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Ensaio Revista da Biologia (2012) 9(1) : 16-21 DOI: 10.7594/revbio.09.01.04 biológico e o social, visando uma compreensão conjunta das duas áreas. Contextualizando um embate Desde as últimas décadas, as ciências humanas têm trava- do intensas disputas com as ciências biológicas pelo fim das chamadas afirmações determinísticas ou “biologicis- mos” (Henning, 2008). Se havia, por um lado, um inte- resse acadêmico na formulação de interpretações que não levassem em conta apenas aspectos biológicos, tidos como naturais e imutáveis, havia também uma crescente articu- lação das ciências sociais com movimentos sociais – entre eles o movimento feminista e o das “minorias sexuais” e de gênero – que gradativamente reivindicavam posturas científicas a serviço de uma sociedade mais justa e igua- litária (Keller, 2006), o que necessariamente passava pela desnaturalização de hierarquias e desigualdades sociais, presentes tanto nos trabalhos de importantes pesquisado- res quanto no senso comum. Embora os exemplos dessa visão determinista sejam numerosos, consideramos mais proveitoso compreender quais são e como se estruturam as concepções de sexo e gênero que estão na base do pensamento científico mo- derno a sistematizar uma crítica detalhada a uma determi- ib.usp.br/revista Corpo, gênero e ciência: na interface entre biologia e sociedade Body, gender and science: on the interface between biology and society Adriano Souza Senkevics 1,* , Juliano Zequini Polidoro 2 1 Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil 2 Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Recebido 10abr12 Aceito 25set12 Publicado 27dez12 Resumo. A procura por qualidades que possam diferenciar os corpos e os sexos masculino e feminino na biologia tem levado a uma série de interpretações enviesadas a respeito do que entendemos por homens e mulheres ou por masculino e feminino na sociedade, as quais historicamente sustentaram posições conservadoras do ponto de vista social e político. Com o objetivo de introduzir novos elementos em um debate fundamentalmente interdisciplinar, procuramos desenvolver uma análise que se centre sobre a interface entre a biologia e os estudos sociais, a fim de reconceituar a construção do corpo, do sexo e do gênero. Palavras-chave. Relações de gênero; Determinismo biológico; Sociobiologia; Feminismo. Abstract. The search for qualities which can differentiate the masculine and feminine bodies and sexes on biology have led to many misconceptions about what we understand as men and women or masculine and feminine on society, which have historically supported both social and political conservative positions. Aiming to introduce new elements on a fundamentally interdisciplinary debate, we tried to develop an analysis centered on the interface between biology and social studies, in order to reconceptualize the construction of body, sex and gender. Keywords. Gender relations; Biological determinism; Sociobiology; Feminism. *Contato do autor: [email protected] Estudos sobre sexo e reprodução são extremamente im- portantes para uma ciência que estuda a vida, uma vez que muitas das espécies de seres vivos dependem da repro- dução sexuada para a sua perpetuação. Em grande parte dessas populações, ocorre dimorfismo sexual e uma série de características, desde a anatomia dos órgãos genitais a comportamentos, são diferentemente atribuídos aos sexos masculino e feminino. Entretanto, na busca de qualida- des que possam diferenciar os sexos, especialmente na es- pécie humana, certos aspectos são naturalizados por um discurso que tende a colocar sobre a biologia a respon- sabilidade pelas diferenças atualmente percebidas entre o que entendemos por homem e mulher ou por masculino e feminino, prescrevendo uma concepção do corpo fun- damentalmente pautada pelas explicações biológicas, sem que aspectos sociais, culturais e políticos sejam considera- dos em sua devida relevância. Neste ensaio, nosso objetivo é apresentar alguns elementos do pensamento científico que historicamente sustentaram posições conservadoras, do ponto de vista político e social, a respeito do corpo, do sexo e do gêne- ro. Com auxílio dos estudos de gênero, especialmente no que se refere às construções sociais sobre masculinidade e feminilidade e o conceito de gênero propriamente dito, pretendemos tecer um diálogo interdisciplinar entre o

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  • EnsaioRevista da Biologia (2012) 9(1) : 16-21DOI: 10.7594/revbio.09.01.04

    biolgico e o social, visando uma compreenso conjunta das duas reas.

