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LÍNGUA, CULTURA E PENSAMENTO DEUTSCHER, Guy. “Crying Whorf” e “Where the Sun Doesn’t Rise in the East”, in Through the Language Glass: Why the World Looks Different in Other Languages. New York, Metropolitan Books, 4565, pp. 647!"#. Tradução: Marcos Bagno, janeiro de !"#$. Para uso particular. Reprodução proibida. [!. Crying Whorf] Em $%&’, Edward Sapir, a lanterna de proa da linguística americana, não alimentava nenhuma ilusão acerca da atitude dos leigos com relação à sua disciplina: “O homem de inteligência normal tem algo como um desdém pelos estudos linguísticos, convencido que é de que nada pode ser mais inútil. A utilidade mínima que ele lhes concede é de natureza puramente instrumental. Vale a pena estudar francês porque há livros franceses que vale a pena ler. Vale a pena estudar grego se é que vale porque algumas peças e algumas passagens em verso, escritas nesse vernáculo curioso e extinto, ainda têm o poder de perturbar nossos corações se é que de fato têm. Quanto ao resto, existem excelentes traduções... Mas quando Aquiles lamentou a morte de seu amado Pátroclo e Clitemnestra cometeu seus piores atos, o que é que temos a ver com os aoristos gregos deixados em nossas mãos? Existe um modo tradicional de proceder que os organiza em padrões. Ele se chama gramática. O homem encarregado da gramática e chamado de gramático é visto por todos os homens comuns como um pedante frígido e desumanizado”. Aos olhos de Sapir, no entanto, nada poderia estar mais distante da verdade. O que ele e seus colegas faziam nem remotamente se parecia com a pedante separação de subjuntivos de aoristos, de ablativos mofados de instrumentais enferrujados. Os linguistas estavam fazendo descobertas cruciais, capazes até de mudar as visões de mundo. Um vasto terreno inexplorado estava sendo aberto, as línguas dos índios norteamericanos, e o que se revelava ali tinha o poder de pôr de pontacabeça doutrinas milenares sobre os modos naturais de organização do pensamento e das ideias. Pois os índios se exprimiam de maneiras inimaginavelmente estranhas e demonstravam, com isso, que muitos aspectos das línguas conhecidas, que até então eram considerados simplesmente como naturais e universais, de fato não passavam de meros acidentes das línguas europeias. O estudo aprofundado do navajo, do nootka, do paiute e de uma coleção de outras línguas nativas catapultou Sapir e seus colegas a alturas vertiginosas, de onde puderam então espiar as línguas do Velho Mundo como as pessoas que veem pela primeira vez do avião o terreno de sua casa e de repente o reconhecem como um simples retalho numa paisagem ampla e variada. A experiência foi inebriante. Sapir a descreve como a libertação daquilo que “acorrenta a mente e entorpece o espírito... a aceitação canina de absolutos”. E seu aluno em Yale, Benjamin Lee Whorf, se entusiasmou: “Já não poderemos ver uns poucos dialetos recentes da família indoeuropeia... como o ápice da evolução da mente humana. Eles, e junto com eles nossos próprios processos mentais, já não

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LÍNGUA,  CULTURA  E  PENSAMENTO  

 

DEUTSCHER,  Guy.  “Crying  Whorf”  e  “Where  the  Sun  Doesn’t  Rise  in  the  East”,  in  Through  the  Language  Glass:  Why  the   World   Looks   Different   in   Other   Languages.   New   York,   Metropolitan   Books,   4565,   pp.   647-­‐!"#.   Tradução:  Marcos  Bagno,  janeiro  de  !"#$.  Para  uso  particular.  Reprodução  proibida.  

[!.  Crying  Whorf]  

Em  $%&',  Edward  Sapir,  a  lanterna  de  proa  da  linguística  americana,  não  alimentava  nenhuma  ilusão  acerca  da  atitude  dos  leigos  com  relação  à  sua  disciplina:  “O  homem  de   inteligência   normal   tem   algo   como   um   desdém   pelos   estudos   linguísticos,  convencido  que  é  de  que  nada  pode  ser  mais  inútil.  A  utilidade  mínima  que  ele  lhes  concede  é  de  natureza  puramente  instrumental.  Vale  a  pena  estudar  francês  porque  há  livros  franceses  que  vale  a  pena  ler.  Vale  a  pena  estudar  grego  —  se  é  que  vale  —  porque   algumas   peças   e   algumas   passagens   em   verso,   escritas   nesse   vernáculo  curioso  e  extinto,   ainda   têm  o  poder  de  perturbar  nossos   corações  —  se  é  que  de  fato   têm.   Quanto   ao   resto,   existem   excelentes   traduções...   Mas   quando   Aquiles  lamentou  a  morte  de  seu  amado  Pátroclo  e  Clitemnestra  cometeu  seus  piores  atos,  o  que  é  que  temos  a  ver  com  os  aoristos  gregos  deixados  em  nossas  mãos?  Existe  um  modo  tradicional  de  proceder  que  os  organiza  em  padrões.  Ele  se  chama  gramática.  O  homem  encarregado  da  gramática  e   chamado  de  gramático  é  visto  por   todos  os  homens  comuns  como  um  pedante  frígido  e  desumanizado”.  

Aos  olhos  de  Sapir,  no  entanto,  nada  poderia  estar  mais  distante  da  verdade.  O  que  ele  e  seus  colegas  faziam  nem  remotamente  se  parecia  com  a  pedante  separação  de  subjuntivos   de   aoristos,   de   ablativos   mofados   de   instrumentais   enferrujados.   Os  linguistas  estavam  fazendo  descobertas  cruciais,  capazes  até  de  mudar  as  visões  de  mundo.   Um   vasto   terreno   inexplorado   estava   sendo   aberto,   as   línguas   dos   índios  norte-­‐americanos,   e   o   que   se   revelava   ali   tinha   o   poder   de   pôr   de   ponta-­‐cabeça  doutrinas  milenares  sobre  os  modos  naturais  de  organização  do  pensamento  e  das  ideias.   Pois   os   índios   se   exprimiam   de   maneiras   inimaginavelmente   estranhas   e  demonstravam,  com  isso,  que  muitos  aspectos  das  línguas  conhecidas,  que  até  então  eram  considerados  simplesmente  como  naturais  e  universais,  de  fato  não  passavam  de   meros   acidentes   das   línguas   europeias.   O   estudo   aprofundado   do   navajo,   do  nootka,  do  paiute  e  de  uma  coleção  de  outras  línguas  nativas  catapultou  Sapir  e  seus  colegas   a   alturas   vertiginosas,   de   onde   puderam   então   espiar   as   línguas   do   Velho  Mundo  como  as  pessoas  que  veem  pela  primeira  vez  do  avião  o  terreno  de  sua  casa  e  de  repente  o  reconhecem  como  um  simples  retalho  numa  paisagem  ampla  e  variada.  A   experiência   foi   inebriante.   Sapir   a   descreve   como   a   libertação   daquilo   que  “acorrenta  a  mente  e  entorpece  o  espírito...  a  aceitação  canina  de  absolutos”.  E  seu  aluno   em   Yale,   Benjamin   Lee  Whorf,   se   entusiasmou:   “Já   não   poderemos   ver   uns  poucos   dialetos   recentes   da   família   indo-­‐europeia...   como   o   ápice   da   evolução   da  mente   humana.   Eles,   e   junto   com   eles   nossos   próprios   processos  mentais,   já   não  

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podem  ser   considerados   como  a   gama   completa  do   raciocínio   e  do   conhecimento,  mas  somente  como  uma  constelação  numa  galáxia  em  expansão”.    

Foi  difícil  não   se  deixar  arrastar  por  essa  visão.   Sapir   e  Whorf   se   convenceram  de  que   as   profundas   diferenças   entre   as   línguas   deviam   ter   consequências   que   iam  muito   além   da   organização   gramatical   e   tinham   de   se   relacionar   com   profundas  divergências   nos   modos   de   pensar.   E   assim,   naquela   atmosfera   inebriante   de  descobertas,   ganhou   proeminência   uma   ideia   ousada   sobre   o   poder   da   língua:   a  afirmação   de   que   nossa   língua   materna   determina   o   modo   como   pensamos   e  percebemos  o  mundo.  A  ideia  em  si  não  era  nova  —  ela  vinha  pairando  em  estado  bruto   por   mais   de   um   século  —,   mas   foi   destilada   nos   anos   ./01   numa   infusão    poderosa  que  intoxicou  então  uma  geração  inteira.  Sapir  rotulou  essa  ideia  como  o  princípio   do   “relativismo   linguístico”,   equiparando-­‐o   a   nada   menos   do   que   à  revolucionária  teoria  de  Einstein.  As  percepções  que  um  observador  tem  do  mundo  —  assim  rezava  o  adendo  de  Sapir  a  Einstein  —  dependem  não  só  de  seu  quadro  de  referência  inercial  mas  também  de  sua  língua  materna.    

As  páginas  a  seguir  contam  a  história  do  relativismo  linguístico  —  a  história  de  uma  ideia  em  desgraça.  Pois  assim  como  alçou  majestosos  voos  no  início,  assim  também  a  teoria  se  espatifou  clamorosamente,  quando  veio  à  tona  que  Sapir  e,  especialmente,  seu  discípulo  Whorf  atribuíram  consequências  cognitivas  exageradas  ao  que  de  fato  eram  simples  diferenças  de  organização  gramatical.  Hoje  em  dia,  qualquer  menção  ao   relativismo   linguístico   fará  a  maioria  dos   linguistas   se   remexer  desconfortáveis  em  suas  cadeiras,  e  o   termo  “whorfismo”  se   tornou  em  grande  medida  um  paraíso  fiscal  erudito  para  filósofos  místicos,  fantasistas  e  charlatães  pós-­‐modernos.  

Por  que  então  alguém  deveria  se  incomodar  em  contar  a  história  de  uma  ideia  caída  em   desgraça?   O   motivo   não   é   (somente)   bancar   o   esperto   em   retrospectiva   e  mostrar  o  quanto  até  mesmo  pessoas  inteligentes  podem  às  vezes  ser  tolas.  Embora  haja   um   inegável   prazer   em   semelhante   exercício,   o   real   motivo   para   expor   os  pecados  do  passado  é   este:   embora  as   impetuosas  alegações  de  Whorf   fossem  em  grande  medida   lorotas,  vou   tentar  convencer  você,  mais  adiante,  de  que  a   ideia  de  que  a  língua  pode  influenciar  o  pensamento  não  deve  ser  descartada.  No  entanto,  se  eu  quiser   fazer  uma  defesa  plausível  de  que  vale  a  pena  salvar  alguns  aspectos  da  ideia  subjacente  e  de  que  a  língua,  ao  fim  e  ao  cabo,  funciona  como  lentes  através  das  quais  percebemos  o  mundo,  essa  missão  de  salvamento  tem  que  passar  ao  largo  de  erros  anteriores.  É  somente  pelo  entendimento  de  por  onde  o  relativismo  linguístico  se  extraviou  que  poderemos  tomar  um  caminho  diferente.  

WILHELM  VON  HUMBOLDT  

A  ideia  do  relativismo  linguístico  não  brotou  do  chão  inesperadamente  no  século  XX.  De  fato,  o  que  aconteceu  em  Yale  —  a  reação  exagerada  dos  que  se  inebriaram  com  uma   paisagem   linguística   de   tirar   o   fôlego  —   foi   uma   reprise   de   um   episódio   do  início  do  século  XIX,  no  auge  do  Romantismo  alemão.  

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O   preconceito   dominante   para   com   o   estudo   de   línguas   não   indo-­‐europeias   que  Edward   Sapir   ironizou   delicadamente   em   3456   não   era   nada   de   que   se   pudesse  zombar  um  século  antes.  Era  simplesmente  a  doutrina  estabelecida  —  não  só  para  o  “homem  de   inteligência   normal”,  mas   também  entre   os   próprios   filólogos  —,   a   de  que   as   únicas   línguas   dignas   de   estudo   sério   eram   o   latim   e   o   grego.   As   línguas  semíticas  como  o  hebraico  e  o  aramaico  de  vez  em  quando  eram  trazidas  à  baila  por  causa  de  sua  importância  teológica,  e  o  sânscrito  vinha  ganhando  (sob  resmungos)  aceitação   no   clube   das   dignidades   clássicas,   mas   unicamente   porque   era   muito  parecido  com  o  grego  e  o  latim.  No  entanto,  mesmo  as  línguas  modernas  da  Europa  ainda  eram  vistas  em  grande  medida  como  meras   formas  degeneradas  das   línguas  clássicas.  Nem  é  preciso  dizer  que  as  línguas  de  tribos  iletradas,  sem  grandes  obras  literárias   ou  quaisquer   outras   características   redentoras,   eram   consideradas   como  desprovidas   de   qualquer   interesse,   jargões   primitivos   tão   imprestáveis   quanto   os  povos  primitivos  que  os  falavam.  

Não  é  que  os  sábios  da  época  não  se  preocupassem  com  a  questão  do  que  é  comum  a  todas  as   línguas.  De   fato,  desde  o  século  XVII  estava  em  voga  a  escrita  de   tratados  eruditos  sobre  a  “gramática  universal”.  Mas  o  universo  dessas  gramáticas  universais  era   bastante   limitado.   Por   volta   de   )*+,,   por   exemplo,   John   Henley   publicou   em  Londres  uma   série   de   gramáticas   chamada  The  Compleat  Linguist;  or,  An  Universal  Grammar   of   All   the   Considerable   Tongues   in   Being.   Todas   as   línguas   existentes  consideráveis  se  resumiam  a  nove:  latim,  grego,  italiano,  espanhol,  francês,  hebraico,  caldeu   (aramaico),   siríaco   (um  dialeto   tardio   do   aramaico)   e   árabe.   Esse   universo  exclusivo   oferecia   uma   perspectiva   um   tanto   distorcida,   já   que  —   como   sabemos  hoje  —   as   variações   entre   as   línguas   europeias   empalidecem   se   comparadas   às  diferenciações   das   línguas   mais   exóticas.   Basta   imaginar   as   ideias   errôneas   que  alguém  poderia  ter  sobre  “religião  universal”  ou  “comida  universal”  se  seu  universo  se   limitasse  à   zona  entre  o  mar  Mediterrâneo  e  o  mar  do  Norte.  A  pessoa  viajaria  pelos   diferentes   países   europeus   e   ficaria   impressionada   com   as   grandes  divergências  entre  eles:  a  arquitetura  das  igrejas  é  inteiramente  diferente,  o  pão  e  o  queijo  não  têm  nem  de   longe  o  mesmo  sabor.  Mas  se  a  pessoa   jamais  se  aventurar  um   pouco  mais   além,   onde   não   existe   igreja   nenhuma,   nem   queijo,   nem   pão,   ela  jamais  se  dará  conta  de  que  essas  diferenças   intraeuropeias  são,  ao   fim  e  ao  cabo,  variações  mínimas  na  religão  que  é  essencialmente  a  mesma  e  na  cultura  culinária,  essencialmente  a  mesma.    

Na   segunda   metade   do   século   XVIII,   a   visão   estava   começando   a   se   ampliar  ligeiramente,   à   medida   que   se   fazia   várias   tentativas   de   compilar   “dicionários  universais”  —   listas  de  palavras  equivalentes  em  línguas  de  diferentes  continentes.  No   entanto,   embora   o   escopo   e   a   ambição   desses   catálogos   crescessem  gradualmente,   eles   não   eram   muita   coisa   além   de   um   bazar   de   curiosidades  linguísticas   exibindo   palavras   esquisitas   e   maravilhosas.   Em   particular,   os  dicionários  se  revelavam  pouco  úteis  para  o  entendimento  da  gramática  de  línguas  exóticas.  Na  verdade,  para  a  maioria  dos  filólogos  da  época,  parecia  obscena  a  ideia  de  que  a  gramática  de  uma  língua  bárbara  fosse  um  objeto  digno  de  estudo.  Estudar  gramática  significava  estudar  grego  ou  latim,  porque  “gramática”  era  a  gramática  do  

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grego  e  do  latim.  Assim,  quando  línguas  remotas  eram  descritas  (não  por  filólogos,  mas  por  missionários  que  precisavam  delas  para  fins  práticos),  a  descrição  consistia  em   geral   de   uma   lista   de   paradigmas   latinos   de   um   lado   e,   do   outro,   as   formas  supostamente   correspondentes   na   língua   nativa.   Era   irrevelante   se   a   língua   em  questão  fazia  ou  não  qualquer  distinção  de  caso  —  o  substantivo  de  todo  modo  seria  devidamente   travestido   em   nominativo,   genitivo,   dativo,   acusativo,   vocativo   e  ablativo.  O  escritor  francês  Simon-­‐Philibert  de  La  Salle  de   l’Étang  demonstrou  esse  esquema  mental  em  seu  dicionário  de  1234  do  galibi,  uma  língua  caribe  hoje  extinta,  ao  se  queixar  de  que  “os  galibis  não  têm  nada  em  sua  língua  que  faça  distinções  de  caso,   para   as   quais   seria   preciso   haver   seis   nas   declinações   de   cada   palavra”.   Tais  descrições  nos  parecem  hoje  paródias  canhestras,  mas  eram  concebidas  em  absoluta  honestidade.  A  noção  de  que  a  gramática  de  uma  língua  indígena  americana  poderia  se  organizar   segundo  princípios   fundamentalmente  diferentes  dos  do   latim  estava  simplesmente   fora   do   horizonte   intelectual   dos   autores.   O   problema   era   mais  profundo   do   que   entender   um   aspecto   particular   da   gramática   de   uma   língua  particular   do   Novo   Mundo:   muitos   dos   missionários   nem   sequer   entendiam   que  havia  algo  ali  para  se  entender.  

Eis   que   surge   Wilhelm   von   Humboldt   (6787-­‐!"#$),   linguista,   filósofo,   diplomata,  reformador   educacional,   fundador   da   Universidade   de   Berlim   e   uma   das   figuras  estelares   do   início   do   século   XIX.   Sua   educação  —   a   melhor   que   o   Iluminismo  alemão   tinha   a   oferecer  —   o   imbuiu   de   uma   admiração   irrestrita   pela   cultura  clássica   e   pelas   línguas   clássicas.   E   até   alcançar   a   idade   de   55   anos,   quase   nada  mostrava   que   um   dia   ele   chutaria   o   balde   ou   que   seus   interesses   linguísticos  pudessem   se   estender   para   além   dos   venerados   latim   e   grego.   Sua   primeira  publicação,   aos   ./   anos,   foi   sobre   Sócrates   e   Platão;   em   seguida,   escreveu   sobre  Homero  e  traduziu  Ésquilo  e  Píndaro.  Uma  vida  feliz  de  erudição  clássica  parecia  se  desdobrar  à  sua  frente.  

Sua  estrada  linguística  para  Damasco  o  levou  através  dos  Pireneus.  Em  9:;;,  viajou  à  Espanha   e   foi   arrebatado   pelo   povo   basco,   sua   cultura   e   sua   paisagem.   Acima   de  tudo,   porém,   foi   a   língua   dos   bascos   que   excitou   sua   curiosidade.   Ali   estava   uma  língua   falada   em   solo   europeu,   mas   em   nada   semelhante   às   demais   línguas  europeias  e  claramente  oriunda  de  outra  cepa.  De  volta  da  viagem,  Humboldt  passou  meses   lendo   tudo  o  que  pudesse   encontrar   sobre  os  bascos,  mas,   como  não  havia  muita  coisa  que  lhe  desse  informação  confiável,  ele  retornou  aos  Pireneus  para  fazer  trabalho   de   campo   sério   e   aprender   a   língua   de   primeira  mão.   À  medida   que   seu  conhecimento   se  aprofundava,   ele  percebeu  a  extensão  com  que  a  estrutura  dessa  língua  —  muito  mais  do  que  apenas  seu  vocabulário  —  divergia  de  tudo  o  que  ele  sabia   e  do  que   até   então   considerava   como  a  única   forma  natural   de   gramática.  A  revelação  gradualmente  lhe  fez  ver  que  nem  todas  as  línguas  eram  feitas  à  imagem  do  latim.  

Uma   vez   despertada   sua   curiosidade,   Humboldt   tentou   encontrar   descrições   de  línguas   ainda   mais   remotas.   Não   havia   quase   nada   publicado   na   época,   mas   a  oportunidade  para  descobrir  mais  se  apresentou  quando  ele  se  tornou  o  enviado  da  

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Prússia  junto  ao  Vaticano  em  1234.  Roma  estava  fervilhando  de  missionários  jesuítas  que   tinham   sido   expulsos   de   suas   missões   na   América   do   Sul   espanhola   e   a  Biblioteca  do  Vaticano  continha  diversos  manuscritos  com  descrições  de  línguas  sul-­‐  e   centro-­‐americanas   que   aqueles   missionários   trouxeram   consigo   ou   escreveram  uma  vez  de  volta  a  Roma.  Humboldt  mergulhou  nessas  gramáticas  e,  com  os  olhos  agora  aguçados  graças  à  sua  experiência  com  o  basco,  pôde  discernir  o  quanto  era  distorcido   o   quadro   que   elas   apresentavam:   estruturas   que   se   desviavam   do   tipo  europeu   ou   passavam   despercebidas   ou   eram   obrigadas   a   se   encaixar   no   molde  europeu.   “É   triste   ver”,   escreveu,   “a   violência   que   esses   missionários   exerceram  sobre   si   mesmos   e   sobre   as   línguas   a   fim   de   forçá-­‐las   para   dentro   das   estreitas  regras  do   latim”.  Determinado  a   entender   como  realmente   funcionavam  as   línguas  americanas,   Humboldt   reescreveu   por   completo   várias   daquelas   gramáticas   e,  gradualmente,   a   real   estrutura   das   línguas   emergiu   por   trás   da   fachada   de  paradigmas  latinos.  

