirma que ossímbolos religiosos agem “induzindo o crente a

    um certo conjunto de disposições (tendências,capacidades, propensões, habilidades, hábitos,compromissos, inclinações) que emprestam umcaráter crônico ao fluxo de sua atividade e à qua-lidade da sua experiência” (Geertz, 1989, p. 70). Aqui, uma vez mais, símbolos são separados deestados mentais. Mas quão plausíveis são essasproposições? Podemos, por exemplo, prever qualseria o conjunto de disposições “distintivas” deum devoto cristão na sociedade industrial mo-derna? De modo alternativo, podemos dizer de

    alguém dotado de um conjunto de disposições“distintivas” que ele é ou não é cristão?11 A res-posta a ambas as interrogações certamente deveser não. A razão, sem dúvida, é que não é apenasa devoção, mas as instituições sociais, políticas eeconômicas em geral12, no interior das quais asbiografias individuais são vividas, que conferemestabilidade ao fluxo de atividades de um cristãoe à qualidade de sua experiência.

    Símbolos religiosos, Geertz elabora, produzemdois tipos de atitudes, disposições   e motivações 13:

    “as motivações são ‘tornadas significativas’ no quese refere aos fins para os quais são concebidas econduzidas, enquanto as disposições são ‘tornadassignificativas’ no que diz respeito às condições apartir das quais se concebe que elas surjam” (Ge-ertz, 1989, p. 72). Agora, um Cristão poderiadizer que esta não é sua essência, pois símbolos

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    religiosos, mesmo quando falham em produzirdisposições e motivações, permanecem símbolosreligiosos (i.e., verdadeiros) – que símbolos reli-

    giosos possuem uma verdade independente de suaefetividade. Ainda assim, mesmo um cristão com-prometido não pode deixar de se preocupar coma existência de símbolos verdadeiros que parecemser amplamente impotentes na sociedade moder-na. Ele desejará, com razão, perguntar: Quais sãoas condições em que símbolos religiosos de fatopodem produzir disposições religiosas? Ou, comodiria alguém que não crê: como o poder (religioso)cria a verdade (religiosa)?

     A relação entre poder e verdade é um tema

    antigo, e ninguém o abordou de forma maisimpressionante no pensamento cristão doque Santo Agostinho. Agostinho desenvolveusua visão sobre a função religiosa criativa do po-der após sua experiência com a heresia donatis-ta, insistindo que a coação seria uma condiçãopara a realização da verdade, assim como a dis-ciplina seria essencial para a sua manutenção:

    Para um donatista, a postura de Agostinho fren-te à coação era uma negação flagrante dos ensi-

    namentos cristãos tradicionais: Deus fizera oshomens livres para escolherem entre o bem e omal; uma política que forçasse essa escolha eraclaramente irreligiosa. Os autores donatistas cita-vam as mesmas passagens bíblicas que mais tardeseriam citadas por Pelágio em favor do livre-ar-bítrio. Ao retrucar a eles, Agostinho já lhes deua mesma resposta que daria aos pelagianos: o atoindividual e final de escolha devia ser espontâ-neo, mas esse ato de escolha podia ser preparadopor um longo processo, que os homens não ne-

    cessariamente escolhiam por si, mas que amiúdelhes era imposto por Deus, contra a sua vontade.Esse era um processo corretivo de ‘ensinamento’,eruditio, e admoestação, admonitio, que podia atémesmo incluir o medo, a coerção e a inconve-niência externa: ‘Que se encontre a coerção dolado de fora; é dentro que nasce a vontade’.

     Agostinho convencera-se de que os homens pre-cisavam desse manejo firme. Resumiu sua atitu-de numa palavra: disciplina . E não pensava nessa

    disciplina como muitos de seus contemporâneosromanos mais tradicionais, como a preservaçãoestática de um ‘estilo de vida romano’. Para ele,tratava-se de um processo essencialmente ativode punição corretiva, um ‘processo de abranda-mento’, uma ‘instrução pelas inconveniências’-  per molestias eruditio. No Velho Testamento,Deus ensinara Seu obstinado povo eleito justa-mente por esse processo de disciplina, contendoe unindo suas tendências malévolas com todauma série de desgraças ditadas pela Providência.

     A perseguição aos donatistas era mais uma ‘catás-trofe controlada’ imposta por Deus, mediada, naocasião, pelas leis dos imperadores cristãos. (...)

     A visão agostiniana da Queda da humanidadedeterminou sua atitude perante a sociedade. Oshomens decaídos tinham passado a necessitar decontenção. Até as maiores realizações do homemsó tinham sido possibilitadas pela ‘camisa-de--força’ da severidade incessante. Agostinho ti-nha um grande intelecto e um respeito saudávelpelas conquistas da razão humana. No entanto,

    sentia-se obcecado com as dificuldades do pen-samento e com os longos processos coercitivos,rememorativos dos horrores de seus própriostempos de escola que haviam possibilitado essaatividade intelectual, tão ‘propensa ao descanso’era a mente humana decaída. Ele dizia preferir amorte a voltar a ser criança. Não obstante, os ter-rores daquela época tinham sido rigorosamentenecessários, pois faziam parte da assombrosa dis-ciplina divina – ‘desde a vergasta dos professoresaté as agonias dos mártires’ - por intermédio da

    qual os seres humanos eram resgatados de suasinclinações desastrosas pelo sofrimento (Brown,2005, p. 294-296).

     A fórmula de Geertz não é demasiadamentesimples para acomodar a força deste simbolis-mo religioso? Note-se que aqui não são apenas

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    os símbolos que implantam disposições verda-deiramente cristãs, mas o poder – que vai dasleis (imperial e eclesiástica) e outras sanções (o

    fogo do inferno, a morte, a salvação, a boa re-putação, a paz) às atividades disciplinares dasinstituições sociais (família, escola, cidade, igre- ja) e dos corpos humanos (jejum, prece, obedi-ência, penitência). Para Agostinho era bastanteclaro que o poder, efeito de toda uma rede depráticas motivadas, assume uma forma religiosaem razão do fim a que se dirige, pois os eventoshumanos são instrumentos de Deus. Não foi amente que se moveu espontaneamente em di-reção à verdade religiosa; foi o poder que criou

    as condições para que esta verdade fosse experi-mentada 14. Os discursos e práticas particularesdeveriam ser sistematicamente excluídos, proi-bidos, denunciados – tornados, tanto quan-to possível, impensáveis; outros deveriam serincluídos, permitidos, celebrados e inseridos nanarrativa da verdade sagrada. Nesse sentido, asconfigurações de poder têm certamente variadoprofundamente na cristandade de um períodopara o outro – dos tempos de Agostinho, pas-sando pela Idade Média, até o atual Ocidente

    capitalista industrial. Os padrões religiosos dedisposições e motivações, bem como as possi-bilidades de conhecimento e verdade religiosa,têm variado e sido condicionados por esses fa-tores. Até Agostinho sustentara que, apesar dea verdade religiosa ser eterna, os meios para seassegurar o acesso humano a ela não o são.

    Da leitura de símbolos à análise depráticas

     Uma consequência de supor que existe um

    sistema simbólico separado das práticas é quedistinções importantes são obscurecidas ou, atémesmo, explicitamente negadas. “Não deve cau-sar qualquer surpresa o fato de que os símbolosou sistemas de símbolos que induzem e definem

    as disposições que estabelecemos como religio-sas e aqueles que colocam essas disposições numarcabouço cósmico são, na verdade, os mesmos

    símbolos” (Geertz, 1989, p. 72). Mas de fato istosurpreende! Vamos assumir que disposições reli-giosas dependam crucialmente de certos símbo-los religiosos, que tais símbolos operam de modointegral nas motivações e disposições religiosas.Mesmo assim, o processo simbólico através doqual os conceitos de motivações religiosas e dis-posições religiosas são inseridos em “um arcabou-ço cósmico” é certamente uma operação bastantedistinta, e portanto, os signos envolvidos sãobastante distintos. Colocado de outro modo, o

    discurso teológico não é idêntico nem a atitudesmorais, nem a discursos litúrgicos – a respeito dosquais, entre outras coisas, a teologia se pronun-cia 15. Cristãos cuidadosos admitiriam que, apesarda teologia ter uma função essencial, o discursoteológico não necessariamente induz disposiçõesreligiosas, e que, inversamente, ter disposiçõesreligiosas não necessariamente depende de umaconcepção cristalina do arcabouço cósmico porparte do ator religioso. Discurso envolvido emprática não se confunde com discurso envolvido

    em falar sobre a prática. É uma ideia moderna ade que um praticante não sabe como viver reli-giosamente sem ser capaz de articular esse saber.