    Contextualizando um embate

    Desde as ltimas dcadas, as cincias humanas tm trava-do intensas disputas com as cincias biolgicas pelo fim das chamadas afirmaes determinsticas ou biologicis-mos (Henning, 2008). Se havia, por um lado, um inte-resse acadmico na formulao de interpretaes que no levassem em conta apenas aspectos biolgicos, tidos como naturais e imutveis, havia tambm uma crescente articu-lao das cincias sociais com movimentos sociais entre eles o movimento feminista e o das minorias sexuais e de gnero que gradativamente reivindicavam posturas cientficas a servio de uma sociedade mais justa e igua-litria (Keller, 2006), o que necessariamente passava pela desnaturalizao de hierarquias e desigualdades sociais, presentes tanto nos trabalhos de importantes pesquisado-res quanto no senso comum.

    Embora os exemplos dessa viso determinista sejam numerosos, consideramos mais proveitoso compreender quais so e como se estruturam as concepes de sexo e gnero que esto na base do pensamento cientfico mo-derno a sistematizar uma crtica detalhada a uma determi-

    ib.usp.br/revista

    Corpo, gnero e cincia: na interface entre biologia e sociedadeBody, gender and science: on the interface between biology and society Adriano Souza Senkevics1,*, Juliano Zequini Polidoro21Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, SP, Brasil2Instituto de Cincias Biomdicas, Universidade de So Paulo, So Paulo, SP, Brasil

    Recebido 10abr12 Aceito 25set12

    Publicado 27dez12

    Resumo. A procura por qualidades que possam diferenciar os corpos e os sexos masculino e feminino na biologia tem levado a uma srie de interpretaes enviesadas a respeito do que entendemos por homens e mulheres ou por masculino e feminino na sociedade, as quais historicamente sustentaram posies conservadoras do ponto de vista social e poltico. Com o objetivo de introduzir novos elementos em um debate fundamentalmente interdisciplinar, procuramos desenvolver uma anlise que se centre sobre a interface entre a biologia e os estudos sociais, a fim de reconceituar a construo do corpo, do sexo e do gnero.Palavras-chave. Relaes de gnero; Determinismo biolgico; Sociobiologia; Feminismo. Abstract. The search for qualities which can differentiate the masculine and feminine bodies and sexes on biology have led to many misconceptions about what we understand as men and women or masculine and feminine on society, which have historically supported both social and political conservative positions. Aiming to introduce new elements on a fundamentally interdisciplinary debate, we tried to develop an analysis centered on the interface between biology and social studies, in order to reconceptualize the construction of body, sex and gender.Keywords. Gender relations; Biological determinism; Sociobiology; Feminism.

    *Contato do autor: [email protected]

    Estudos sobre sexo e reproduo so extremamente im-portantes para uma cincia que estuda a vida, uma vez que muitas das espcies de seres vivos dependem da repro-duo sexuada para a sua perpetuao. Em grande parte dessas populaes, ocorre dimorfismo sexual e uma srie de caractersticas, desde a anatomia dos rgos genitais a comportamentos, so diferentemente atribudos aos sexos masculino e feminino. Entretanto, na busca de qualida-des que possam diferenciar os sexos, especialmente na es-pcie humana, certos aspectos so naturalizados por um discurso que tende a colocar sobre a biologia a respon-sabilidade pelas diferenas atualmente percebidas entre o que entendemos por homem e mulher ou por masculino e feminino, prescrevendo uma concepo do corpo fun-damentalmente pautada pelas explicaes biolgicas, sem que aspectos sociais, culturais e polticos sejam considera-dos em sua devida relevncia.