Humboldt  colocou  os  linguistas  numa  curva  íngreme  de  aprendizado.  É  claro  que  a  informação  de  segunda  mão  que  ele  pôde  compilar  sobre  as  línguas  ameríndias  não  se   comparava   com   o   profundo   conhecimento   de   primeira   mão   que   Sapir  desenvolveu  um  século  depois.  E  considerando  o  que  hoje  sabemos  sobre  como  se  organizam  as  gramáticas  de  diferentes  línguas,  Humboldt  estava  apenas  arranhando  a   superfície.  Mas   o   pálido   raio   de   luz   que   irradiou   de   seus  materiais   ainda   assim  ofuscava,   por   causa   da   absoluta   escuridão   em   que   ele   e   seus   contemporâneos  tinham  permanecido.    

Para   Humboldt,   a   excitação   de   explorar   novos   terrenos   se   misturou   à   frustração  diante   da   necessidade   de   provar   o   valor   de   suas   descobertas   a   um   mundo  incompreensivo,   que  persistia   em   considerar   o   estudo  de   línguas   primitivas   como  uma   atividade   semelhante   a   colecionar   borboletas.   Humboldt   teve   de   chegar   a  extremos  para   explicar  por  que   as  profundas  dessemelhanças   entre   as   gramáticas  eram   de   fato   uma   janela   para   um   mundo   ainda   mais   amplo.   “A   diferença   entre  línguas”,  argumentou  ele,  “não  é  somente  de  sons  e  signos,  mas  de  visão  de  mundo.  Nisso  se  encontra  a  razão  e  o  objetivo  último  de  todo  o  estudo  da   linguagem”.  Mas  não   era   tudo.   Humboldt   também   alegava   que   diferenças   gramaticais   não   apenas  refletem  diferenças  preexistentes  no  pensamento  mas  que  elas  são  responsáveis  por  moldar  essas  diferenças  já  de  saída.  A  língua  materna  “não  é  somente  o  meio  de  se  representar   uma   verdade   já   reconhecida,   porém,   muito   mais,   de   se   descobrir   a  verdade  que  não  fora  reconhecida  previamente”.   Já  que  a  “língua  é  órgão  formador  do  pensamento”,   tem  que  haver  uma  relação   íntima  entre  as   leis  da  gramática  e  as  leis  do  pensamento.  “O  pensamento”,  concluiu,   “é  dependente  não  só  da   linguagem  em  geral,  mas,  em  certa  medida,  de  cada  língua  individual”.    

Uma  ideia  sedutora  foi  assim  lançada  no  ar,  uma  ideia  que  nos  anos  0123  seria  levada  adiante  (e  adiante  e  adiante)  em  Yale.  O  próprio  Humboldt  jamais  chegou  tão  longe  a  ponto  de  afirmar  que  nossa  língua  materna  pode  constranger  por  completo  nossos  pensamentos  e  nosso  horizonte  intelectual.  Ele  reconheceu  explicitamente  algo  que,  na   algazarra   em   torno   de   Whorf   um   século   depois,   passaria   batido:   que,   em  

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princípio,   qualquer   pensamento   pode   ser   expresso   em   qualquer   língua.   As   reais  diferenças   entre   as   línguas,   argumentava  Humboldt,   não  estão   no   que   uma   língua  pode   expressar   mas,   sim,   no   “que   ela   encoraja   e   estimula   seus   falantes   a   fazer   a  partir  da  própria  força  interna  dela”.    

O   que   é   exatamente   essa   “força   interna”,   que   ideias   precisas   ela   “estimula”   os  falantes  a  formular  e  como,  em  termos  práticos,  ela  faria  isso  são  coisas  que  sempre  permaneceram   um   tanto   vagas   nos   escritos   de   Humboldt.   Como   vamos   ver,   sua  intuição  básica  pode  ter  sido  profunda,  mas,  apesar  do  minucioso  conhecimento  que  ele   acumulou   sobre   várias   línguas   exóticas,   suas   declarações   sobre   o   tema   da  influência  da   língua  materna  sobre  a  mente  sempre  permaneceram  na  estratosfera  mais  alta  das  generalidades  filosóficas  e  nunca  de  fato  desceram  ao  rés  do  chão  dos  detalhes.    

De   fato,  em  suas  volumosas  meditações  sobre  o   tema,  Humboldt   respeitou  os  dois  primeiros   mandamentos   de   qualquer   grande   pensador:   (3)   Serás   vago,   (9)   Não  evitarás   contradizer-­‐te.  Mas  pode   ter   sido  exatamente  essa  vagueza  que   fez  vibrar  uma   corda   entre   seus   contemporâneos.  Na   esteira   de   Humboldt,   entrou   na  moda  agora   entre   os   bons   e   os   grandes   pagar   tributo   à   influência   da   língua   sobre   o  pensamento,   e   na  medida   em   que   ninguém   se   sentia   instado   a   oferecer   qualquer  exemplo  particular,   todos  podiam  se  entregar   livremente  às  metáforas  ressonantes  porém,   em   última   análise,   ocas.   Max   Müller,   renomado   professor   de   filologia   em  Oxford,   declarou   em   /012   que   “as   palavras   com   que   pensamos   são   canais   de  pensamento  que  nós  mesmos  não  cavamos,  mas  encontramos  já  prontos  para  nós”.  E  seu  arqui-­‐inimigo  do  outro  lado  do  Atlântico,  o  linguista  americano  William  Whitney,  pode  ter  rivalizado  com  Müller  em  tudo  o  mais,  porém  mesmo  assim  concordou  que  “cada   língua   individual   tem   seu   próprio   arcabouço   peculiar   de   distinções  estabelecidas,   seus   moldes   e   formas   de   pensamento,   dentro   do   qual,   para   o   ser  humano  que  aprende  essa  língua  como  sua  língua  materna,  é  lançado  o  conteúdo  e  o  produto  de  sua  mente,  seu  estoque  de  impressões...  sua  experiência  e  conhecimento  do  mundo”.   O  matemático   e   filósofo  William  Kingdom   Clifford   acrescentou   alguns  anos   depois   que   “é   o   pensamento   da   humanidade   passada   encaixado   em   nossa  língua  que  faz  a  Natureza  ser  o  que  é  para  nós”.  

Ao   longo   do   século   XIX,   no   entanto,   tais   afirmações   permaneceram   no   nível   do  floreado  retórico  ocasional.  Foi  somente  no  século  XX  que  esses  refrões  começaram  a  ser  destilados  na  forma  de  declarações  específicas  acerca  da  alegada  influência  de  fenômenos   gramaticais   particulares   sobre   a   mente.   As   ideias   humboldtianas  sofreram  então  um  rápido  processo  de   fermentação  e,   à  medida  que  o  espírito  da  nova  teoria  se  tornava  mais  poderoso,  a  retórica  se  tornava  menos  sóbria.  

RELATIVISMO  LINGUÍSTICO  

O  que  havia  no  ar  para  catalisar  essa  reação?  Uma  razão  pode  ter  sido  a  grande  (e  totalmente   justificada)   excitação   em   torno   dos   enormes   avanços   que   os   linguistas  estavam   fazendo  no   entendimento  da  natureza  bizarra  das   línguas   ameríndias.  Os  

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linguistas  na  América  não  precisavam  se  debruçar  sobre  manuscritos  da  Biblioteca  do  Vaticano  para  desencavar   a   estrutura  das   línguas  nativas  do   continente,   já   que  ainda   existiam   dúzias   de   línguas   nativas   vivas   para   serem   estudadas   in   situ.   Mais  ainda:   no   século   que   separava   Sapir   de   Humboldt,   a   ciência   da   linguagem   tinha  experimentado   uma   ascensão   meteórica   em   sofisticação,   e   os   instrumentos   de  análise  à  disposição  dos  linguistas  se  tornaram  incomparavelmente  mais  poderosos.  Quando  esses  instrumentos  avançados  começaram  a  ser  aplicados  a  sério  ao  tesouro  das   línguas   nativas   americanas,   eles   revelaram   paisagens   gramaticais   com   que  Humboldt  jamais  poderia  ter  sonhado.  

Edward  Sapir,  tal  como  Humboldt  um  século  antes,  começou  sua  carreira  linguística  bem   longe   dos   amplos   panoramas   das   línguas   americanas.   Seus   estudos   na  Universidade   Columbia   se   concentravam   em   filologia   germânica   e   consistiam   em  coisas   que   lembravam   as   coleções   pedantes   de   obscuras   formas   vernaculares   que  ele   ironizou   no   trecho   que   citei  mais   acima.   Sapir   creditava   sua   saída  do   armário  empoeirado  da  filologia  germânica  para  as  grandes  paisagens  das  línguas  indígenas  à  influência  de  Franz  Boas,  o  carismático  professor  de  antropologia  de  Columbia  que  também  foi  o  pioneiro  dos  estudos  científicos  das   línguas   indígenas  do  continente.  Anos  mais   tarde,  Sapir   recordaria  um  encontro  que  mudou  sua  vida,  no  qual  Boas  convocava   contraexemplos   tirados   de   várias   línguas   indígenas   para   cada  generalização   acerca   da   estrutura   linguística   em   que   Sapir   até   então   acreditava.  Sapir  começou  a  sentir  que  a  filologia  germânica  lhe  ensinara  pouca  coisa  e  que  ele  ainda   tinha   “tudo   o   que   aprender   sobre   língua”.   A   partir   daí,  passou   a   aplicar   sua  lendária  argúcia  ao  estudo  do  chinook,  navajo,  nootka,  yana,  tlingit,  sarcee,  kutchin,  ingalik,  hupa,  paiute  e  outras  línguas  nativas,  produzindo  análises  de  incomparável  clareza  e  profundidade.  

Além  da  efusividade  de  descobrir  gramáticas  estranhas  e  exóticas,  havia  algo  mais  no  ar  que  levou  Sapir  rumo  à  formulação  de  seu  princípio  do  relativismo  linguístico.  Era   a   guinada   radical   da   filosofia  no   início  do   século  XX.  Na   época,   filósofos   como  Bertrand   Russell   e   Ludwig   Wittgenstein   estavam   deplorando   as   perniciosas  influências   da   língua   sobre   a  metafísica   do   passado.   Russell   escreveu   em   89:;:   “A  língua  nos  extravia  tanto  por  seu  vocabulário  quanto  por  sua  sintaxe.  Temos  de  ficar  alertas   em   ambos   os   casos   para   que   nossa   lógica   não   nos   conduza   a   uma   falsa  metafísica”.    

Sapir  traduziu  as  afirmações  sobre  a  influência  da  língua  nas  ideias  filosóficas  num  argumento   acerca  da   influência   da   língua  materna  nos  pensamentos   e   percepções  cotidianos.  Começou  a  falar  do  “tirânico  domínio  que  a  forma  linguística  tem  sobre  nossa  orientação  no  mundo”  e,  diferentemente  de  qualquer  um  antes  dele,  passou  a  rechear   suas   palavras   de   ordem   com   conteúdo   real.   Em   $%&$,   propôs   o   seguinte  exemplo  de   como  uma  diferença   linguística  específica  deve  afetar  os  pensamentos  dos  falantes.  Quando  observamos  uma  pedra  mover-­‐se  através  do  espaço  na  direção  da  terra,  explicou  Sapir,  dividimos  involuntariamente  esse  evento  em  dois  conceitos  separados:  uma  pedra  e  a  ação  de  cair,  e  declaramos  que  “a  pedra  cai”.  Supomos  que  essa  é  a  única  maneira  de  descrever  tal  evento.  Mas  a  inevitabilidade  da  divisão  em  

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“pedra”   e   “cair”   é   só   uma   ilusão,   porque   a   língua   nootka,   que   é   falada   na   ilha   de  Vancouver,  faz  as  coisas  de  um  jeito  diferente.  Não  existe  verbo  algum  em  nootka  que  corresponda   ao   nosso   verbo   geral   “cair”   e   que   possa   descrever   a   ação  independentemente   de   um   objeto   cadente   específico.   Em   vez   disso,   um   verbo  especial,  “pedrar”,  é  usado  para  se  referir  ao  movimento  de  uma  pedra  em  particular.  Para   descrever   o   evento   de   uma   pedra   caindo,   esse   verbo   é   combinado   com   o  elemento  “para  baixo”.  Assim,  o  estado  de  coisas  que  separamos  em  “pedra”  e  “cair”  é  descrito  em  nootka  por  alguma  coisa  como  “[isso]  pedra  para  baixo”.    

Esses   exemplos   concretos   da   “análise   incomensurável   da   experiência   em   línguas  diferentes”,  diz  Sapir,  “tornam  muito  real  para  nós  um  tipo  de  relatividade  que  está  geralmente   oculta   de   nós   por   nossa   aceitação   ingênua   de   hábitos   de   fala   fixos...  Trata-­‐se  da   relatividade  de   conceitos  ou,   como  podemos   chamá-­‐la,   da   relatividade  da   forma  de  pensamento”.   Esse   tipo  de   relatividade,   acrescenta   ele,   pode   ser  mais  fácil   de   apreender   do   que   a   de   Einstein,   mas   para   entendê-­‐la   são   necessários   os  dados  comparativos  da  linguística.  

Infelizmente  para  Sapir,  foi  exatamente  por  abrir  mão  da  vagueza  aconchegante  dos  chavões   filosóficos   e   se   aventurar   na   fria   correnteza   dos   exemplos   linguísticos  específicos   que   ele   expôs   o   gelo   fino   em   que   se   apoiava   sua   teoria.   A   expressão  nootka  “isso  pedra  para  baixo”  é  sem  dúvida  um  modo  muito  diferente  de  descrever  o   evento   e   decerto   soa   estranha,   mas   será   que   essa   estranheza   significa   que   os  falantes   de   nootka   necessariamente   têm   de   perceber   o   evento   de   um   modo  diferente?   A   fusão   de   verbo   e   nome   em   nootka   implica   necessariamente   que   os  falantes  de  nootka  não  têm  imagens  separadas  da  ação  e  do  objeto  em  suas  mentes?  

Podemos  testar  isso  aplicando  o  argumento  de  Sapir  a  uma  língua  ligeiramente  mais  familiar.   Tome-­‐se   o   português   “chove”.   Essa   construção,   de   fato,   é   bastante  semelhante   à   do   nootka   “[isso]   pedra   para   baixo”,   porque   a   ação   (cair)   e   o   objeto  (gotas  d’água)  estão  combinados  em  um  conceito  verbal.  Mas  nem  todas  as  línguas  fazem  isso  dessa  maneira.  Na  minha  língua  materna  (hebraico),  o  objeto  e  a  ação  são  mantidos   separados   e   a   gente   diz   algo   como   “chuva   cai”.   Assim,   há   uma  profunda  diferença  entre  o  modo  como  nossas  línguas  expressam  o  evento  de  chover,  mas  isso  significa  que  você  e  eu  temos  de  experienciar  a  chuva  de  um  modo  diferente?  Você  sente   que   está   impedido   pela   gramática   de   sua   língua   materna   de   entender   a  distinção  entre  a  substância  líquida  e  a  ação  de  cair?  Acha  difícil  relacionar  as  gotas  d’água  caindo  com  outras  coisas  que  caem?  Ou  as  diferenças  no  modo  como  nossas  línguas   expressam   a   ideia   de   “chover”   não   passam   de   meras   diferenças   na  organização  gramatical?  

Na  época,  ninguém  pensava  em  tropeçar  em  obstáculos  assim.  A  excitação  acerca  da  estranheza   de   expressão  —  amplamente   factual  —  nas   línguas   ameríndias   era   de  certa   forma   tomada   como   suficiente   para   deduzir   as   diferenças  —   amplamente  fictícias  —  nas  percepções   e  pensamentos  dos   falantes.  Na  verdade,   a   festa   estava  apenas  começando,  pois  sobe  ao  palco  agora  o  mais  criativo  dos  discípulos  de  Sapir:  Benjamin  Lee  Whorf.  

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Enquanto  Sapir  ainda  mantinha  alguns  dedos  dos  pés  no  chão  e,  em  geral,  relutava  em  enunciar  a   forma  exata  do  suposto  domínio   tirânico  das  categorias   linguísticas  sobre  a  mente,  seu  discípulo  Whorf  não  sofria  desses  pruridos.  Whorf  se  atreveu  a  ir  aonde  nenhum  homem  tinha   ido  antes  e,  numa  série  de  afirmações  cada  vez  mais  desenfreadas,   ele   expôs   o   poder   de   nossa   língua   materna   de   influenciar   não   só  nossos  pensamentos  e  percepções  como  até  mesmo  a  física  do  cosmo.  A  gramática  de  cada  língua,  escreveu  ele,  “não  é  simplesmente  um  instrumento  reprodutor  para  expressar  ideias,  porém,  bem  mais,  ela  mesma  é  um  moldador  de  ideias,  o  programa  e  o  guia  para  a  atividade  mental  do  indivíduo,  para  sua  análise  de  impressões...  Nós  dissecamos  a  natureza  ao  longo  de  linhas  traçadas  por  nossas  línguas  nativas”.    

A  estrutura  geral  dos  argumentos  de  Whorf   era  mencionar  um  aspecto  gramatical  bizarro   e   então,   com  um   categórico   “portanto”,   “assim”   ou   “por   isso”,   concluir   que  esse   aspecto   tinha   de   resultar   num   modo   diferente   de   pensar.   Com   base   na  frequente   fusão   de   nome   e   verbo   nas   línguas   ameríndias,   por   exemplo,   Whorf  concluiu  que   tais   línguas   impunham  uma  “visão  monística  da  natureza”  em  vez  da  nossa  “divisão  bipolar  da  natureza”.  Eis  como  ele  justificava  semelhantes  afirmações:  “Algumas  línguas  têm  meios  de  expressão  nos  quais  os  termos  separados  não  são  tão  separados   como   em   inglês   mas   fluem   juntos   em   criações   plásticas   sintéticas.   Por  isso,  tais  línguas,  que  não  retratam  o  quadro  do  universo  com  objetos  separados  no  mesmo  grau  do  inglês  e  suas  línguas-­‐irmãs,  apontam  para  possíveis  tipos  novos  de  lógica  e  possíveis  novos  quadros  cósmicos”.    

Se  você  se  sentir  arrebatado  pelo  estilo  do  autor,  basta  lembrar  o  português  “chove”,  que  combina  gotas  de  chuva  e  a  ação  de  cair  em  uma  “criação  plástica  sintética”.  Por  acaso   seu   “quadro   do   universo   com   objetos   separados”   foi   afetado?   Você   e   os  falantes   das   línguas   tipo   “chuva   cai”   operam   sob   um   diferente   tipo   de   lógica   e  diferentes  quadros  cósmicos?  

TEMPO  HOPI  

O   que  mais   surpreende   é   descobrir   que   várias   generalizações   grandiosas   do  mundo   ocidental,  como   tempo,   velocidade   e   matéria,   não   são   essenciais   para   a   construção   de   um   quadro  consistente  do  universo.  (Benjamin  Lee  Whorf,  Science  and  Linguistics)    Até  mesmo  a  cegonha  no  ar  conhece  o  tempo  de  sua  migração.  A  rola,  a  andorinha  e  o  tordo  não  deixam   de   voltar   no   momento   oportuno.   Entretanto,   meu   povo   não   leva   em   conta   a   ordem  estabelecida  pelo  Senhor.  (Jeremias,  +:  -)  

 

Sem  dúvida,  os  mais  eletrizantes  dos  argumentos  de  Whorf  diziam  respeito  a  uma  área  diferente  da  gramática  e  a  uma  língua  diferente:  o  hopi,  do  nordeste  do  Arizona.  Hoje  em  dia,  os  hopi  somam  cerca  de  seis  mil  pessoas  e  são  conhecidos  sobretudo  pela   “dança   da   cobra”,   na   qual   os   bailarinos   dançam   com   cobras   vivas   entre   os  dentes.  As  cobras  são  depois  liberadas  e  espalham  entre  seus  parentes  a  notícia  de  que  os  hopi  estão  em  harmonia  com  o  mundo  espiritual  e  natural.  Mas  Whorf  tornou  os   hopi   conhecidos   por   um   motivo   diferente:   a   língua   hopi,   dizia   ele,   não   tem  

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nenhum  conceito  de  tempo.  Whorf  alegava  ter  feito  um  “longo  e  cuidadoso  estudo”  da  língua  hopi,  embora  de  fato  jamais  tenha  ido  visitá-­‐los  no  Arizona  e  sua  pesquisa  tenha  se  baseado  exclusivamente  em  suas  conversas  com  um   informante  hopi  que  vivia   na   cidade   de  Nova   York.   No   início   de   suas   investigações,  Whorf   argumentou  que  o   tempo   hopi   “tem   zero   dimensão;   isto   é,   não   é   possível   lhe   dar   um   número  maior  do  que  um.  O  hopi  não  diz:  ‘Fiquei  lá  cinco  dias’,  mas  ‘Saí  de  lá  no  quinto  dia’.  Uma  palavra  que   se   refira   a   esse   tipo  de   tempo,   como  a  palavra  dia,   não  pode   ter  plural”.  Desse  fato  ele  concluía  que  “para  nós,  para  quem  o  tempo  é  um  movimento  num  espaço,  a  repetição  invariante  parece  espalhar  sua  força  ao  longo  de  uma  série  de  unidades  desse  espaço  e  ser  disperdiçado.  Para  o  hopi,  para  quem  o  tempo  não  é  um  movimento  mas  um  ‘atrasar-­‐se’  de  tudo  o  que  já  foi  feito,  a  repetição  invariante  não   é   desperdiçada  mas   acumulada”.  Whorf   portanto   considera   “infundado   supor  que   um   hopi   que   só   conhece   a   língua   hopi   e   as   ideias   culturais   de   sua   própria  sociedade   tenha   as  mesmas   noções...   de   tempo   e   espaço   que   nós   temos”.   Os   hopi,  disse  ele,  não  entenderiam  nossa  expressão  “amanhã  é  outro  dia”  porque,  para  eles,  o  retorno  do  dia  é  “sentido  como  o  retorno  da  mesma  pessoa,  um  pouco  mais  velha  porém  com   todas  as  marcas  de  ontem,  não   como   ‘um  outro  dia’,   isto  é,   como  uma  pessoa  inteiramente  diferente”.    

