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    Ciclio de Catequeses do Papa Bento XVI sobre a orao

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    ORAISEM CESSAR

    Ciclio de Catequeses do Papa Bento XVI sobre a orao

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    O homem em orao

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    Depois das catequeses sobre os Padres da Igreja, sobre os grandes telogosda Idade Mdia, sobre as grandes mulheres, gostaria de escolher um temamuito querido a todos ns: o tema da orao, de modo especfico dacrist, ou seja, a prece que Jesus nos ensinou e que a Igreja continua aensinar-nos. Com efeito, em Jesus que o homem se torna capaz de se

    aproximar de Deus com a profundidade e a intimidade da relao depaternidade e filiao. Com os primeiros discpulos, com confianahumilde, dirijamo-nos ento ao Mestre e peamos-lhe: Senhor, ensina-nos a rezar (Lc11, 1).

    Nas prximas catequeses, aproximando-nos da Sagrada Escritura, dagrande tradio dos Padres da Igreja, dos Mestres de espiritualidade e deLiturgia, queremos aprender a viver ainda mais intensamente a nossarelao com o Senhor, quase uma Escola de orao. Com efeito,sabemos que a orao no se deve dar por certa: preciso aprender a rezar,quase adquirindo esta arte sempre de novo; mesmo aqueles que estomuito avanados na vida espiritual sentem sempre a necessidade de se prna escola de Jesus para aprender a rezar autenticamente. Recebemos aprimeira lio do Senhor atravs do seu exemplo. Os Evangelhosdescrevem-nos Jesus em dilogo ntimo e constante com o Pai: uma

    profunda comunho daquele que veio ao mundo no para fazer a suavontade, mas a do Pai que O enviou para a salvao do homem.

    Nesta primeira catequese, como introduo, gostaria de propor algunsexemplos de orao presentes nas antigas culturas, para relevar como,praticamente sempre e em toda a parte o homem se dirigiu a Deus.

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    Por exemplo, no antigo Egipto um homem cego, pedindo divindade quelhe restitusse a vista, atesta algo de universalmente humano, que a pura

    e simples prece de pedido da parte de quem se encontra no sofrimento,este homem reza: O meu corao deseja ver-te... Tu que me fizeste ver astrevas, cria a luz para mim. Que eu te veja! Debrua sobre mim o teu rostodilecto (A. Barucq F. Daumas, Hymnes et prires de lEgypteancienne,Paris 1980, trad. it. emPreghiere dellumanit, Brescia 1993, p.30). Que eu te veja; eis o ncleo da prece!

    Nas religies da Mesopotmia predominava um sentido de culpa arcano eparalisador, porm no desprovido da esperana de resgate e de libertaoda parte de Deus. Assim podemos apreciar esta splica da parte de um fieldaqueles cultos antigos, que ressoa assim: Deus, que s indulgentetambm na culpa mais grave, absolve o meu pecado... Olha, Senhor, parao teu servo arrasado, e sopra a tua brisa sobre ele: perdoa-o sem demora.Alivia a tua punio severa. Livre dos vnculos, faz com que eu volte arespirar; quebra a minha cadeia, liberta-me dos laos (M.-J. Seux, Hymneset prires aux Dieux de Babylone et dAssyrie,Paris 1976, trad. it.emPreghiere dellumanit, op. cit., p. 37). Trata-se de expresses quedemonstram como o homem, na sua busca de Deus, intuiu, emboraconfusamente, por um lado a sua culpa, mas por outro tambm aspectosde misericrdia e de bondade divina.