    Neste ensaio, nosso objetivo apresentar alguns elementos do pensamento cientfico que historicamente sustentaram posies conservadoras, do ponto de vista poltico e social, a respeito do corpo, do sexo e do gne-ro. Com auxlio dos estudos de gnero, especialmente no que se refere s construes sociais sobre masculinidade e feminilidade e o conceito de gnero propriamente dito, pretendemos tecer um dilogo interdisciplinar entre o

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    nada obra, tendo em vista que, nesse ltimo caso, criar-se--ia uma falsa impresso de haver um ou alguns respons-veis pelo determinismo biolgico corrente. Na realidade, a tendncia determinstica, na biologia, tem amplamente se sustentado muito mais por um senso comum do fa-zer cientfico que, a seu modo, repercute na sociedade e tambm influenciado por concepes que circulam social e culturalmente (Connell, 2009).

    Neste sentido, entender alguns elementos da base de um pensamento moderno, o qual atribui cincia e comunidade cientfica a autoridade enquanto produtora de verdades sobre os corpos masculino e feminino, re-mete ao prprio desenvolvimento da cincia que, paulati-namente, substitui a religio, notadamente o catolicismo apostlico romano, como a principal provedora de expli-caes sobre o ser humano, a vida e o universo. No toa que, de forma paralela ao crescimento hegemnico do racionalismo cientfico moderno, em meados dos sculos XVIII e XIX, nascem diversas noes sobre sexo e gnero que at hoje influenciam nossa forma de compreender as relaes de gnero e a sexualidade (Corbin, 2008).

    Tais concepes cientficas a respeito do corpo e do sexo nunca estiveram isentas de juzos de valor. As cin-cias mdicas no sculo XIX, por exemplo, representavam o corpo feminino como incompleto, doente e instvel. Em clssico estudo, Laqueur (1990) descreve que foi a partir dessa poca que se constituiu a noo de uma espcie bis-sexuada, dicotomizada entre os dois sexos que conhece-mos atualmente; antes disso, as mulheres eram entendidas como homens invertidos, explicao a qual encontrava ressonncia em estudos que descreviam, com detalhes, como a genitlia feminina era uma verso invertida, e im-perfeita, do aparelho genital masculino. Ou seja, as dife-renas anatmicas entre homens e mulheres justificavam uma suposta inferioridade feminina, e mesmo os estudos sobre os gametas (que atestavam o espermatozide como ativo, gil e forte, e o vulo como passivo, espera de um espermatozide) resultavam em interpretaes acerca do homem e da mulher (Fernandes, 2009; Keller, 2006). Como bem observa Rohden (2003), a viso predominante apoiava-se na ideia de que a natureza, por si s, j havia determinado uma ordem baseada no sexo, a qual poderia ser acessada por meio da razo cientfica, e caberia socie-dade respeit-la na esfera social e poltica.

    Para completar, a viso determinista est ampla-mente difundida no senso comum. Pesquisas sobre es-cola (Carvalho, 2009), mdia (Fischer, 2001) ou espaos de sociabilidade infanto-juvenil (Ribeiro, 2006; Souza, 2010) denunciam formas tradicionais de enunciar o mas-culino e o feminino, pautadas por um determinismo que no s valoriza apenas um perfil masculino e feminino, como estigmatiza perfis desviantes (Welzer-Lang, 2001). Em suma, herdamos, nos mais variados meios de relaes sociais, um discurso que naturaliza uma essncia, tanto masculina quanto feminina, eterna e universal, por con-sequncia, inquestionvel (Kehl, 1998).

    Torna-se patente, em decorrncia, o esforo de bus-car uma teorizao que caminhe na fronteira entre a bio-logia, entendida como uma cincia que produz enuncia-

    es sobre o corpo, o sexo e a reproduo, e a sociedade, pensando-a no contexto de novos olhares que tm ques-tionado valores tradicionais e desigualdades sobre mulhe-res, homens e as ditas minorias sexuais. Tal esforo de-manda um exerccio de reflexo, que procure reconceituar certas verdades, rediscutindo a biologia luz dos estudos sociais. Em vista disso, nosso foco reside nesta interface.

    Novos elementos em debate

    Para avanar na reflexo, devemos introduzir elementos e conceitos de uma abordagem do chamado construcio-nismo social para, em seguida, retomar a construo do corpo, do sexo e do gnero.