Mas   isso   foi   apenas   o   começo.   À   medida   que   suas   investigações   do   hopi   se  aprofundavam,  Whorf  concluiu  que  suas  análises  anteriores  não  tinham  ido  longe  o  bastante  e  que  a  língua  hopi  de  fato  não  contém  absolutamente  nenhuma  referência  ao   tempo.   O   hopi,   explicou   ele,   não   contém   “palavras,   formas   gramaticais,  construções  ou  expressões  que  se  refiram  diretamente  ao  que  chamamos  de  ‘tempo’,  ou  ao  passado,  ao  presente,  ao  futuro”.  Um  hopi,  portanto,  “não  tem  nenhuma  noção  ou  intuição  geral  de  TEMPO  como  um  suave  fluxo  contínuo  em  que  tudo  no  universo  ocorre  no  mesmo  ritmo”.    

Essa  revelação  espetacular  eclipsou  qualquer  coisa  que  qualquer  pessoa  tivesse  sido  capaz  de  imaginar  até  então  e  atraiu  para  Whorf  a  atenção  do  mundo  todo.  A  fama  de  suas  afirmações  logo  se  espalhou  para  além  da  linguística  e,  em  poucos  anos,  as  ideias   de   Whorf   estavam   em   todos   os   lábios.   Nem   é   preciso   dizer   que,   a   cada  retomada   dessas   ideias,   novos   recordes   eram   batidos.   Um   livro   de   3456   chamado  Some  Things  Worth  Knowing:  A  Generalist’s  Guide  to  Useful  Knowledge  relatava  que  a  língua   inglesa   torna   impossível  para  “nós,   leigos”  entender  o  conceito  científico  do  tempo  como  uma  quarta  dimensão.  Mas  “um  índio  hopi,  pensando  na  língua  hopi  —  que   não   trata   o   tempo   como   um   fluxo  —   tem   menos   dificuldade   com   a   quarta  dimensão  do  que  nós”.  Poucos  anos  depois,  um  antropólogo  explicava  que,  para  os  hopi,  “o  tempo  se  parece  com  esse  aspecto  do  ser  que  é  a  lâmina  do  agora  enquanto  se   acha   no   processo   de   se   tornar   tanto   ‘passado’  quanto   ‘futuro’.   Visto   assim,   nós  tampouco  temos  presente,  mas  nossos  hábitos  linguísticos  nos  fazem  sentir  como  se  tivéssemos”.    

Só  havia  um  problema.  Em  2345,  o  linguista  Ekkehart  Malotki,  que  empreendeu  um  extenso   trabalho   de   campo   sobre   a   língua   hopi,   escreveu   um   livro   chamado  Hopi  

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Time.  A  primeira  página  do  livro  é  quase  toda  em  branco,  somente  com  duas  breves  frases  impressas  no  meio,  uma  sobre  a  outra:  

Após   longo   e   cuidadoso   estudo   e   análise,   a   língua   hopi   se   mostra   desprovida   de   quaisquer  palavras,   formas   gramaticais,   construções   ou   expressões   que   se   refiram   diretamente   ao   que  chamamos  de  “tempo”.  (Benjamin  Lee  Whorf,  “An  American  Indian  Model  of  the  Universe”,  !"#$)    pu’antsa  pay  qavongvaqw  pay  su’its  talavay  kuyvansat,  pàasatham  pu’pam  piw  maanat  taatayna    Então,  de  fato,  no  dia  seguinte,  bem  cedo  pela  manhã  na  hora  em  que  as  pessoas  oram  ao  sol,  por  volta  desse  momento  então,  ele  acordou  novamente  a  menina.    (Ekkehart  Malotki,  notas  de  campo  hopi,  !"#$)    

O   livro   de   Malotki   prossegue   descrevendo,   em   #$$   páginas   de   letra   miúda,   as  numerosas  expressões  para  o  tempo  na  língua  hopi,  bem  como  o  sistema  de  tempos  e  aspectos  de  seus   “verbos  sem  tempo”.   Incrível   como  uma   língua  pode  mudar  em  quarenta  anos...  

❈ ❈ ❈ Não  é  difícil  entender  por  que  o  princípio  do  relativismo  linguístico,  ou  a  “hipótese  de   Sapir-­‐Whorf”,   como   veio   a   ser   conhecido,   tenha   mergulhado   em   tão   fundo  descrédito  entre  os  linguistas  respeitáveis.  Mas  existem  outros  —  filósofos,  teólogos,  críticos   literários  —   que   não   se   incomodam   em   carregar   a   tocha.   Uma   ideia   se  revelou  particularmente  resistente  ao  massacre  dos  fatos  ou  da  razão:  o  argumento  de  que  o  sistema  de  tempos  verbais  de  uma  língua  determina  o  entendimento  que  os  falantes   têm   do   tempo.   O   hebraico   bíblico   tem   oferecido   uma   colheita  particularmente  rica,  pois  seu  sistema  verbal  supostamente  sem  tempo  pôde  servir  de  apoio  para   explicar  qualquer   coisa,  desde  a   concepção   israelita  de   tempo  até   a  natureza   da   profecia   judaico-­‐cristã.   Em   seu   cultuado   livro   de   -./0,   After   Babel,  George   Steiner   segue   uma   longa   linhagem   de   grandes   pensadores   na   tentativa   de  “relacionar  possibilidades  e  restrições  gramaticais  ao  desenvolvimento  de  conceitos  ontológicos   primários   como   tempo   e   eternidade”.   Embora   sempre   cuidadoso   em  evitar   qualquer   formulação   que   pudesse   ser   atribuída   a   um   sentido   específico,  Steiner  ainda  assim  nos  informa  que  “muito  da  apreensão  característica  ocidental  do  tempo  como  sequência  linear  e  movimento  vetorial  é  estabelecida  e  organizada  pelo  sistema   verbal   indo-­‐europeu”.   Mas   o   hebraico   bíblico,   segundo   Steiner,   nunca  desenvolveu   nada   dessas   distinções   de   tempos   verbais.   Essa   diferença   entre   o  elaborado   sistema   de   tempos   verbais   do   grego   indo-­‐europeu   e   do   hebraico   sem  tempo,   pergunta   ele,   é   responsável   pela   “evolução   contrastante   dos   pensamentos  grego  e  hebraico”?  Ou  simplesmente  reflete  padrões  de  raciocínio  preexistentes?  “A  convenção  de  que  os   fatos  narrados  são  estritamente  contemporâneos  ao  presente  do   falante  —   uma   convenção   que   é   crucial   para   as   doutrinas   hebraico-­‐cristãs   de  revelação  —   é   uma   causa   ou   uma   consequência   da   forma   gramatical?”.   Steiner  conclui   que   a   influência   deve   se   dar   em   ambas   as   direções:   o   sistema   verbal  influencia  o  pensamento  que,  por  seu  turno,  influencia  o  sistema  verbal,  tudo  numa  “reciprocidade  múltipla”.  

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Acima   de   tudo,   argumenta   Steiner,   é   o   tempo   futuro   que   tem   consequências  drásticas  para  a  alma  e  a  mente  humana,  já  que  ele  molda  nosso  conceito  de  tempo  e  racionalidade,   até  mesmo   a   própria   essência   de   nossa   humanidade.   “Podemos   ser  definidos   como   o  mamífero   que   usa   o   futuro   do   verbo   ‘ser’”,   explica   ele.   O   tempo  futuro  é  o  que  nos  dá  esperança  para  o  futuro  e,  sem  isso,  estamos  todos  condenados  a  terminar  “no  Inferno,  isto  é,  numa  gramática  sem  futuros”.    

Antes   que   você   saia   correndo   para   se   livrar   de   seu   psiquiatra   e   contratar   um  gramático   no   lugar   dele,   tente   esse   rápido   exame   de   realidade.   Primeiro,   como  questão  de  ordem,  deve  se  dizer  que  ninguém  compreende  totalmente  as  sutilezas  do   sistema   verbal   do   hebraico   bíblico.   Há   duas   formas   verbais   principais   em  hebraico,   e   a   diferença   entre   elas   parece   depender   de   alguma   esquiva   mescla   de  tempo   verbal   e   daquilo   que   os   linguistas   chamam  de   aspecto  —  a  distinção   entre  ações  completas  (por  exemplo,  “eu  comi”)  e  ações  em  curso  (“eu  estava  comendo”).  Mas,   para   fins   de   argumentação,   vamos   até   admitir   que   o   verbo   hebraico   não  expressa   o   tempo   futuro,   aliás   nenhum   tempo   verbal.   Essa   ausência   precisa   ter  qualquer   efeito   restritivo   sobre  o   entendimento  que  os   falantes   têm  do   tempo,   do  futuro  e  da  eternidade?  Eis  um  versículo  tirado  de  uma  deliciosa  profecia  sobre  um  destino  próximo,  em  que  um  Jeová  furioso  promete  a  seus  inimigos  uma  retribuição  iminente:      

     A  mim   a   vingança   e   a   retribuição,   no   momento   em   que   o   pé   deles   vacilar,   pois   o   dia   de   sua  desgraça  está  próximo,  o  que  lhes  preparei  não  tardará.  (O  Canto  de  Moisés,  Deuteronômio,  !":  !")  

 

No   original   hebraico   há   dois   verbos,   a   saber:   o   primeiro,   “vacilar”,   está   numa   das  duas  principais  formas  verbais  que  acabei  de  mencionar;  o  segundo,  “tardar”,  está  na  outra.   Na   tradução   em   português,   esses   dois   verbos   aparecem   em   dois   tempos  diferentes:   “vacilar”   (futuro   do   subjuntivo)   e   “tardará”   (futuro   do   indicativo).  Mas  embora   os   estudiosos   possam   brigar,   até   que   o   dia   da   vingança   chegue,   se   a  diferença   entre   as   formas   verbais   hebraicas   exprimem  primordialmente  o   aspecto  ou  o   tempo,   isso  por  acaso   influi  um  pingo  que  seja  no  significado  do  versículo?  O  significado   da   tradução   em   português   muda   de   alguma   maneira   se   trocarmos   o  verbo  “vacilar”  para  a  forma  do  presente:  “no  momento  em  que  o  pé  deles  vacila”?  E  você   consegue   detectar   alguma   nebulosidade   acerca   do   conceito   do   futuro   na  imagem   arrepiante   das   coisas   que   não   estão   tardando   a   se   abater   sobre   os  pecadores?  

Ou   pense   nisso   de   outro   modo:   quando   pergunta   a   alguém,   em   legítima   prosa  portuguesa  e  no  tempo  presente,  algo  como  “você  vem  amanhã?”,  você  sente  que  sua  apreensão   do   conceito   de   futuridade   está   vacilando?   Sua   ideia   de   tempo   está  mudando  em  múltipla  reciprocidade?  A  esperança  e  a  resistência  de  seu  espírito  e  a  fibra  de  sua  humanidade  estão  começando  a  falhar?  Se  Jeremias  estivesse  vivo  hoje,  ele  poderia  dizer  (ou,  quem  sabe,  “poderia  ter  dito”?):  Até  mesmo  a  cegonha  no  ar  

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conhece   o   tempo   de   sua   migração.   A   rola,   a   andorinha   e   o   tordo   não   deixam   de  voltar  no  momento  oportuno.  Entretanto,  meus  eruditos  não  sabem  da  organização  do  Mundo.  

Você  pode  achar  que  já  ouviu  o  bastante  sobre  relativismo  linguístico  a  esta  altura,  mas  deixe  que  eu  lhe  regale  uma  última  cena  burlesca.  Em  $%%&,  a  revista  americana  Philosophy   Today   estampou   um   artigo   intitulado   “O   relativismo   linguístico   na  filosofia  francesa,  inglesa  e  alemã”,  em  que  o  autor,  William  Harvey,  afirmava  que  as  gramáticas  do  francês,  do  inglês  e  do  alemão  podem  explicar  as  diferenças  entre  as  três  tradições  filosóficas.  Por  exemplo,  “sendo  a  filosofia  inglesa  em  grande  medida,  segundo   nossa   tese,   determinada   pela   gramática   do   inglês,   podemos   considerá-­‐la,  como   a   língua,   uma   fusão   da   francesa   e   da   alemã”.   A   afirmação   é   comprovada   a  seguir   mostrando-­‐se   que   a   teologia   inglesa   (anglicana)   é   um   cruzamento   entre   o  catolicismo  (francês)  e  o  protestantismo  (alemão).  Há  outras  pérolas.  O  sistema  de  declinações  do   alemão   “é  parte  da   explicação  para   a   orientação  da   filosofia   alemã  rumo  à  construção  de  sistemas”,  ao  passo  que  “se  o  raciocínio  inglês  é  de  certa  forma  mais  aberto  à  ambiguidade  e  à  falta  de  sistematicidade,  isso  pode  ser  atribuído  em  parte  à  relativa  variabilidade  e  frouxidão  da  sintaxe  do  inglês”.  

Pode  ser.  Também  pode  ser  atribuível  à  forma  irregular  dos  pães  doces  ingleses.  No  entanto,  mais  apropriadamente,  deve  ser  atribuído  ao  hábito  das  revistas  de  língua  inglesa  permitirem  que  pessoas  como  o  sr.  Harvey  tenham  livre  trânsito.  (Por  sinal,  eu  sei  que  os  pães  doces  ingleses  não  são  particularmente  irregulares.  Mas,  de  novo,  tampouco  a  sintaxe  inglesa  é  particularmente  “variável  e  frouxa”.  Ela  é  mais  rígida  na  ordem  das  palavras,  por  exemplo,  do  que  a  alemã.)  

O  CÁRCERE  DA  LÍNGUA  

Sem  dúvida,  a  afirmação  mais  famosa  que  Nietzsche  jamais  fez  foi:  “We  have  to  cease  to   think   if  we  refuse   to  do   so   in   the  prison-­‐house  of   language”   (“Temos   de   parar   de  pensar  se  nos  recusarmos  a  fazê-­‐lo  no  cárcere  da  linguagem”).  O  que  ele  realmente  disse   foi:   “Paramos   de   pensar   quando   não   queremos   fazê-­‐lo   sob   restrições  linguísticas”  (Wir  hören  auf  zu  denken,  wenn  wir  es  nicht  in  dem  sprachlichen  Zwange  thun  wollen).  Mas   a   tradução   inglesa   equivocada   a   transformou  num   refrão  e,   não  por   acaso,   essa   frase   resume   com   clareza   tudo   o   que   há   de   tão   errado   com   o  relativismo   linguístico.   Pois   existe   uma   falácia   venenosa   que   corre   feito   azougue  através  de  todos  os  argumentos  que  encontramos  até  agora:  é  a  suposição  de  que  a  língua   que   por   acaso   falamos   é   um   cárcere   que   limita   os   conceitos   que   somos  capazes   de   entender.   Seja   a   afirmação   de   que   a   falta   de   um   sistema   de   tempos  verbais   restringe  a  compreensão  que  os   falantes   têm  do   tempo,   seja  a  alegação  de  que  quando  um  verbo  e  um  objeto  se  fundem  os  falantes  não  entendem  a  distinção  entre  ação  e   coisa  —  o  que  une   todas  essas  perorações  é  uma  premissa  que  é   tão  tosca   quanto   falsa,   a   de   que   “os   limites   da   minha   língua   são   os   limites   do   meu  mundo”,   que  os   conceitos   expressos  numa   língua   são  os  mesmos   conceitos  que  os  falantes  são  capazes  de  entender,  e  que  as  distinções   feitas  numa  gramática  são  as  mesmas  distinções  que  os  falantes  são  capazes  de  conceber.  

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É   difícil   entender   como   essa   noção   ridícula   pode   ter   conquistado   tamanha  popularidade,   uma   vez   que   tantas   provas   em   contrário   gritam  na   nossa   cara   para  onde  quer  que  as  busquemos.  Será  que  a  gente  ignorante  que  jamais  ouviu  falar  de  “Schadenfreude”   acha   difícil   entender   o   conceito   de   se   deliciar   com   a   desgraça  alheia?  Por  outro  lado,  será  que  os  alemães,  cuja  língua  usa  uma  única  palavra  para  “quando”  e  “se”  (wenn),  não  conseguem  entender  a  diferença  lógica  entre  o  que  pode  acontecer  sob  certas  condições  e  o  que  acontecerá  apesar  delas?  Será  que  os  antigos  babilônios,   que   usavam   a   mesma   palavra   arnum   tanto   para   “crime”   quanto   para  “punição”  não  entendiam  a  diferença?  Então,  por  que  eles  escreveram  milhares  de  documentos   legais,   códigos   de   leis   e   protocolos   de   tribunal   para   determinar  exatamente  que  punição  deveria  ser  atribuída  a  que  crime?  

A   lista   de   exemplos   poderia   facilmente   se   estender.   As   línguas   semíticas   exigem  formas  verbais  diferentes  para  o  masculino  e  o  feminino  (“você  come”  teria  formas  diferentes  dependendo  se  você  é  mulher  ou  homem),  enquanto  o  português  não  faz  distinções   de   gênero   nos   verbos.   George   Steiner   conclui   daí   que   “toda   uma  antropologia   da   igualdade   sexual   está   implícita   no   fato   de   que   nossos   verbos,  diferentemente   dos   das   línguas   semíticas,   não   indicam   o   gênero   do   agente”.   É  mesmo?   Existem   algumas   línguas   tão   sexualmente   avançadas   que   não   fazem  distinções  de   gênero  nem  mesmo  nos  pronomes,   de  modo  que   até   “ele”   e   “ela”   se  fundem  numa  plástica  criação  sintética  unissex.  Que  língua  seriam  essas?  O  turco,  o  indonésio   e   o   uzbeque,   para   citar   alguns   exemplos  —  não   exatamente   línguas   de  sociedades  famosas  por  sua  antropologia  da  igualdade  sexual.  

É  claro  que  nenhuma  lista  desses  disparates  ficaria  completa  sem  o  romance  !"#$  de  George   Orwell,   no   qual   os   governantes   têm   tamanha   fé   no   poder   da   língua   que  acreditam   que   a   dissidência   política   poderia   ser   eliminada   simplesmente   se   as  palavras  ofensivas  fossem  expurgadas  do  vocabulário.  “Por  fim,  tornaremos  o  crime  de  pensamento  literalmente  impossível,  pois  não  haverá  palavras  com  que  expressá-­‐lo”.   Mas   por   que   parar   aí?   Por   que   não   abolir   a   palavra   “cobiça”   para   consertar  rapidinho  a  economia  mundial,  ou  banir  a  palavra  “dor”  para  economizar  bilhões  em  aspirina,  ou  atirar  a  palavra  “morte”  na  lata  de  lixo  como  uma  fórmula  instantânea  para  a  imortalidade  universal?    

❈ ❈ ❈  Meu  objetivo  final,  proclamado  logo  no  início,  era  convencer  você  de  que,  no  fim  das  contas,   pode   haver   alguma   coisa   digna   de   resgate   na   ideia   de   que   nossa   língua  materna   pode   influenciar   nossos   pensamentos   e   percepções.   Esse   objetivo   agora  pode   parecer   uma   missão   suicida.   No   entanto,   embora   as   perspectivas   para   o  relativismo   linguístico  possam  não  parecer  as  mais  promissoras  neste  momento,  a  boa   notícia   é   que,   tendo   chegado   ao   fundo   do   poço   intelectual,   as   coisas   a   partir  daqui  só  podem  se   levantar.  De  fato,  a  derrocada  do  whorfismo  foi  benéfica  para  o  progresso   da   ciência   porque,   ao   fazer   dele   um   exemplo   estarrecedor,   ficaram  expostos  os  dois  erros  fundamentais  que  qualquer  teoria  sensata  sobre  a  influência  da   língua   no   pensamento   tem   que   evitar.   Primeiro,   a   obsessão   de   Whorf   por  

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fantasias  desconectadas  dos   fatos  nos   ensinou  que  qualquer   suposta   influência  de  uma   língua   sobre   as   mentes   dos   falantes   tem   que   ser   demonstrada,   não   apenas  presumida.   Não   se   pode   simplesmente   dizer   “a   língua   X   faz   coisas   diferentes   da  língua  Y  e,  portanto,  os  falantes  de  X  têm  que  pensar  diferente  dos  falantes  de  Y”.  Se  há  motivos  para  suspeitar  que  os  falantes  de  X  podem  pensar  de  modo  diferente  dos  falantes  de  Y,   isso   tem  que  ser  mostrado  empiricamente.  De   fato,  nem  mesmo   isso  basta,   já  que,  quando  as  diferenças  em  padrões  mentais  podem  ser  demonstradas,  ainda   é   preciso   montar   a   defesa   de   que   foi   realmente   a   língua   que   causou   tais  diferenças,  e  não  outros  fatores  nas  culturas  e  nos  ambientes  dos  falantes.  