     A razão pela qual Geertz mistura os doistipos de processo discursivo parece resultar deum desejo de distinguir entre disposições se-culares e religiosas. A afirmação citada acima éelaborada do seguinte modo:

    Do contrário, o que poderia significar dizermosque uma disposição particular de temor é religio-

    sa e não secular, a não ser que ela surge de umaconcepção totalmente impregnada de vitalidade,como a do mana , e não de uma visita ao GrandCanyon? Ou que um caso particular de asce-tismo é exemplo de motivação religiosa, a nãoser que ele se propõe a realizar um fim incondi-cional como o nirvana, e não um fim condicio-

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    nado como a redução do peso? Se os símbolossagrados não induzissem a disposições nos sereshumanos e ao mesmo tempo não formulassem

    idéias gerais de ordem, (...) então não existiria adiferenciação empírica da atividade religiosa ouda experiência religiosa (Op. cit.).

    O argumento de que uma disposição parti-cular é religiosa em parte porque ela ocupa umlugar conceitual no interior de um arcabouçocósmico parece plausível, mas apenas porqueela pressupõe uma questão que deve ser expli-citada: como os processos autoritativos repre-sentam práticas, enunciados ou disposições de

    modo a poderem ser relacionados discursiva-mente a ideias gerais (cósmicas) sobre a ordem?Em suma, a questão pertence ao processo au-toritativo através do qual a “religião” é criada.

    Os modos como os discursos autoritativos,ao pressupor e expor uma cosmologia, sistemati-camente redefiniram os espaços religiosos foramde profunda importância na história da socie-dade Ocidental. Na Idade Média, tais discur-sos abarcavam um amplo domínio, definindoe criando a religião: ao rejeitar práticas ‘pagãs’

    ou aceitá-las16

    ; ao autenticar milagres e relíquiasparticulares (os primeiros confirmando as segun-das e vice-versa)17; ao certificar santuários18; aocompilar a vida dos santos de modo a fornecerum modelo de e para a Verdade19; ao exigir aconfissão dos pensamentos, palavras e feitospecaminosos a um padre confessor e concederabsolvição a um penitente20; ao regulamentaros movimentos sociais populares em termos deOrdens regidas por certas Regras (por exemplo,os franciscanos), ou ao denunciá-los por heresia

    ou por resvalarem o herético (por exemplo, asbeguinas)21. A Igreja medieval não procurou es-tabelecer a uniformidade absoluta das práticas;pelo contrário, seu discurso autoritativo semprese preocupou em especificar diferenças, grada-ções, exceções. O que ela buscava era a sujeiçãode toda prática a uma autoridade unificada, a

    uma fonte autêntica e única que pudesse dis-tinguir a verdade da falsidade. Foram os antigosPais da Igreja que estabeleceram o princípio de

    que apenas uma Igreja unificada poderia se tor-nar a fonte do discurso autenticador22. Eles sa-biam que os “símbolos” incorporados na práticados cristãos autoconfessados nem sempre coin-cidem com a teoria da “Igreja única e verdadei-ra”, que a religião exige uma prática autorizada euma doutrina autoritativa, e que sempre há umatensão entre elas – às vezes irrompendo em he-resia, a subversão da Verdade – o que tende a su-blinhar o papel criativo do poder institucional23.

     A Igreja medieval sempre foi clara sobre o

    motivo da necessidade contínua de distinguir oconhecimento da falsidade (a religião daquilo queprocurava subvertê-la), assim como o sagrado doprofano (a religião daquilo que estava fora dela),distinções cuja prova derradeira eram os discursosautoritativos, os ensinamentos e práticas da Igreja,e não as convicções do praticante24. Inúmeras ve-zes antes da Reforma, a fronteira entre o religioso eo secular foi redesenhada; mas a autoridade formalda Igreja permaneceu sempre preeminente. Nosséculos seguintes, com o surgimento triunfal da

    ciência moderna, do modo moderno de produ-ção e do Estado moderno, as igrejas elas mesmasassumem uma posição clara acerca da necessidadede se distinguir o religioso do secular, transferindo,como de fato o fizeram, o peso da religião cada vezmais na direção das disposições e motivações doindivíduo crente. A disciplina (intelectual e so-cial) iria, nesse período, gradualmente abandonaro espaço religioso, cedendo seu lugar à “crença”,à ”consciência” e à “sensibilidade”25. Mas a teoriaainda seria necessária para definir a religião. 

     A construção da religião no inícioda Modernidade europeia 

     As primeiras tentativas sistemáticas de pro-duzir uma definição universal da religião foram

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    feitas no século XVII, após a fragmentação daunidade e da autoridade da Igreja de Roma e asconsequentes guerras religiosas que dividiram

    os principados europeus. Um passo significa-tivo na história dessa definição foi o De verita-te  de Herbert. “Lord Herbert”, segundo Willey,

    difere de outros homens como Baxter, Cromwellou Jeremy Taylor principalmente porque, nãosatisfeito com a redução do credo a um númeromínimo possível de fundamentos, ele regressaem relação ao Cristianismo ele mesmo, indo àbusca de uma crença que deveria reger o con-sentimento universal de todos os homens en-

    quanto homens. Deve ser lembrado que aquelaantiga situação, simples, na qual a cristandade seautorepresentava como o mundo, apenas comos abomináveis pagãos do lado de fora e os ju-deus nos portões, já havia acabado para sempre.

     A exploração e o comércio haviam ampliado ohorizonte e em muitos autores do século pode--se perceber que as religiões do Oriente, aindaque imperfeitamente conhecidas, começavam apressionar as consciências. Foi o interesse pio-neiro nessas religiões, juntamente com a costu-

    meira preocupação dos eruditos da Renascençacom a mitologia clássica, que levou Lord Her-bert a buscar um denominador comum paratodas as religiões e, assim, promover (ou assimele esperava) a muito necessária eirenicon para asdisputas do século XVII (1934, p. 114).

     Assim, Herbert produziu uma definiçãosubstantiva do que depois veio a ser formuladocomo Religião Natural – em termos de crenças(em um poder supremo), práticas (sua devoção

    organizada) e ética (um código de conduta base-ado em recompensas e punições após esta vida)–, sobre a qual se dizia existir em todas as socie-dades26. Essa ênfase na crença queria dizer que,dali em diante, a religião poderia ser concebidacomo um conjunto de proposições para as quaisos fiéis davam seu consentimento e que poderia,

    portanto, ser julgada e comparada, como umadentre as diferentes religiões e em contraposiçãoàs ciências naturais (Harrison, 1990).

     A ideia de Escritura (um texto divinamen-te produzido/interpretado) não era essenciala esse “denominador comum” das religiões,parcialmente porque os cristãos já haviam sefamiliarizado mais com sociedades sem escritaatravés das redes comerciais e da colonização.Mas uma razão ainda mais importante se en-contra na mudança de atenção, que ocorreuao longo do século XVII, das palavras de Deusaos trabalhos de Deus. A “Natureza” tornou-seo verdadeiro espaço da escrita divina e, em al-

    gum momento, a autoridade inconteste à qualdeve ser submeter a verdade de todos os textossagrados, escritos com linguagem meramentehumana (Velho e Novo Testamentos). Assim:

    O texto de Locke  A Razoabilidade [Reasona-bleness] do Cristianismo popularizou uma novaversão do cristianismo ao reduzir sua doutrinaao menor denominador comum: a crença em

     Jesus como Messias, cujo advento havia sidonarrado pelas profecias do Velho Testamento.

    Mesmo esse credo reduzido deveria ser medidoem contraposição à Religião Natural e à Reli-gião da Ciência Natural, de modo que a Reve-lação, além de ter de se justificar com base nopadrão de Locke, também teria de se apresentarcomo uma reiteração da Religião Natural. Poralgum tempo, de fato, a Palavra de Deus assu-miu uma posição secundária em relação às suasobras, iniciadas no momento da criação do uni-verso. Pois, enquanto o testemunho das últimasera universal e ubíquo, a evidência da Revelação

    se limitava a livros sagrados escritos em línguasmortas, cuja interpretação não gerava consensonem mesmo entre os cristãos confessos, alémde estar relacionada a eventos distantes, quehaviam ocorrido em tempos remotos, aparta-dos dos centros de conhecimento e civilização(Sykes, 1975, p. 195-96).

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    Desse modo, a Religião Natural não só setornou um fenômeno universal, como come-çou a ser diferenciada do domínio emergente

    da ciência natural e a corroborá-lo. Gostaria deenfatizar que a ideia de Religião Natural foi umpasso crucial na formação do conceito moder-no de crença, experiência e prática religiosas, eque foi uma ideia desenvolvida em resposta aproblemas específicos da teologia cristã numaconjunção histórica particular.