    Homens e mulheres: sexo ou gnero?Em clebre frase para o feminismo, Simone de Beau-

    voir afirmou, na sua principal obra, que ningum nasce mulher; torna-se mulher (Beauvoir, 2009, p. 361). Essa frase traduz, de forma sinttica, a importncia de se insis-tir na qualidade fundamentalmente social das distines baseadas no sexo. Foi com esse intuito que o conceito de gnero foi desenvolvido, conforme preconiza a historiado-ra Joan Scott (1995).

    Em um primeiro momento, havia uma dicotomia entre sexo e gnero. O primeiro referia-se s qualidades biolgicas (o corpo) e o segundo s qualidades scio-cul-turais (carter, comportamento) dos indivduos (Nichol-son, 2000). Embora este ainda seja o uso mais frequente no senso comum, no o sentido atualmente adotado por parte dos estudos feministas (Carvalho, 2011; Scott, 2010).

    Nicholson (2000) destaca as diferentes formas de se entender as construes sociais sobre o masculino e o fe-minino, sobretudo os corpos. A autora argumenta que

    se o prprio corpo sempre visto atravs de uma interpretao social, ento o sexo no pode ser indepen-dente do gnero; antes, sexo nesse sentido deve ser algo que possa ser subsumido pelo gnero (Nicholson, 2000).

    Gnero, nessa concepo, torna-se uma forma de organizar socialmente os sexos, mais do que uma mera in-terpretao cultural dos mesmos. Partindo dessa perspec-tiva, se a prpria percepo do corpo e do sexo tomada como cultural, o conceito de sexo apropriado pelo con-ceito de gnero, como define Judith Butler (2010a). Man-ter uma rgida dicotomia entre sexo e gnero faz transpa-recer a ideia de que apenas um deles construdo (o gne-ro), relegando o sexo a uma posio segura e confortvel da natureza, isto , como se fosse possvel compreender a natureza parte de um conhecimento produzido sobre ela (Scott, 1988).

    Isso no significa que o gnero produza ou reflita diferenas fixas e naturais entre os homens e mulheres, e sim que um saber que estabelece significados para tais diferenas (Scott, 1988). como se o corpo, ao ser incor-porado cultura, passasse por um filtro, podendo apenas ser entendido a partir de uma perspectiva histrica, a qual d conta dos aspectos socioculturais que marcam tal cons-

  • 18 Senkevics e Polidoro: Gnero, sexualidade e cincia

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    uma srie de adjetivaes se permite possvel: a agressi-vidade, virilidade e insensibilidade dos homens; a senti-mentalidade, submisso e instabilidade emocional das mulheres; a preferncia dos meninos em brincadeiras que simulam guerras, lutas e violncia, permeadas por cores vivas e fortes; a preferncia das meninas por bonecas e atividades que simulem tarefas domsticas e de cuidado, coloridas em tons de rosa. Enfim, uma srie de caracters-ticas, conectadas em torno de ideais de masculinidade e feminilidade, nos descrevem.

    A nossa biologia sejam os genes, a anatomia ou mesmo os hormnios no seria capaz de explicar carac-tersticas to variveis de cultura a cultura e to perme-adas de sentidos e significados particulares a determina-dos contextos, isto , no podemos esperar que um certo gentipo explique a preferncia pela cor azul ou que um conjunto de alelos leve ao interesse por bonecas em vez de dinossauros. Esse argumento no retira a importncia das disciplinas relacionadas gentica ou psicologia do com-portamento, mas faz algumas ponderaes s afirmaes de carter assertivo e generalizante.

    Ao negar a contribuio do determinismo biolgi-co na construo de uma feminilidade e masculinidade, o primeiro impulso considerar que o aprendizado em tor-no de ser homem e ser mulher ocorre por meio de uma socializao de papis sexuais, ou seja, os homens e as mulheres incorporam papis pr-determinados na socie-dade. Connell (1995) tece fortes crticas teoria dos pa-pis sexuais, afirmando sua incapacidade em contemplar diferentes formas de ser homem e ser mulher, alm de adotar uma perspectiva funcionalista e destituda das re-laes de poder. No se fala, por exemplo, em papis de raa ou papis de classe, porque nesses casos as hierar-quias esto muito claras (Carvalho, 2011).