A  segunda  grande   lição   tirada  dos  erros  do  whorfismo  é  que   temos  de  escapar  do  cárcere  da   linguagem.  Ou,  melhor  dizendo,   temos  de   escapar   é  da   ilusão  de  que   a  língua  é  um  cárcere  para  o  pensamento  —  de  que  ela  restringe  a  capacidade  de  seus  falantes  de   raciocinar   logicamente  e  os   impede  de  entender   ideias  que  são  usadas  por  falantes  de  outras  línguas.  

É   claro   que,   quando   digo   que   uma   língua   não   impede   seus   falantes   de   entender  algum   conceito,   não   estou   querendo   dizer   que   é   possível   falar   sobre   qualquer  assunto   em   qualquer   língua   em   seu   estado   atual.   Tente   traduzir   o   manual   de  funcionamento   de   uma   máquina   lava-­‐louças   para   a   língua   de   uma   tribo   dos  planaltos  de  Papua-­‐Nova  Guiné:  você  vai  estancar  bem  depressa,  já  que  não  existem  palavras   para   garfo,   pratos,   copos,   botões,   sabão,   programas   de   enxágue   ou   luzes  indicadoras   de   falhas.   Mas   não   é   a   natureza   profunda   da   língua   que   impede   os  papuas   de   compreender   tais   conceitos:   é   simplesmente   o   fato   de   que   não   estão  familiarizados  com  os  artefatos  culturais  pertinentes.  Se  você  tiver  tempo  suficiente,  poderá  lhes  explicar  muitíssimo  bem  todas  essas  coisas  na  língua  materna  deles.  

De  igual  modo,  tente  traduzir  uma  introdução  à  metafísica  ou  à  topologia  algébrica  ou,   ainda,   diversas   passagens   do   Novo   Testamento   na   nossa   língua   papua  —   é  provável   que   você   não   avance   muito,   porque   não   terá   palavras   equivalentes   à  maioria   dos   conceitos   abstratos   exigidos.  Novamente,   porém,   você  poderia   criar   o  vocabulário   para   tais   conceitos   abstratos   em   qualquer   língua,   seja   tomando  empréstimos   ou   estendendo   o   uso   de   palavras   existentes   para   sentidos   abstratos.  (As  línguas  europeias  usam  as  duas  estratégias.)  Essas  valentes  afirmações  sobre  a  possibilidade   teórica   de   expressar   ideias   complexas   em   qualquer   língua   não   são  meros  desejos  hipotéticos:  elas  têm  sido  confirmadas   inúmeras  vezes  na  prática.  É  certo  que  o  experimento  não  tem  sido  conduzido  frequentemente  com  manuais  de  lava-­‐louças   ou   compêndios   metafísicos,   mas   sim   com   o   Novo   Testamento,   que  contém   argumentos   teológicos   e   filosóficos   em   níveis   extremamente   elevados   de  abstração.  

E   se   você   ainda   se   sentir   tentado   pela   teoria   de   que   o   inventário   de   conceitos  preexistentes  de  nossa   língua  materna  determina  os   conceitos  que   somos   capazes  de  entender,  basta  perguntar  a  si  mesmo  como  alguém  poderia  conseguir  aprender  qualquer  conceito  novo  se  tal  teoria  fosse  verdadeira.  Veja  este  exemplo.  Se  você  não  for  um  linguista  profissional,  a  palavra  “factitividade”  provavelmente  não  fará  parte  

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da  sua  linguagem.  Mas  será  que  isso  significa  que  sua  língua  materna  (o  português  comum,   digamos)   impede   você  de   entender   a   distinção   entre   verbos   “factitivos”   e  “não   factitivos”?   Vejamos.   Os   verbos   “perceber”   e   “saber”,   por   exemplo,   são  chamados   “factitivos”   porque   se   você   disser   algo   como   “Alice   percebeu   que   seus  amigos  tinham  ido  embora”,  você  estará  querendo  dizer  que  o  que  Alice  percebeu  foi  um  fato  verdadeiro.  Por  outro  lado,  verbos  não  factitivos  como  “supor”  não  implicam  um   fato   verdadeiro:   quando   você   diz   “Alice   supôs   que   seus   amigos   tinham   ido  embora”,   você   pode   também   com   toda   naturalidade   continuar   dizendo   “e   de   fato  tinham  ido”  ou  “mas  de  fato  não  tinham  ido”.  Aí  está.  Acabei  de  explicar  a  você  um  conceito   novo   e   altamente   abstrato,   a   factitividade,   que   não   fazia   parte   de   sua  linguagem  antes.  Por  acaso  sua  língua  materna  foi  uma  barreira?  

Uma  vez  que  não  existe  prova  alguma  de  que  qualquer  língua  proíba  seus  falantes  de  pensar   o  que  quer  que   seja,  como  o  próprio  Humboldt   reconheceu  duzentos   anos  atrás,  os  efeitos  da  língua  materna  não  podem  ser  buscados  naquilo  que  as  línguas  diferentes   permitem   seus   falantes   pensar.   Então,   onde?   Humboldt   seguiu   adiante  dizendo,   em   termos   um   tanto   místicos,   que   apesar   de   tudo   as   línguas   diferem  naquilo  que  elas  “encorajam  e  estimulam  fazer  a  partir  de  sua  própria  força  interna”.  Parece   que   ele   teve   o   tipo   certo   de   intuição,  mas   evidentemente   estava   pelejando  para   expressá-­‐la   e   nunca   conseguiu   ir   além   das   metáforas.   Será   que   podemos  transformar  essas  imagens  embaçadas  em  algo  mais  transparente?  

Acredito  que  sim.  Mas,  para   fazer   isso,  precisamos  abandonar  a   chamada  hipótese  de  Sapir-­‐Whorf,  a  suposição  de  que  as  línguas  limitam  a  capacidade  de  seus  falantes  de   expressar   ou   entender   conceitos,   e   nos   voltar,   em   vez   disso,   para   um   insight  fundamental  que  podemos  batizar  de  princípio  Boas-­‐Jakobson.  

DE  SAPIR-­‐WHORF  A  BOAS-­‐JAKOBSON  

Já   encontramos   o   antropólogo   Franz   Boas   como   a   pessoa   que   introduziu   Edward  Sapir   ao   estudo  das   línguas   ameríndias.   Em   4567,  Boas   fez  uma  aguda  observação  acerca   do   papel   da   gramática   na   língua.   Ele   escreveu   que,   além   de   determinar   a  relação   entre   as   palavras   numa   frase,   “a   gramática   desempenha   outra   função  importante.   Ela   determina   os   aspectos   de   cada   experiência   que   têm   de   ser  expressos”.   E   prosseguiu   explicando   que   esses   aspectos   obrigatórios   variam  grandemente   entre   as   línguas.   A   observação   de   Boas   foi   incluída   um   tanto  modestamente   numa   pequena   seção   sobre   “gramática”   dentro   de   um   capítulo  intitulado   “Língua”   dentro   de   uma   introdução   à   General   Anthropology   e   sua  importância  parece  não  ter  sido  plenamente  apreciada  até  que,  duas  décadas  depois,  o  linguista  russo-­‐americano  Roman  Jakobson  encapsulasse  o   insight  de  Boas  numa  fórmula   vigorosa:   “As   línguas   diferem   essencialmente   no   que   elas   têm  que  dizer   e  não   no   que   elas   podem   dizer”.   As   diferenças   fundamentais   entre   as   línguas,   em  outras   palavras,   não   estão   naquilo   que   cada   língua   permite   que   seus   falantes  expressem  —  pois,  em  teoria,  qualquer  língua  poderia  expressar  qualquer  coisa  —,  mas  sim  na  informação  que  cada  língua  obriga  seus  falantes  a  expressar.  

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Jakobson   dá   o   seguinte   exemplo.   Se   eu   digo,   em   inglês,   “I   spent   yesterday   evening  with   a   neighbor”   [“Passei   a   noite   de   ontem   com   (   vizinh✷”],   é   justo   que   você   se  pergunte  se  minha  companhia  era  masculina  ou  feminina,  mas  eu  tenho  o  direito  de  lhe   dizer   delicadamente   que   isso   não   é   da   sua   conta.   Mas   se   estivermos   falando  português   ou   alemão,   francês   ou   russo,   eu   não   tenho   o   privilégio   do   equívoco,  porque   sou   obrigado   pela   língua   a   escolher   entre   vizinho   ou   vizinha,  Nachbar   ou  Nachbarin,  sosed  ou  sosedka.  Assim,  o  português,  o  alemão,  o   francês  e  o  russo  me  forçam  a  te  informar  sobre  o  sexo  da  minha  companhia,  e  tanto  faz  se  eu  considere  que  isso  é  ou  não  da  sua  conta.  Isso  não  significa,  é  claro,  que  os  falantes  de  inglês  pouco   se   importam   com   as   diferenças   entre   noites   passadas   com   vizinhos  masculinos   ou   femininos.   Também   não   quer   dizer   que   os   falantes   de   inglês   não  poderiam  expressar  a  distinção,  caso  desejassem.  Significa  apenas  que  os  falantes  de  inglês  não  são  obrigados  a  especificar  o  sexo  cada  vez  que  ✷  vizinh✷  é  mencionad✷,  enquanto  falantes  de  algumas  línguas  são.    

Por   outro   lado,   o   inglês   te  obriga   a   especificar   certas   informações   que   podem   ser  deixadas  para  o  contexto  em  outras  línguas.  Se  eu  quiser  te  contar  em  inglês  sobre  um  jantar  com  meu/minha  vizinh✷,  posso  não  te  dizer  o  sexo  da  pessoa,  mas  tenho  que   te   dizer   algo   sobre   a   temporalidade   do   evento:   tenho   que   me   decidir   se  we  dined,  have  been  dining,  are  dining,  will  be  dining  e  assim  por  diante.  O   chinês,  por  seu  lado,  não  obriga  seus  falantes  a  especificar  o  tempo  exato  da  ação  toda  vez  que  usam  um  verbo,  porque  a  mesma  forma  verbal  pode  ser  usada  para  ações  passadas,  presentes  ou  futuras.  Novamente,  isso  não  significa  que  os  falantes  de  chinês  sejam  incapazes  de  expressar  o  tempo  da  ação  se  acharem  que  é  um  dado  particularmente  relevante.  Mas,  contrariamente  aos  falantes  de  inglês,  não  são  obrigados  a  fazer  isso  toda  vez.  

Nem   Boas   nem   Jakobson   estavam   enfatizando   essas   diferenças   gramaticais   com  relação   à   influência   da   língua   sobre   a   mente.   Boas   estava   interessado  primordialmente  no  papel  que  a  gramática  desempenha  na  língua,  e  Jakobson  lidava  com  os  desafios  que  tais  diferenças  levantam  para  a  tradução.  No  entanto,  me  parece  que  o  princípio  Boas-­‐Jakobson  é  a  chave  para  desengavetar  os  verdadeiros  efeitos  de  uma   língua   particular   sobre   o   pensamento.   Se   línguas   diferentes   influenciam   as  mentes  de  seus  falantes  de  várias  maneiras,  não  é  por  causa  daquilo  que  cada  língua  permite   que   as   pessoas   pensem,   porém,   bem   mais,   por   causa   dos   tipos   de  informação   sobre   a   qual   cada   língua   normalmente   obriga   as   pessoas   a   pensar.  Quando  uma  língua  força  os  falantes  a  prestar  atenção  a  certos  aspectos  do  mundo  cada  vez  que  abrem  a  boca  ou  apuram  os  ouvidos,  tais  hábitos  de  fala  podem,  ao  fim  e  ao  cabo,   se   fixar  como  hábitos  mentais  com  consequências  para  a  memória  ou  a  percepção,  para  as  associações  de  ideias  ou  mesmo  para  fins  práticos.  

Se   tudo   isso   ainda   soa   um   tanto   quanto   abstrato,   o   contraste   entre   a   hipótese   de  Sapir-­‐Whorf   e   o   princípio   de   Boas-­‐Jakobson   pode   ser   iluminado   por   mais   um  exemplo.  O  chinês  pode  nos  parecer  bastante  permissivo  ao  deixar  que  seus  falantes  criem  ambiguidades   sobre  o   tempo  da  ação,  mas   tente  apenas   imaginar  o  que  um  

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falante  da   língua  matis   (Brasil  e  Peru),  poderia  sentir  ao  ouvir   falar  das  distinções  temporais  incrivelmente  toscas  e  descuidadas  do  inglês.  

Os   matis   (ou   matsés)   são   uma   tribo   de   2.455   membros   que   vive   na   floresta  equatorial   ao   longo   do   rio   Javari,   um   tributário   do   Amazonas.   Sua   língua,   que   foi  descrita  recentemente  pelo  linguista  David  Fleck,  os  obriga  a  fazer  distinções  de  uma  sutileza   enlouquecedora   toda  vez  que   relatam  eventos.  Para   começar,   existem   três  graus  de  passado  em  matis:  não  se  pode  apenas  dizer  que  alguém  “passou  por  aqui”;  é  preciso  especificar  com  diferentes  terminações  verbais  se  essa  ação  ocorreu  num  passado   recente   (há  menos  de  um  mês,   aproximadamente),   num  passado  distante  (de  um  mês  a  cinquenta  anos)  ou  num  passado  remoto  (há  mais  de  cinquenta  anos).  Além   disso,   o   verbo   tem   um   sistema   de   distinções   que   os   linguistas   chamam   de  “evidencialidade”   e,   de   fato,   o   sistema   de   evidencialidade   dos   matis   é   o   mais  elaborado  que  já  foi  reportado  para  qualquer  língua.  Toda  vez  que  um  falante  matis  usa  um  verbo,  ele  é  obrigado  a  especificar  —  como  o  mais  meticuloso  dos  advogados  —  exatamente  como  tomou  ciência  dos  fatos  que  está  relatando.  Em  outras  palavras,  os   matis   têm   que   ser   mestres   epistemólogos.   Existem   formas   verbais   separadas  dependendo  de  você  estar  relatando  experiência  direta  (você  viu  alguém  passando  com  seus  próprios  olhos),  algo  inferido  pelas  evidências  (você  viu  pegadas  na  areia),  conjectura   (as   pessoas   sempre   passam   por   ali   naquela   hora   do   dia)   ou  por   ouvir  dizer  (seu  vizinho  te  contou  ter  visto  alguém  passar  por  ali).  Se  uma  afirmação  for  enunciada   com   a   forma   incorreta   de   evidencialidade,   será   considerada   como   uma  mentira.   Assim,   por   exemplo,   se   você   perguntasse   a   um   homem   matis   quantas  mulheres   ele   tem,   ele   responderia  —   a   menos   que   pudesse   realmente   ver   suas  mulheres  naquele  exato  momento  —,  no   tempo  passado  recente  e  diria  algo  como  daëd   ikoşh:   “duas  houve   [diretamente   experienciado   recentemente]”.   Com  efeito,   o  que  ele  estaria  dizendo  é:  “Havia  duas  da  última  vez  que  contei”.  Afinal,  dado  que  as  mulheres  não  estão  presentes,  ele  não  pode  ter  absoluta  certeza  de  que  uma  delas  não  morreu  ou  fugiu  com  outro  homem  desde  a  última  vez  que  as  viu,  mesmo  que  isso  tenha  sido  apenas  cinco  minutos  atrás.  Por  isso,  não  pode  responder  como  um  fato  certo  no  tempo  presente.  

Mas  encontrar  a  forma  verbal  certa  para  eventos  experienciados  diretamente  é  uma  brincadeira  de  criança  quando  comparado  com  a  meticulosíssima  precisão  exigida  quando  se  relata  um  evento  que  foi  apenas  inferido.  Aqui,  a  língua  matis  obriga  não  só  a  especificar  há  quanto  tempo  você  presume  que  o  evento  ocorreu,  mas  também  há  quanto  tempo  você  fez  a  inferência.  Suponha  que  você  viu  as  pegadas  de  caititus  na   terra   em   algum   lugar   fora   da   aldeia   e   quer   contar   aos   amigos   que   os   animais  passaram  por  aquele  lugar.  Em  português,  dizer  “por  aqui  passaram  caititus”  é  toda  a  informação  que  você  tem  de  especificar.  Mas  em  matis  é  preciso  revelar  há  quanto  tempo  você  descobriu  sobre  o   fato  (ou  seja,  há  quanto  tempo  viu  as  pegadas)  e  há  quanto  tempo  você  acha  que  o  próprio   fato  (a  passagem  dos  caititus)  ocorreu.  Por  exemplo,   se   há   pouco   tempo   atrás   descobriu   pegadas   que   ainda   estavam   frescas,  você  presume  que  os  caititus  passaram  ali  apenas  um  pouco  antes  de  você  ter  visto  as  pegadas,  de  modo  que  você  teria  que  dizer:  

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kuen-­‐ak-­‐o-­‐şh  passaram  por  aqui-­‐OCORRIDO  HÁ  POUCO  DO  EXPERIENCIADO-­‐EXPERIENCIADO  RECENTEMENTE-­‐eles  “eles  passaram  por  aqui”  (Descobri  há  pouco  tempo  e  acontecera  pouco  antes  de  eu  descobrir)    Se   há   pouco   tempo   atrás   descobriu   pegadas   que   já   eram   antigas,   você   teria   que  dizer:  

kuen-­‐nëdak-­‐o-­‐  şh  passaram  por  aqui-­‐OCORRIDO  BEM  ANTES  DO  EXPERIENCIADO-­‐EXPERIENCIADO  RECENTEMENTE-­‐eles  “eles  passaram  por  aqui”  (Descobri  há  pouco  tempo  e  acontecera  muito  tempo  antes  de  eu  descobrir)    Se  há  muito   tempo   atrás   descobriu  pegadas   que   ainda   estavam   frescas,   você   teria  que  dizer:  

kuen-­‐ak-­‐onda-­‐şh  passaram  por  aqui-­‐OCORRIDO  HÁ  POUCO  DO  EXPERIENCIADO-­‐EXPERIENCIADO  MUITO  TEMPO  ATRÁS-­‐eles  “eles  passaram  por  aqui”  (Descobri  há  muito  tempo  atrás  e  acontecera  pouco  antes  de  eu  descobrir)    E  se  muito  tempo  atrás  você  descobriu  pegadas  antigas:  

kuen-­‐nëdak-­‐onda-­‐şh  passaram  por  aqui-­‐OCORRIDO  MUITO  ANTES  DO  EXPERIENCIADO-­‐EXPERIENCIADO  MUITO  TEMPO  ATRÁS-­‐eles  “eles  passaram  por  aqui”  (Descobri  há  muito  tempo  atrás  e  acontecera  muito  antes  de  eu  descobrir)  

O   sistema  matis   é   espantoso   para   qualquer   grau   de   imaginação   e   nada   assim   tão  elaborado   jamais   foi   descoberto   em   nenhum   outro   lugar.   O   matis   exibe  fundamentalmente  o  quanto  as   línguas  podem  variar  nos   tipos  de   informação  que  obrigam   seus   falantes   a   expressar.   Mas   a   bizarrice   do   matis   também   ajuda   a  esclarecer  onde  se  deve  (e  não  se  deve)  buscar  as  verdadeiras  influências  da  língua  sobre  o  pensamento.  Dá  arrepios  pensar  o  que  Whorf  teria  feito  com  a  língua  matis  se  as   informações  a  respeito  dela  tivessem  caído  em  suas  mãos  ou,  também,  o  que  um  whorfiano  entre  os  matis  pensaria  da  inimaginável  vagueza  dos  verbos  do  inglês.  “Considero   infundado  supor”,  diria  esse  sábio  matis,   “que  um  norte-­‐americano  que  conhece  apenas  a  língua  inglesa  e  as  ideias  culturais  de  sua  própria  sociedade  possa  ter  uma  apreensão  adequada  da  epistemologia.  Os  falantes  do  inglês  simplesmente  seriam  incapazes  de  entender  a  diferença  entre  eventos  diretamente  experienciados  e  fatos  meramente  inferidos,  porque  sua  língua  lhes  impõe  uma  visão  monística  do  universo   que   funde   o   evento   com   o   que   foi   experienciado   numa   plástica   criação  sintética”.  

Mas   isso   é   um   palavrório   enfatuado,   porque   não   temos   problema   algum   para  entender   as   distinções   do   matis   e,   se   estivermos   muito   dispostos,   podemos  tranquilamente  expressá-­‐las  em  inglês  ou  português:   “Vi  com  meus  próprios  olhos  pouco   tempo   atrás   que...”;   “Há   muito   tempo   atrás   inferi   que...”;   “Acho   que   muito  tempo   atrás...”   e   assim  por   diante.   Quando   esse   tipo   de   informação   é   considerado  particularmente   relevante  —  no  depoimento  de  uma   testemunha,  por  exemplo  —,  os  falantes  de  inglês  ou  português  normalmente  usam  essas  expressões.  A  única  real  diferença   entre   inglês   ou   português   e  matis,   por   conseguinte,   é   que   o  matis   força  seus  falantes  a  fornecer  todas  essas  informações  cada  vez  que  descrevem  um  evento,  ao  passo  que  o  inglês  e  o  português  não  forçam.  

