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275 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 62, pp. 275 - 303, jan./jun. 2013 ABSTRACT This work investigates the central theme of the work of Konrad Hesse: the normative force of the constitution, rooted in his criticism of Ferdinand Lassalle conceptions about the definition of constitution (written constitution or “piece of paper” and real constitution or real factors of power). Hesse works with the concepts of juridical constitution and “will constitution ”, and for him, the constitutional order is conditioned, but also is a determinant strength of the factual reality and power relations within society. And in this interdependence can be found the possibilities and the limits of the normative force of the constitution. Alongside this central theme, also investigates another subject not least important, that is the issue of constitutional mutation. After all, they are interconnected issues, considering that 10.12818/P.0304-2340.2013v62p275 * Graduada em Direito, Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Filosofia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Professora Associada de Direito Constitucional, na Graduação, e Hermenêutica Jurídica, na Pós-Graduação, na Faculdade de Direito da UFMG. Endereço eletrônico: [email protected]. ** Mestrando em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Endereço eletrônico: [email protected]. A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E OS LIMITES À MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL EM KONRAD HESSE NORMATIVE FORCE OF THE CONSTITUTION AND LIMITS OF CONSTITUTIONAL MUTATION IN KONRAD HESSE Iara Menezes Lima * João André Alves Lança ** RESUMO O presente trabalho investiga o tema central da obra de Konrad Hesse: a força normativa da constituição, cujas raízes estão na sua crítica às concepções de Ferdinand Lassalle acerca da definição de constituição (constituição escrita ou “pedaço de papel” e constituição real ou “fatores reais do poder”). Hesse trabalha com os conceitos de constituição jurídica e “vontade de constituição”, sendo que para ele o ordenamento constitucional é condicionado, mas também força condicionante da realidade fática e das relações de poder existentes no seio da sociedade. E é nessa interdependência que se tem tanto as possibilidades, quanto os limites da força normativa da constituição. Ao lado desse tema central, também se investiga outro tema não menos relevante, que é a temática da mutação constitucional. Mesmo porque, são temas interligados, considerando- se que os limites à mutação constitucional são

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    ABSTRACT This work investigates the central theme of the work of Konrad Hesse: the normative force of the constitution, rooted in his criticism of Ferdinand Lassalle conceptions about the definit ion of constitution (wr i t t en cons t i tu t ion or p iece o f paper and real constitution or real factors of power). Hesse works with the concepts of juridical constitution and will constitution, and forhim, theconstitutional order i s condit ioned, but a lso i s a determinant strength of the factual reality and power relations within society. And in this interdependence can be found thepossibilitiesand the limitsof thenormative force of the constitution. Alongside this central theme, also investigates another subject not least important, that is the issue of constitutional mutation. After all, theyare interconnected issues, consideringthat

    10.12818/P.0304-2340.2013v62p275

    * Graduada em Direito, Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Filosofia, pela Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia (FAJE). Professora Associada de Direito Constitucional, na Graduao, e Hermenutica Jurdica, na Ps-Graduao, na Faculdade de Direito da UFMG.Endereo eletrnico: [email protected].

    ** Mestrando em Direito da Faculdade de Direito da UFMG.Endereo eletrnico: [email protected].

    A FORA NORMATIVA DA CONSTITUIO E OS LIMITES MUTAO CONSTITUCIONAL EM KONRAD HESSE

    NORMATIVE FORCE OF THE CONSTITUTION AND LIMITS OF CONSTITUTIONAL MUTATION IN KONRAD HESSE

    Iara Menezes Lima*

    Joo Andr Alves Lana**

    RESUMOO presente trabalho investiga o tema central da obra de Konrad Hesse: a fora normativa da constituio, cujas razes esto na sua crtica s concepes de Ferdinand Lassalle acerca da definio de constituio (constituio escrita ou pedao de papel e constituio real ou fatores reais do poder). Hesse trabalha com os conceitos de constituio jurdica e vontade de constituio, sendo que para ele o ordenamento constitucional condicionado, mas tambm fora condicionante da realidade ftica e das relaes de poder existentes no seio da sociedade. E nessa interdependncia que se tem tanto as possibilidades, quanto os limites da fora normativa da constituio. Ao lado desse tema central, tambm se investiga outro tema no menos relevante, que a temtica da mutao constitucional. Mesmo porque, so temas interligados, considerando-se que os limites mutao constitucional so

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    the limits of constitutional mutation are outlinedby thenormative text.

    KEYWORDS: Real Constitution. Juridical Constitution. Will Constitution. Normative Force. Constitutional Mutation.

    delineados pelo prprio texto normativo e se prestam preservao da seriedade e funo normativa da constituio jurdica.

    PALAVRAS-CHAVE: Constituio Real. Constituio Jurdica. Vontade de Constituio. Fora Normativa. Mutao Constitucional.

    1. INTRODUO

    Konrad HESSE (1992), na busca pela afirmao da fora normativa da constituio, contrape-se ao pensamento de Ferdinand LASSALLE (1997), para quem as questes constitucionais no so primordialmente questes jurdicas, mas questes de poder. Nesse sentido, a constituio de um pas seria composta pelas efetivas relaes de poder existentes em sua estrutura, a saber, e.g.: os poderes militar, social, econmico e espiritual (conscincia e cultura geral).

    Segundo LASSALLE (1997), essas relaes efetivas de poder seriam as foras operativas condicionantes de todas as leis e instituies jurdicas da sociedade, dando corpo, pois, constituio real de um pas.

    Na opinio de HESSE (1991; 1992), tal pensamento fascinante e fcil de compreender, porque se assenta em uma viso realista da vivncia social e poltica, descartando quaisquer iluses, bem como porque aparentemente se respalda na experincia histrica. Contudo, para HESSE (1992), constituio a constituio jurdica.

    O propsito inicial do presente trabalho investigar o pensamento de Konrad Hesse relativo afirmao da constituio jurdica como ordenamento normativo capaz de determinar as relaes de poder scio-culturais e polticas de um pas. E, em um segundo momento, investigar o pensamento do autor acerca dos limites mutao constitucional.

    Ressalta-se a relevncia e atualidade desses temas no apenas para a academia, mas principalmente no que diz respeito prxis constitucional.

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    2. A FORA NORMATIVA DA CONSTITUIO

    HESSE (1992), ao desenvolver seu pensamento sobre a fora normativa da constituio, instaura um dilogo de contradio com a obra de Ferdinand Lassalle. Segundo LASSALLE (1997, p. 99), o que usualmente chamamos de constituio, a constituio jurdica (constituio formal), no passaria de um pedao de papel. Sua capacidade reguladora e determinante no teria foras o bastante para alcanar seno o limite em que coincidiria com a chamada constituio real. Na medida em que no se configurasse essa coincidncia, a constituio escrita sucumbiria ante as efetivas relaes de poder existentes no Estado ante, portanto, constituio real. Afirma o autor que, a constituio de um pas, em essencial, seria [...] a soma dos fatores reais que regem o poder nesse pas (LASSALE, 1997, p. 92).