    Em 1795, Kant foi capaz de produzir umaideia de religião plenamente essencializada, quepoderia ser contraposta a suas formas fenomênicas:“Pode, sem dúvida, haver diferentes tipos de fé ”

    que não radicam na religião, mas na histó-ria dos meios utilizados para o seu fomento,pertencentes ao campo da erudição; e podeigualmente haver diferentes livros religiosos(Zendavesta, Veda, Corão, etc.); mas só podeexistir uma única religião válida para todos oshomens e em todos os tempos. Por conseguinte,as crenças apenas contêm o veículo da religião,que é acidental e pode variar segundo os tempose os lugares. (Kant, 2009).

    Deste ponto em diante, a classificação dasconfissões históricas em termos de religiõesmais ou menos elevadas tornou-se uma opçãocada vez mais popular para filósofos, teólogos,missionários e antropólogos nos séculos XIX e XX. A existência de tribos particulares que nãotivessem desenvolvido nenhuma forma de re-ligião era frequentemente sugerida, mas comouma questão reconhecidamente empírica 27, quenão afetava a essência da religião ela mesma.

     Assim, o que aparece aos antropólogos dehoje como auto-evidente, isto é, que a religiãoé essencialmente uma questão de significadossimbólicos ligados a ideias de ordem geral (ex-pressos através de ritos e/ou doutrinas), que elatem funções/características genéricas, e que elanão deve ser confundida com nenhuma outra

    de suas formas históricas ou culturais particu-lares, é de fato uma visão que tem uma históriacristã específica. De um conjunto concreto de

    regras práticas ancoradas em processos espe-cíficos de poder e conhecimento, a religião setornou abstraída e universalizada 28. Neste movi-mento, não há um mero aumento da tolerânciareligiosa, nem, certamente, apenas uma novadescoberta científica, mas a modificação de umconceito e uma série de práticas sociais que é,ela mesma, parte de uma mudança mais amplana paisagem moderna do poder e do conheci-mento. Essa alteração incluiu um novo tipo deEstado, um novo tipo de ciência e um novo tipo

    de sujeito jurídico e moral. Para compreenderessa modificação é essencial manter claramentedistinto aquilo que a teologia tende a obscure-cer: a ocorrência de eventos (enunciados, prá-ticas, disposições) e os processos autoritativosque dão sentido a esses eventos e incorporamesse sentido em instituições concretas.

    Religião enquanto significado e ossignificados religiosos

      A equação entre dois níveis de discurso

    (símbolos que induzem disposições e outrosque inserem tais disposições discursivamenteem um arcabouço cósmico) não é o único as-pecto problemático dessa parte do argumentode Geertz. Ele também parece assumir, inad-vertidamente, o ponto de vista da teologia. Istoacontece quando Geertz insiste na primazia dosignificado em detrimento dos processos atra-vés dos quais os significados são construídos.

    O que qualquer religião particular afirma a res-peito da natureza fundamental da realidade podeser obscuro, superficial ou, o que acontece mui-tas vezes, perverso; mas ela precisa afirmar algu-ma coisa, se não quiser consistir apenas em umacoletânea de práticas estabelecidas e sentimentos

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    convencionais aos quais habitualmente nos re-ferimos como moralismo (Geertz, 1989, p. 73).

     As linhas mestras da afirmação anterior sãoaparentemente inocentes e lógicas. No entanto,através delas todo o campo da atividade evange-lizadora foi historicamente aberto, em particulara ação dos missionários europeus na Ásia, Áfricae América Latina. A exigência de que práticas re-conhecidas devam afirmar algo sobre a natureza fundamental da realidade, e que portanto, sejapossível atribuir a elas significados que não sejamabsurdos, é a primeira condição para determinarse estas pertencem à “religião”. O não evangeliza-

    do vem a ser visto habitualmente como alguémque tem práticas mas que não afirma nada, per-mitindo que significados possam ser atribuídos àssuas práticas (portanto, fazendo-os vulneráveis),ou, como aquele que de fato afirma algo (prova-velmente “obscuro, superficial ou perverso”), umaafirmação que em última instância pode ser dis-pensada. No primeiro caso, uma teoria da reli-gião torna-se necessária para a leitura correta doshieróglifos rituais mudos dos outros, para reduzirsuas práticas a textos; noutro caso, ela se torna

    essencial para julgar a validade de suas enuncia-ções cosmológicas. Mas sempre deve haver algoque existe para além das práticas observáveis, dasenunciações ouvidas, das palavras escritas, e éfunção das teorias da religião alcançar e explicitareste pano de fundo ao dotá-lo de significado29.

    Geertz está correto, portanto, ao fazer cone-xões entre a teoria religiosa e a prática da religião,mas está errado ao vê-la como essencialmentecognitiva, como um meio através do qual umamente sem corpo torna-se apta a identificar a re-

    ligião a partir de um ponto de vista arquimedia-no. A relação entre a teoria religiosa e a práticada religião é fundamentalmente um problema deintervenção – de construir a religião no mundo(e não na mente) através de discursos definidores,interpretando sentidos verdadeiros, excluindo al-gumas enunciações e práticas e incluindo outras.

    Logo, minha recorrente interrogação: como odiscurso teórico define, de fato, a religião? Quaissão as condições históricas que lhe permitem agir

    efetivamente enquanto uma demanda pela imi-tação, a proibição ou a autenticação de enuncia-ções e práticas? Como o poder cria a religião?

    Quais tipos de afirmação, de significado,devem ser identificados a uma prática de modoque ela seja qualificada como religião? Deacordo com Geertz, é porque todo ser huma-no tem profunda necessidade de uma ordemgeral de existência que os símbolos religiososfuncionam para satisfazer essa necessidade.Conclui-se que os seres humanos têm um pa-

    vor profundo da desordem.

    Há pelo menos três pontos nos quais o caos –um tumulto de acontecimentos ao qual faltamnão apenas interpretações, mas interpretabilida-de   – ameaça o homem: nos limites de sua ca-pacidade analítica, nos limites de seu poder desuportar e nos limites de sua introspecção moral(Geertz, 1989, p. 73).

    É função dos símbolos religiosos lidar com

    ameaças à ordem percebidas em cada uma des-sas dimensões (intelectual, física e moral):

    O Problema do Significado em cada um dos seusaspectos de transição (...) é matéria para afirmar,ou pelo menos reconhecer, a inescapabilidadeda ignorância, da dor e da injustiça no planohumano enquanto nega, simultaneamente,que essas irracionalidades sejam característicasdo mundo como um todo. E é justamente emtermos de um simbolismo religioso, um simbo-

    lismo que relaciona a esfera da existência do ho-mem a uma esfera mais ampla dentro da qual seconcebe que ele repouse, que tanto a afirmaçãocomo a negação são feitas (Geertz, 1989, p. 80).

    Notem como o raciocínio agora parece termudado suas bases de uma defesa de que a religião

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    deve afirmar algo específico acerca da natureza darealidade (ainda que obscuro, raso, ou perverso)para uma sugestão insípida que a religião é, em

    última instância, uma questão de como cultivaruma atitude positiva em relação ao problema dadesordem, de afirmar simplesmente que, em umou em outro sentido, o mundo como um todoé explicável, justificável, suportável30. Essa visãomodesta da religião (que teria horrorizado os Pais Apostólicos ou os homens da igreja medieval)31 é produto do único espaço legítimo permitidoao cristianismo pela sociedade pós-iluminista, odireito à crença  individual. A condição humana écheia de ignorância, dor e injustiça, e os símbolos

    religiosos são um meio para encarar essa condi-ção de forma positiva. Uma consequência é queesta visão, a princípio, tomaria qualquer filoso-fia que realizasse tal função como religião (parao incômodo dos racionalistas do século XIX),ou alternativamente, tornar possível pensar areligião como algo mais primitivo, um esforçopouco adulto de se vir a termos com a condiçãohumana (para incômodo do cristão moderno).Em ambos os casos, a sugestão de que a religiãotem uma função universal na crença é uma in-

    dicação de quão marginal a religião teria se tor-nado na sociedade moderna industrial enquantoespaço para a produção de conhecimento disci-plinado e disciplina pessoal. Por si só, ela começaa se parecer com a concepção que Marx tinha dareligião como ideologia – ou seja, um modo deconsciência que é outro que não a consciência darealidade, que é externo às relações de produção,que não produz conhecimento, mas que expres-sa simultaneamente as angústias dos oprimidos eseu espúrio consolo.