    No contexto da religio pag da Grcia antiga assiste-se a uma evoluo

    muito significativa: as preces, embora continuem a invocar o auxliodivino para obter o favor celeste em todas as circunstncias da vida diria epara alcanar benefcios materiais, orientam-se progressivamente para ospedidos mais desinteressados, que permitem ao homem crente aprofundara sua relao com Deus e tornar-se melhor. Por exemplo, o grande filsofoPlato cita uma prece do seu mestre Scrates, considerado justamente umdos fundadores do pensamento ocidental. Assim orava Scrates: Fazei

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    que eu seja bonito dentro. Que eu considere rico quem sbio, e que dedinheiro eu s possua quanto o sbio puder tomar e levar. No peo mais

    (Obras I. Fedro 279 c., trad. it. P. Pucci, Bari 1966). Gostaria de sersobretudo bonito dentro e sbio, e no rico de dinheiro.

    Aquelas obras-primas excelsas da literatura de todos os tempos, que so astragdias gregas, ainda hoje, depois de vinte e cinco sculos, lidas,meditadas e representadas, contm preces que exprimem o desejo deconhecer a Deus e de adorar a sua majestade. Uma delas reza assim:

    Sustento da terra, que imperas sobre a terra, quem quer que sejas, difcilde ser entendido, Zeus, s tu a lei de natureza ou de pensamento dosmortais, dirijo-me a ti, uma vez que tu, procedendo por caminhossilenciosos, guias as vicissitudes humanas segundo a justia (Eurpides, AsTroianas, 884-886, trad. it. G. Mancini, em Preghiere dellumanit, op.cit., p. 54). Deus permanece um pouco nebuloso e todavia o homemconhece este Deus desconhecido e ora quele que guia os caminhos daterra.

    Tambm para os Romanos, que constituram aquele grande Imprio emque nasceu e se difundiu em grande parte o Cristianismo das origens, aorao, embora associada a um conceito utilitarista e fundamentalmentevinculado ao pedido da salvaguarda divina sobre a vida da comunidadecivil, abre-se s vezes a invocaes admirveis pelo fervor da piedadepessoal, que se transforma em louvor e aco de graas. testemunha

    disto um autor da frica romana do sculo ii d.C., Apuleio. Nos seusescritos, ele manifesta a insatisfao dos contemporneos em relao religio tradicional e o desejo de uma relao mais autntica com Deus.Na sua obra-prima, intituladaMetamorfoses, um crente dirige-se a umadivindade feminina com estas palavras: Tu s santa, tu s em todo otempo salvadora da espcie humana, na tua generosidade tu ds sempreajuda aos mortais, tu ofereces aos miserveis em dificuldade o doce

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    carinho de uma me. Nem um dia nem uma noite, nem qualquerinstante, por mais breve que seja, passa sem que tu o cumules com os teus

    benefcios (Apuleio de Madaura,Metamorfoses IX, 25, trad. it. C.Annaratone, emPreghiere dellumanit, op. cit., p. 79).

    Nesse mesmo perodo, o imperador Marco Aurlio que tambm eraum filsofo que meditava sobre a condio humana afirma anecessidade de rezar para estabelecer uma cooperao fecunda entre acodivina e aco humana. Nas suas Recordaes, ele escreve: Quem te disse

    que os deuses no nos ajudam inclusive naquilo que depende de ns?Portanto, comea a pedir-lhes e vers (Dictionnaire de Spiritualit XII/2,col. 2213). Este conselho do imperador filsofo foi realmente posto emprtica por inmeras geraes de homens antes de Cristo, demonstrandoassim que a vida humana sem a orao, que abre a nossa existncia aomistrio de Deus, permanece desprovida de sentido e de referncia. Comefeito, em cada prece manifesta-se sempre a verdade da criatura humana,que por um lado experimenta a debilidade e a indigncia e por isso pede

    auxlio ao Cu e, por outro, dotada de uma dignidade extraordinriaporque, preparando-se para acolher a Revelao divina, se descobre capazde entrar em comunho com Deus.