    HESSE (1992), todavia, procura alertar, desde o incio da sua crtica, que o argumento favorvel supremacia da constituio real, justificado na alegao de haver uma inevitvel falta de coincidncia entre as relaes fticas e os ordenamentos escritos, no representa uma negao da constituio jurdica, pois a situao de conflito entre ser e dever ser sempre existe, e nem por isso o ordenamento jurdico deixa de ter normatividade.

    A negao do direito constitucional justificar-se-ia apenas se a constituio fosse entendida unicamente como a reunio de foras fticas apreendidas em um determinado momento. Todavia, as normas constitucionais no so apenas expresses das relaes fticas em constante mudana, mas preceitos voltados ordenao dessas relaes. Alm disso, HESSE (1992) destaca que o direito constitucional parte integrante da cincia jurdica, pois, do contrrio, persistindo o entendimento de LASSALE (1997), inexistiriam diferenas significativas entre a cincia jurdica e as cincias sociais.

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    a partir dessas crticas preliminares que HESSE (1992) desenvolve a temtica da fora normativa da constituio. Assim, busca saber se existe, junto s foras fticas, sociais e polticas, uma fora determinante do direito constitucional, em que se apoia e at onde vai essa fora.

    HESSE (1992) indica que o intento de resposta a tais questes dever tomar como ponto de partida: primeiro, a mtua relao de dependncia em que se encontram, de um lado, a constituio jurdica e, de outro, a realidade poltica e social; segundo, dever considerar os limites e as possibilidades de atuao da constituio jurdica dentro desta dita relao de dependncia; e terceiro, haver que atentar para as condies que possam vir a permitir que dita atuao se reproduza.

    2.1 A CORRELAO ENTRE CONSTITUIO E REALIDADE COMO POSSIbILIDADE E LIMITE DA FORA NORMATIVA DA CONSTITUIO

    Para HESSE (1992), a relao entre ordenao jurdica e realidade ftica somente deve ser analisada situando ambas em indissolvel conexo. A separao radical entre norma e realidade, ser e dever ser, no leva a lugar algum. Defender tal separao, da forma como o faz LASSALE (1997), resulta, inevitavelmente, na tese da exclusividade da fora determinante das relaes fticas, o que no se justifica segundo HESSE (1992). H que se encontrar, portanto, um caminho de equilbrio entre o sacrifcio da normatividade ante a realidade e a normatividade fora da realidade e carente de contedo.

    Nesse sentido, HESSE (1992) propugna que, ao se considerar que a constituio jurdica reclama natureza prpria, a qual est em ter vigncia e em determinar o Estado por ela normatizado, tal pretenso no pode se desvincular das condies histricas de sua realizao.

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    Dessa forma, a pretenso de normatividade constitucional somente tem xito quando se leva em considerao as condies fticas, naturais, tcnicas, econmicas e sociais, bem como, inclusive, se assimila os contedos espirituais enraizados em um povo: concretas opinies e valoraes sociais que condicionam decisivamente a conformao, a compreenso e a autoridade das normas jurdicas (HESSE, 1992).

    Por outro lado, a constituio jurdica no apenas expresso de um ser, mas tambm de um dever ser; mais que um simples reflexo das condies reais de sua vigncia das foras polticas e sociais. Em virtude de sua vigncia, o ordenamento constitucional volta-se a ordenar e conformar a realidade poltica e social. condicionado, mas tambm condicionante da realidade ftica. Com as palavras do autor:

    A constituio real e a constituio jurdica, retomando os conceitos j utilizados, instalam-se em uma situao correlativa. Condicionam-se mutuamente, sem serem simplesmente dependentes uma da outra; cabe dizer que constituio jurdica corresponde uma significao autnoma, ainda que seja apenas relativa. (HESSE, 1992, p. 62-63, traduo nossa).1

    Nesse sentido, nenhuma constituio poltica pode prosperar sem que se conecte com as circunstncias da situao histrica e concreta, relacionando seus condicionamentos com a regulao jurdica inspirada pelos princpios da razo.

    Toda constituio, inclusive quando concebida como uma estrutura meramente terica, deve encontrar a gnesis material de sua fora vital na poca, nas circunstncias, no carter nacional, produzindo seu desenvolvimento a partir destes. (HUMBONLDT apud HESSE, 1992, p. 64, traduo nossa).2

    1 La constitucin real e la constitucin jurdica, por retomar los conceptos ya utilizados, se hallan en una situacin correlativa. Se condionan mutuamente, sin ser simplemente dependientes la una de la outra; cabe decir que a la constitucin jurdica le corresponde una significao autnoma, aunque slo sea relativa.

    2 Toda constitucin, incluso cuando se la concibe como una estructura meramente

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    Dessa maneira, onde a constituio ignora as leis espirituais, sociais, polticas e econmicas de sua poca, carecer do grmen indispensvel a sua fora vital. A constituio jurdica produz efeitos, na medida em que pretende determinar o futuro considerando as circunstncias do presente. Em outras palavras, a fora e a eficcia da constituio se ancoram em sua vinculao s foras espontneas e tendncias vitais de sua poca.

    Assim, na medida em que consegue realizar essa pretenso de vigncia (condicionar a realidade), a constituio jurdica alcana fora normativa. Esse alcance normativo encontra suas possibilidades e limites, justamente, na relao de interdependncia entre norma e realidade (HESSE, 1992).

    2.2 A IDEIA DE VONTADE DE CONSTITUIO

    HESSE (1992) destaca que a fora normativa da constituio no repousa apenas na sua adequao inteligente e coordenativa s circunstncias de fato. Isso por si s no realiza nada, seno unicamente nos deixa a tarefa de fazer valer a pretenso determinante da constituio frente ordem regulada por ela. Quando se decide impor essa ordem sobre qualquer questionamento ou ataque. Quando, portanto, na conscincia geral e concreta dos responsveis pela vida constitucional, se verifique viva no somente a vontade de poder, mas, sobretudo, se encontre presente o que HESSE (1992, p. 66) chama de vontade de constituio.

    Segundo HESSE (1997, p. 49), a [...] fora normativa da Constituio est condicionada por cada vontade atual dos participantes da vida constitucional, de realizar os contedos da Constituio.

    terica, debe encontrar el germen material de su fuerza vital en la poca, en las circunstancias, en el carcter nacional, producindose su desarrollo a partir de estos ltimos.

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    Friedrich MLLER, um de seus mais notveis discpulos, exemplifica:

    Em nvel hierrquico igual ao lado da jurisprudncia e da cincia jurdica, a legislao, a administrao e o governo trabalham na concretizao da constituio. [...] Tambm os atingidos que participam da vida poltica e da vida da constituio desempenham funes efetivas de concretizao da constituio de uma abrangncia praticamente no superestimvel, ainda que apaream menos e costumem ser ignorados metodologicamente: por meio da observncia da norma, da obedincia a ela, de solues de meio termo e arranjo no quadro do que ainda admissvel ou defensvel no direito constitucional, e assim por diante. (MLLER, 2010, p. 35-36).