    No entanto, Geertz tem muito mais a dizeracerca da fugidia questão do significado religio-so: os símbolos religiosos não apenas formulamconcepções sobre uma ordem geral da existên-cia; eles também investem essas concepções deuma aura de factualidade. Este, nos dizem, é “oproblema da crença”. A crença religiosa sempre

    envolve “uma aceitação prévia da autoridade”que transforma a experiência:

     A existência da perplexidade, da dor e do pa-radoxo moral – do Problema do Significado –é uma das coisas que impulsionam os homenspara a crença em deuses, demônios, espíritos,princípios totêmicos ou a eficácia espiritual docanibalismo (...), mas essa não é a base onde re-pousam tais crenças, e sim seu campo de aplica-ção mais importante (Op. cit.).

    Esta posição parece assumir que crenças reli-giosas existem de modo independente das con-

    dições mundanas que produzem perplexidade,dor e paradoxo moral, mesmo que a crençaseja primariamente um modo de vir a termoscom elas. Mas isto é certamente um erro, tan-to a partir da lógica quanto da história, já queas mudanças no objeto da crença mudam essacrença; e enquanto o mundo muda, assim o fa-zem os objetos da crença e as formas específicasde perplexidade e paradoxo moral pertencentesa este mundo. Aquilo em que o cristão acreditahoje sobre Deus, vida após a morte e o univer-

    so, não é aquilo em que ele acreditava há ummilênio – tampouco é igual a maneira comoele responde à ignorância, dor e injustiça hoje enaquele tempo. A valorização medieval da dorcomo modo de participação no sofrimento deCristo contrasta radicalmente com a percep-ção católica moderna da dor como um mal aser combatido e superado, assim como Cristo,aquele que Cura, o fez. A diferença está clara-mente conectada à secularização pós-iluministada sociedade Ocidental e à linguagem moral

    que esta sociedade agora autoriza 32.O tratamento de Geertz da crença religiosa,

    que se encontra no âmago de sua concepção dereligião, é um modo cristão privatizado e moder-no, na medida em que ele enfatiza a prioridadeda crença enquanto um estado mental ao invésde uma atividade constitutiva no mundo: “O

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    axioma básico subjacente naquilo que podería-mos talvez chamar de ‘perspectiva religiosa’ é omesmo em todo lugar: aquele que tiver de saber

    precisa primeiro acreditar” (Geertz, 1989, p. 81).Na sociedade moderna, na qual o conhecimen-to está enraizado ou em uma vida cotidiana nãocristã, ou em uma ciência não-religiosa, o apolo-gista cristão tende a conceber a crença não comoa conclusão de um processo cognitivo, mas comosua pré-condição. No entanto, o conhecimentoque ele promete nunca passará (nem ele afirma,com sinceridade, que um dia passará) por conhe-cimento da vida social, e menos ainda por co-nhecimento sistemático dos objetos que a ciência

    natural fornece. Sua reivindicação refere-se a umestado mental particular, um senso de convicção,e não a um corpo de saberes práticos. Mas a re-versão da crença e do conhecimento que ela exi-ge não era um axioma básico para, digamos, umcristão piedoso e cultivado do século XII, paraquem conhecimento e crença não estavam tãoclaramente em conflito. Ao contrário, a crençacristã teria, então, de ser construída com base noconhecimento – conhecimento da doutrina teo-lógica, da lei canônica e das cortes da Igreja, dos

    detalhes das liberdades clericais, dos poderes doscargos eclesiásticos (sobre as almas, os corpos, aspropriedades), das precondições e efeitos da con-fissão, das regras das ordens religiosas, das loca-lizações e virtudes dos santuários, das vidas dossantos, e assim por diante. A familiaridade comestes conhecimentos (religiosos) foi uma pre-condição para uma vida social normal, e a cren-ça (incorporada na prática e no discurso) umaorientação para a atividade efetiva nela – seja daparte do clero religioso, do clero secular ou do

    laicato. Por causa disso, a forma, textura e fun-ção dessas crenças seriam diferentes das formas,texturas e funções da crença contemporânea – omesmo se estendendo às formas contemporâneasde dúvida e descrença.

     A suposição de que a crença é um estadomental distinto presente em todas as religiões

    tem sido tema de discussão acadêmica con-temporânea. Needham (1972) argumentou demodo interessante que a crença não é, sob ne-

    nhuma condição, um modo distinto de cons-ciência, nem uma instituição necessária para acondução da vida social. Southwold (1979) as-sume uma postura quase diametralmente opos-ta, afirmando que questões relativas à crença defato se referem a estados mentais distintos e sãorelevantes em toda e qualquer sociedade, já que“acreditar” sempre designa uma relação entre ocrente e uma proposição e, através desta, umarealidade. Harré (1981, p. 82), em uma críticaa Needham, faz uma defesa mais persuasiva da

    tese de que “a crença é um estado mental, umadisposição enraizada, mas que se confina a po-vos com certas instituições e práticas sociais”.

     A todo custo, penso que não é imprudenteargumentar que “o axioma básico” subjacenteao que Geertz chama de “a perspectiva religio-sa” não é o mesmo em toda parte. A igreja cristã éque tem primordialmente se ocupado em identi-ficar, cultivar e testar a crença enquanto uma con-dição interna verbalizável da religião verdadeira 33.

     A religião como perspectiva 

    O vocabulário fenomenológico que Geertzemprega levanta duas questões interessantes:uma se refere a sua coerência e outra, a suaadequação à moderna noção cognitivista dereligião. Gostaria de sugerir que apesar de estevocabulário ser teoricamente incoerente, social-mente ele seria bastante compatível com a ideiaprivatizada de religião na sociedade moderna.

     Assim, dizem-nos que a “perspectiva reli-giosa” é uma entre muitas outras – a científi-ca, a estética e a do senso comum – e diferedestas do seguinte modo. Difere da perspectivado senso comum porque “se move além das re-alidades da vida cotidiana em direção a outrasmais amplas, que as corrigem e completam, e

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    sua preocupação definidora não é a ação sobreessas realidades mais amplas, mas sua aceitação,a fé nelas”  (Geertz, 1989. p. 82). É diferente

    da perspectiva científica   porque “questiona asrealidades da vida cotidiana não a partir deum ceticismo institucionalizado que dissolveo ‘dado’ do mundo numa espiral de hipótesesprobabilísticas, mas em termos do que é neces-sário para torná-las verdades mais amplas, não--hipotéticas” (Op. cit.). E ela se distingue daperspectiva estética  porque “em vez de afastar--se de toda a questão da fatualidade, manufa-turando deliberadamente um ar de parecençae de ilusão, ela aprofunda a preocupação com

    o fato e procura criar uma aura de atualidadereal” (Op. cit.). Em outras palavras, apesar de aperspectiva religiosa não ser exatamente racio-nal, ela também não é irracional.

    Não seria difícil expressar uma discordânciacom esse resumo sobre os assuntos de que tra-tam o senso comum, a ciência e a estética 34. Masmeu argumento aqui é que o sabor opcional ex-primido pelo termo perspectiva  é certamente en-ganador quando aplicado igualmente à ciência eà religião na sociedade moderna: a religião é, de

    fato, hoje, opcional de um modo que a ciêncianão é. Práticas científicas, técnicas, conhecimen-tos, permeiam e criam as fibras da vida social deum modo que a religião não mais pode igua-lar35. Nesse sentido, a religião hoje é  uma pers-pectiva (ou uma “atitude”, como Geertz a chamaàs vezes), mas a ciência não o é. E nesse mesmosentido, a ciência não é encontrada em qualquersociedade, passada e presente. Veremos em breveas dificuldades em que o perspectivismo de Ge-ertz o coloca, mas antes disso eu preciso exami-

    nar sua análise da mecânica de manutenção darealidade em funcionamento na religião.