    Caros amigos, nestes exemplos de oraes das vrias pocas e civilizaessobressai a conscincia que o ser humano tem sobre a sua condio decriatura e da sua dependncia de Outro, que lhe superior e fonte de todo

    o bem. O homem de todos os tempos reza porque no consegue deixar dese interrogar sobre o sentido da sua existncia, que permanece obscuro edesolador, se no se puser em relao com o mistrio de Deus e do seudesgnio acerca do mundo. A vida humana um entrelaamento de bem ede mal, de sofrimento imerecido e de alegria e beleza, que espontnea eirresistivelmente nos impele a pedir a Deus a luz e a fora interiores quenos socorram na terra e descerrem uma esperana que v para alm dos

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    confins da morte. As religies pags permanecem uma invocao que, daterra, espera uma palavra do Cu. Um dos ltimos grandes filsofos

    pagos, que viveu j em plena poca crist, Proclo de Constantinopla, dvoz a esta expectativa, dizendo: Incognoscvel, ningum te contm. Tudoo que pensamos pertence a ti. Esto em ti os nossos males e os nossosbens, de ti depende todo o nosso anseio, Inefvel, que as nossas almassentem presente, elevando-te um hino de silncio (Hymni, ed. E. Vogt,Wiesbaden 1957, em Preghiere dellumanit, op. cit., p. 61).

    Nos exemplos de orao das vrias culturas, por ns considerados,podemos ver um testemunho da dimenso religiosa e do desejo de Deusinscrito no corao de cada homem, que recebem cumprimento e plenaexpresso no Antigo e no Novo Testamento. Com efeito, a Revelaopurifica e leva sua plenitude o anseio originrio que o homem tem deDeus, oferecendo-lhe na orao a possibilidade de uma relao maisprofunda com o Pai celeste.

    Ento, no incio deste nosso caminho na Escola da orao, queremospedir ao Senhor que ilumine a nossa mente e o nosso corao, a fim deque a relao com Ele na orao seja cada vez mais intensa, afectuosa econstante. Mais uma vez, digamos-lhe: Senhor, ensina-nos a rezar (Lc11,1).

    II

    Gostaria de continuar a meditar sobre o modo como a orao e o sentidoreligioso fazem parte do homem, ao longo de toda a sua histria.

    Vivemos numa poca em que so evidentes os sinais do secularismo. Deusparece ter desaparecido do horizonte de vrias pessoas ou ter-se tornadouma realidade diante da qual o homem permanece indiferente. Mas,vemos ao mesmo tempo muitos sinais que nos indicam um despertar do

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    sentido religioso, uma redescoberta da importncia de Deus para a vida dohomem, uma exigncia de espiritualidade, de superar uma viso

    puramente horizontal, material da vida humana. Olhando para a histriarecente, malogrou a previso de quem, desde a poca do Iluminismo,preanunciava o desaparecimento das religies e exaltava uma razoabsoluta, separada da f, uma razo que teria esmagado as trevas dosdogmatismos religiosos e dissolvido o mundo do sagrado, restituindo aohomem a sua liberdade, a sua dignidade e a sua autonomia de Deus. Aexperincia do sculo passado, com as duas trgicas guerras mundiais, ps

    em crise aquele progresso que a razo autnoma, o homem sem Deusparecia poder garantir.

    O Catecismo da Igreja Catlica afirma: Pela criao, Deus chama todos osseres do nada existncia... Mesmo depois de, pelo pecado, ter perdido asemelhana com Deus, o homem continua a ser imagem do seu Criador.Conserva o desejo dAquele que o chama existncia. Todas as religiestestemunham esta busca essencial do homem (n. 2566). Poderamos

    dizer como demonstrei na ltima catequese que no houve qualquergrande civilizao, desde os tempos mais longnquos at aos nossos dias,que no tenha sido religiosa.