    Essa vontade de constituio, segundo HESSE (1992), procede de trs razes: (I) a conscincia da necessidade e valor de se ter um ordenamento objetivo, normativo e inviolvel, que alije a arbitrariedade; (II) a convico de que o ordenamento constitucional mais que uma ordenao exclusivamente ftica, e que este no s legtimo, mas tambm carece de constante legitimao; (III) a conscincia de que esta ordem constitucional no pode ter vigncia margem da vontade humana, mas s pode adquirir e conservar sua vigncia (pretenso jurdica) por meio de atos de vontade (legitimao).

    Dessa forma, se, por um lado, os limites da fora normativa da constituio situam-se onde a norma constitucional no se enquadra com a disposio individual do presente, esses limites, por outro lado, no so rgidos, pois, a prpria vontade de constituio constitui parte dessa disposio, podendo ampliar consideravelmente tais limites (HESSE, 1992, p. 70).

    Assim, A intensidade da fora normativa da Constituio torna-se, em primeira linha, uma questo de vontade de norma, de vontade de Constituio (HESSE, 1992, p. 70, traduo nossa).3

    3 La intensidad de la fuerza normativa de la Constitucin deviene as en primera lnea

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    Pressupostos para a Fora Normativa da ConstituioHESSE (1992) indica duas grandes condies, pelas

    quais a constituio pode alcanar a medida tima de sua fora normativa. Tais condies concernem tanto a sua conformao material, quanto a sua prxis (aplicabilidade constitucional).

    Como primeira condio, HESSE (1992) assinala que quanto melhor consegue uma constituio, em seu contedo, corresponder s circunstncias reais do presente, com maior segurana poder desenvolver sua fora normativa.

    Essa incorporao das condies fticas deve absorver, sobretudo, a situao espiritual de sua poca, que vem acompanhada da aprovao e apoio da conscincia geral.

    Para isso, a constituio deve ser capaz de adaptar-se mudana constante dessas circunstncias fticas. A constituio deve albergar, segundo HESSE (1992), princpios elementares, altamente contingentes, cuja caracterizao possa se adequar realidade poltica e social. Deve a constituio, assim, ficar

    [...] imperfeita e incompleta, porque a vida que ela quer ordenar, vida histrica e, por causa disso, est sujeita a alteraes histricas. Essa alterabilidade caracteriza, em medida especial, as condies de vida reguladas pela Constituio. [...] Se a constituio deve possibilitar o vencimento da multiplicidade de situaes problemticas que se transformam historicamente, ento seu contedo deve ficar necessariamente aberto para dentro do tempo [...]. (HESSE, 1997, p. 40).

    Aliado a isso, no deve o ordenamento constitucional construir-se sobre estruturas unilaterais. Se a constituio pretende que seus princpios fundamentais mantenham sua fora normativa ter de admitir elementos e argumentaes de estruturas contrrias.

    A segunda grande condio assinalada por HESSE (1992) est em que o desenvolvimento timo da fora normativa da

    una cuestin de voluntad de norma, de voluntad de Constitucin.

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    constituio no somente uma questo de contedo, mas, tambm, de prxis constitucional. Isso porque, a atitude de todos aqueles participantes da vida constitucional de um Estado resulta fundamental, para a maior realizao de sua constituio. necessria a presena do que j se referiu como vontade de constituio.

    Para tanto, deve haver o sacrifcio de vantagens ou mesmo interesses, ainda que legtimos, em nome da segurana constitucional. Assim, perigosa a constante alterao das normas constitucionais a pretexto de necessidades polticas inevitveis, pois, conforme alerta HESSE (1992), toda modificao constitucional manifesta que as necessidades reais ou supostamente inevitveis do presente so valoradas acima da regulao vigente.

    No horizonte de ambas essas condies, importantssimo o papel da interpretao constitucional na consolidao da fora normativa da constituio. Se o direito, e em especial o direito constitucional, tem sua eficcia condicionada s relaes sociais, a interpretao no pode ignor-las. Isso implica que, diante de mudana nas relaes fticas, a interpretao tambm poder mudar (interpretao evolutiva). Por outro lado, a vinculao da interpretao constitucional ao sentido da regra normativa dever ser o prprio limite da interpretao da constituio (HESSE, 1992).

    Atendendo, portanto, a tais condies e seus respectivos pressupostos, que, na concepo de HESSE (1992), a constituio jurdica se torna fora vital capaz de preservar a vida poltica da arbitrariedade.

    2.4 A FORA NORMATIVA E OS TEMPOS DE CRISE

    HESSE (1992) ressalta que a prova da fora normativa da constituio no se revela em tempos pacficos, mas em perodos de crise. Esses momentos que so capazes de demonstrar a

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    superioridade do normativo sobre o puramente ftico.O autor exemplifica com a no previso, na Lei

    Fundamental alem de 1919 (Constituio de Weimar), de regulao adequada para a hiptese de estado de exceo. Para ele, a no absoro constitucional de tal possibilidade ftica, ou seja, a falta de adequao inteligente da constituio jurdica a essa hiptese histrica, ensejaria no apenas uma perigosa lacuna, como tambm, um claro limite fora normativa da constituio (HESSE, 1991).

    Para HESSE (1992, p. 77), poderia ser contra-argumentado que prever normas de estado de exceo significaria abrir margem para a utilizao dessas clusulas, o que seria reprovvel. Todavia, objeta que ignorar tal possibilidade traria problemas ainda maiores, pois, se determinado estado de exceo acontecesse sob a gide dessa situao de ausncia normativa, sua superao seria deixada a cargo unicamente da fora dos fatos.

    Da a importncia de o ordenamento constitucional, em sua pretenso normativa, albergar as condies e possibilidades fticas concernentes experincia de um Estado. E ser, segundo HESSE (1992), justamente nos tempos de crise entre tais arranjos estruturais, como o caso do citado exemplo de estado de exceo, que a constituio jurdica dever demonstrar sua fora vinculante contra o arbtrio e a supresso de direitos. Citando as palavras textuais de HESSE, pode-se concluir que:

    Dessa preservao e fortalecimento da fora normativa da Constituio que a todos ns incumbe e de seu pressuposto bsico, a vontade de Constituio, depender se as questes de nosso futuro poltico sero questes de poder ou questes de Direito. (HESSE, 1992, p. 78, traduo nossa).4

    4 De esa preservacin y reforzamiento de la fuerza normativa de la Constitucin que a todos nos incumbe y de su presupuesto bsico, la vonluntad de Constitucin, depender el que las cuestiones de nuestro futuro poltico sean cuestiones de poder o cuestiones de Derecho.