      É coerente com os argumentos anterioressobre as funções dos símbolos religiosos o co-mentário de Geertz de que “é no ritual – istoé, no comportamento consagrado – que se ori-gina, de alguma forma, essa convicção de que

    as concepções religiosas são verídicas e de queas diretivas religiosas são corretas” (Op. cit.). A longa passagem de onde esta citação foi re-

    tirada oscila entre especulações arbitrárias sobreo que acontece na consciência daqueles queconduzem cerimônias religiosas e afirmaçõesinfundadas sobre o ritual enquanto inscrição. À primeira vista, esta parece ser uma curiosacombinação de psicologia introspeccionista ebehaviorista – mas como Vigotsky (1978, p.58-59) argumentou há muito tempo, as duasnão são, de maneira alguma, incompatíveis, namedida em que ambas supõem que os fenôme-nos psicológicos consistem essencialmente na

    consequência de vários ambientes estimulantes.Geertz postula a função ocupada pelos rituaisna geração de convicção religiosa (“É nesses dra-mas plásticos que os homens atingem sua fé, namedida em que a retratam” (Geertz, 1989, p. 83),mas como ou por que isso acontece não é expli-cado em lugar algum. De fato, ele admite que talestado religioso não é sempre alcançado no ritualreligioso: “É claro que nem todas as realizaçõesculturais são realizações religiosas e a linha entreas que o são e as realizações artísticas, ou até mes-

    mo políticas, não é muito fácil de demarcar naprática, pois, como as formas sociais, as formassimbólicas podem servir a múltiplos propósitos”(Op. cit.). Mas a questão permanece: o que é quegarante que os participantes tomem as formassimbólicas de um modo que os conduza à fé se alinha que separa o religioso e o não religioso não éfacilmente traçada? A habilidade e a vontade de seadotar uma perspectiva religiosa não deveria estarpresente antes da performance do ritual? É preci-samente este o motivo do não funcionamento do

    modelo estímulo-resposta de analise de rituais. Ese este for o caso, o ritual, no sentido da perfor-mance sagrada, não pode ser o lugar onde a féreligiosa é alcançada, mas a maneira como ela é(literalmente) atuada. Se quisermos compreendercomo isso ocorre, devemos examinar não apenasa performance sagrada em si, mas também toda

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    a gama de atividades disciplinares disponíveis, deformas institucionais de conhecimento e prática,em cujo âmbito as disposições são formadas e

    mantidas e através das quais as possibilidades dealcançar a verdade são demarcadas – como Agos-tinho claramente observou.

    Notei mais de uma vez a preocupação deGeertz em definir os símbolos religiosos de acor-do com critérios cognitivos e universais, paradistinguir claramente a perspectiva religiosa dasnão religiosas. A separação entre religião e ciên-cia, senso comum, estética, política, e assim pordiante, permite-lhe defendê-la das acusaçõesde irracionalidade. Se a religião tem uma pers-

    pectiva específica (sua própria verdade, comoDurkheim teria dito) e realiza uma função in-dispensável, ela não compete, em essência, comoutras esferas e não pode, portanto, ser acusadade gerar falsa consciência. No entanto, de certomodo esta defesa é equivocada. Geertz observaque os símbolos religiosos criam disposições queparecem singularmente realistas. Este é o pontode vista do agente relativamente confiante (quedeve operar sempre no interior da densidade dasprobabilidades historicamente dadas) ou de um

    observador cético (que pode ver, através das re-presentações da realidade, a própria realidade)?Isto nunca fica claro. E nunca fica claro porqueesse tipo de abordagem fenomenológica não per-mite examinar se, e em caso positivo, em quemedida e de que modo, a experiência religiosa serelaciona a algo localizado no mundo real habi-tado pelos indivíduos que crêem. Isso acontece,em parte, porque os símbolos religiosos são tra-tados, de modo circular, como precondição paraa experiência religiosa (que como qualquer expe-

    riência deve, por definição, ser genuína), ao invésde uma condição para se engajar com a vida.

    Perto do fim de seu ensaio, Geertz tenta co-nectar, ao invés de separar, a perspectiva religiosacom a do senso comum, e o resultado revela a am-biguidade básica de toda sua abordagem. Primei-ramente, invocando Schutz, Geertz declara que o

    mundo quotidiano dos objetos do senso comume dos atos práticos é compartilhado por todos osseres humanos, pois sua sobrevivência depende

    disso: “Um homem, até mesmo grandes gruposde homens, pode ser esteticamente insensível, nãopreocupado religiosamente e não equipado paraperseguir a análise científica formal, mas não podeter uma falta total de senso comum, e assim mes-mo sobreviver” (Geertz, 1989, p. 87). A seguir, elenos informa que os indivíduos se encontram emum “movimento de ida e volta entre a perspectivareligiosa e a perspectiva do senso comum” (Op.cit.). Tais perspectivas são tão obviamente diferen-tes, ele declara, que apenas “saltos kierkegaardia-

    nos” (Geertz, 1989, p. 88) poderiam preencher aslacunas culturais que os separam. Logo, a seguinteconclusão fenomenológica:

    Tendo “pulado” ritualmente (...) para o arca-bouço de significados que as concepções religio-sas definem e, quando termina o ritual, voltadonovamente para o mundo do senso comum, umhomem se modifica – a menos que, como acon-tece algumas vezes, a experiência deixe de terinfluência. À medida que o homem muda, muda

    também o mundo do senso comum, pois ele é vistoagora como uma forma parcial de uma realidademais ampla que o corrige e o completa (Geertz,1989, p. 89, ênfase adicionada).

    Este curioso relato acerca de perspectivas al-ternantes e mundos em mudança gera confusão– como de fato é no trabalho de Schutz. Não ficaclaro, por exemplo, se o arcabouço religioso e omundo do senso comum, entre os quais o indiví-duo se move, são independentes do indivíduo ou

    não. Muito do que Geertz havia dito no iníciode seu ensaio implicaria assumir que religião esenso comum são independentes (Geertz, 1989,p. 68), e seu comentário sobre o senso comumcomo sendo uma instância vital para a sobre-vivência de qualquer homem também reforçaessa leitura. No entanto, é também sugerido que

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    quando o indivíduo crente muda de perspectiva,ele muda a si mesmo; e, ao mudar, seu mundo dosenso comum também muda e é corrigido. Neste

    caso, a última mudança não é independente, demaneira alguma, dos movimentos do indivíduo.Mas, a partir desse relato, pareceria que o mundoreligioso é  independente, já que ele é a fonte deuma experiência específica para aquele que crê e,através dessa experiência, uma fonte de mudan-ça no mundo do senso comum: não há nenhu-ma sugestão de que o mundo (ou a perspectiva)religioso(a) é de algum modo afetado(a) pela ex-periência no mundo do senso comum.

    Este último aspecto é coerente com a abor-

    dagem fenomenológica, na qual os símbolos re-ligiosos são sui generis , demarcando um domínioreligioso independente. Mas no contexto corren-te ele apresenta ao leitor um paradoxo: o mundodo senso comum é sempre comum a todos osseres humanos e bastante distinto do mundo re-ligioso, que por sua vez difere de um grupo paraoutro, assim como as culturas diferem entre si;mas a experiência do mundo religioso afeta omundo do senso comum e, então, a especificida-de de cada um desses dois mundos é modificada,

    e o mundo do senso comum vem a ser diferentede um grupo para outro, assim como uma cultu-ra difere de outra. Esse paradoxo é o resultado deuma fenomenologia ambígua, na qual a realida-de é ao mesmo tempo a distância entre a perspec-tiva de um agente social e a verdade (mensurávelapenas por um observador privilegiado) e tam-bém o conhecimento substancial de um mundosocialmente construído disponível tanto para oagente quanto para o observador, mas que para oúltimo o é apenas através do primeiro36.

    Conclusão

    Talvez possamos aprender algo com este pa-radoxo, que nos ajudará a avaliar a conclusãoconfiante de Geertz:,

    O estudo antropológico da religião é, portanto,uma operação em dois estágios: no primeiro,uma análise do sistema de significados incorpo-

    rado nos símbolos que formam a religião propria-mente dita  e, no segundo o relacionamento dessessistemas aos processos sócio-estruturais e psico-lógicos (Geertz, 1989, p. 91, ênfase adicionada).

    Quão sensata soa esta declaração e, no en-tanto, quão equivocada ela certamente é. Se ossímbolos religiosos são entendidos, a partir daanalogia com as palavras, como veículos para osignificado, podem tais significados ser estabe-lecidos independentemente das formas de vida

    nas quais eles são usados? Se os símbolos reli-giosos devem ser tomados como assinaturas deum texto sagrado, podemos saber o que signi-ficam sem considerar as disciplinas sociais atra-vés das quais sua leitura correta é assegurada?Se os símbolos religiosos devem ser pensadosenquanto conceitos através dos quais as experi-ências são organizadas, podemos dizer algo so-bre eles sem considerar o modo pelo qual vêma ser autorizados? Mesmo se defendermos queo que é experienciado através dos símbolos reli-

    giosos não é, em essência, o mundo social, maso espiritual37, é possível afirmar que as condi-ções no mundo social não têm relação algumacom a produção da acessibilidade desse tipo deexperiência? É o conceito de treinamento reli-gioso inteiramente vazio?