    O homem religioso por sua natureza, homo religiosus como homosapiens e homo faber:O desejo de Deus afirma ainda o Catecismo est inscrito no corao do homem, porque o homem foi criado por Deus

    e para Deus (n. 27). A imagem do Criador est impressa no seu ser, e elesente a necessidade de encontrar uma luz para dar uma resposta sinterrogaes que dizem respeito ao sentido profundo da realidade;resposta que ele no pode encontrar em si mesmo, no progresso, nacincia emprica. O homo religiosus no emerge s dos mundos antigos,mas atravessa toda a histria da humanidade. A este propsito, o ricoterreno da experincia humana viu surgir diversificadas formas de

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    religiosidade, na tentativa de responder ao desejo de plenitude e defelicidade, necessidade de salvao, busca de sentido. O homem

    digital, como o das cavernas, procura na experincia religiosa oscaminhos para superar a sua finitude e para assegurar a sua precriaaventura terrena. De resto, a vida sem um horizonte transcendente noteria um sentido completo, e a felicidade, para a qual todos ns tendemos,est projectada espontaneamente para o futuro, para um amanh queainda se deve realizar. O Conclio Vaticano II, na Declarao Nostraaetate, sublinhou-o sinteticamente: Os homens esperam das diversas

    religies uma resposta aos mais rduos problemas da condio humanaque, hoje como outrora, continuam a perturbar profundamente os seuscoraes: o que o homem [ quem sou eu? ], qual o sentido e o fimda nossa vida, o que o bem e o que o pecado, qual a origem e afinalidade do sofrimento, qual o caminho para se obter a verdadeirafelicidade, o que a morte, o julgamento e a recompensa que se lhe ho-de seguir, e qual , finalmente, aquele derradeiro e inefvel mistrio queenvolve a nossa existncia: donde partimos e para onde vamos? (n. 1). Ohomem sabe que no pode responder sozinho sua necessidadefundamental de compreender. Por mais que se tenha iludido e que aindase iluda que auto-suficiente, contudo ele faz a experincia de que no suficiente a si mesmo. Tem necessidade de se abrir ao outro, a algo ou aalgum que possa doar-lhe quanto lhe falta, deve sair de si mesmo rumoquele que capaz de satisfazer a amplido e a profundidade do seudesejo.

    O homem tem em si uma sede de infinito, uma saudade de eternidade,uma busca de beleza, um desejo de amor, uma necessidade de luz e deverdade, que o impelem rumo ao Absoluto; o homem tem em si o desejode Deus. E o homem sabe, de qualquer modo, que pode dirigir-se a Deus,sabe que lhe pode rezar. S. Toms de Aquino, um dos maiores telogos dahistria, define a orao expresso do desejo que o homem tem de Deus.

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    Esta atraco por Deus, que o prprio Deus colocou no homem, a almada orao, que depois se reveste de muitas formas e modalidades, segundo

    a histria, o tempo, o momento, a graa e at o pecado de cada orante.Com efeito, a histria do homem conheceu vrias formas de orao,porque ele desenvolveu diversas modalidades de abertura ao Outro e aoAlm, a tal ponto que podemos reconhecer a orao como umaexperincia presente em cada religio e cultura.

    Com efeito, estimados irmos e irms, como vimos, a orao no est

    ligada a um contexto particular, mas encontra-se inscrita no corao decada pessoa e de cada civilizao. Naturalmente, quando falamos daorao como experincia do homem enquanto tal, do homo orans, necessrio ter presente que ela uma atitude interior, e no s uma sriede prticas e frmulas, um modo de ser diante de Deus, e no s ocumprir gestos de culto ou o pronunciar palavras. A orao tem o seucentro e afunda as suas razes no mais profundo da pessoa; por isso no facilmente decifrvel e, pelo mesmo motivo, pode estar sujeita a mal-

    entendidos e a mistificaes. Tambm neste sentido podemos entender aexpresso: rezar difcil. Com efeito, a orao o lugar por excelncia dagratuidade, da tenso para o Invisvel, o Inesperado e o Inefvel. Por isso,a experincia da orao para todos um desafio, uma graa a invocar,um dom dAquele ao qual nos dirigimos.