    A sada, para a autora, seria assumir as construes de mltiplas masculinidades e feminilidades, arranjadas em meio a estruturas de poder (Connell, 2005). Pensan-do por um momento apenas nas masculinidades, essas seriam construdas por processos de incorporao e nega-o de padres vigentes na sociedade, sendo que a cons-tituio de uma masculinidade sempre se d em relao a uma feminilidade e a outras formas de masculinidade.

    As masculinidades e feminilidades, portanto, emer-gem como importantes conceitos para destrinchar a cons-truo social do masculino e do feminino, na mesma linha de raciocnio estabelecida para o conceito de gnero, qual seja, homens e mulheres so categorias socioculturais, construdas historicamente a partir de prticas, sentidos e significados que, em determinado contexto, nomeiam o que pertence a um universo masculino ou feminino.

    O corpo biolgico e o corpo social

    Aps esse passeio por conceitos inseridos no mbito do construcionismo social, faz-se necessrio retomar a ideia central do trabalho, revisitando a construo do corpo, do sexo e do gnero na interface entre a biologia e a socieda-de. Fernandes (2009) enfatiza que, em nossa espcie, coa-bitam um corpo biolgico e um corpo social, em perma-

    truo do corpo.Em resumo, o que essas autoras buscam enfatizar

    que os corpos de homens e mulheres no originam es-sncias ou naturezas femininas e masculinas (Carvalho, 2011). Antes, so as formas de compreenso das diferen-as e semelhanas entre esses corpos que determinam como os mesmos so apreendidos socialmente. A partir das diferenas percebidas entre os sexos, constri-se todo um sistema simblico sobre mulheres e homens (Scott, 1995), o qual repercute em praticamente todos os aspectos das sociedades ocidentais: a diviso sexual do trabalho, o acesso educao, a violncia sexual, entre outros.

    Uma decorrncia dessa viso que o gnero fica aberto mudana histrica. Por mais que habitemos em uma sociedade que separa, de forma extremamente bi-nria, um sexo masculino e um feminino, no podemos generalizar que todas as culturas, ao longo da histria, adotaram tal perspectiva. Voltando ao exemplo de La-queur (1990) a respeito da noo das mulheres enquanto homens invertidos que perdurou at o sculo XVIII, po-demos adicionar que por mais que as diferenas anatmi-cas dos sexos fossem reconhecidas, essas diferenas no serviam de base para uma viso to bipolarizada e oposi-cional de gnero: duas naturezas, duas essncias e dois crebros antagnicos; um de Marte, outro de Vnus.

    A visibilidade crescente para grupos homossexuais, bissexuais e transexuais tem enfatizado que, longe de coe-rentes e contnuas, as identidades de gnero e sexualidades so absolutamente diversas, de tal modo que a presena ou no de um cromossomo Y pouco diz respeito ao lugar social daquele indivduo. O mesmo podemos dizer sobre sua personalidade, comportamento e aptides. Cada vez mais, esses casos reforam a complexidade das relaes de gnero e a inexistncia de uma correlao fixa e linear entre o que cotidianamente tratamos como sexo, gnero e orientao sexual.

    Logo, ao pensarmos em homens e mulheres, deve-mos entend-los como categorias mutveis. Essa dinami-cidade no existe s no binarismo entre homem e mulher, como tambm no interior de cada um. Butler (2010a) ressalta que a reafirmao de uma coerncia e unidade dentro da categoria mulheres rejeita a multiplicidade, as divergncias e as contradies do que entendemos por mulheres. Em outras palavras, suprimem-se as diferen-as dentro de cada categoria em nome de uma falsa uni-dade. Os universos feminino e masculino, pois, so muito mais amplos do que usualmente se supe.