    Os dois estágios propostos por Geertz são,eu sugeriria, um. Os símbolos religiosos – se- jam eles pensados em termos de comunicaçãoou cognição, como guias para a ação ou paraexpressar emoção – não podem ser compre-

    endidos independentemente de suas relaçõeshistóricas com os símbolos não religiosos oude suas articulações no interior e sobre a vidasocial, na qual trabalho e poder são sempre cru-ciais. O meu argumento, devo enfatizar, nãoé apenas que símbolos religiosos estão intima-mente ligados à vida social (e portanto mudam

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    com ela), ou que eles frequentemente apóiamo poder político dominante (e, ocasionalmen-te, se opõem a ele). É que diferentes tipos de

    prática e discurso são intrínsecos ao campo emque as representações religiosas (como qual-quer representação) adquirem sua identidade esua veracidade. Desta afirmação não se concluique os significados das práticas e enunciaçõesreligiosas devam ser procuradas em fenômenossociais, mas que sua possibilidade e seu statusautoritativo devem ser explicados enquantoprodutos de forças e disciplinas historicamenteespecíficas. O interessado em religiões  parti-culares , de um ponto de vista antropológico,

    deveria, portanto, partir deste ponto: abrir oconceito abrangente com o qual ele ou ela tra-duz “religião” em elementos heterogêneos deacordo com suas características históricas.

    Uma última palavra de advertência. Osleitores apressados podem concluir que mi-nha discussão sobre a religião cristã tem umviés autoritário, centralizador e elitista, e queconsequentemente falha em levar em conta asreligiões de fiéis heterodoxos, de camponesesresistentes, de todos aqueles que não puderam

    ser completamente controlados pela ortodoxiada igreja. Ou, ainda pior, que minha discussãonão tem nenhuma relevância para os cultos nãodisciplinares e voluntaristas e localizados de re-ligiões não centralizadas como o hinduísmo.Mas essa conclusão seria uma compreensãoequivocada deste texto, considerando-o umatentativa de defender uma definição antropoló-gica de religião melhor do que a fornecida porGeertz. Nada estaria mais distante de minha in-tenção. Se meus esforços se dirigem, em grande

    medida, a um breve esboço das transmutaçõesdo cristianismo da Idade Média até hoje, issonão se deve ao fato de eu ter confinado meusexemplos etnográficos, de forma arbitrária, auma religião. O meu objetivo foi problemati-zar a ideia de uma definição antropológica dareligião ao remeter este esforço a uma história

    particular do conhecimento e do poder (e issoinclui uma compreensão particular acerca denosso passado e futuro legítimos) a partir da

    qual o mundo moderno foi construído38

    .

    Notas

    1. Veja-se Fustel de Coulanges (2003). Publicada original-mente em francês em 1864, a obra exerceu influência,historicamente, sobre várias disciplinas que se sobrepu-nham – antropologia, estudos bíblicos e clássicos.

    2. Originalmente publicado em 1966, foi reimpressoem seu aplaudido A interpretação das culturas  (1989).

    3. Compare com a apresentação mais rigorosa de Peir-

    ce de representações : “Uma representação é um objetoque substitui outro, de modo que uma experiência doprimeiro nos fornece um conhecimento do segundo.Há três condições essenciais a que toda representaçãodeve obedecer. Em primeiro lugar, ela deve, comoqualquer outro objeto, ter qualidades que indepen-dem de seu significado. (...) Em segundo lugar, umarepresentação deve ter um nexo causal real com seuobjeto. (...) Em terceiro lugar, toda representação seencaminha para uma mente. É somente ao fazer issoque ela é uma representação” (Peirce, 1986, p. 62).

    4. Vigotsky (1962) estabelece distinções analíticas cruciaisno desenvolvimento do pensamento conceitual: sincre-

    tismos, complexos, pseudoconceitos, e conceitos. Em-bora segundo Vygotsky estes representem estágios nodesenvolvimento do uso da linguagem pelas crianças, osprimeiros estágios permanecem atuantes na vida adulta.

    5. Cf. Collingwood (1938, livro 2) para uma discus-são da conexão integral entre pensamento e emo-ção, onde se argumenta que não existe nada que seassemelhe a uma função emocional universal queacompanha toda conceituação/comunicação: cadaatividade cognitiva/comunicativa distintiva elencauma emoção específica. Caso esta visão seja válida,poder-se-á questionar a noção de uma emoção (outemperamento) religiosa generalizada.

    6. O argumento de que os símbolos organizam a prá-tica  e, consequentemente, a estrutura da cognição, écentral para a psicologia genética de Vigotsky. Ver,especialmente, “Tool and Symbol in Child Develo-pment” (Vigotsky, 1978). Uma concepção cognitivados símbolos foi retomada recentemente por Sperber(1975). Uma posição semelhante foi adotada muitoantes por Lienhardt (1961).

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    7. “A história do processo de internalização da fala social  é, também, a história da socialização do intelecto prá-tico das crianças” (Vigotsky, 1978, p. 27). Ver tam-bém Luria e Yudovich (1971).

    8. N.T.: Em certas passagens do texto, preferimos utilizar oneologismo “autoritativo” para traduzir o adjetivo “au-thoritative ” ou “authorizing ”. Diferentemente de “auto-rizado”, a expressão de Asad tem a virtude de referir-setanto à autoridade atribuída a símbolos e práticas consi-derados legítimos, quanto à autoridade incorporada porestas agências atribuidoras elas mesmas. Nesse sentido,símbolos e práticas autorizados são os produtos de pro-cessos autoritativos, apesar de nunca os resumirem ouesgotarem. Um interessante debate sobre a oposição de

     Asad à antropologia simbólica através da noção de dis-curso autoritativo encontra-se em Canton (2006) assimcomo na réplica do próprio autor (Asad, 2006).

    9. Ou, como Kroeber e Kluckhohn (1952, p. 181) colo-caram anteriormente: “A cultura consiste em padrões,explícitos ou implícitos, de e para comportamentosadquiridos e transmitidos por símbolos”.

    10. Se colocarmos de lado a preocupação bem conhecidade Radcliffe-Brown com a coesão social, poderemos noslembrar que ele também estava interessado em especifi-car certos tipos de estados psicológicos sobre os quais sediz que são induzidos por símbolos religiosos: “Os ritospodem ser vistos como as expressões simbólicas mode-radas de certos sentimentos. Podem mostrar, portanto,terem função social específica quando, e na medida em

    que, tenham por efeito refrear, manter e transmitir deuma geração a outra sentimentos dos quais a constitui-ção da sociedade depende” (1973, p. 196).

    11. Alguns caminhos pelos quais a simbolização (discur-so) pode disfarçar sua falta de distintividade  são bemexplicitados pela crítica mordaz de MacIntyre aosescritores cristãos contemporâneos, na qual ele argu-menta que “os cristãos agem como todos os demais,mas fazem uso de um vocabulário diferenciado paracaracterizar seu próprio comportamento, e tambémpara ocultar sua falta de distintividade” (1971, p. 24).

    12. O fenômeno da diminuição da frequência às igrejasna sociedade industrial moderna e sua progressiva

    marginalização (ao menos na Europa) dentre os se-tores da população não envolvidos diretamente noprocesso de trabalho industrial ilustra o argumentode que se formos procurar explicações causais nestaárea, as condições socioeconômicas em geral aparece-rão como a variável independente, sendo a devoçãoformal a dependente. Veja a interessante discussão aesse respeito em Luckman (1967, cap 2).

    13. N. T.: Os conceitos de Geertz citados por Talal Asadsão “moods ” e “motivations ”, o que não deveria ser tra-duzido por “disposições” (que é outro conceito, citadoanteriormente) e “motivações”, como ocorre no texto,

    mas sim por “estados de espírito” e “motivações”. Noentanto, na tradução já existente em português (e bas-tante divulgada nacionalmente), ocorre este equívoco.Considerando o caráter didático de uma tradução –cujo objetivo primordial é ampliar o acesso ao textopara os não leitores da língua em que foi originalmenteescrito –, optamos por manter o equívoco, assinalan-do-o, de maneira que os estudantes possam encontrarcom maior facilidade as frases de Geertz na traduçãobrasileira (Geertz, 1989) e verificar se há ou não remo-ção de contexto ou desvirtuamento de sentido.

    14. É por isso que Agostinho acabou por adotar a visãode que a falta de sinceridade na conversão não era umproblema (Chadwick, 1967, p. 222-240).

    15. Nas palavras de um teólogo moderno: “A diferençaentre o modo de falar que professa, proclama e orien-ta, por um lado, e a fala descritiva, por outro, é àsvezes formulada como a diferença entre ‘falar sobre’e ‘falar para’. Tão logo esses dois modos de fala sãoconfundidos, diz-se que o caráter único e originaldo discurso religioso é corrompido, de modo que arealidade-como-ela-é-para-o-crente não mais pode‘aparecer’ para ele do mesmo modo que aparece nafala que professa” (Luijpen, 1973, p. 90-91).