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    3. LIMITES MUTAO CONSTITUCIONAL

    A alterao das relaes sociais e histricas impe a inevitvel necessidade de constantes revises e atividades criativas em relao aos textos normativos. A dialtica instalada entre a rigidez e a mobilidade da constituio no uma questo de alternativa, mas de esforo coordenativo. Segundo HESSE, a rigidez e a mobilidade so necessrias

    [...] porque somente elas possibilitam satisfazer a transformao histrica e a diferenciabilidade das condies de vida [...] porque elas, em seu efeito estabilizador, criam aquela constncia relativa, que somente capaz de preservar a vida da coletividade de uma dissoluo em mudanas permanentes, imensas e que no mais podem ser vencidas. (HESSE, 1998, p. 45).

    Desse modo, HESSE (1998) ressalta o carter imprescindvel dos mecanismos de mudana da constituio, como instrumentos de recepo das alteraes sociais no ordenamento constitucional. Essa atualizao no apenas necessria, mas tambm fator condicionante ao alcance timo da prpria fora normativa da constituio. Comenta HESSE, nesse sentido, que:

    O persistente no deve converter-se em impedimento onde movimento e progresso so dados; seno o desenvolvimento passa por cima da normalizao jurdica. O movente no deve abolir o efeito estabilizador das fixaes obrigatrias; seno a tarefa da ordem fundamental jurdica da coletividade permanece invencvel. (HESSE, 1992, p. 45).

    Todavia, se os processos de mudana das constituies so, por um lado, indispensveis a sua constante atualizao frente realidade, o uso indiscriminado e sem critrios desses mecanismos , por outro lado, nocivo segurana jurdica e pretenso de controle do arbtrio. , em razo disso, que a preocupao de HESSE (1992) volta-se para o estudo dos limites mutao constitucional.

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    A propsito, para o autor, todo processo de mudana constitucional manifesta que as necessidades reais passaram a se valorar acima dos preceitos da constituio positivada (HESSE, 1992).

    Nesse sentido, o autor alerta que a ocorrncia de mutao constitucional j vinha sendo majoritariamente admitida desde a antiga doutrina alem, a partir de meados do sculo XIX, mas que ainda no teriam sido oferecidas explicaes satisfatrias sobre o referido fenmeno, em especial quanto questo da existncia ou no de limites, e em que se baseariam estes, caso existentes.

    O alerta acerca da falta de estudos sobre os parmetros da mutao constitucional feito por doutrinadores at os dias de hoje (PEDRA, 2009). No coincidncia que existam doutrinadores que afirmam ser impossvel fixar limites a tais processos, como o caso do constitucionalista brasileiro Uadi Lammgo BULOS (1997). Segundo BULOS (1997, p. 91), [...] no possvel delimitar os limites da mutao constitucional, porque o fenmeno , em essncia, o resultado de uma atuao de foras elementares, dificilmente explicveis. O autor complementa, ainda, que a nica limitao que poderia existir seria de ordem subjetiva e, portanto, unicamente a cargo da conscincia do intrprete, conforme esclarece:

    [...] as mudanas informais da Constituio no encontram limites em seu exerccio. A nica limitao que poderia existir mas de natureza subjetiva, e, at mesmo, psicolgica seria a conscincia do intrprete de no extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado [...]. Assim, evitar-se-iam as mutaes inconstitucionais, e o limite, nesse caso, estaria por conta da ponderao do intrprete, ao empreender o processo interpretativo que, sem violar os mecanismos de controle da constitucionalidade, adequaria a Lei Mxima realidade social cambiante. inegvel que esse limite subjetivo, consubstanciado no elemento psicolgico da conscincia do intrprete em no violar os parmetros jurdicos, atravs de interpretaes maliciosas e traumatizantes, no pode ser levado s ltimas conseqncias, diante da realidade cotidiana dos diversos ordenamentos constitucionais. (BULOS, 1997, p. 91).

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    Entretanto, segundo HESSE (1992), justamente por serem processos informais de mudana da constituio, protagonizados essencialmente por seus intrpretes, que se revela indispensvel a preocupao com o estudo dos limites s mutaes constitucionais. Para o autor, os tribunais esto submetidos constituio e, por isso mesmo, necessitam

    [...] de parmetros mais claros, que permitam responder pergunta se houve uma mudana da Constituio. [...] Quando faltam tais parmetros, ento no cabe distinguir entre atos constitucionais e inconstitucionais porque a afirmao sempre possvel da existncia de mutao constitucional no pode ser provada, nem refutada. Isso nos obriga a levantar a questo relativa aos limites da mutao constitucional. (HESSE, 1992, p. 84-85, traduo nossa). 5

    Assim, HESSE (1992) considera inaceitvel a ideia de ausncia de limites mutao constitucional. , por isso, que aponta que muito se teria tratado acerca dos limites dos processos formais de mudana da constituio (reforma constitucional), mas pouco acerca dos possveis limites aos processos informais de alterao da constituio (mutao constitucional), embora o estudo destes limites, segundo afirma, vise ao mesmo objetivo: a garantia da constituio, a qual exige o controle e o bloqueio das diversas vias possveis de seu rompimento (HESSE, 1992).

    3.1 CONSIDERAES CONCEITUAIS

    Ao lado da alterao formal da constituio, processo geralmente chamado de reforma constitucional6, existem as

    5 [...] de parmetros lo ms claros posibles que permitan responder a la pregunta de si se h producido en cambio de la Constitucin. [...] Cuando tales parmetros faltan, entonces no cabe distinguir ya entre actos constitucionales e inconstitucionales porque la afirmacin siempre posible de la existncia de una mutacin constitucional no puede probarse ni refutarse. Esto obliga a plantearse la cuestin relativa a los limites de la mutacin constitucional.

    6 No caso da Constituio brasileira de 1988, a reforma constitucional prevista por meio de emendas constituio (art. 60, CR/88) e de reviso constitucional (art. 3,

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    alteraes informais, que se operam sem a mudana do texto normativo, as quais do lugar s mutaes constitucionais. So alteraes chamadas por Canotilho (1993) de transio constitucional ou reviso informal da constituio.

    As inevitveis acomodaes do direito constitucional realidade, desse modo, como tambm lembra Loewenstein (1979), operam-se a partir dessas duas vias reforma constitucional e mutao constitucional. Segundo este autor alemo, o conceito de reforma constitucional tem um significado formal e outro material, sendo em sentido formal a compreenso das normas reguladoras dos rgos e trmites necessrios alterao da constituio e em sentido material o objeto da realizao deste dito procedimento. Por outro lado, as mutaes constitucionais se entendem pelas transformaes na realidade da configurao do poder poltico, da estrutura social ou do equilbrio de interesses, sem que tal transformao se realize no documento da constituio, ou seja, o texto constitucional permanece intacto. Para Loewenstein (1979), este tipo de mutao se d em todos os Estados de constituio escrita e so mais freqentes que as reformas constitucionais formais.