    Masculinidades e FeminilidadesAo destacarmos as diferenas entre homens e mu-

    lheres, especialmente no interior de cada uma dessas cate-gorias, devemos trazer tona as contribuies da austra-liana Raewyn Connell. Ao se referir s configuraes de prticas que posicionam os homens nas relaes de gne-ro, Connell (1995) trabalha com o conceito de masculini-dades. De forma simtrica e relacional, podemos entender a feminilidade.

    Levantando caractersticas visveis na nossa socieda-de a respeito do que entendemos por homem e mulher,

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    nell, 2005). necessria uma compreenso sobre o corpo que

    reconhea tanto a sua agncia (i.e. sua capacidade de agir, de ser agente) quanto a sua construo social, de forma que a biologia e o social no sejam compreendidos de maneira separada, mas que se confluam em uma ex-plicao conjunta. Nesse contexto, Connell (2009, p. 67, traduo nossa) escreve que:

    Corpos so tanto objetos da prtica social quanto agentes da prtica social. Os mesmos corpos, ao mesmo tempo, so ambos. As prticas nas quais os corpos esto envolvidos formam estruturas sociais e trajetrias pesso-ais, as quais, em retorno, fornecem as condies para no-vas prticas que se dirigem para os corpos. H um loop, um circuito, ligando processos corporais e estruturas so-ciais.

    Anteriormente, definimos as masculinidades como uma configurao de prticas em torno das posies dos homens nas relaes de gnero. Essas prticas, por sua vez, partem de limites e capacidades corpreas e, ao mesmo tempo, modificam o corpo, construindo-o dentro das re-laes de gnero. O processo sempre reflexivo.

    Corpos de mulheres e homens so trabalhados em diversas instncias da sociedade. Na medicina, nos es-portes, no mercado de trabalho, na mdia, na poltica, na moda etc, diferentes caractersticas de homens e mulheres so realadas ou negligenciadas em virtude dos objetivos, interesses e demandas de cada uma dessas reas. Os efeitos dessas diferentes esferas sobre os corpos no so apenas simblicos, mas tem bases materiais: a ttulo de exemplo, podemos mencionar que a presso pela esttica leva mui-tos meninos academia de ginstica com o intuito de ad-quirir massa muscular, da mesma forma que pressiona as garotas a rgidas dietas de emagrecimento.

    Diferenas biolgicas tambm estimulam a produ-o de prticas sociais diferenciadas: s faz sentido falar em maternidade, por exemplo, e delinear todo um mer-cado voltado para gestantes, mes e bebs, porque so as mulheres que engravidam, e no os homens ou melhor, so os indivduos do sexo feminino que so capazes de engravidar, dado que a transexualidade tem gradativa-mente nos apresentado casos de homens ou pais os quais engravidam. O mesmo se aplica indstria txtil e moda, e um exemplo simples pode facilmente ilustrar esse ponto: os sutis so voltados para as mulheres por ser um acessrio til apenas para quem possui seios. Esses casos, no entanto, no anulam a constatao de que h muita arbitrariedade nas relaes de gnero, de tal forma que certas diferenas so deliberadamente ressaltadas. No h motivo algum que explique o porqu de homens e mu-lheres no serem autorizados de usufruir determinadas maquiagens, acessrios e roupas, sem que haja um custo do ponto de vista social, pois a partir do momento que so estabelecidas normas que regem a conduta social, os padres desviantes so usualmente rejeitados, ignorados ou, quando no, violentados.

    Vemos, portanto, que ora as prticas sociais derivam

    nente dilogo. sobre esse dilogo que vamos prosseguir.A respeito da presena do corpo na teoria social,

    em especial relativa a gnero, Connell (1995, p. 188-9) assertiva ao afirmar que no devemos temer a biologia, nem devemos ser to refinados ou engenhosos em nos-sa teorizao do gnero que no tenhamos lugar para os corpos suados, chamando ateno para a necessidade de articular o corpo aos estudos feministas e conceituao de sexo e gnero. Essa aproximao, no entanto, nem sem-pre bem sucedida. Connell (2009) destaca que h vrias tentativas de compreender o corpo e as diferenas sexuais na teoria social, sendo a maioria delas insuficiente.