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Se   a   exigência   de   especificar   a   evidencialidade   se   traduz   em   hábitos  mentais   que  afetam  mais  do  que  a  língua  é  algo  que  ninguém  ainda  estudou  empiricamente.  Mas  todas   as   alegações   dignas   de   credibilidade   sobre   a   influência   de   uma   língua  particular   sobre   o   pensamento   vão   nessa   direção.   Ninguém   (em   sã   consciência)  alegaria  hoje   em  dia  que  a   estrutura  de  uma   língua   limita   a   compreensão  de   seus  falantes  de  conceitos  e  distinções  que  de  fato  já  fazem  parte  do  sistema  linguístico.  No  lugar  disso,  pesquisadores  sérios  têm  buscado  consequências  do  uso  habitual  de  certos  modos  de  expressão  desde  a  mais  tenra  infância.  Por  exemplo,  a  necessidade  de   prestar   atenção   constante   a   certos   aspectos   da   experiência   leva   os   falantes   a  serem   especialmente   sensíveis   a   certos   detalhes   ou   induz   tipos   particulares   de  padrões  de  memória  e  associações  de  ideias?  São  exatamente  essas  as  perguntas  que  vamos  explorar  nos  próximos  capítulos.  

Para   alguns   críticos,   como   Steve   Pinker,   o   fato   de   nossa   língua   materna   não  restringir  nem  nossa  capacidade  de  raciocinar  logicamente  nem  nossa  habilidade  de  compreender  ideias  complexas  é  um  anticlímax  irremediável.  Em  seu  livro  recente,  The  Stuff  of  Thought   [trad.   brasil.:  Do  que  é   feito  o  pensamento],   Pinker   argumenta  que,   dado   que   ninguém   jamais   conseguiu  mostrar   que   os   falantes   de   uma   língua  acham   impossível,   ou   mesmo   extremamente   difícil,   raciocinar   de   um   modo  particular   que   vem   naturalmente   aos   falantes   de   outra   língua,   então   quaisquer  efeitos   remanescentes   da   língua   sobre   o   pensamento   são   insossos,   brochantes,  aborrecidos   e   até   triviais.  Obviamente,  o  que   é  brochante   é  uma  questão  de   gosto  pessoal.  Mas,  no  que  vem  a  seguir,  espero  demonstrar  que,  embora  os  reais  efeitos  da  língua  sobre  o  pensamento  sejam  muito  diferentes  das  alegações  desenfreadas  e  piradas  do  passado,  eles  estão  longe  de  ser  aborrecidos,  insossos  ou  triviais.  

 

[!.  Where  the  Sun  Doesn’t    Rise  in  the  East]  

PREPARADO  NO  JANTAR  

A  língua  guugu-­‐yimithirr   tem  seu   lugar  garantido  na  calçada  da   fama  e,  por   isso,  é  celebrada  por   todo  o  vasto  mundo  das  curiosidades   triviais.  A  história   foi  mais  ou  menos  assim.  Em  julho  de  0112,  o  navio  Endeavour,  do  capitão  Cook,  estava  ancorado  junto  à  costa  nordeste  da  Austrália,  perto  da  foz  de  um  rio  que  logo  seria  chamado  de  Endeavour,  num  lugar  que  mais  tarde  se  tornaria  Cooktown.  Durante  as  semanas  em  que  o  navio  era  reparado,  o  capitão  Cook  e  sua  tripulação  fizeram  contato  com  a  população   nativa   do   continente,   tanto   a   humana   quanto   a   marsupial.   Com   a  primeira,  as  relações  foram  de  início  bastante  cordiais.  Cook  escreve  em  seu  diário  em  $%  de  julho  de  $,,%:  “Pela  manhã,  quatro  dos  nativos  desceram  à  ponta  de  areia  do   lado   norte   da   enseada,   trazendo   consigo   uma   pequena   canoa   de  madeira   com  balanceadores   laterais   [outriggers],   que   pareciam   empregados   para   abater   peixes.  Estavam  completamente  nus,   suas  peles   tinham  a  cor  de   fuligem  de  madeira.  Seus  cabelos   eram   pretos,   lisos   e   cortados   rente,   nem   lanosos   nem   frisados.   Algumas  partes  de  seus  corpos  tinham  sido  pintadas  de  vermelho  e  um  deles  tinha  seu  lábio  

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superior   e   o   peito   pintado   com   listas   brancas.   Seus   traços   nada   tinham   de  desagradáveis,  suas  vozes  eram  suaves  e  entoadas”.  

Os  outros  nativos   foram  tratados  com  um  pouco  menos  de  respeito.  No  Account  of  the  Voyages,  baseado  nos  diários  de  Cook  e  seus  oficiais,  lemos  a  seguinte  descrição  do  que  ocorreu  mais  tarde  naquela  semana:  “O  sr.  Gore,  que  saiu  hoje  com  sua  arma,  teve  a  boa  sorte  de  matar  um  dos  animais  que  tinha  sido  objeto  de  tanta  especulação  de  nossa  parte...  A  cabeça,  o  pescoço  e  os  ombros  são  muito  pequenos  em  proporção  às  outras  partes  do  corpo;  a  cauda  é  quase  tão  longa  quanto  o  corpo,  espessa  perto  do  traseiro  e  afilada  na  ponta;  as  pernas  dianteiras  desse   indivíduo  tinham  apenas  oito   polegadas   de   comprimento,   e   as   traseiras,   vinte   e   duas;   seu   avanço   é   por  sucessivos  saltos  ou  pulos,  de  uma  grande  extensão,  numa  postura  erecta;  a  pele  é  coberta  com  uma  pelagem  curta,  da  cor  de  um  preto-­‐rato  ou  cinza,  excetuando-­‐se  a  cabeça  e  as  orelhas,  que  trazem  uma  leve  semelhança  com  as  de  uma  lebre.  O  animal  é  chamado  kanguroo  pelos  nativos.  No  dia  seguinte,  nosso  kanguroo   foi  preparado  no  jantar  e  se  revelou  uma  refeição  excelente”.    

 

 

 

 

 

 

 

O  Endeavour  retornou  à  Inglaterra  no  ano  seguinte  com  as  peles  de  dois  cangurus,  e  o   pintor   de   animais   George   Stubbs   foi   encarregado   de   produzir   uma   gravura.   O  canguru   de   Stubbs   imediatamente   capturou   a   imaginação   do   público   e   o   animal  disparou  para  a  celebridade.  Dezoito  anos  depois,  a  excitação  atingiu  o  nível  de  febre  quando  o  primeiro  espécime  vivo,  “o  maravilhoso  canguru  de  Botany  Bay”,  chegou  a  Londres  e  foi  exibido  no  Haymarket.  O  inglês  então  ganhou  sua  primeira  palavra  de  origem   australiana   e,   à   medida   que   a   fama   do   animal   se   espalhava   para   outros  países,   “canguru”  se   tornou  o   item  mais  proeminente  do  vocabulário   internacional  exportado  por  uma  língua  nativa  da  Austrália.  

Será?  

Embora  a  resistente  popularidade  do  canguru  no  Velho  Mundo  não  fosse  posta  em  dúvida,  a  autenticidade  das  raízes  da  palavra  na  Austrália  logo  ficou  sob  suspeita.  É  que   quando   exploradores   australianos   localizaram   o   animal   em   outras   partes   do  continente,   os   aborígines   locais   nunca   pronunciaram   nada   remotamente   parecido  

George  Stubbs.  The  Kangaroo  from  New  Holland,  !""#  

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com   “canguru”.   Os   nativos   de   norte   a   sul   da   Austrália   nem   sequer   reconheciam   a  palavra,   e   alguns   deles,   de   fato,   quando   a   ouviram,   presumiram   que   estavam  aprendendo   o   nome   inglês   para   o   bicho.   Já   que   muitas   línguas   diferentes   eram  faladas   pelo   continente,   o   fato   de   aborígines   de   outras   partes   da   Austrália   não  reconhecerem   a   palavra   não   era,   em   si   mesmo,   tão   suspeito.   No   entanto,   mais  prejudicial   à   credibilidade  de   “canguru”   foi  o   relato  de  outro  explorador,  o   capitão  Philip   Parker   King,   que   visitou   a   foz   do   mesmíssimo   rio   Endeavour   em   '()*,  cinquenta   anos   depois   da   partida   de   Cook.   Quando   o   capitão   King   perguntou   aos  aborígines   que   lá   encontrou   como   chamavam   o   animal,   eles   lhe   deram   um   nome  completamente  diferente  do  que  Cook  tinha  registrado.  King  transcreveu  o  nome  em  seu  próprio  diário  como  “minnar”  ou  “meenuah”.  

Então  quem  eram  aqueles  nativos  com  vozes  suaves  e  entoadas  que  deram  a  Cook  a  palavra   “canguru”   em   /001,   e  que   língua   era   a  deles?  Ou   será  que  Cook   tinha   sido  simplesmente   tapeado?   Em   meados   do   século   XIX,   grassava   o   ceticismo   sobre   a  autenticidade   da   palavra.   Em   /012,   John   Crawfurd,   um   distinto   orientalista   e  sucessor   de   Stamford   Raffles   como   administrador   de   Cingapura,   escreveu   em   seu  Journal   of   the   Indian  Archipelago   and  Eastern  Asia   que   “é   extraordinário   que   essa  palavra,   supostamente   australiana,   não   se   encontre   como   nome   desse   singular  marsupial   em   nenhuma   língua   da   Austrália.   Cook   e   seus   companheiros,   portanto,  quando   lhe   deram   tal   nome,   devem   ter   cometido   algum   equívoco,   cuja   natureza  todavia  só  podemos  conjecturar”.  Mitos  e  lendas  de  todo  tipo  logo  se  espalharam.  A  mais  famosa  versão,  adorada  pelos  comediantes  até  hoje,  é  a  de  que  “canguru”  era  a  frase   “não   entendo”,   resposta   supostamente   dada   pelos   nativos   atônitos   diante   da  pergunta  de  Cook:  “Como  se  chama  esse  animal?”  

Os   lexicógrafos  mais   responsáveis   preferiram  manter   a   cautela,   e   o  Oxford  English  Dictionary  escapa  pela  tangente  com  apropriada  elegância  na  seguinte  definição  que  —  no  momento  em  que  escrevo  —  ainda  aparece  na  edição  online:  “Canguru:  afirma-­‐se  ter  sido  o  nome  numa  língua  nativa  australiana.  Cook  e  Banks  acreditaram  ser  o  nome  dado  ao  animal  pelos  nativos  do  rio  Endeavour,  Queensland”.    

O   mistério   do   Novíssimo   Mundo   finalmente   foi   resolvido   em   /01/,   quando   o  antropólogo   John   Haviland   começou   um   intenso   estudo   do   guugu-­‐yimithirr,   uma  língua  falada  por  uma  comunidade  aborígine  de  cerca  de  mil  pessoas  que,  hoje  em  dia,   vivem   a   cerca   de   cinquenta   quilômetros   ao   norte   de   Cooktown,   mas   que  anteriormente  ocupava  o  território  perto  do  rio  Endeavour.  Haviland  descobriu  que  existe  um  tipo  particular  de  grande  canguru  cinzento  cujo  nome  em  guugu-­‐yimithirr  é  gangurru1.   A   paternidade  do  nome,   portanto,   já   não  podia   ser   posta   em  dúvida.  Mas  se  assim  é,  por  que  os   falantes  da  mesma  língua  não  deram  ao  capitão  King  o  mesmo   nome   quando   fez   sua   visita   em   0123?   Ora,   o   grande   gangurru   cinzento  localizado   pelo   grupo   de   Cook   só   raramente   é   visto   perto   da   costa,   de  modo   que   1 O  Dicionário  Houaiss  da  Língua  Portuguesa,   em   sua   versão   on-­‐line,   oferece   a   seguinte   etimologia:  “ing.  kangaroo  ("##$)   'id.',  em  sua  f.ant.  kangooroo,  de  gangurru,  de  um  idioma  nativo  da  Austrália”,  mais  próxima  dos  conhecimentos  atuais  sobre  a  língua,  portanto,  do  que  o  Oxford  citado  pelo  autor.  (N.  T.)

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King  provavelmente  apontou  para  um  tipo  diferente  de  canguru,  que  tinha  um  nome  diferente  em  guugu-­‐yimithirr.  Mas   jamais   saberemos  que   tipo  de  canguru   foi  visto  por  King,  porque  a  palavra  que  ele  registrou,  “minnar”  ou  “meenuah”,  foi  sem  dúvida  minha,  o  termo  geral  que  significa  “carne”  ou  “animal  comestível”.  

Então   o   capitão   Cook   não   foi   tapeado.   Suas   observações   linguísticas   agora   estão  reabilitadas  e,  por  conseguinte,  o  guugu-­‐yimithirr,  a  língua  que  legou  ao  vocabulário  internacional   seu   ícone   aborígine   mais   famoso,   ganhou   um   lugar   nos   corações   e  mentes  dos  amantes  de  sabedoria  de  almanaque  mundo  afora.  

COORDENADAS  EGOCÊNTRICAS  E  GEOGRÁFICAS  

“Então   você   leria   um   Livro   Edificante,   um   que   ajudasse   e   reconfortasse   um   urso   entalado   em  grande  aperto?”  Assim,  por  uma  semana,  Christopher  Robin  leu  esse  tipo  de  livro  na  extremidade  norte  de  Pooh,  e  o  Coelho  manteve  sua  lavagem  na  extremidade  sul.”  

(“Pooh  Goes  Visiting  and  Pooh  and  Piglet  Nearly  Catch  a  Woozle”)    

Existe  uma  razão  ainda  melhor  para  o  guugu-­‐yimithirr  merecer  sua  fama,  mas  essa  razão  é  desconhecido  até  mesmo  do  mais  ávido  colecionador  de  curiosidades  e  está  confinada  aos  círculos  dos  linguistas  e  antropólogos  profissionais.  O  nome  da  língua  guugu-­‐yimithirr   significa   algo   como   “este   tipo  de   língua”   ou   “falando  deste  modo”  (guugu   é   “língua”   e   yimi-­‐thirr   significa   “deste   modo”),   e   é   um   nome   bastante  adequado  já  que  o  guugu-­‐yimithirr  tem  um  modo  de  falar  sobre  relações  espaciais  que   é   decididamente   extraordinário.   Seu   método   de   descrever   a   organização   dos  objetos   no   espaço   parece   incrivelmente   estranho   para   nós   e,   quando   essas  particularidades  do  guugu-­‐yimithirr  foram  descobertas,  elas  inspiraram  um  projeto  de   pesquisa   de   larga   escala   sobre   a   linguagem   do   espaço.   As   descobertas   dessa  pesquisa   têm  levado  a  uma  revisão   fundamental  do  que  se   tinha  acreditado  serem  propriedades  universais  da  linguagem  humana  e  também  têm  fornecido  o  exemplo  mais  fascinante  até  agora  de  como  nossa  língua  materna  pode  afetar  o  modo  como  pensamos.  

Suponhamos  que  você  queira  dar   instruções  de  direção  para   alguém  chegar   à   sua  casa.   Você   pode   dizer   algo   como:   “Logo   depois   do   semáforo,   pegue   a   primeira   à  esquerda  e  continue  até  ver  o  supermercado  à  esquerda,  então  vire  à  direita  e  siga  até  o  final  da  rua,  onde  vai  ver  uma  casa  branca  bem  à  sua  frente.  Nossa  porta  é  a  da  direita”.   Você   poderia,   teoricamente,   também   dizer   o   seguinte:   “Logo   a   leste   do  semáforo,   siga   para   o   norte   e   continue   até   ver   o   supermercado   a   oeste.   Continue  então  a   leste  e  no   final  da  rua  vai  ver  uma  casa  branca  voltada  para  o   leste.  Nossa  porta  é  a  do  sul”.  Esses  dois  conjuntos  de  instruções  são  equivalentes  no  sentido  de  descreverem  o  mesmo  trajeto,  mas  se  valem  de  sistemas  diferentes  de  coordenadas.  O  primeiro   sistema  usa   coordenadas  egocêntricas,   cujos  eixos  dependem  do  nosso  corpo:  um  eixo  esquerda-­‐direita  e  um  eixo  frente-­‐atrás  ortogonal  ao  primeiro.  Esse  sistema  de  coordenadas  gira  conosco  toda  vez  que  nos  viramos.  Os  eixos  sempre  se  alternam   junto   com  nosso   campo  de   visão,   de  modo  que  o  que   está  na   frente   fica  para   trás   se   nos   voltarmos,   o   que   está   à   nossa   esquerda   agora   está   à   direita.   O  

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segundo   sistema  de   coordenadas   usa   direções   geográficas   fixas,   que   se   valem  dos  pontos  cardeais  da  bússola:  norte,  sul,  leste  e  oeste.  Essas  direções  não  mudam  com  meus  movimentos  —  o  que  está  a  norte  de  mim  permanece  exatamente  a  norte  de  mim,  por  mais  que  eu  me  contorça  e  me  vire.  

É  claro  que  os  sistemas  egocêntrico  e  geográfico  não  esgotam  as  possibilidades  de  falar   do   espaço   e   dar   direções   espaciais.   Alguém   poderia,   por   exemplo,   apenas  apontar   numa   direção   qualquer   e   dizer   “vá   por   ali”.  Mas,   a   bem   da   simplicidade,  vamos   nos   concentrar   nas   diferenças   entre   os   sistemas   egocêntrico   e   geográfico.  Cada   sistema   de   coordenadas   tem   suas   vantagens   e   desvantagens   e,   na   prática,  usamos   os   dois   em   nossas   vidas   diárias,   dependendo   da   adequação   ao   contexto.  Seria  mais   natural   usar   direções   cardeais   ao   dar   instruções   para   pedir   carona   na  zona  rural,  por  exemplo,  ou  de  modo  mais  geral  para  falar  de  orientação  em  grande  escala.  “O  Oregon  fica  ao  norte  da  Califórnia”  é  mais  natural  do  que  “o  Oregon  fica  à  direita  da  Califórnia  se  você  estiver  de  frente  para  o  mar”.  Mesmo  dentro  de  algumas  cidades,   especialmente   as   que   têm   eixos   geográficos   nítidos,   as   pessoas   usam  conceitos   geográficos   fixos   como   “zona   norte”   ou   “zona   sul”.   No   mais   das   vezes,  porém,  ao  dar  instruções  para  alguém  dirigir  ou  ir  a  pé,  é  muito  mais  comum  usar  as  coordenadas   egocêntricas:   “vire   à   esquerda,   depois   pegue   a   terceira   à   direita”   e  assim  por  diante.  As  coordenadas  egocêntricas  são  ainda  mais  prevalentes  quando  descrevemos  espaços  de  pequena  escala,  sobretudo  dentro  de  imóveis.  As  instruções  geográficas   podem   não   estar   completamente   ausentes   (os   corretores   de   imóveis  podem  se  empolgar  de  repente  com  o  lirismo  de  cômodos  voltados  para  o  sul),  mas  esse  uso  é,  quando  muito,  marginal.  Basta  pensar  como  seria  ridículo  dizer:  “Quando  sair   do   elevador,   caminhe   para   o   sul   e   depois   entre   na   segunda   porta   a   leste”.  Quando  Pooh   ficou  entalado  na  porta  da   frente  da  casa  do  Coelho  e   foi  obrigado  a  ficar  ali  durante  toda  uma  semana  até  reduzir  o  diâmetro  da  barriga,  A.  A.  Milner  se  refere  à   “extremidade  norte”  e  à   “extremidade  sul”  de  Pooh  e,   com   isso,   enfatiza  a  fixidez   desesperada   do   impasse   do   urso.   Mas   pense   como   seria   ridículo   para   um  treinador   de   aeróbica   ou   professor   de   balé   dizer:   “Agora   levante   sua  mão   norte   e  mova  sua  perna  sul  para  o  leste”.  

Por   que   o   sistema   egocêntrico   parece   tão   mais   fácil   e   mais   natural   de   lidar?  Simplesmente   porque   sempre   sabemos   onde   fica   “diante”   de   nós   e   onde   ficam  “atrás”,   “à   esquerda”   e   “à  direita”  de  nós.  Não  precisamos  de  um  mapa  ou  de  uma  bússola  para  operar  com  isso,  não  precisamos  olhar  para  o  sol  ou  para  o  Cruzeiro  do  Sul,   simplesmente   sentimos   isso,  porque  o   sistema  egocêntrico  de   coordenadas   se  baseia  diretamente  em  nosso  próprio  corpo  e  em  nosso  campo  de  visão  imediato.  O  eixo  frente-­‐atrás  passa  precisamente  entre  nossos  dois  olhos:  é  uma  longa  linha  reta  imaginária  que  se  projeta  do  nosso  nariz  até  o  infinito  e  que  gira  com  nossos  olhos  e  nariz  sempre  e  em  qualquer  lugar  que  nos  viremos.  De  igual  modo,  o  eixo  esquerda-­‐direita,   que   passa   sobre   nossos   ombros,   sempre   se   adapta   solicitamente   à   nossa  orientação.  

O   sistema   de   coordenadas   geográficas,   por   seu   turno,   se   baseia   em   conceitos  externos   que   não   se   adaptam   à   nossa   própria   orientação   e   que   precisam   ser  

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computados   (ou   recordados)   a   partir   da   posição   do   sol   ou   das   estrelas   ou   de  aspectos   da   paisagem.   Assim,   no   fim   das   contas,   recorremos   às   coordenadas  geográficas   só   quando   realmente   precisamos   fazer   isso:   se   o   sistema   egocêntrico  não   for   adequado   à   tarefa   ou   se   as   direções   geográficas   forem   especificamente  relevantes  (por  exemplo,  ao  avaliar  os  méritos  de  quartos  voltados  para  o  sul).  