    A par dessas concepes genricas, para o estabelecimento de limites mutao constitucional, HESSE (1992) busca revisitar as delimitaes conceituais do fenmeno.

    O autor ressalva, a princpio, que as mudanas de nfase e alcance das normas constitucionais no significam, necessariamente, mutaes constitucionais, uma vez que muitas dessas mudanas estariam situadas no marco dos ordenamentos constitucionais abertos, flexveis e suscetveis de adequao a circunstncias contingentes (HESSE, 1992).

    HESSE (1992) analisa as concepes dos autores pertencentes ao que chama de antiga doutrina alem. Entre os

    ADCT), a qual foi determinada para ocorrer, uma nica vez, passados um mnimo de cinco anos aps a promulgao da Constituio, e deu azo s Emendas Constitucionais de Reviso n. 1 a 6, todas de 1994.

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    primeiros autores alemes a tratarem do tema das mutaes constitucionais esto os nomes de Paul Laband, Georg Jellinek e Hs Dau-Lin (HESSE, 1992; BULOS, 1997; PEDRA, 2009).

    Paul Laband, aps analisar as constantes mudanas por ele identificadas na Constituio alem de 1871, afirmou que existiriam dispositivos constitucionais que expressam uma espcie de essncia real do direito do Estado, os quais poderiam experimentar uma modificao radical e significativa, sem alterao de seu texto (BULOS, 1997; PEDRA, 2009). Para Laband, conforme noticia HESSE (1992), as mutaes constitucionais ocorreriam a partir de importantes modificaes na situao constitucional do Estado, que no alcanaram expresso na constituio; tratar-se-ia, pois, de uma contradio entre situao constitucional e lei constitucional.

    JELLINEK (1981), seguindo os estudos de Laband, tambm se dedicou ao tema, acrescentando que os processos de mudana da constituio classificar-se-iam pelo critrio da intencionalidade. Para Jellinek, a reforma constitucional seria uma modificao intencional e voluntria da constituio, enquanto que as mutaes constitucionais seriam alteraes da constituio, sem modificao de seu texto, no necessariamente acompanhadas da conscincia de tal modificao (HESSE, 1992). Conforme registra BULOS (1997), JELLINEK afirma que:

    Por reforma da Constituio entendo a modificao dos textos constitucionais produzida por aes voluntrias e intencionadas. E por mutao da Constituio, entendo a modificao que deixa inerte o seu texto, sem mud-lo formalmente, produzida por fatos que no tm que ser acompanhados pela inteno, ou conscincia, de tal mudana. (JELLINEK apud BULOS, 1997, p. 55, traduo nossa).7

    7 Por reforma de la Constitucin entiendo la modificacin de los textos constitucionales produzida por acciones voluntarias e intencionadas. Y por mutacin de la Constitucin, entiendo la modificacin que deja indemme su texto sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompaados por la intencin, o conciencia, de tal mutacin.

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    Posteriormente, Hs Dau-Lin tambm identificou a razo das mutaes constitucionais na separao entre o ordenamento constitucional positivado e a realidade (HESSE, 1992). Concluiu, ainda, que seria o fenmeno de modificao lenta das normas constitucionais e sem interferncia do poder de reforma (BULOS, 1997; PEDRON, 2011).

    HESSE (1992) anota que as concluses da antiga doutrina alem poderiam ser resumidas em duas hipteses: (I) a mutao constitucional ocorreria na modificao lenta e imperceptvel das normas constitucionais, sem alterao de seu texto, e em que lhe fosse outorgado um sentido distinto do originrio; (II) ou na hiptese em que se produzisse uma prxis em contradio com o texto ou com qualquer sentido possvel do texto da constituio, quadro em que se instalaria uma oposio entre a realidade constitucional e a constituio.

    Entretanto, fazendo uma crtica a seus predecessores, HESSE (1992), inicialmente, afirma que no constitui caracterstica do conceito de mutao constitucional o critrio da intencionalidade. Para o autor, o que se poderia dizer que o processo de mutao constitucional, de fato, no implica na necessria conscincia de sua realizao. Todavia, o fator realmente importante a mudana de interpretao, o qual, de todo modo, argumenta HESSE (1992), certamente no passaria despercebido por um intrprete atento.

    Alm disso, o processo de mutao constitucional no deve, tambm, estar ligado ideia de decurso do tempo ou de longevidade da constituio. A mutao constitucional, segundo HESSE (1992), pode ocorrer ao longo de anos ou no decorrer de um curto prazo.

    HESSE (1992) afirma, igualmente, que no se trata de mutao constitucional a hiptese indicada pela antiga doutrina alem em que ocorre uma situao de contradio entre determinada prxis e o texto constitucional (realidade constitucional versus constituio). Neste caso, o que estaria em discusso, esclarece o autor, no seria a mudana de sentido ou

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    de contedo da norma, mas o que uma determinada sociedade entende como prtica materialmente constitucional. Tal situao reclamaria a figura da reforma da constituio. (HESSE, 1992; 1998).

    Em HESSE (1992), portanto, o conceito de mutao constitucional restringe-se hiptese de mudana de contedo da norma constitucional, na qual esta recebe uma significao diferente, compatvel com a elasticidade interpretativa de seu texto, que permanece inerte. Para o autor, a mutao constitucional apenas pode ocorrer no marco traado pelas possibilidades de interpretao do texto da constituio e deve ser encarada como uma mudana de sentido ocorrida no interior da prpria norma constitucional.

    Assim, a partir dessa concepo mutao constitucional como resultado de uma alterao ocorrida no interior da norma , que HESSE (1992) elabora os parmetros para a identificao dos limites mutao constitucional.

    3.2 LIMITES MUTAO CONSTITUCIONAL: MUDANA NO INTERIOR DA NORMA

    Fixado o conceito proposto por HESSE (1992), o ponto de partida da sua contribuio para o estabelecimento de limites mutao constitucional, consiste na compreenso de que a modificao do sentido da norma deve ser compreendida como uma mudana no interior da prpria norma; no, porm, como consequncia de fatores produzidos fora da normatividade da constituio.

    HESSE (1992) parte da ideia do carter cointegrante da realidade norma, concebida na teoria estruturante do direito, desenvolvida por seu contemporneo e discpulo Friedrich Mller.

    Conforme a teoria estruturante do direito, a realidade, na medida em que afetada pelo ordenamento normativo, elemento integrante e constitutivo da prpria norma (HESSE, 1992; MLLER, 2009). Esclarece MLLER que:

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    No direito constitucional evidencia-se com especial nitidez que uma norma jurdica no um juzo hipottico isolvel diante do seu mbito de regulamentao, nenhuma forma colocada com autoridade por cima da realidade, mas uma interferncia classificadora e ordenadora a partir da estrutura material do prprio mbito social regulamentado. Correspondentemente, elementos normativos e empricos do nexo de aplicao e fundamentao do direito que decide o caso no processo da aplicao prtica do direito provam ser multiplamente interdependentes e com isso produtores de um efeito normativo de nvel hierrquico igual. (MLLER, 2010, p. 58).