    Uma delas, gestada pelo determinismo biolgico, trata o corpo como uma espcie de mquina que pro-duz diferenas de gnero (Connell, 2009). Prticas como o estupro ou os maiores ndices de criminalidade entre os homens tornam-se sinais de diferenas fisiolgicas entre os sexos, que fariam os homens mais agressivos e violentos em decorrncia, entre outras, da produo de testosterona. Mesmo desigualdades complexas, como o acesso dificul-tado das mulheres ao mercado de trabalho, so explicadas pela suposta falta de competitividade inata s mulheres ou outras caractersticas que digam respeito pretensa es-sncia da mulher e do homem. Seja qual aspecto que este-ja em pauta, essa concepo do corpo e das relaes de g-nero tende ao reducionismo. Para piorar, tais explicaes so justificadas por enunciados pseudocientficos sobre a evoluo humana, inspirados em uma aplicao descui-dada do conceito darwinista de seleo natural. Fica evi-dente, com efeito, o carter puramente especulativo des-sas explanaes, as quais se concentram sobre campos de pesquisas como a sociobiologia e a psicologia evolutiva e que encontram grande ressonncia no senso comum, em especial quilo que Connell (2005) chama de psicologia pop: uma literatura com fins exclusivamente comerciais que versa sobre as diferenas entre mulheres e homens e seus efeitos para compreender questes do cotidiano, como o cuidado dos filhos, o adultrio e a sexualidade.

    Diametralmente oposta encontra-se a viso de que o corpo uma tela, uma superfcie, sobre a qual a cultura imprime o gnero (Connell, 2009). Aqui, o risco desli-zar para um construcionismo radical que no d conta de entender aspectos bsicos do corpo, dentre as diferenas anatmicas e fisiolgicas que so facilmente atestadas. necessrio reiterar que h, sim, caractersticas biolgicas distintas para corpos distintos, de tal forma que uma des-construo unicamente discursiva dessas diferenas se mostra inadequada, configurando o erro de negligenciar as diferenas com o intuito de superar as desigualdades. O equvoco dessa perspectiva supervalorizar o efeito da cultura e do social sobre os corpos, ignorando sua prpria materialidade (Butler, 2010b). Os corpos, ao contrrio de serem superfcies vazias introduo de elementos cul-turais, participam dos processos sociais por meio de seu desenvolvimento, capacidades, habilidades, necessidades, prazeres, dores etc.

    Se tanto a noo do corpo como uma mquina, quanto a do corpo como uma tela, no so adequadas, difcil acreditar que uma mescla entre as duas o seja (Con-

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    relaes de gnero e a rea das cincias biolgicas. No estamos afirmando que todos os bilogos devem se apro-fundar em aspectos sociais para fazer suas pesquisas, mas que tm o dever de serem cuidadosos em concluses que lidam com temas de alta complexidade e interdisciplina-ridade.

    A biologia aqui representada especialmente pela sociobiologia, psicologia evolutiva e a gentica compor-tamental no pode seguir ingnua em concluses uni-versalizantes, essencializantes e etnocntricas. So afirma-es que, justamente por estarem sustentadas unicamente na biologia, carregam concluses sociais, polticas e cultu-rais inadequadas.

    O reconhecimento das construes sociais sobre o corpo, o sexo e o gnero, tal como apresentamos ao lon-go do artigo, deve servir de estmulo reflexo sobre os limites das afirmaes que historicamente foram sendo postuladas no bojo do pensamento cientfico. Para alm de ser um conhecimento cientfico, h um carter espe-culativo, de pano de fundo conservador, que marcou tal produo de enunciados e conceitos. Conforme defende Fausto-Sterling (2000), existem decises e escolhas que orientam a formulao de verdades, uma vez que essas so orientadas por crenas, valores e princpios defendi-dos ou reproduzidos pelos pesquisadores, assim como o so por qualquer cidado.