Na  verdade,   filósofos  e  psicólogos  de  Kant  em  diante  têm  argumentado  que  todo  o  raciocínio  espacial  é  essencialmente  egocêntrico  por  natureza  e  que  nossas  noções  básicas   de   espaço   derivam   dos   planos   que   atravessam   nossos   corpos.   Um   dos  trunfos  do  argumento  para  a  primazia  das  coordenadas  egocêntricas,  é   claro,   foi  a  linguagem   humana.   Foi   dito   que   a   adesão   universal   das   línguas   às   coordenadas  egocêntricas  e  a  posição  privilegiada  que  todas  as  línguas  concedem  às  coordenadas  egocêntricas   acima   de   todos   os   demais   sistemas   fazem   desfilar   diante   de   nós   os  traços  universais  da  mente  humana.  

Mas   então   veio   o   guugu-­‐yimithirr.   E   então   veio   a   descoberta   estonteante   de   que  esses   aborígines   nus   que,   dois   séculos   atrás,   deram   o   canguru   ao   mundo   jamais  tinham   ouvido   falar   de   Immanuel   Kant.   Ou   pelo   menos   jamais   tinham   lido   seu  famoso  artigo  de  -./0  sobre  a  primazia  das  concepções  egocêntricas  de  espaço  para  a  linguagem  e  a  mente.  Ou,  quando  muito,  se  tinham  lido,  nunca  se  importaram  em  aplicar  a  análise  de  Kant  à  sua  própria   língua.  O  que  acontece  é  que  a   língua  deles  não  faz  absolutamente  nenhum  uso  das  coordenadas  egocêntricas!  

CHORANDO  COM  O  NARIZ  PARA  O  SUL  

Em   retrospectiva,   parece   quase   um   milagre   que,   quando   começou   a   pesquisar   o  guugu-­‐yimithirr  nos  anos   ,-./,   John  Haviland   tenha  podido  encontrar  alguém  que  falasse  a  língua.  Afinal,  o  contato  dos  aborígines  com  a  civilização  não  foi  totalmente  encorajador  para  a  conservação  de  sua  língua.  

Depois   que   o   capitão   Cook   partiu   em   2334,   os   guugu-­‐yimithirr   foram   a   princípio  poupados  de  contato  intenso  com  os  europeus  e,  por  todo  um  século,  deixados  por  conta  própria.  Mas  quando  as  forças  do  progresso  finalmente  chegaram,  vieram  com  a  velocidade  do  raio.  Descobriu-­‐se  ouro  na  região  em  -./0,  não  muito  longe  do  ponto  onde  o  Endeavour  de  Cook   tinha  ancorado,  e  uma  cidade  batizada  com  o  nome  do  capitão  foi  fundada  —  quase  literalmente  —  da  noite  para  o  dia.  Numa  sexta-­‐feira  de  outubro  de  )*+,,  um  navio  cheio  de  garimpeiros  penetrou  numa  foz  de  rio  silenciosa,  erma   e   longínqua.   E   no   sábado,   como   mais   tarde   descreveu   um   dos   viajantes,  “estávamos  no  meio  de  um  jovem  acampamento  de  mineiros  —  homens  a  correr  de  um   lado   para   o   outro,   tendas   sendo   erguidas   em   todas   as   direções,   os   gritos   de  marinheiros   e   trabalhadores   desembarcando   mais   cavalos   e   cargas,   combinados  com   o   estrépito   do   motor,   da   grua   e   das   correntes”.   Seguindo   as   pegadas   dos  mineiros,   fazendeiros   começaram   a   se   apoderar   de   propriedades   ao   longo   do   rio  Endeavour.   Os   garimpeiros   precisavam   de   terra   para   escavar   e   os   fazendeiros  precisavam  de  terra  e  poços  para  o  gado.  Na  nova  ordem,  não  sobrava  muito  espaço  para  os  guugu-­‐yimithirr.  Os  fazendeiros  se  enfureciam  por  eles  queimarem  a  grama  

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e  expulsarem  o  gado  dos  poços,  de  modo  que  a  polícia  foi  empregada  para  remover  os   nativos   da   terra   dos   pecuaristas.   Os   aborígines   reagiram   com   certo   grau   de  antagonismo  e  isso,  por  sua  vez,  instigou  nos  pecuaristas  uma  política  de  extermínio.  Menos   de   um   ano  depois   da   fundação   de   Cooktown,   o  Cooktown  Herald  explicava  num  editorial  que  “quando  os  selvagens  entram  em  confronto  com  a  civilização,  eles  têm  que  sucumbir;  é  o  destino  de  sua  raça.  Por  mais  que  deploremos  a  necessidade  de  semelhante  estado  de  coisas,  é  absolutamente  necessário,  a  fim  de  que  a  marcha  da   civilização  para     frente  não   seja   detida   pelo   antagonismo   dos   aborígines”.   Não  foram   ameaças   vazias,   pois   a   ideologia   foi   levada   a   cabo   por   uma   política   de  “dispersão”,  o  que  significou  fazer  desaparecer  as  aldeias  aborígines.  Os  nativos  que  não   foram   “dispersados”   se   retiraram  em  bandos   isolados  mata   adentro   ou   foram  levados  para  a  cidade,  onde  se  entregaram  à  bebida  ou  à  prostituição.  

Em   $%%&,   treze   anos   depois   da   fundação   de   Cooktown,   missionários   bávaros  estabeleceram  uma  missão  luterana  no  cabo  Redford,  a  norte  da  cidade,  para  tentar  salvar  as  almas  à  deriva  dos  pagãos  perdidos.  Mais   tarde,  a  missão  se  mudou  para  um  lugar  batizado  de  Hopevale  (“vale  da  Esperança”),  mais  para  o  interior.  A  missão  se  tornou  um  santuário  para  os  aborígines  remanescentes  de  toda  a  região  e  além.  Embora   pessoas   falantes   de   várias   línguas   aborígines   diferentes   tenham   sido  trazidas   para  Hopevale,   o   guugu-­‐yimithirr   se   tornou  dominante   e   se   converteu  na  língua   de   toda   a   comunidade.   Um   certo   sr.   Schwarz,   chefe   da   missão,   traduziu   a  Bíblia  para  o  guugu-­‐yimithirr  e,  embora  seu  domínio  da   língua   fosse  modesto,   seu  guugu-­‐yimithirr  errôneo  acabou  por  se  canonizar  como  um  tipo  de  “língua  de  igreja”,  que  as  pessoas  não  conseguem  entender  direito  mas  que  desfruta  de  uma  certa  aura,  como  o  latim  das  missas  católicas.  

Nas   décadas   seguintes,   a   missão   passou   por   ainda   mais   percalços   e   tribulações.  Durante  a  Segunda  Guerra  Mundial,  toda  a  comunidade  se  viu  relocada  a  força  para  o  sul,  e  o  septuagenário  missionário  sr.  Schwarz,  que  tinha  chegado  a  Cooktown  aos  dezenove   anos   de   idade   e   vivido   entre   os   guugu-­‐yimithirr   por   meio   século,   foi  enterrado   como   um   inimigo   estrangeiro.   E   no   entanto,   contra   todas   as  probabilidades,   a   língua   guugu-­‐yimithirr   de   algum  modo   se   recusou   a   entregar   a  alma.   Já   entrada   a   década   de   !"#$,   ainda   havia   alguns   homens   velhos   por   ali   que  falavam  uma  versão  autêntica  da  língua.  

Haviland  descobriu  que  o  guugu-­‐yimithirr,  tal  como  falado  pela  geração  mais  velha,  não   tem  palavra  alguma  para   “esquerda”  ou   “direita”   como  direção.  Mais  estranho  ainda,  tampouco  usa  termos  como  “diante”  ou  “atrás”  para  descrever  a  posição  dos  objetos.  Onde  quer  que  empreguemos  o  sistema  egocêntrico,  o  guugu-­‐yimithirr  usa  os   quatro   pontos   cardeais:  gungga   (norte),   jiba   (sul),  guwa   (oeste)   e  naga  (leste).  (Na  prática,  as  direções  que  eles  usam  estão  um  pouco  inclinadas  56  graus  ao  norte  da  bússola,  mas  isso  não  tem  grande  consequência  para  o  que  nos  interessa  aqui.)  

Se  os  falantes  de  guugu-­‐yimithirr  quiserem  que  alguém  se  afaste  dentro  de  um  carro  para  abrir  espaço,  eles  dirão  naga-­‐naga  manaayi,  que  significa  “mova-­‐se  um  pouco  para  o   leste”.   Se  quiserem  dizer   a   você  que   se  mova  um  pouco  para   trás  da  mesa,  

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dirão  guwa-­‐gu  manaayi,   “mova-­‐se  um  pouco  para  o  oeste”.  Aliás,   é   incomum  dizer  apenas   “mova-­‐se   um   pouco   para   lá”   em   guugu-­‐yimithirr.   Em   geral,   é   preciso  acrescentar   a   direção   correta:   “mova-­‐se   um  pouco   para   lá,   para   o   sul”.   Em   vez   de  dizer   que   João   está   “diante   da   árvore”,   eles   diriam   “João   está   bem   ao   norte   da  árvore”.  Se  quisessem  dizer  a  você  que  vire  na  próxima  à  esquerda,  diriam  “vá  para  o  sul   ali”.   Para   dizer   onde   exatamente   deixaram   algo   em   sua   casa,   diriam   “deixei   a  coisa   na   extremidade   sul   da   mesa   a   oeste”.   Para   que   você   apague   o   fogareiro   do  acampamento,  eles  diriam  “gire  o  botão  para  o  leste”.    

Na   década   de   ()*+,   outro   linguista,   Stephen   Levinson,   também   foi   a   Hopevale   e  descreveu  algumas  de  suas  bizarras  experiências  com  as  instruções  de  direção  dos  guugu-­‐yimithirr.   Certo   dia,   enquanto   tentava   filmar   o   poeta   Tulo   que   recitava   um  mito  tradicional,  Tulo  de  repente  lhe  disse  que  parasse  e  tomasse  cuidado  com  “essa  formiga   grande   logo   a   norte   do   teu   pé”.   Em   outra   ocasião,   um   falante   de   guugu-­‐yimithirr   chamado   Roger   explicou   onde   podiam   ser   encontrados   os   peixes  congelados   numa   loja   a   cerca   de   cinquenta   quilômetros   de   distância.   Você   vai  encontrá-­‐los  “no  canto  deste  lado”,  disse  Roger,  fazendo  um  gesto  à  sua  direita  com  dois   abanos   de   mão.   Levinson   supôs   que   o   movimento   indicasse   que,   quando   se  entrava   na   loja,   os   peixes   congelados   estariam   do   lado   direito.   Mas   não:   ele  descobriu  que  os  peixes  de  fato  estavam  à  esquerda  quando  se  entrava  na  loja.  Então  por   que   o   gesto   para   a   direita?   Roger   não   estava   indicando   direita   nenhuma.   Ele  estava  apontando  para  o  nordeste  e  esperava  que  seu  interlocutor  entendesse  que,  quando  entrasse  na  loja,  deveria  procurar  os  peixes  no  canto  nordeste.  

A   coisa   fica   ainda  mais   curiosa.   Quando   falantes   mais   velhos   de   guugu-­‐yimithirr  assistiram  um  pequeno  filme  mudo  num  televisor  e  foram  em  seguida  solicitados  a  descrever   os   movimentos   dos   protagonistas,   suas   respostas   dependeram   da  orientação  do  televisor  quando  estavam  assistindo.  Se  o  televisor  estivesse  de  frente  para  o  norte  e  um  homem  na   tela  parecesse  aproximar-­‐se,  os  homens  mais  velhos  diriam   que   o   homem   estava   “chegando   do   norte”.   Um   homem   mais   jovem   então  observou  que  é  sempre  possível  saber  para  que  lado  o  televisor  está  voltado  quando  os  mais  velhos  contam  a  história.  

 

 

 

 

 

 

 

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O   mesmo   recurso   às   direções   geográficas   se   mantém   até   quando   pedimos   aos  falantes   de   guugu-­‐yimithirr   que   descrevam   uma   figura   dentro   de   um   livro.  Suponhamos  que  o  livro  esteja  aberto  voltado  para  o  lado  norte.  Se  a  figura  mostrar  um  homem  de  pé  à  esquerda  de  uma  mulher,  os   falantes  de  guugu-­‐yimithirr  dirão  que   “o  homem  está  a  oeste  da  mulher”.  Mas  se  girarmos  o   livro  para  o   lado  oeste,  eles  dirão,  sobre  a  mesma  figura,  que  “o  homem  está  ao  norte  da  mulher”.  Eis,  por  exemplo,   como   um   falante   de   guugu-­‐yimithirr   descreveu   a   figura   acima   (adivinhe  para   que   lado   ele   estava   olhando):  bula  gabiir  gabiir,   “duas  moças”,  nyulu  nubuun  yindu   buthiil   naga,   “uma   tem   o   nariz   para   o   leste”,   nyulu   yindu   buthiil   jibaarr,   “a  outra,  nariz  para  o  sul”,  yugu  gaarbaarr  yuulili,  “uma  árvore  se  ergue  no  meio”,  buthiil  jibaar  nyulu  baajiiljil,  “ela  está  chorando  com  o  nariz  para  o  sul”.    

Se   você   estiver   lendo   um   livro   virado   para   o   norte   e   se   um   falante   de   guugu-­‐yimithirr   quiser   te   dizer   que   passe   as   páginas   adiante,   ele   dirá:   “vá   mais   para   o  leste”,  porque  as  páginas  são  passadas  do  leste  para  o  oeste.  Se  você  estiver  olhando  para  o   livro  virado  para  o   sul,   o   guugu-­‐yimithirr   evidentemente   lhe  dirá:   “vá  mais  para   o   oeste”.   Eles   até   sonham   em   direções   cardeais.   Uma   pessoa   explicou   como,  num  sonho,   tinha  entrado  no  céu,   indo  para  o  norte,   enquanto  o  Senhor  vinha  em  sua  direção  desde  o  sul.  

Existem  palavras  para  “mão  esquerda”  e  “mão  direita”  em  guugu-­‐yimithirr.  Mas  são  usadas  apenas  para  se  referir  a  propriedades  inerentes  de  cada  mão  (por  exemplo,  para  dizer  “consigo  levantar  isso  com  minha  mão  direita  mas  não  com  a  esquerda”).  Toda   vez   que   a  posição  de  uma  mão   em  qualquer  momento  particular   tem  de   ser  indicada,  usa-­‐se  uma  expressão  como  “mão  do  lado  oeste”.  

Em  nossa  língua,  as  coordenadas  giram  conosco  toda  vez  que  nos  viramos.  Para  os  guugu-­‐yimithirr,  os  eixos  sempre  permanecem  constantes.  Um  modo  de  visualizar  a  diferença  é  pensar  nas  duas  opções  das  telas  dos  sistemas  de  navegação  por  satélite.  Muitos   desses   aparelhos   deixam   você   escolher   entre   uma   tela   “com   o   norte   para  cima”  e  uma  tela  “dirigindo  para  a   frente”.  No  modo  “digirindo  para  a   frente”,  você  sempre  se  vê  movendo-­‐se  diretamente  para  adiante  na  tela,  mas  as  ruas  à  sua  volta  ficam   girando   à  medida   que   você   gira.  No  modo   “com  o   norte   para   cima”,   as   ruas  sempre  ficam  na  mesma  posição,  mas  você  vê  a  flecha  te  representando  a  girar  em  direções   diferentes,   de  modo   que,   se   você   estiver   dirigindo   para   o   sul,   a   flecha   se  moverá   para   baixo.   Nosso   mundo   linguístico   está   primordialmente   no   modo  “dirigindo  para  a  frente”,  mas  em  guugu-­‐yimithirr  as  pessoas  falam  exclusivamente  no  modo  “com  o  norte  para  cima”.  

UMA  MIGALHA  EM  SUA  BOCHECHA  VOLTADA  PARA  O  MAR  

A  primeira  reação  a  esses  relatos  seria  descartá-­‐los  como  uma  peça  muito  elaborada  que  aborígines  entediados  pregaram  em  alguns  linguistas  crédulos,  algo  semelhante  às   fabulosas   histórias   de   liberação   sexual   que   foram   contadas   à   antropóloga  Margaret  Mead  por  adolescentes  samoanas  nos  anos  0123.  [...]  Mas  como  foi  que  [os  

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guugu-­‐yimithirr]   conseguiram   inventar   algo   tão   radicalmente   diferente   e   em  dissonância  com  o  resto  do  mundo?  

Ora,   acontece   que   o   guugu-­‐yimithirr   não   é   assim   tão   incomum   quanto   se   possa  imaginar.   Mais   uma   vez,   nós   simplesmente   nos   equivocamos   ao   tomar   o   familiar  pelo  natural:  o  sistema  egocêntrico  só  pôde  ser  exibido  como  um  traço  universal  da  linguagem  humana  porque  ninguém  se  incomodou  em  examinar  a  fundo  as  línguas  que  fazem  as  coisas  de  outro  modo.  Em  retrospectiva,  parece  estranho  que  um  traço  tão  surpreendente  de  tantas  línguas  tenha  passado  desapercebido  por  tanto  tempo,  sobretudo   desde   que   os   indícios   começaram   a   rechear   a   literatura   acadêmica.  Referências   a   modos   incomuns   de   falar   do   espaço   (tais   como   “seu   pé   oeste”   ou  “poderia   me   passar   esse   tabaco   aí   a   leste”)   apareceram   em   relatos   sobre   várias  línguas  mundo   afora,  mas   não   ficava   claro   por   eles  que   tais   expressões   incomuns  fossem   além   da   bizarrice   ocasional.   Foi   necessário   o   caso   extremo   do   guugu-­‐yimithirr  para  inspirar  um  exame  sistemático  das  coordenadas  espaciais  num  amplo  espectro  de   línguas,   e   foi   somente   então  que   começou   a   se   insinuar   a   divergência  radical  de  algumas  línguas  com  respeito  ao  que  antes  tinha  sido  considerado  como  universal  e  natural.  

Para   começar,   na   própria   Austrália   o   recurso   às   coordenadas   geográficas   é  muito  comum.  Da  língua  djaru  de  Kimberley  na  Austrália  Ocidental,  ao  warlbiri,  falado  em  torno  de  Alice  Springs,  ao  kayardild,  falado  outrora  na  ilha  Bentick  em  Queensland,  parece   que   a   maioria   dos   aborígines   fala   (ou   falava)   num   evidente   estilo   guugu-­‐yimithirr.  Além  disso,  esse  modo  peculiar  tampouco  é  uma  aberração  dos  antípodas:  línguas   que   recorrem   às   coordenadas   geográficas   se   revelam   espalhadas   mundo  afora,  da  Polinésia  ao  México,  de  Bali  ao  Nepal,  da  Namíbia  a  Madagascar.    

Além  do  guugu-­‐yimithirr,  a  “língua  geográfica”  que  mais  tem  recebido  atenção  até  o  momento  se  encontra  do  outro  lado  do  planeta,  nos  planaltos  do  sudeste  mexicano.  De   fato,   já   topamos   com   a   língua   tzeltal,   num   contexto   inteiramente   diferente.   (O  tzeltal  foi  uma  das  línguas  do  estudo  de  Berlin  e  Kay  de  5676  sobre  os  termos  para  as  cores.  O  fato  de  seus  falantes  optarem  ou  por  um  verde  claro  ou  por  um  azul  claro  como   o  melhor   exemplo   de   sua   cor   “verdul”   foi   uma   inspiração   para   a     teoria   de  Berlin  e  Kay  dos  focos  universais.)  Os  falantes  de  tzeltal  vivem  num  dos  flancos  de  uma  cadeia  de  montanhas  que  se  ergue  grosso  modo  rumo  ao  sul  e  declina  rumo  ao  norte.   Diferentemente   dos   guugu-­‐yimithirr,   seus   eixos   geográficos   não   se   baseiam  nas  direções  da  bússola,  norte-­‐sul  e  leste-­‐oeste,  mas  sim  nesse  aspecto  proeminente  da   paisagem   local.   As   direções   em   tzeltal   são   “morro   abaixo”,   “morro   acima”   e  “através”,   que   pode   significar   as   duas   direções   do   eixo   perpendicular   morro-­‐abaixo/morro-­‐acima.  Quando   se   exige  uma  direção   específica  no   eixo   “através”,   os  falantes  de  tzeltal  combinam  “através”  com  um  topônimo  e  dizem  “através  no  rumo  de  X”.    

Sistemas   de   coordenadas   geográficas   baseados   em   aspectos   proeminentes   da  paisagem  também  são  encontrados  em  outras  partes  do  mundo.  Na  língua  das  ilhas  Marquesas,   na   Polinésia   francesa,   por   exemplo,   o   eixo   principal   é   definido   pela  

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oposição  mar/terra.  Assim,  um  marquesano  diria  que  um  prato  sobre  a  mesa  está  “lado-­‐terra   do   copo”,   ou   que   você   tem   uma  migalha   “em   sua   bochecha   lado-­‐mar”.  Também   existem   sistemas   que   combinam   as   direções   cardeais   e   os   aspectos   da  paisagem.  Na  língua  da  ilha  indonésia  de  Bali,  um  eixo  se  baseia  no  sol  (leste-­‐oeste)  e  o  outro  eixo  se  baseia  em  aspectos  físicos:  ele  se  estende  “para  o  mar”,  de  um  lado,  e   “para   a  montanha”  do  outro,   na  direção  do  vulcão   sagrado  Gunung  Anang,   onde  residem  os  deuses  hindus  de  Bali.  