    Nesse sentido, a norma e o seu texto no so realidades idnticas. E, da mesma forma, o texto da norma no contm a normatividade e a sua estrutura material concreta. Ele dirige e limita as possibilidades legtimas e legais da concretizao materialmente determinada do direito no mbito do seu quadro (MLLER, 2010, p. 57).

    Como explica Rodolfo Viana PEREIRA:

    Para ele [Mller], a norma no se identifica com o texto do preceito jurdico, mas o resultado de um processo de concretizao, metodologicamente estruturado, em que atuam outros elementos definidores da normatividade, notadamente, as circunstncias fticas relacionadas ao caso concreto. (PEREIRA, 2001, p. 166).

    Na teoria estruturante do direito, desse modo, a norma jurdica concebida como um modelo estruturado. Sua estrutura compreendida pelo programa da norma e pelo mbito da norma. O programa da norma ou programa normativo refere-se ao teor literal da prescrio; , em outros termos, a ordem jurdica tradicionalmente compreendida. O mbito da norma (ou mbito normativo ou, ainda, domnio da norma), por sua vez, o recorte da realidade social na sua estrutura bsica, que o programa da norma escolheu para si ou em parte criou para si como seu mbito de regulamentao [...] (MLLER, 2010, p. 57-58).

    Assim, a realidade regulada pela norma, que compe o mbito normativo, a partir da delimitao feita pelo programa

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    normativo, elemento integrante da norma, em mesmo nvel hierrquico que o programa (MLLER, 2010).

    MLLER (2010) observa que ao ser fator co-constitutivo da normatividade, o mbito da norma no se confunde com os pormenores materiais da conjuno ftica. O programa da norma extrai o mbito da norma da totalidade dos fatos e circunstncias sociais afetadas pela prescrio jurdica a qual corresponde. Significa dizer que [...] em virtude da sua conformao jurdica e da sua seleo pela perspectiva do programa da norma, o domnio da norma transcende a mera faticidade de um recorte da realidade extrajurdica (MLLER, 2010, p. 59).

    Segundo MLLER (20010, p. 59), o mbito normativo no [...] uma soma de fatos, mas um nexo formulado em termos de possibilidade real de elementos estruturais que so destacados da realidade social na perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma. A realidade regulada entra, portanto, no horizonte visual de composio da norma jurdica no enfoque indagativo determinado pelo programa da norma.

    HESSE (1992), baseando-se nas concepes da teoria estruturante do direito, identifica que, se a norma integrada pelos dados da realidade que compem o mbito normativo, as modificaes ocorridas no interior desse mbito logicamente levaro a uma alterao no contedo da norma jurdica. E, apenas quando a modificao for verificada dentro desse domnio, que poderia ocorrer uma mutao constitucional.

    Nesse sentido, nem toda mudana ftica levar modificao do mbito normativo e, assim, a uma mutao constitucional, pois o que decide se certa modificao na ordem ftica relevante ou no para o contedo da norma a moldura extrada pela interpretao de seu texto (HESSE, 1992). Isso significa que, apenas na medida em que determinada alterao ftica pertencer ao mbito selecionado pelo programa normativo, que se pode dizer que h uma mudana informal no contedo de aplicao da norma constitucional, conforme esclarece HESSE:

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    [...] se a norma abarca os dados da realidade afetados pelo programa normativo como parte material integrante dela mesma, o mbito normativo, as modificaes deste ltimo devem levar a uma modificao de contedo da norma. Nem todo fato novo pertencente ao setor da realidade regulada pela norma, o mbito objetivo, capaz de provocar tal modificao. A instncia que decide se a alterao ftica pode ser relevante para a norma, dizer, se o fato modificado pertence ao mbito normativo, o programa normativo que se contm substancialmente no texto da norma. [...] Apenas se este fato novo e modificado pertencer ao mbito normativo, que se pode aceitar uma mudana da norma. (HESSE, 1992, p. 100-101, traduo nossa).8

    As alteraes sociais, portanto, s devem ser consideradas relevantes para o contedo da norma e desencadeadoras de uma mutao constitucional, na medida em que compuserem o seu mbito normativo, conforme as possibilidades de interpretao do texto da norma.

    Assim, uma vez que a mutao constitucional a alterao ocorrida dentro do mbito da norma, que extrado pelo texto normativo, sob este marco o texto da norma que se fixam os limites ao fenmeno (HESSE, 1992). O texto normativo deve ser encarado, desse modo, no apenas como limite mutao constitucional, mas tambm como parmetro para a interpretao constitucional como um todo, pois a amplitude das possibilidades de compreenso do texto delimita o campo de suas possibilidades tpicas. (HESSE, 1998, p. 70).

    Quanto aos limites interpretao constitucional, em funo do texto normativo, com preciso, tambm afirma STRECK:

    8 [...] si la norma abarca los datos de la realidad afectados por el programa normativo como parte material integrante de la misma, el mbito normativo, las modificaciones de este ltimo deben llevar a una modificacin de contenido de la norma. No todo hecho nuevo pertenenciente al sector de la realidad regulado por la norma, el mbito objetivo, es capaz de provocar tal modificacin. La instancia que decide se el hecho modificado pertenece al mbito normativo es el programa normativo que se contiene sustancialmente en el texto de la norma constitucional. [..] Slo en tanto este hecho nuevo o modificado resulte perteneciente al mbito normativo puede aceptarse tambin su cambio de la norma.

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    A afirmao a norma sempre produto da interpretao do texto, ou que o o intrprete sempre atribui sentido (Sinngerburg) ao texto, nem de longe pode significar a possibilidade deste o intrprete poder dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, atribuindo sentido de forma arbitrria aos textos, como se texto e norma estivessem separados (e, portanto, tivessem existncia autnoma). (STRECK, 2004, p. 122).

    No por coincidncia, que HESSE (1992) afirma que provar em cada caso se houve ou no uma alterao significativa no mbito normativo de uma norma constitucional mais rigoroso e, sem dvida, constitui um critrio para a aceitao de mutaes constitucionais, do que a simples argumentao genrica acerca das demandas da realidade ftica ou das necessidades essenciais do Estado.

    A concepo do texto normativo como critrio limitador significa dizer, portanto, que somente h mutao constitucional, quando a alterao na realidade regulada pela norma opera-se de modo compatvel com o espectro interpretativo do texto. Por outro lado, na medida em que essa nova realidade regulada transborda do halo de compreenso do texto da norma, j no se pode mais falar em mutao constitucional. Nas palavras de HESSE (1992):

    Onde a possibilidade de uma compreenso lgica do texto da norma termina ou onde uma determinada mutao constitucional apareceria em clara contradio com o texto da norma, concluem-se as possibilidades de interpretao da norma e, com isso, as possibilidades de uma mutao constitucional. (HESSE, 1992, p. 101-102, traduo nossa).9

    Nota-se, assim, que, na situao em que uma alterao do mbito da norma constitucional aparecer em clara contradio

    9 Donde la posibilidad de una comprensin lgica del texto de la norma termina o donde una determinada mutacin constitucional aparecera en clara contradiccin con el texto de la norma, concluyen las possibilidades de interpretacin de la norma y, con ello, las possiblidades de una mutacin constitucional.