    16. A série de livretos conhecida como Manuais de Pe-

    nitência, com a ajuda dos quais a disciplina cristã foiimposta na Europa Ocidental aproximadamente doséculo V ao X, contém vasto material sobre as prá-ticas pagãs penalizadas por não serem cristãs. Assim,por exemplo, ‘São ofensas condenadas a realização ouanulação de votos próximos a fontes, árvores ou gelo-sias, ou em qualquer lugar que não numa igreja, assimcomo compartilhar bebida ou comida nesses espaçosconsagrados a deidades pagãs’ (apud McNeill, 1933,p. 456). (Para mais detalhes, ver McNeill e Gam-mer, 1938). Nesta mesma época, o papa Gregório, oGrande (540-604 d.C.) ‘exortava a igreja a ocupar osvelhos templos e festivais pagãos de modo a dotá-los

    de sentido cristão’ (Chadwick, 1967, p. 254). A apa-rente incoerência entre essas duas atitudes (rejeiçãoou incorporação de práticas pagãs) é menos impor-tante do que o exercício sistemático de autoridade daIgreja através do qual o sentido era atribuído.

    17. “Por um lado, os bispos se queixavam de crenças queeles viam como rudes e por demais ávidas por mara-vilhas e milagres não autorizados e não devidamente

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    examinados, enquanto, por outro lado, os teólogos(possivelmente estes mesmos bispos) tentavam se ha-ver com a questão. Apesar de tentarem definir mila-gres recorrendo à lei natural universal, tais definições

    nunca eram inteiramente bem-sucedidas, e em ca-sos específicos, individuais, o senso comum tendiaa ser um guia melhor do que a cosmologia medieval.Quando os comissários papais se sentaram para ouvirtestemunhos sobre os milagres de omas Cantilupeem Londres e Hereford em 1307, depararam-se comuma série de questões a serem colocadas para dar contadesses eventos extraordinários: eles queriam saber, porexemplo, como a testemunha veio a saber do milagre,quais foram as palavras usadas por aqueles que rezarampelo milagre, se quaisquer ervas, pedras, outros prepa-rados naturais ou medicinais ou encantamentos haviamacompanhado o desenrolar do milagre; da testemunhase esperava que dissesse algo sobre a idade e a situaçãosocial da pessoa que experienciou o milagre, de ondeela veio e de qual família; se a testemunha conhecia osujeito tanto antes quanto depois do milagre, qual era adoença envolvida, quantos dias antes da cura ela haviavisto a pessoa doente; se a cura foi completa e quantotempo levou para que fosse plenamente realizada. É cla-ro que as testemunhas também eram interrogadas sobreo ano, mês, dia, lugar e na presença de quem o eventoextraordinário teria ocorrido” (Finucane, 1977, p. 53).

    18. Ao serem autorizados, os santuários, por sua vez, ser-viam para confirmar a autoridade eclesiástica: “Os bis-

    pos da Europa ocidental vieram a orquestrar o cultodos santos de forma a fundamentar o seu poder den-tro das antigas cidades romanas nessas ‘cidades fora dacidade’. No entanto, foi através de um relacionamentocuidadosamente articulado com os grandes santuáriosque ficavam a alguma distância da cidade - São Pe-dro, na montanha do Vaticano, fora de Roma, SãoMartinho, um pouco depois além dos muros de Tours- que os bispos das primeiras cidades do Império Ro-mano alcançaram proeminência na Alta Idade Médiaeuropéia” (Brown, 1981, p. 8).

    19. A vida de Santo Antônio, por Athanasius, foi o mode-lo das hagiografias medievais, e a sequência antonina

    de vida prévia, crise e conversão, provação e tentação,privação e renúncia, poder miraculoso, somados aoconhecimento e à autoridade, foi reproduzida insis-tentemente por essa literatura (Baker, 1972, p. 41).

    20. O Concílio Laterano de 1215 declarou a confissão pri-vada anual obrigatória para todos os cristãos: “Cada fi-delis de qualquer um dos sexos, após atingir alguns anosde discernimento, deverá confessar seus pecados priva-

    damente a seu padre com toda fidelidade no mínimouma vez ao ano: e deverá tentar cumprir a penitência aele imposta no máximo possível das suas capacidades,recebendo com reverência o sacramento da Eucaristia

    pelo menos na Páscoa: a menos que a conselho de seupróprio padre e por alguma causa razoável, seja decidi-do que ele deva se abster da recepção deste sacramentotemporariamente: caso contrário, que ele seja proibi-do, durante sua vida, de adentrar uma igreja e, quandomorto, que sinta a falta de um enterro cristão. Por con-seguinte, que este estatuto salutar seja frequentementepublicado nas igrejas, de modo que ninguém encontreo véu da isenção na cegueira da ignorância” (apud Wa-tkins, 1920, p. 748-49).

    21. Para uma breve introdução às várias reações das autorida-des eclesiásticas aos franciscanos e beguinas, veja-se Sou-thern, 1970, caps. 6 e 7. “Beguinas” era o nome dado aosgrupos de mulheres celibatárias, dedicadas à vida religio-sas, mas que não deviam obediência à autoridade eclesi-ástica. Floresceram nos povoados da Alemanha ocidentale nos Países Baixos, mas foram criticadas, denunciadas efinalmente suprimidas no início do século XV.

    22. Assim, Cipriano: “Se um homem não se atém a estaunidade da Igreja, pode ele crer que se atém à fé? Seum homem recusa e resiste à Igreja, pode ele confiarque está na Igreja? Pois o abençoado apóstolo Pauloprega o mesmo ensinamento, e estabelece o sacra-mento da unidade, ao afirmar: ‘Há apenas um corpo,um Espírito, uma esperança em nosso chamado, um

    Mestre, uma fé, um batismo, um Deus’. Esta uni-dade nós devemos firmemente defender, e a ela nosatermos, especialmente nós, que presidimos a Igrejaenquanto bispos, cujo dever é promover um episco-pado que em si também é uno e indiviso. Que nin-guém engane nossos irmãos através da falsidade, queninguém corrompa a verdade de nossa fé através detransgressões infiéis” (apud Bettenson, 1956, p. 264).

    23. A Igreja sempre exerceu a autoridade de ler a  práti-ca cristã de acordo com sua verdade religiosa. Nessecontexto, é interessante notar que a palavra heresia  ini-cialmente designava todo tipo de erro, inclusive erros“inconscientemente” envolvidos em alguma atividade

    (simoniaca haersis ), tendo adquirido seu sentido espe-cificamente moderno (a formulação verbal da negaçãoou dúvida acerca de qualquer doutrina definida daigreja católica) apenas no decurso das controvérsiasmetodológicas do século XVI (Chenu, 1968, p. 276).

    24. Na Baixa Idade Média, a disciplina monástica foi aprincipal base da religiosidade. Knowles (1963, p. 3)observa que aproximadamente do século VI ao XII “a

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    vida monástica baseada na Regra de São Bento era portoda a parte a norma e exercia de tempos em temposuma grandiosa influência na vida espiritual, intelec-tual, litúrgica e apostólica da Igreja Ocidental. (...) o

    único tipo de vida religiosa disponível nos países emquestão era a vida monástica, e o único código monás-tico era a Regra de São Bento”. Durante este período,o próprio termo religioso era, portanto, reservado paraaqueles que viviam em comunidades monásticas; coma emergência tardia de ordens não monásticas, o termoveio a ser utilizado de modo a também englobar todosaqueles que haviam feito votos vitalícios, pelos quaiseram diferenciados dos membros ordinários da Igre-

     ja (Southern, 1970, p. 214). A extensão e simultâneatransformação das disciplinas religiosas para os setoreslaicos da sociedade do século XII em diante (Chenu,1968) contribuiu para que a autoridade da Igreja se tor-nasse mais disseminada, mais complexa e também maiscontraditória do que antes – o mesmo valendo para aarticulação entre o conceito e a prática da religião laica.

    25. Logo, permitindo ao antropólogo Vitoriano e es-tudioso da Bíblia Robertson Smith afirmar que, naera da historiografia científica, “não serão mais osresultados da teologia que seremos instados a defen-der, mas algo anterior à teologia. O que teremos quedefender não será nosso conhecimento cristão, masnossa crença cristã” (1912, p.110). Não se espera quea crença cristã se estabeleça através da Bíblia enquan-to revelação divina, mas sim enquanto “o registro da

    revelação divina – o registro dos fatos históricos atra-vés dos quais Deus revelou-se aos homens” (1912, p.123). Portanto, os princípios da interpretação histó-rica não eram mais estritamente cristãos; apenas ascrenças às quais estas interpretações serviram.