Mais  acima  eu  disse  que  seria  o   cúmulo  do  absurdo  que  uma  professora  de  dança  dissesse  coisas  como  “levante  agora  sua  mão  norte  e  dê  três  passos  para  o  leste”.  Mas  para   algumas   pessoas   a   piada   não   faria   sentido.   O   musicólogo   canadense   Colin  McPhee   passou   vários   anos   em   Bali   nos   anos   4567,   pesquisando   as   tradições  musicais  da  ilha.  Em  seu  livro  A  House  in  Bali,  ele  se  recorda  de  um  menino  chamado  Sampih  que  demonstrou  grande  talento  e  entusiasmo  para  a  dança.  Como  não  havia  professor   adequado   na   aldeia   do   menino,   McPhee   persuadiu   a   mãe   de   Sampih   a  deixá-­‐lo   levar   o   garoto   para   um   professor   numa   aldeia   diferente,   de   modo   que  pudesse   aprender   os   rudimentos   da   arte.   Depois   de   ter   tomado   todas   as  providências,  McPhee   viajou   com   Sampih   até   o   professor,   deixou-­‐o   lá   e   prometeu  voltar   em   cinco   dias   para   verificar   os   progressos   do   menino.   Dado   o   talento   de  Sampih,  McPhee  tinha  certeza  de  que,  cinco  dias  depois,  estaria  interrompendo  uma  lição   avançada.   Mas,   ao   retornar,   encontrou   Sampih   abatido,   quase   doente,   e   o  professor,   exasperado.  Era   impossível   ensinar  o   garoto  a  dançar,   disse  o  professor,  pois  Sampih  simplesmente  não  entendia  nenhuma  das  instruções.  Por  quê?  Porque  Sampih  não  sabia  onde  ficava  “o  lado  da  montanha”,  “o  lado  do  mar”,  “leste”  e  “oeste”,  de  modo  que,  quando  o  professor  lhe  pedia  “três  passos  para  o  lado  da  montanha”  ou   “curve-­‐se   para   o   leste”,   ele   não   sabia   o   que   fazer.   Sampih   não   teria   nenhuma  dificuldade   com   essas   indicações   em   sua   própria   aldeia,   mas   como   jamais   tinha  saído  de  lá  antes  e  como  a  paisagem  lhe  era  estranha,  ficava  desorientado  e  confuso.  Não   adiantava   o   professor   apontar   toda   vez   para   o   lado   da  montanha:   Sampih   se  esquecia  sempre.  Foi   tudo  em  vão.  Por  que  o  professor  não  tentou  usar   instruções  diferentes?  Decerto  ele  responderia  que  dizer  “três  passos  para  a  frente”  ou  “curve-­‐se  para  trás”  seria  o  cúmulo  do  absurdo.  

INTUIÇÃO  PERFEITA  PARA  SE  ORIENTAR  

O   que   tenho   relatado   até   agora   são   apenas   fatos.   Podem   parecer   estranhos,   e  certamente  é  estranho  que  tenham  sido  descobertos  só  recentemente,  mas  as  provas  coletadas   por   diversos   pesquisadores   em  diferentes   partes   do  mundo  não   deixam  mais  lugar  para  dúvida  acerca  de  sua  veracidade.  Nos  aventuramos  em  terreno  mais  arriscado,  porém,  quando  nos  movemos  dos  fatos  sobre  a  língua  para  suas  possíveis  implicações  sobre  a  mente.  Culturas  diferentes  sem  dúvida  fazem  as  pessoas  falar  do  espaço   de   maneiras   radicalmente   diferentes.   Mas   será   que   isso   significa  necessariamente   que   os   falantes   também   pensam   sobre   o   espaço   de   maneira  diferente?   A   essa   altura   luzes   vermelhas   devem   estar   piscando   e   nos   vemos   em  estado  de  alerta-­‐Whorf.  Deve  estar   claro  que,   se  uma   língua  não   tem  uma  palavra  

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para  determinado  conceito,  isso  não  significa  necessariamente  que  seus  falantes  não  podem  entender  tal  conceito.  

De   fato,   falantes   de   guugu-­‐yimithirr   são   perfeitamente   capazes   de   entender   os  conceitos   de   esquerda   e   direita   quando   falam   inglês.   Ironicamente,   parece   que  alguns   deles   até   cultivam   noções   whorfianas   sobre   a   suposta   incapacidade   dos  falantes   de   inglês   de   entender   as   direções   cardeais.   John   Haviland   relata   como  estava  certa  vez  trabalhando  com  um  informante  na  tradução  de  contos  tradicionais  guugu-­‐yimithirr  para  o   inglês.  Uma  história  dizia   respeito   a  uma   lagoa  que   fica   “a  oeste  do  aeroporto  de  Cooktown”  —  uma  descrição  que  a  maioria  dos   falantes  de  inglês   acharia   perfeitamente   natural   e   entenderia   perfeitamente   bem.   Mas   seu  informante   guugu-­‐yimithirr   disse,   de   repente:   “Mas   os   amigos   brancos   não   vão  entender   isso.   Em   inglês   é   melhor   dizer   ‘à   direita   quando   você   dirige   para   o  aeroporto’.”  

Em  vez  de  procurar  em  vão  como  a  falta  de  coordenadas  egocêntricas  restringiria  os  horizontes  intelectuais  dos  guugu-­‐yimithirr,  devemos  recorrer  ao  princípio  de  Boas-­‐Jakobson   e   buscar   as   diferenças   naquilo   que   as   línguas   obrigam   seus   falantes   a  expressar  e  não  naquilo  que  elas   lhes  permitem  expressar.  Nesse  caso  particular,  a  questão  relevante  é  quais  os  hábitos  mentais  que  podem  se  desenvolver  nos  falantes  de   guugu-­‐yimithirr   por   causa   da   necessidade   de   especificar   direções   geográficas  toda  vez  que  a  informação  espacial  tem  de  ser  comunicada.  

Quando  a  questão   é   formulada  dessa  maneira,   a   resposta  parece   inescapável,  mas  nem  por  isso  menos  surpreendente.  A  fim  de  falar  guugu-­‐yimithirr,  a  pessoa  precisa  saber   onde   estão   as   direções   cardeais   a   todo   e   cada   momento   de   sua   existência  terrestre.  Precisa  saber  exatamente  onde  estão  o  norte,  o  sul,  o  leste  e  o  este,  já  que  de   outro   modo   não   seria   capaz   de   fornecer   a   informação   mais   básica.   Por  conseguinte,   para  pode   falar   tal   língua,   é   preciso   ter   uma   bússola   na  mente,   uma  bússola  que  funciona  o  tempo  todo,  dia  e  noite,  sem  pausa  para  o  almoço  nem  finais  de  semana.  

Ora,  acontece  que  os  guugu-­‐yimithirr  têm  exatamente  esse  tipo  de  bússola  infalível.  Eles  conservam  sua  orientação  com  relação  aos  pontos  cardeais  fixos  o  tempo  todo.  Não   importam  as  condições  de  visibilidade,  não   importa  se  estão  no  mato   fechado  ou  na  planície  aberta,  dentro  de  casa  ou  ao  ar  livre,  parados  ou  em  movimento,  eles  têm  um  senso  de  direção  instantâneo.  Stephen  Levinson  relata  como  levou  falantes  de  guugu-­‐yimithirr  em  diversas  viagens  a  lugares  não  familiares,  tanto  a  pé  como  de  carro,  e  em  seguida  testou  a  orientação  deles.  Na  região  em  que  vivem,  é  muito  difícil  viajar   em   linha   reta,   já   que   a   estrada   frequentemente   tem   que   se   desviar   de  pântanos,  manguezais,   rios,  montes,   dunas  de   areia,   florestas   e,   a   pé,   de   capinzais  infestados   de   cobras.   Mesmo   assim,   porém,   e   até   quando   levados   para   dentro   de  florestas  densas  sem  qualquer  visibilidade,  mesmo  dentro  de  cavernas,  eles  sempre,  sem   nenhuma   hesitação,   conseguiam   apontar   corretamente   para   as   direções  cardeais.  Eles  não  fazem  nenhuma  computação  consciente:  não  olham  para  o  sol  e  se  detêm  num  momento  de  cálculo  antes  de  dizer   “a   formiga  está  a  norte  do   teu  pé”.  

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Eles  parecem  ter  uma  intuição  perfeita  para  as  direções.  Simplesmente  sentem  onde  está   o   norte,   o   sul,   o   leste   e   o   oeste,   assim   como   as   pessoas   com  ouvido   absoluto  sabem  qual  é  a  nota  sem  calcular  intervalos.  

Histórias   semelhantes   são   contadas   sobre   os   falantes   de   tzeltal.   Levinson   relata  como  um   falante   foi  vendado  e  girado  mais  de  vintes  vezes  numa  casa  às  escuras.  Ainda  vendado  e   tonto,  ele  apontou  sem  problemas  para  a  direção  “morro-­‐abaixo”.  Uma  mulher   foi   levada  à  cidade  para   tratamento  médico.  Poucas  vezes,  ou  mesmo  nenhuma  vez,   ela  estivera  antes  na  cidade  e   sem  dúvida  nunca  na  casa  onde   ficou  hospedada.   No   quarto,   a   mulher   percebeu   um   aparato   pouco   familiar,   uma   pia,   e  perguntou  ao  marido:  “A  água  quente  fica  na  torneira  morro-­‐acima?”  

Os   guugu-­‐yimithirr   consideram   esse   senso   de   direção   perfeitamente   óbvio,   um  ponto   pacífico.   Não   conseguem   explicar   como   sabem   os   pontos   cardeais,   tanto  quanto  você  não  consegue  explicar  como  sabe  onde  está  a  sua   frente  e  onde  estão  sua   esquerda   e   sua   direita.   Uma   coisa   que   se   pode   afirmar,   no   entanto,   é   que   o  candidato  mais   óbvio,   isto   é,   a   posição   do   sol,   não   é   o   único   fator   em  que   eles   se  apoiam.  Várias  pessoas  relataram  que,  ao  viajar  de  avião  a  lugares  muito  longínquos  como  Melbourne,   distante  mais   de   três   horas   de   voo,   experimentaram   a   estranha  sensação  de  que  o  sol  não  nascia  no  leste.  Uma  pessoa  chegou  a  insistir  que  estivera  num  lugar  onde  o  sol  realmente  não  nascia  no  leste.  Isso  significa  que  a  orientação  dos   guugu-­‐yimithirr   deixa   eles   na   mão   quando   são   deslocados   para   uma   região  geográfica  inteiramente  diferente.  Mais  importante,  porém,  isso  mostra  que  em  seu  próprio  ambiente  eles  se  valem  de  outros  indícios  além  da  posição  do  sol  e  que  esses  indícios   podem   até   mesmo   ter   primazia.   Quando   Levinson   perguntou   a   alguns  informantes   se   poderiam   pensar   em   indícios   que   ajudassem   ele   a   melhorar   seu  senso   de   direção,   eles   ofereceram   dicas   como   as   diferenças   de   luminosidade   dos  lados   dos   troncos   de   determinadas   árvores,   a   orientação   dos   cupinzeiros,   as  direções   dos   ventos   em   certas   estações,   os   voos   dos   morcegos   e   das   aves  migratórias,  o  alinhamento  das  dunas  de  areia  na  área  litorânea.  

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Johannes  Vermeer,  A  leiteira,  c.  !"#$-­‐!"  

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Mas   estamos   apenas   começando,   porque   o   senso   de   orientação   que   se   exige   para  falar  uma  língua  do  tipo  guugu-­‐yimithirr  tem  que  se  estender  para  além  do  presente  imediato.  Como  fica,  por  exemplo,  o  relato  de  experiências  passadas?  Suponha  que  eu  te  peça  para  descrever  um  quadro  que  você  viu  num  museu  muito  tempo  atrás.  Você   provavelmente   descreveria   o   que   vê   em   seu   olho  mental,   digamos,   a   leiteira  despejando  o  leite  numa  tigela  sobre  uma  mesa,  a  luz  vindo  da  janela  à  esquerda  e  iluminando   a   parede   atrás   da   moça   e   assim   por   diante.   Ou   suponha   que   esteja  tentando   se   lembrar   de   um   acontecimento   dramático   ocorrido  muitos   anos   atrás,  quando  seu  veleiro  emborcou  na  Grande  Barreira  de  Coral.  Você  saltou  para  a  direita  justo  antes  que  o  barco  rolasse  para  a  esquerda,  e  enquanto  nadava  viu  um  tubarão  bem   à   sua   frente,   mas...   se   você   tiver   sobrevivido   para   contar   o   acidente,  provavelmente  o  descreveria  mais  ou  menos  como  acabei  de  fazer,  localizando  cada  coisa  a  partir  do  ponto  de  vista  de  sua  orientação  no  momento:  pular  “para  a  direita”  do  barco,  o  tubarão  “na  sua  frente”.  O  que  você  provavelmente  não  recordará  é  se  o  tubarão   estava   exatamente   a   norte   de   você,   que   nadava   para   o   sul,   ou   a   oeste   de  você,  que  nadava  para  o  leste.  Afinal,  quando  se  tem  um  tubarão  bem  na  sua  frente,  uma   das   últimas   coisas   com   que   se   preocupar   é   o   ponto   cardeal.   De   igual  modo,  mesmo  que  na  época  em  que  visitou  o  museu  você  tivesse  conseguido  distinguir  a  orientação  da  sala  em  que  o  quadro  estava  exposto,  é  extremamente  improvável  que  se  lembre  agora  se  a  janela  no  quadro  estava  a  norte  ou  a  leste  da  moça.  O  que  você  verá  em  seu  olho  mental  é  o  quadro  tal  como  parecia  quando  você  ficou  diante  dele,  eis  tudo.  

Mas   se   você   fala   uma   língua   do   tipo   guugu-­‐yimithirr,   esse   tipo   de   memória  simplesmente  não  vai  servir.  Não  pode  dizer  “a  janela  à  esquerda  da  moça”,  pois  terá  que  se  lembrar  se  a  janela  estava  a  norte,  sul,  leste  ou  oeste  dela.  Da  mesma  maneira,  não   pode   dizer   “o   tubarão   na   minha   frente”.   Se   quiser   descrever   a   cena,   terá   de  especificar,   mesmo   vinte   anos   depois,   em   que   direção   cardeal   estava   o   tubarão.  Assim,   suas   lembranças   de   qualquer   coisa   que   você   possa   um   dia   querer   contar  terão  de  estar   armazenadas  em  seu   cérebro   com  direções   cardeais   como  parte  do  quadro.  

Acha   que   estou   inventando?   John   Haviland   filmou   um   falante   de   guugu-­‐yimithirr,  Jack  Bambi,  contando  a  velhos  amigos  o  caso  de  como,  na  juventude,  seu  barco  virou  em  águas  infestadas  de  tubarões  mas  ele  conseguiu  nadar  a  salvo  até  a  praia.  Jack  e  outra   pessoa   estavam   numa   viagem   num   barco   missionário,   levando   roupas   e  provisões   para   uma   aldeia   afastada   no   rio   McIvor.   Foram   apanhados   numa  tempestade  e  seu  barco  emborcou  num  redemoinho.  Ambos  se   jogaram  na  água  e  conseguiram  nadar  quase  cinco  quilômetros  até  a  praia,  só  para  descobrir,  de  volta  à  missão,  que  o  sr.  Schwarz  estava  muito  mais  preocupado  com  a  perda  do  barco  do  que  aliviado  com  a  salvação  milagrosa  deles.  Excetuando  seu  conteúdo,  a  coisa  mais  notável  desse  relato  é  que  ele  foi  relembrado  de  ponta  a  ponta  em  termos  de  pontos  cardeais:  Jack  Bambi  pulou  na  água  do  lado  oeste  do  barco,  seu  companheiro  pulou  do  lado  leste,  eles  viram  um  tubarão  enorme  nadando  ao  norte  e  assim  por  diante.  

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Quem  sabe  as  direções  cardeais   tenham  sido   inventadas  para  aquela  ocasião?  Ora,  num   lance   do   acaso,   Sephen   Levinson   filmou   a   mesma   pessoa   dois   anos   depois,  contando  a  mesma  história.  As  direções  cardeais  coincidiram  perfeitamente  nos  dois  relatos.  Ainda  mais  notáveis  foram  os  gestos  de  mão  que  acompanharam  a  história  de  Jack.  No  primeiro  filme,  rodado  em  2345,  Jack  está  voltado  para  o  oeste.  Quando  conta  como  o  barco  emborcou,  ele  gira  as  mãos  para  a  frente,  afastando-­‐as  do  corpo.  Em  $%&',  ele  está  sentado  de  frente  para  o  norte.  Agora,  quando  chega  ao  clímax,  em  que   o   barco   vira,   ele   faz   um  movimento   giratório   com   as  mãos   da   direita   para   a  esquerda.   Só   esse   modo   de   representar   os   movimentos   com   as   mãos   estava  completamente  errado.  Mas  é  que  Jack  não  estava  de  modo  algum  girando  as  mãos  da  direita  para  esquerda.  Em  ambas  as  ocasiões,  ele  estava  simplesmente  rolando  as  mãos  do  leste  para  o  oeste!  Ele  manteve  a  direção  geográfica  correta  do  movimento  do  barco,   sem  nem  ao  menos  prestar  um  segundo  de  atenção  a   isso.  E,  de   fato,  na  época  do  ano  em  que  o  acidente  ocorreu,  há  fortes  ventos  na  área  vindos  do  sudeste,  de  modo  que  é  muito  plausível  que  o  barco  tenha  virado  do  leste  para  o  oeste.  

Levinson   também   relata   como  um  grupo  de   homens   de  Hopevale   certa   vez   foi   de  carro   até   Cairns,   a   cidade   mais   próxima,   cerca   de   345   quilômetros   ao   sul,   para  discutir  questões  de  direitos  fundiários  com  outros  grupos  aborígines.  A  reunião  se  deu  numa  sala  sem  janelas,  num  prédio  acessível  ou  por  um  beco  ou  através  de  um  estacionamento,  de  modo  que  a   relação  entre  o  prédio  e   sua  disposição  na   cidade  ficou   de   certo   modo   obscurecida.   Cerca   de   um   mês   depois,   de   volta   a   Hopevale,  Levinson  perguntou  a  alguns  participantes  sobre  a  orientação  da  sala  de  reunião  e  as   posições   dos   oradores   no   encontro.   Obteve   respostas   precisas,   e   concordância  total,  sobre  a  orientação  em  direções  cardeais  do  principal  orador,  do  quadro  negro  e  de  outros  objetos  na  sala.    

[...]  

 

 

CORRELAÇÃO  OU  CAUSA?  

Uma   das   mais   tentadoras   e   mais   comuns   de   todas   as   falácias   lógicas   é   saltar   da  correlação  para  a  causa:  supor  que,  só  porque  dois  fatos  se  correlacionam,  um  deles  foi  a   causa  do  outro.  Para   levar  esse   tipo  de   lógica  à   sua  reductio  ad  absurdum,   eu  proporia  a  brilhante  teoria  nova  de  que  a   língua  pode  afetar  a  cor  dos  cabelos.  Em  particular,  afirmo  que  falar  sueco  faz  os  cabelos  da  pessoa  ficarem  loiros  e  que  falar  italiano   deixa   os   cabelos  mais   escuros.  Minha   prova?   As   pessoas   que   falam   sueco  tendem   a   ter   cabelos   loiros.   As   pessoas   que   falam   italiano   tendem   a   ter   cabelos  escuros.   Quod   erat   demonstrandum.   Contra   esse   epítome   do   raciocínio   lógico  compacto,  é  possível  se  levantar  com  algumas  ínfimas  objeções  na  seguinte  direção:  sim,  seus  fatos  sobre  a  correlação  entre  língua  e  cor  dos  cabelos  são  perfeitamente  corretos.  Mas  não  poderia  ser  outra  coisa  que  não  a  língua  o  que  levou  os  suecos  a  

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ter   cabelo   loiro   e   os   italianos,   cabelo   escuro?  Que   tal   os   genes,   por   exemplo,   ou   o  clima?  

Ora,  no  que  diz  respeito  a   língua  e  raciocínio  espacial,  a  única  coisa  que  realmente  temos  confirmada  é  a  correlação  entre  dois  fatos:  o  primeiro  é  que  línguas  diferentes  se   valem  de   diferentes   sistemas   de   coordenadas;   o   segundo   é   que   falantes   dessas  línguas  percebem  e   recordam  o  espaço  de  maneiras  diferentes.  É   claro  que  minha  ilação  o  tempo  todo  é  a  de  que  tem  mais  coisa  aqui  do  que  simples  correlação  e  que  a   língua   materna   é   uma   importante   causa   dos   padrões   de   memória   e   orientação  espaciais.  Mas  como  podemos  ter  certeza  de  que  a  correlação  aqui  não  é  tão  espúria  quanto  aquela  entre   língua  e  cor  de  cabelo?  Afinal,  não  é  como  se  a  própria   língua  pudesse  criar  diretamente  um  senso  de  orientação  em  qualquer  um.  Podemos  não  saber  exatamente  em  que  indícios  os  guugu-­‐yimithirr  se  apoiam  para  dizer  onde  fica  o   norte,   mas   podemos   estar   absolutamente   certos   de   que   sua   extraordinária  segurança  acerca  das  direções  só  poderia  ter  sido  obtida  por  meio  da  observação  de  aspectos  do  ambiente  físico.    