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    com o seu texto, tal modificao no pode ser considerada uma mutao constitucional vlida ou aceitvel. , pelo mesmo motivo, que HESSE (1992) rejeita a ocorrncia de mutao constitucional na hiptese do exerccio de prtica contrria constituio positivada, conforme propunha a antiga doutrina alem.

    Alm disso, refutam-se, tambm, posies como as dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes e Eros Grau, expressas no julgamento da Reclamao n. 4335/AC10, para os quais a mutao constitucional decorreria da corroso da norma constitucional em face da realidade ou de um conflito entre a Constituio formal e a Constituio material.

    O aparecimento de uma nova interpretao, ou at mesmo de uma prtica social, em claro conflito com a compreenso do texto de uma determinada norma constitucional, ensejaria, na verdade, um quadro de inconstitucionalidade. Tratar-se-ia de um rompimento da constituio ou, conforme preferem alguns doutrinadores, de uma mutao inconstitucional (BULOS, 1997; PEDRA, 2009):

    [...] a mutao inconstitucional assume uma dimenso que abrange o que a doutrina chama de falseamento da Constituio ou quebrantamento (ou quebramento) da Constituio. Pedra de

    10 A Reclamao n. 4335/AC insurgiu-se contra deciso judicial que negou progresso de regime a condenados por crime hediondo, sob o fundamento de que a inconstitucionalidade do art. 2, 1, da Lei n. 8.072/1990, declarada no Habeas Corpus n. 82.959, do STF, foi reconhecida em deciso com efeitos apenas inter partes, pois proferida em mbito de controle difuso de constitucionalidade. Para a deciso judicial reclamada, a inconstitucionalidade do referido dispositivo somente teria efeitos erga omnes, caso o Senado Federal retirasse a sua eficcia, nos termos do art. 52, X, da CR/88. Nesse julgamento, os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau assinalaram, em seus votos, que no caso se tratava de uma mutao constitucional do referido dispositivo, de modo que se deveria conferir efeitos erga omnes tambm s inconstitucionalidades reconhecidas em controle difuso de inconstitucionalidade. As informaes acerca dos votos j proferidos foram colhidas na tese intitulada A Mutao Constitucional na Crise do Positivismo Jurdico: histria e crtica do conceito no marco da teoria do direito como integridade, de Flvio Barbosa Quinaud Pedron, publicada em 2011. At o momento de finalizao deste artigo, o julgamento da Reclamao n. 4335/AC, do STF, ainda no havia sido concludo, estando os autos aguardando julgamento aps o pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski, conforme verificado no stio eletrnico do STF, em 15.10.2012.

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    Veja conceitua falseamento da Constituio como o o fenmeno em virtude do qual se outorga a certas normas constitucionais uma interpretao e um sentido distintos dos que realmente tm. (PEDRA, 2009, p. 300).

    Ressalta-se, todavia, que seguindo um rigor conceitual, sequer poderia se admitir a figura da mutao inconstitucional nesses casos, pois, para HESSE (1997, p. 51), [...] no existe realidade constitucional contra constitutionem. Se uma suposta mutao constitucional no ocorre dentro do marco traado pelo texto da norma, o que ocorre o fenmeno do rompimento constitucional, e no mutao constitucional ou inconstitucional. A interpretao ou prtica que transborda do marco textual revela, na verdade, um descompasso entre a realidade e a constituio escrita, ou seja, um conflito entre o que se deseja como constituio e o que ela positivamente (realidade constitucional x constituio escrita). Tal situao deve abrir espao para um procedimento de reforma. Comenta HESSE que:

    Sob modificao constitucional entendido aqui exclusivamente a modificao do texto da Constituio. Ela deve ser distinguida do rompimento constitucional, isto , o desvio do texto em cada caso particular (sem modificao do texto), como na prtica estatal da Repblica de Weimar, sob o pressuposto da realizao das maiorias necessrias para modificaes constitucionais, foi considerado como admissvel. (HESSE, 1997, p. 46).

    As mutaes constitucionais, logicamente, em virtude da amplitude e abertura de muitas disposies da constituio, podem assumir sentidos diferentes em torno de um mesmo dispositivo, ao longo da prtica constitucional de um Estado (HESSE, 1992). A situao problemtica11 comea, contudo,

    11 Na obra de Hesse, as referncias ao termo problema e expresso situao problemtica esto ligadas ao estudo da tpica em Thedor Viehweg, segundo o qual: O aspecto mais importante na anlise da tpica constitui a constatao de que se trata de uma tcnica do pensamento que est orientada para o problema. [...] A tpica pretende proporcionar orientaes e recomendaes sobre o modo como se deve comportar numa determinada situao caso no se queira restar sem esperana.

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    onde terminam as possibilidades de uma mutao constitucional. Onde o intrprete passa por cima da Constituio, ele no mais interpreta, seno ele modifica ou rompe a Constituio (HESSE, 1998, p. 69-70).

    Um quadro de rompimento da constituio, portanto, deve ser sempre evitado ou encarado como provisrio, caso no seja possvel preservar uma fidelidade hermenutica compreenso textual da constituio, frente a alteraes emergentes da realidade (HESSE, 1998). Tais rompimentos inevitveis devem ser acompanhados o mais rpido possvel de procedimentos de reforma pelo Poder Constituinte.

    Ressalta-se, por fim, que o estabelecimento do texto da constituio, como barreira limtrofe para a sua interpretao e, consequentemente, para as mutaes constitucionais, deve ser encarado sistematicamente. Isto , os limites e possibilidades de mutao constitucional vo at onde permitir a elasticidade do texto constitucional (PEDRA, 2009).

    O estabelecimento desse marco, para HESSE (1992), permite a manuteno de funes essenciais da constituio, em especial as de estabilizao, racionalizao e limitao do poder, pois so funes que exigem, dentro de um sistema constitucional escrito, vinculao ao texto normativo.

    HESSE (1992) consciente, por outro lado, que a fixao do texto como limitao s mutaes constitucionais no significa uma segurana absoluta. Pelo contrrio, a delimitao do campo de elasticidade textual da norma depende sempre do esforo argumentativo. Alis, justamente por no ser a constituio um sistema concludo e uniforme que ela requer um procedimento de concretizao vinculado aos traos objetivos da norma (texto normativo), no qual se encontrem pontos de vista dirigentes e

    Essa constitui-se, portanto, a tcnica do pensar problematicamente. (VIEHWEG, 2008, p. 33-34). Para o autor, em linhas gerais, o nome problema se d questo que consinta aparentemente mais de uma resposta e que pressuponha uma compreenso provisria (VIEHWEG, 2008, p. 34).