    26. Quando missionários cristãos se encontraram emterritórios culturalmente estranhos, o problema daidentificação da “religião” tornou-se uma questão deconsiderável dificuldade teórica e importância prática.Por exemplo, “Os jesuítas na China consideravam quea reverência aos ancestrais era um ato social, não religio-so, ou que, se fosse religioso, seria pouco diferente daspreces católicas endereçadas aos mortos. Eles desejavam

    que os chineses percebessem o cristianismo não comoum substituto, não como uma nova religião, mas comoa mais plena realização de suas aspirações mais refinadas.Mas a seus oponentes os jesuítas pareciam simplesmenterelapsos. Em 1631, um franciscano e um dominicanoda zona espanhola de Manila viajaram (ilegalmente,do ponto de vista português) para Pequim e descobri-ram que, para traduzir a palavra missa , o catecismo je-

    suíta utilizava a palavra tsi , que era a descrição chinesadas cerimônias de culto aos ancestrais. Uma noite elescompareceram disfarçados à tal cerimônia, observarama participação de chineses cristãos e ficaram escandaliza-

    dos com o que viram. Assim teve início a longa querelaacerca dos “ritos”, que assolou as missões orientais porum ou mais séculos” (Chadwick, 1964, p. 338).

    27. Veja-se, por exemplo, o capítulo sobre “animismo” naparte 2 de Primitive Cultures , de Tylor (1871).

    28. As fases do gradual esvaziamento da especificidade dosdiscursos religiosos públicos ao longo do século XVIIIsão descritas com algum detalhe em Gay (1973).

    29. A maneira pela qual as representações de ocorrências fo-ram transformadas em significados pela teologia Cristãé analisada por Auerbach em seu estudo clássico sobrea representação da realidade na literatura Ocidental ebrevemente resumida na seguinte passagem: “Todo oconteúdo das Sagradas Escrituras foi colocado numcontexto exegético, que freqüentemente afastava muitoo acontecimento relatado de sua base sensorial, enquan-to obrigava o leitor ou ouvinte a desviar sua atenção doacontecimento sensível, para concentrá-la no seu signi-ficado. Isto implicava, portanto, a possibilidade de queo visual dos acontecimentos ficasse paralisado e sufo-cado pelo denso emaranhado dos significados. Eis umexemplo, dentre muitos: Deus cria a primeira mulher,Eva, da costela de Adão adormecido: trata-se de umacontecimento visualmente dramático; o mesmo valepara o momento em que um soldado crava a lança no

    corpo de Jesus, morto na cruz, de modo a fazer fluirsangue e água. Contudo ambos os episódios são pos-tos em correlação mediante a exegese, ensinando que osono de Adão é uma imagem do sono mortal de Cristo,e que assim como da ferida no flanco de Adão nasce amãe primordial da humanidade segundo a carne, Eva,do mesmo modo, da ferida no flanco de Cristo nascea mãe dos vivos segundo o espírito, a Igreja - sanguee água são símbolos sacramentais -, o acontecimentosensorial empalidece, sobrepujada pela significaçãoapurada.O que o leitor ou ouvinte (...) incorporam asi mesmos é frágil quanto à impressão sensorial; todo oseu interesse vê-se dirigido para a conexão significativa

    . Frente a isso, as representações realistas greco-latinasnão são tão sérias e problemáticas, e muito mais limi-tadas na sua captação dos movimentos históricos; masestão asseguradas na sua substância sensória; desconhe-cem a luta entre aparência sensível e significação, lutaque permeia a visão da realidade dos primeiros temposdo Cristianismo e, a bem dizer, de todo o Cristianis-mo” (2004, p. 41-42). Como Auerbach segue demons-

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    trando, a teoria cristã da Baixa Idade Média investiuas representações da vida cotidiana sentidos figurativoscaracterísticos, e portanto com possibilidades para tiposespecíficos de experiência religiosa. A interpretação fi-

    gurativa, de acordo com Auerbach, não é sinônimo desimbolismo. O último está mais próximo da alegoria,na qual o símbolo é substituído pelo objeto simboli-zado. Na interpretação figurativa, a representação deum evento (o sono de Adão) torna-se explícita atravésda representação de outro evento (a morte de Cristo),que é seu significado. A última representação completaa primeira (o termo técnico, Auerbach nos conta, é  fi-

     guram implire ) – está implícita  nele.30. Cf. Douglas (1975, p. 76): “A pessoa sem religião se-

    ria a pessoa satisfeita em agir sem explicações de cer-tos tipos, ou satisfeita em se comportar na sociedadena ausência de um princípio unificador que valide aordem social”.

    31. Quando o bispo de Javols do século V disseminou ocristianismo em Auvergne, encontrou os campone-ses “celebrando um festival de três dias, que incluíaoferendas feitas nos limites de um pântano (...) ‘Nullaest religio in stagno’, disse ele: Não pode haver reli-gião em um pântano” (Brown, 1981, p. 125). Para oscristãos medievais, a religião não era um fenômenouniversal: ela era o lugar no interior do qual a verdadeuniversal era produzida, e era claro para eles que averdade não era produzida universalmente.

    32. Como coloca um teólogo católico contemporâneo: “O

    desafio secularista, apesar de separar vários aspectos davida do campo religioso traz com ele um equilíbrio in-terpretativo mais sólido: os fenômenos naturais, emboraàs vezes difíceis de serem entendidos, têm sua causa e ra-ízes em processos que podem e devem ser reconhecidos.É trabalho do homem, portanto, adentrar esta análisecognitiva do significado do sofrimento com o propósitode tornar-se mais apto a enfrentá-lo e a conquistá-lo. Acondição contemporânea do homem, daquele que crêàs beiras do terceiro milênio, é sem dúvida mais adulta emadura e permite uma nova abordagem para o proble-ma do sofrimento humano” (Autiero, 1987, p. 124).

    33. N.T.: Tentei descrever um dos aspectos deste processo

    em Asad (1986).34. As tentativas filosóficas de definir a ciência não atin-

    giram um consenso. No mundo anglo-saxão, os argu-mentos recentes têm sido formulados em torno dostrabalhos de Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, Ha-cking e outros; na França, em torno dos argumentos deBachelard e Canguilhem. Uma tendência importantetem sido o abandono da tentativa de resolver o que nes-

    sa literatura é conhecido como o problema da demar-cação, que se baseia na suposição de que deveria haverum método científico único e essencial. A ideia de queo cientista “dissolve o caráter dado do mundo em um

    turbilhão de hipóteses probabilísticas” é tão questioná-vel quanto a sugestão complementar de que na religiãonão haveria espaço para a experimentação. Sobre esteúltimo aspecto, há muitas evidências de experimentosmesmo se nos ativermos apenas à história do ascetismocristão. Igualmente, a sugestão de que a arte é uma ques-tão de “se descomprometer em relação a toda a questãoda facticidade, manufaturando deliberadamente um arde semelhança e ilusão” não seria tomada como autoe-vidente por todos os escritores e artistas. Por exemplo,quando o crítico de arte John Berger argumenta, emseu brilhante ensaio “e Moment of Cubism”, que ocubismo “mudou a natureza da relação entre a imagempintada e a realidade, e ao fazê-lo expressou uma novarelação entre o homem e a realidade” (1972, p. 145),aprendemos algo sobre a preocupação do cubismo coma redefinição da facticidade visual.

    35. Caso alguns leitores estejam tentados a pensar que oobjeto sobre o qual estou falando não é a ciência (te-oria), mas a tecnologia (aplicação prática), enquantoGeertz estaria preocupado apenas com a primeira,eu destacaria que as tentativas de fazer uma distin-ção clara entre esses dois campos baseia-se em umavisão excessivamente simplificada da prática histó-rica de ambas (cf. Musson; Robinson, 1969). Meu

    argumento é de que a ciência e a tecnologia juntas sãofundamentais para a estrutura das vidas modernas,individuais e coletivas, e que a religião, em qualquersentido que não o mais vazio, não é.

    36. Na introdução a sua coleção de ensaios de 1983, Ge-ertz (1997) parece querer abandonar essa abordagemperspectivista: “Quando nos voltamos para a arte, es-sas questões tornam-se ainda mais oportunas, porque,mesmo se comparado a debates em torno de temascomo ‘religião’, ‘ciência’, ‘ideologia’ ou ‘direitos’, adiscussão sobre se a arte é ou não uma categoria ade-quada em contextos ‘não-ocidentais’ ou ‘pré-moder-nos’ vem sendo peculiarmente inflexível. E tem sido

    também peculiarmente improdutiva. Seja qual for onome que se queira dar a uma parede de caverna co-berta de imagens sobrepostas de animais transfixados,a uma torre de um templo que termina na forma deum falo, a um escudo de penas , a um pergaminho ca-ligráfico, ou a um rosto tatuado, afinal, o que temos éum fenômeno a ser considerado, e talvez também umasensação de que, se acrescentar