No   entanto,   o   argumento   proposto   aqui   é   o   de   que   uma   língua   como   o   guugu-­‐yimithirr   indiretamente   suscita   o   senso   de   orientação   e   a   memória   geográfica,  porque  a  convenção  de  se  comunicar  somente  em  coordenadas  geográficas  compele  os   falantes   a   ter   consciência   das   direções   o   tempo   todo,   obrigando-­‐os   a   prestar  atenção  constante  aos  indícios  ambientais  relevantes  e  a  desenvolver  uma  memória  precisa   de   sua   própria   orientação  ao   se  moverem.   John  Haviland   calcula   que   pelo  menos  uma  em  cada  dez  palavras  (!)  numa  conversa  normal  em  guugu-­‐yimithirr  é  norte,   sul,   leste   ou   oeste,   frequentemente   acompanhada   de   gestos  manuais  muito  precisos.  Dito  de  outro  modo,  a  comunicação  cotidiana  em  guugu-­‐yimithirr  oferece  o  mais   intenso   treinamento   em   orientação   geográfica   desde   a   idade   mais   tenra  imaginável.  Para  ser  capaz  de  entender  as  coisas  mais  simples  que  as  pessoas  dizem  ao  seu  redor,  você  desenvolverá  o  hábito  de  calcular  e  recordar  as  direções  cardeais  a  cada  segundo  de  sua  vida.  E  como  esse  hábito  mental  será  inculcado  quase  desde  a  lactância,  cedo  ele  se  tornará  uma  segunda  natureza,  sem  esforço  e  inconsciente.  

O  elo  causal  entre  língua  e  raciocínio  espacial  parece,  assim,  muito  mais  plausível  do  que  a   tese  da   língua  e  da  cor  do  cabelo.  Entretanto,  a  plausibilidade  nem  de   longe  constitui   prova.   E,   realmente,   alguns   psicólogos   e   linguistas,   como   Peggy   Li,   Lila  Gleitman   e   Steven   Pinker,   têm   objetado   à   afirmação   de   que   é   primordialmente   a  língua   que   influencia   a  memória   e   a   orientação   espacial.   Em  The  Stuff  of  Thought,  Pinker  alega  que  as  pessoas  desenvolvem  seu  pensamento  espacial  por  razões  não  relacionadas   à   língua   e   que   as   línguas   simplesmente   refletem   o   fato   de   que   seus  falantes   pensam   num   determinado   sistema   de   coordenadas   qualquer.   Ele   enfatiza  que  são  sobretudo  as  pequenas  sociedades  rurais  que  se  valem  predominantemente  das   coordenadas   geográficas,   enquanto   todas   as   grandes   sociedades   urbanas   se  valem   predominantemente   das   coordenadas   egocêntricas.   Desse   fato   inegável   ele  conclui   que   o   sistema   de   coordenadas   usado   numa   língua   é   determinado  diretamente  pelo  ambiente  físico:  quem  vive  numa  cidade  passará  a  maior  parte  do  tempo  entre  quatro  paredes  e,  mesmo  quando  tiver  de  se  aventurar  lá  fora,  virar  à  

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direita   e   depois   à   esquerda   e   logo   à   esquerda  de  novo  depois   do   semáforo   será   o  jeito  mais  fácil  de  se  orientar,  de  modo  que  o  ambiente  estimulará  a  pessoa  a  pensar  primordialmente   em   coordenadas   egocêntricas.   Por   outro   lado,   se   a   pessoa   vive  como  um  nômade  na  mata  australiana,  não  existem  ruas  nem  segunda  à  esquerda  depois  do  semáforo  para  guiá-­‐la,  de  modo  que  as  direções  egocêntricas  serão  muito  pouco  úteis  e  a  pessoa  naturalmente  passará  a  pensar  em  coordenadas  geográficas.  Portanto,  o  modo  como  você  acaba   falando  do  espaço   será  apenas  um  sintoma  do  modo  como  você  pensa  em  geral.  

Além  disso,   diz  Pinker,   o   ambiente  determina  não   só   a   escolha   entre   coordenadas  egocêntricas   e   geográficas,   mas   até   o   tipo   particular   de   coordenadas   que   serão  usadas  numa   língua.  Certamente  não  é  uma  coincidência  que  os   falantes  de   tzeltal  sejam   dominados   por   um   marco   geográfico   visível,   a   inclinação   morro   abaixo   e  morro  acima,  e  por  isso  é  simplemente  natural  para  eles  depender  desse  eixo  e  não  das  direções  da  bússola,  menos  precisas.  Mas  como  o  ambiente  dos  guugu-­‐yimithirr  carece   desses   marcos   geográficos   proeminentes,   não   admira   que   seus   eixos   se  baseiem  nas  direções  da  bússola.  Em  suma,  Pinker  afirma  que  o  ambiente  decretou  para  nós  as  coordenadas  com  as  quais  pensamos,  e  que  é  esse  pensamento  espacial  que  determina  a  linguagem  espacial  e  não  vice-­‐versa.  

Embora   os   fatos   de   Pinker   sejam   dificilmente   objetáveis,   seu   determinismo  ambiental  não  convence  por  diversas  razões.  Faz  sentido,  é  claro,  que  cada  cultura  abrigará   um   sistema   de   coordenadas   adequado   a   seu   ambiente.   No   entanto,   é  fundamental  dar-­‐se  conta  de  que  diferentes   culturas   têm  um  grau  considerável  de  liberdade.   Por   exemplo,   não   existe   nada   no   ambiente   dos   guugu-­‐yimithirr   que   os  impeça   de   usar   tanto   as   coordenadas   geográficas   (para   espaço   de   grande   escala)  quanto   coordenadas   egocêntricas   (para   pequena   escala).   Não   há   razão   concebível  alguma   para   que   uma   existência   tradicional   caçadora-­‐coletora   impeça   alguém   de  dizer  “tem  uma  formiga  diante  do  seu  pé”  em  vez  de  “a  norte  do  seu  pé”.  Afinal,  como  descrição  de  relações  espaciais  de  pequena  escala,  “diante  do  seu  pé”  é  tão  sensato  e  útil  na  mata  australiana  quanto  dentro  de  um  escritório  em  Londres  ou  Manhattan.  Não  se  trata  de  um  mero  argumento  teórico  —  existem  várias  línguas  de  sociedades  semelhantes  à  guugu-­‐yimithirr  que  de   fato  usam  tanto  as  coordenadas  geográficas  quanto   as   egocêntricas.   Na   mesma   Austrália   há   línguas   aborígines,   como   o  jaminjung   do   Território   do   Norte,   que   não   se   valem   apenas   das   coordenadas  geográficas.   Assim,   o   uso   exclusivo   das   coordenadas   geográficas   pelos   guugu-­‐yimithirr   não   foi   diretamente   imposto   pelo   ambiente   físico   ou   pelo  modo   de   vida  caçador-­‐coletor.  É  uma  convenção  cultural.  A  recusa  categórica  das  formigas  guugu-­‐yimithirr   de   nem   sequer   se   arrastar   “diante   dos”   pés   guugu-­‐yimithirr   não   é   um  decreto  da  natureza,  mas  uma  expressão  de  escolha  cultural.  

Além   disso,   existem   línguas   não   aparentadas   mundo   afora   faladas   em   ambientes  semelhantes   mas   que   nem   por   isso   escolheram   se   basear   em   sistemas   de  coordenadas  diferentes.  O   tzeltal,   como  vimos,   usa   coordenadas   geográficas  quase  exclusivamente,  mas   o   iucateque,   outra   língua  maia   de   uma   comunidade   rural   do  México,   emprega   predominantemente   coordenadas   egocêntricas.   Na   savana   do  

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norte   da   Namíbia,   os   bosquímanos   hai||om   falam   do   espaço   como   os   tzeltal   e   os  guugu-­‐yimithirr,  ao  passo  que  a  língua  da  tribo  kgalagadi,  do  vizinho  Botsuana,  que  vive  num  ambiente  semelhante,  se  vale  pesadamente  das  coordenadas  egocêntricas.  E  quando  dois  antropólogos  compararam  como  os  falantes  de  hai||om  e  de  kgalagadi  respondiam   a   experimentos   de   rotação   do   tipo   que   vimos   acima,   a   maioria   dos  falantes   de   hai||om   ofereceu   soluções   geográficas   (que   parecem   contraintuitivas  para  nós),  enquanto  os  de  kagalagadi  tenderam  a  dar  soluções  egocêntricas.  

Portanto,  o  sistema  de  coordenadas  de  cada   língua  não  pode  ter  sido  determinado  completamente   pelo   ambiente,   o   que   significa   que   diferentes   culturas   têm   de   ter  exercido  alguma  escolha.  De  fato,  todas  as  evidências  sugerem  que  devemos  seguir  a  máxima  “liberdade  com  restrições”  como  a  melhor  maneira  de  entender  a  influência  da  cultura  sobre  a  escolha  de  sistemas  de  coordenadas.  A  natureza  —  neste  caso,  o  ambiente   físico  —   sem   dúvida   restringe   os   tipos   de   sistema   de   coordenadas   que  podem   ser   usados   racionalmente   numa   dada   língua.   Mas   existe   liberdade  considerável   dentro   dessas   restrições   para   se   selecionar   entre   diferentes  alternativas.  

Há  um  outro  erro  fundamental  no  determinismo  ambiental  de  Pinker:  o  ocultamento  do  fato  de  que  o  ambiente  não  interage  diretamente  com  um  bebê  que  engatinha  ou  uma   criança   pequena  —   ele   só   interage   pela  mediação   da   criação-­‐educação.   Para  esclarecer   esse   ponto,   precisamos   manter   estritamente   separadas   duas   questões  diferentes.   A   primeira   é   quais   foram   as   razões   históricas   que   levaram   dada  sociedade  a  se  abrigar  num  dado  sistema  de  coordenadas.  A  segunda  questão,  que  é  de   fato  a   relevante  para  nós  aqui,   é  o  que  acontece  com   John  Smith,  um   indivíduo  falante  de  uma   língua  do   tipo  guugu-­‐yimithirr,  quando  cresce  e,  em  particular,  que  fator   foi   o   maior   responsável   por   suscitar   sua   perfeita   intuição   para   as   direções.  Suponhamos  que   temos  provas  de  que   a  habilidade  de   John   só   se  desenvolveu  no  final  da  adolescência  e  início  da  vida  adulta,  depois  de  ter  participado  de  incontáveis  expedições  de  caça  e  ter  passado  milhares  de  horas  percorrendo  trilhas  na  selva.  O  argumento  de  que  a   língua   teve  muito  a  ver  na  criação  dessa  habilidade  pareceria  bastante   frágil,   já   que   seria   muitíssimo   mais   plausível   que   tal   habilidade   se  desenvolvesse   como   resposta   direta   ao   ambiente,   que   o   treinamento   e   o  aperfeiçoamento  advieram  de  suas  experiências  de  caça  e  trilha  e  assim  por  diante.  Acontece,   porém,   que   sabemos   que   o   sistema   de   coordenadas   geográficas   é  aprendido  em  idade  muito  tenra.  Estudos  com  crianças  falantes  de  tzeltal  mostram  que  elas  começam  a  usar  o  vocabulário  geográfico  aos  dois  anos  de   idade,  que  aos  quatro  usam   coordenadas   geográficas   corretamente   para   descrever   o   arranjo   dos  objetos   e   que   dominam   o   sistema   aos   sete   anos.   Infelizmente,   as   crianças   guugu-­‐yimithirr  já  não  adquirem  o  sistema  de  jeito  nenhum,  porque  a  comunidade  agora  é  dominada   pelo   inglês.   Mas   estudos   com   crianças   balinesas   mostram   resultados  semelhantes   aos   das   crianças   tzeltal:   as   crianças   em   Bali   usam   coordenadas  geográficas  aos  três  anos  e  meio  e  dominam  o  sistema  aos  oito.  

Aos   dois,   três   ou  mesmo   sete   anos   de   idade,   John   Smith   não   faz   ideia   alguma   da  razão   pela   qual   sua   sociedade,   séculos   ou  milênios   atrás,   escolheu   esse   ou   aquele  

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sistema   de   coordenadas,   e   se   tal   escolha   era   adequada   ao   ambiente   ou   não.   Ele  simplesmente   tem  que  aprender  o   sistema  de   seus  parentes  mais   velhos   tal   como  lhe  é  dado.  E  uma  vez  que  a  consciência  constante  e  infalível  das  direções  é  exigida  para  usar  corretamente  o  sistema  geográfico,   John  Smith  teve  que  desenvolver  sua  intuição  perfeita  para  direções  ainda  muito   jovem,  muito  antes  dela  poder  ter  sido  uma   resposta   direta   às   necessidades   de   sobrevivência   no   ambiente   físico,   às  exigências  da  caça  etc.  

Tudo  isso  vem  demonstrar  que  o  sistema  de  coordenadas  com  que  você  fala  e  pensa    é  determinado  não  diretamente  pelo  ambiente  e  sim,  muito  mais,  pelo  modo  como  você  foi  criado  —  ou,  em  outras  palavras,  pela  mediação  da  cultura.  Evidentemente,  ainda   é   possível   objetar   que   tem  muito  mais   coisa   no  modo   como   uma   pessoa   é  criada  do  que  apenas  a  língua.  Assim,  não  podemos  simplesmente  tomar  como  óbvio  que   a   língua   em   particular,   mais   do   que   qualquer   outra   coisa   na   criação   de   um  falante  de   tzeltal  ou  de  guugu-­‐yimithirr,   foi  a   razão  primeira  a   induzir  o   raciocínio  geográfico.   Argumentei   que   a   causa   principal   aqui   é   simplesmente   a   necessidade  constante  de  calcular  direções  a  fim  de  falar  e  entender  os  outros.  Mas,  ao  menos  em  teoria,  não  é  possível  descartar  a  possibilidade  de  que  as  crianças  desenvolvem  seu  raciocínio  geográfico  por  uma  razão   inteiramente  diferente,  digamos,  por  causa  do  ensino  intenso  e  explícito  da  orientação  a  partir  de  tenra  idade.    

De   fato,   há   um  exemplo  no  nosso  próprio   sistema  de   coordenadas   egocêntricas,   a  assimetria   esquerda-­‐direita,   que   nos   ensina   a   ser   cautelosos.   Para   a   maioria   dos  adultos   ocidentais,   esquerda   e   direita   parecem   uma   segunda   natureza,   mas   as  crianças   têm  grande  dificuldade  em  dominar  a  distinção  e  em  geral  só  a  dominam  numa   idade   bem   tardia.   A   maioria   das   crianças   não   consegue   lidar   com   esses  conceitos  nem  mesmo  passivamente  até  bem  entradas  na   idade  escolar  e   só  usam  esquerda  e  direita   ativamente   em  sua  própria   linguagem  por  volta  dos  onze   anos.  Essa   idade   tardia   de   aquisição,   e   especialmente   o   fato   de   que   as   crianças  frequentemente   dominam   a   distinção   somente   por   meio   da   força   bruta   ou   da  escolarização  (incluindo,  é  claro,  a  necessidade  de  adquirir  o  letramento  e  dominar  a  direção  inerente  das  letras),  torna  improvável  que  a  distinção  esquerda-­‐direita  seja  adquirida  simplesmente  por  meio  das  exigências  da  comunicação  diária.  

Mas   embora   a   distinção   esquerda-­‐direita   em   nosso   próprio   sistema   egocêntrico  sirva  de  alerta  contra  saltar  para  conclusões  acerca  de  causas,  a  marcante  diferença  entre  a  aquisição  tardia  de  esquerda-­‐direita  e  a  aquisição  precoce  das  coordenadas  geográficas  ilumina  precisamente  as  razões  por  que,  no  segundo  caso,  a  língua  é  de  longe   a   causa   mais   plausível.   Não   há   indício   algum   de   ensino   formal   das  coordenadas   geográficas   em   tenra   idade   (embora  haja  provas   em  Bali   de   algumas  práticas   religiosas   geograficamente   relevantes,   como   colocar   as   crianças   na   cama  com   a   cabeça   apontada   para   uma   direção   geográfica   específica).   Assim,   o   único  mecanismo   imaginável  que  pode  oferecer  esse   intenso   treinamento  em  orientação  como  tal  em  tenra  idade  é  a  língua  falada  —  a  necessidade  de  saber  as  direções  a  fim  de  poder  se  comunicar  sobre  os  aspectos  mais  simples  da  vida  cotidiana.  

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É   possível   então   fazer   uma   convincente   defesa   de   que   a   relação   entre   língua   e  raciocínio   espacial   não   é   só   correlação  mas   causa,   e   que   a   língua  materna   afeta   o  modo   como   se   pensa   sobre   o   espaço.   Em   particular,   uma   língua   como   o   guugu-­‐yimithirr,   que   força   seus   falantes   a   usar   coordenadas   geográficas   a   todo   instante,  tem  que  ser  um  fator  crucial  na  emergência  da  intuição  perfeita  para  direções  e  nos  correspondentes   padrões   de  memória   que   parecem   tão   estranhos   e   inconcebíveis  para  nós.  

❈ ❈ ❈  Dois  séculos  depois  que  o  guugu-­‐yimithirr  legou  “canguru”  ao  mundo,  seus  últimos  falantes  remanescentes  deram  ao  mundo  uma  dura  lição  de  filosofia  e  psicologia.  O  guugu-­‐yimithirr   provou  —   na   ponta   da   língua  —   que   uma   língua   pode   se   virar  perfeitamente   bem   sem   conceitos   que   tinham   sido   durante   muito   tempo  considerados   como   elementos   universais   da   linguagem   e   do   raciocínio   espaciais.  Esse   reconhecimento   iluminou   conceitos   de   nossa   própria   língua,   os   quais   nosso  senso  comum  jurava  nos  terem  sido  simplesmente  ditados  pela  natureza,  mas  que  só  pareciam   assim   porque   nosso   senso   comum   por   acaso   surgiu   numa   cultura   que  emprega   tais   conceitos.  O  guugu-­‐yimithirr  ofereceu  um  brilhante  exemplo  —  mais  reluzente   até   do   que   a   linguagem   das   cores  —   das   convenções   culturais   que   se  disfarçam  de  natureza.  

Além   disso,   a   pesquisa   que   o   guugu-­‐yimithirr   inspirou   tem   fornecido   o   exemplo  mais  extraordinário  até  agora  de  como  a  língua  pode  afetar  o  pensamento.  Ela  vem  demonstrando   como   os   hábitos   linguísticos,   impressos   desde   tenra   idade,   podem  criar  hábitos  mentais  que  têm  consequências  de  longo  alcance  para  além  da  fala,  na  medida   em   que   afetam   habilidades   de   orientação   e   até   padrões   de   memória.   O  guugu-­‐yimithirr  conseguiu  fazer  isso  bem  a  tempo,  antes  de  finalmente  desaparecer.  A  língua  “não  adulterada”  dos  falantes  idosos  que  John  Haviland  começou  a  registrar  nos  anos  &'()  agora  já  seguiu  o  caminho  de  todas  as  línguas,   junto  com  os  últimos  membros  daquela  geração.  Embora  os  sons  do  guugu-­‐yimithirr  ainda  sejam  ouvidos  em  Hopevale,  a   língua  sofreu  uma  drástica  simplificação  sob  a   influência  do  inglês.  Os   falantes   mais   velhos   de   hoje   ainda   usam   as   direções   cardeais   com   bastante  frequência,   ao   menos   quando   falam   guugu-­‐yimithirr   em   vez   de   inglês,   mas   as  pessoas   com   menos   de   cinquenta   anos   não   têm   uma   verdadeira   apreensão   do  sistema.  

Quantos  outros  aspectos  das   línguas  europeias  dominantes  existem  que  nós  ainda  consideramos   naturais   e   universais   ainda   hoje   somente   porque   ninguém   ainda  entendeu  corretamente  as  línguas  que  fazem  as  coisas  de  modo  diferente?  Podemos  jamais  saber.  Ou,  dito  de  outra  maneira,  se  parece  assustadora  a  perspectiva  de  ter  de   fazer  adaptações  desagradáveis  à  nossa  visão  de  mundo,  a  boa  notícia  é  que  se  torna   mais   improvável   a   cada   minuto   que   venhamos   um   dia   a   descobrir   tais  aspectos.   Junto  com  o  guugu-­‐yimithirr,  centenas  de  outras  “línguas  tropicais”  estão  desmoronando,   sucumbindo   à   marcha   ininterrupta   da   civilização.   As   previsões  conservadoras  são  de  que  dentro  de  duas  ou  três  gerações  pelo  menos  metade  das  

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quase   sete   mil   línguas   terão   desaparecido,   especialmente   essas   remotas   línguas  tribais  que   são  de   fato  diferentes  do  que  parece  natural  para  nós.  A   cada  ano  que  passa,  a  noção  de  que  todas  as  línguas  fazem  as  coisas  essencialmente  como  o  inglês  ou   o   espanhol   está   se   tornando  mais   próxima   da   realidade.   Em  breve,   será   talvez  factualmente  correto  alegar  que  o  modo  “europeu  padrão  médio”  é  o  único  modelo  natural  para  a   linguagem  humana,  por  não  existirem  línguas  que  substancialmente  divirjam  dele.  Mas  essa  será  uma  verdade  rasa.