    Trata-se do desafio de nos colocar permanentemen-te diante de tais questionamentos e repensar uma cincia que esteja a servio de posicionamentos polticos sintoni-zados a demandas sociais, essas cada vez mais em pauta: a igualdade de gnero e a diversidade sexual, para citar dois exemplos.

    Afinal, se as interpretaes, usos ou concluses bio-lgicas servirem de apoio para ideologias sexistas, ma-chistas ou homofbicas, a biologia estar, imediatamente, equivocada.

    Agradecimentos

    Agradecemos a Revista da Biologia pela oportunidade de publicar esse trabalho. Agradecemos tambm, pela revi-so e sugestes, a Carlos Eduardo Henning, Beatriz Hobi Moreira e Renato Grigoli Pereira. Por fim, agradecemos Fapesp e Capes.

    Contribuio dos autores

    Levantamento bibliogrfico, leituras e redao do ensaio realizados por ambos os autores.

    Referncias

    Beauvoir S. 2009. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira.

    Butler J. 2010a. Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira.

    Butler J. 2010b. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: Louro GL, organizadora. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autntica p151-172.

    das condies as quais os corpos se encontram e so per-cebidos, ora so os corpos que se modificam em resposta a influncias da sociedade e da cultura. Em ambos os ca-sos, temos uma construo contnua do corpo e do social (Connell, 2009). Se entendermos, em seguida, que dentro dessas prticas sociais esto includas as prticas que con-figuram as masculinidades/feminilidades e a construo do gnero, chegamos seguinte ideia: a fim de construir um masculino e um feminino, homens e mulheres cons-troem tambm os seus corpos, seja por meio de gestos, trejeitos, roupas e comportamentos, seja por processos mais complexos como os estilos de vida almejados, as perspectivas de atuao profissional e as expectativas de relacionamento afetivo-sexual. Para todos esses fatores, possvel vislumbrar significados sociais e corporais, que se constituem em amplo dilogo e interface.

    Adquirindo tal olhar, torna-se ainda mais inaceit-vel sustentar o determinismo biolgico ou qualquer outro pensamento das cincias biolgicas que, a seu modo, re-produza posturas discriminatrias. Ao se tomar o corpo, o sexo e o gnero a partir de uma perspectiva interdisci-plinar, sua faceta sociocultural traz, inevitavelmente, uma dimenso poltica. nesse sentido que a biloga Fausto--Sterling (2000) defende que homem e mulher so, em primeiro lugar, categorias polticas, posio cuja conse-quncia na sociedade caminha para a mudana social e a transformao das relaes de gnero.

    Concluso

    A alta complexidade social da nossa espcie, sobre a qual podemos destacar as extensas redes de relaes sociais, as complexas construes de sentidos e significados e as estruturas de poder no mbito material e simblico, nos impe certas dificuldades a respeito da natureza de nos-sas aes, pensamentos e compreenses. No poderamos afirmar que todas as nossas aes so frutos do nosso ins-tinto enquanto espcie biolgica, ou esperar que todos os aspectos da sociedade possam ser analisados sob a tica da evoluo e adaptabilidade. Por outro lado, seria um erro afirmar que as construes sociais e culturais, traba-lhadas historicamente, seriam responsveis pela criao de caractersticas biolgicas ou pelo desenvolvimento de caracteres fsicos ou corporais.

    Essas ressalvas apontam as dificuldades em se tecer estudos que transitem entre o biolgico e o social. Suge-rem, tambm, que no possvel suprimir um em prol do outro, tampouco separ-los para evitar interfaces proble-mticas, visto que as cincias biolgicas frequentemente debruam-se em aspectos compartilhados com as cincias sociais e vice-versa. A grande questo : como entend-las em conjunto, especialmente ao se tratar de um tema de suma importncia para as duas cincias?

    Uma reflexo desta grandeza exigiria uma resposta altura. Est fora, entretanto, tanto dos limites desse ensaio quanto de nossa capacidade tocar neste ponto. Todavia, por este ser um artigo escrito de bilogos para bilogos, acreditamos que pudemos tecer certas consideraes, de modo a contribuir para um dilogo entre os estudos das

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