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    299Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 62, pp. 275 - 303, jan./jun. 2013

    balizadores das decises, to evidentes quanto possvel (HESSE, 1998).

    No obstante, HESSE (1992) convicto que, ao se con-siderar o texto da norma como limite mutao constitucional, ter-se- alcanado uma garantia, mesmo que no absoluta. Alm disso, alerta que tal garantia no limita a capacidade de adaptao da constituio ao ponto de impedi-la de responder s contingncias histricas. As dificuldades decorrentes da sub-misso da realidade cambiante aos limites do texto normativo podero levar reforma constitucional soluo que servir clareza e preservao normativa da constituio, afastando o uso constante de concretizaes ofensivas ao sentido razovel de seus dispositivos (HESSE, 1992).

    4. CONCLUSO

    Konrad Hesse desenvolveu, como visto, importantes contribuies para a afirmao da fora normativa da constituio e para o estudo dos limites mutao constitucional.

    Dentre os diversos temas aos quais se dedicou ao escrever acerca do direito e hermenutica constitucional, o autor buscou afirmar, com especial destaque, o carter normativo da constituio jurdica, ou seja, do compromisso escrito de um determinado pas, em relao aos fatores reais do poder. HESSE (1991) contrape-se a posies como a de Ferdinand LASSALE (1997), para quem os fatores reais de poder de uma sociedade constituem o que este chama de constituio real, a qual afirma que seria a verdadeira fonte de regulao social de um pas. Para LASSALE (1997), a constituio jurdica teria fora vinculante at onde correspondesse constituio real.

    HESSE (1991) demonstra, entretanto, que no obstante a inegvel influncia da realidade sobre o ordenamento jurdico, este no deixa de ser fator de regulao desta mesma realidade, muito menos seria a constituio um mero pedao de papel,

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    como afirmou LASSALE (1997). Pelo contrrio, imanente formulao e vigncia da constituio jurdica o seu carter normativo, voltado a ordenar e conformar a realidade poltica e social.

    Desse modo, conforme HESSE (1991), a constituio jurdica condicionada, mas tambm fora condicionante da realidade. E, segundo o autor, essa fora normativa se amplia na medida em que atende duas grandes condies.

    A primeira condio consiste justamente em que quanto mais a constituio jurdica conseguir instalar uma relao de condicionamento recproco com a realidade, mais ser fator determinante desta. A pretenso de normatividade constitucional somente ter xito se levar em considerao as condies fticas, naturais, tcnicas, econmicas e sociais do Estado a que se refere. HESSE (1991) destaca que, dentro dessas condies fticas, deve a constituio estar atenta, inclusive, aos contedos espirituais enraizados em um povo: opinies e valoraes sociais que influenciam na compreenso e reconhecimento da autoridade das normas jurdicas. Tal arranjo inteligente entre a constituio jurdica e a realidade apontado pelo autor como fator de possibilidade e, ao mesmo tempo, limite da fora normativa da constituio.

    A segunda condio apontada por HESSE (1991), quanto fora normativa da constituio, a presena necessria do que ele chama de vontade de constituio, isto , a atitude de todos os participantes da vida constitucional de um pas, a fim de fazer valer a constituio frente realidade regulada.

    Assim, HESSE (1991) afirma que se, por um lado, a correlao entre o ordenamento constitucional e a situao histrica do tempo presente determina as possibilidades e, da mesma forma, os limites da fora normativa da constituio, por outro lado, ressalta que a presena de vontade de constituio, a qual integra a prpria vida social de um pas, capaz de ampliar consideravelmente tais limites e, consequentemente, o alcance

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    imperativo do ordenamento constitucional. Tal alcance, observa o autor, ser medido com maior preciso em tempos de crise.

    HESSE (1992) ressalva, todavia, que a fora normativa da constituio limitada e que o direito constitucional deve ser consciente desses limites, pois dependem de um esforo contnuo por parte da coletividade. Deve existir a constante conscincia de que a fora normativa da constituio no se encontra assegurada a priori, mas trata-se de um projeto conjunto que somente com a observncia de certas condies e pressupostos poder se consolidar.

    Quanto ao segundo tema abordado no presente trabalho, buscou-se investigar a contribuio de HESSE (1992) para o estudo dos limites mutao constitucional, questo que, alis, constitui elemento necessrio preservao da prpria fora normativa da constituio.

    O autor reconhece que os processos informais de alterao da constituio so inerentes e necessrios aos ordenamentos constitucionais, como fator de adequao perante as constantes mudanas sociais. Todavia, considera inadmissvel a ideia de inexistirem limites a tal fenmeno, haja vista a preocupao com os limites mutao constitucional caminhar em direo ao mesmo objetivo da fixao de limites ao poder de reforma constitucional, a saber: a garantia da preservao da constituio contra as diversas vias de seu rompimento.

    Em HESSE (1992), as mutaes constituio so alteraes de sentido das normas constitucionais, sem a modificao de seu texto, resultantes de mudanas ocorridas no interior da prpria norma.

    O autor recorre teoria estruturante do direito de Friedrich Mller, para a qual a norma jurdica composta do programa da norma, que se refere ao aspecto literal, e do mbito da norma, que o recorte da realidade regulada pela norma, selecionado por aquele (programa da norma). Assim, segundo HESSE ( 1992), as mutaes constitucionais decorrem

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    302 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 62, pp. 275 - 303, jan./jun. 2013

    de alteraes ocorridas dentro do espectro do mbito normativo, conforme as compreenses possveis extradas a partir do programa normativo, ou seja, do texto da norma.

    Dessa forma, na obra de HESSE (1992), o texto da norma se revela como limite inicial aos processos de mutao constitucional. Se a alterao na realidade no pode ser conciliada com as compreenses possveis e razoveis do texto da norma, transbordando, assim, do mbito normativo, esgotam-se as possibilidades de mutao constitucional e, consequentemente, fixado est o seu limite.

    Assim, para HESSE (1997), nas situaes em que, diante de necessidades urgentes da sociedade, no for possvel preservar a razoabilidade de sentido do texto da norma, devem tais situaes ser tratadas como casos provisrios de ruptura constitucional, em relao aos quais deve haver um esforo de atualizao da constituio por parte da comunidade e dos legisladores. Esse esforo, necessrio a todos, preservar no s a clareza das normas constitucionais, como levar a srio a sua funo limitadora do poder.

    A fixao do texto da constituio como limite s mutaes constitucionais no constitui um marco absoluto, ressalva HESSE (1992), mas certamente ter-se- uma garantia contra atuaes interpretativas banalizantes dos preceitos constitucionais.

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  • Iara Menezes Lima e Joo Andr Alves Lana

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    Recebido em 15/10/2012.

    Aprovado em 26/02/2013.