    Na orao, em cada poca a histria, o homem considera-se a si mesmo e

    a sua situao diante de Deus, a partir de Deus e em vista de Deus, eexperimenta que criatura carente de ajuda, incapaz de alcanar sozinho ocumprimento da prpria existncia e da prpria esperana. O filsofoLudwig Wittgenstein recordava que rezar significa sentir que o sentido domundo est fora do mundo. Na dinmica desta relao com quem dsentido existncia, com Deus, a orao tem uma das suas expressestpicas no gesto de se pr de joelhos. um gesto que contm em si uma

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    ambivalncia radical: com efeito, posso ser obrigado a pr-me de joelhos condio de indigncia e de escravido mas posso tambm inclinar-

    me espontaneamente, declarando o meu limite e, portanto, o facto de quetenho necessidade de Outro. A Ele declaro que sou frgil, necessitado,pecador. Na experincia da orao, a criatura humana exprime toda aconscincia de si, tudo o que consegue captar da prpria existncia e, aomesmo tempo, dirige-se inteiramente para o Ser diante do qual seencontra, orienta a prpria alma para aquele Mistrio do qual espera ocumprimento dos desejos mais profundos e a ajuda para superar a

    indigncia da prpria vida. Neste olhar para o Outro, neste dirigir-se paraalm est a essncia da orao, como experincia de uma realidade quesupera o sensvel e o contingente.

    Todavia, s no Deus que se revela encontra pleno cumprimento a buscado homem. A orao, que a abertura e elevao do corao a Deus,torna-se assim relao pessoal com Ele. E mesmo que o homem se esqueado seu Criador, o Deus vivo e verdadeiro no cessa de chamar primeiro o

    homem ao misterioso encontro da orao. Como afirma o Catecismo: Naorao, sempre o amor do Deus fiel a dar o primeiro passo; o passo dohomem sempre uma resposta. medida que Deus se revela e revela ohomem a si mesmo, a orao surge como um apelo recproco, um dramade aliana. Atravs das palavras e dos actos, este drama compromete ocorao e manifesta-se ao longo de toda a histria da salvao (n. 2567).

    Caros irmos e irms, aprendamos a deter-nos em maior medida diante deDeus, de Deus que se revelou em Jesus Cristo, aprendamos a reconhecerno silncio, no ntimo de ns mesmos, a sua voz que nos chama e nosreconduz profundidade da nossa existncia, fonte da vida, nascenteda salvao, para nos fazer ir alm do limite da nossa vida e abrir-nos medida de Deus, relao com Ele, que Amor infinito.

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    III

    A intercesso de Abrao por Sodoma (Gn 18, 16-33)

    Nas ltimas duas catequeses reflectimos sobre a orao como fenmenouniversal, que embora de diversas formas est presente nas culturasde todos os tempos. Hoje, ao contrrio, gostaria de comear um percursobblico sobre este tema, que nos levar a aprofundar o dilogo de alianaentre Deus e o homem, que anima a histria da salvao at ao pice, palavra definitiva que Jesus Cristo. Este caminho levar-nos- a meditar

    sobre alguns importantes textos e figuras paradigmticas do Antigo e doNovo Testamento. Ser Abrao, o grande Patriarca, pai de todos os fiis(cf. Rm 4, 11-12.16-17), a oferecer-nos um primeiro exemplo de orao,no episdio da intercesso pelas cidades de Sodoma e Gomorra. E gostariatambm de vos convidar a aproveitar o percurso que faremos nas prximascatequeses, para aprender a conhecer mais a Bblia, a qual espero quetenhais nos vossos lares e, durante a semana, deter-se a l-la e a medit-la

    na orao, para conhecer a maravilhosa histria da relao entre Deus e ohomem, entre Deus que se nos comunica e o homem que responde, quereza.

    O primeiro texto sobre o qual queremos meditar encontra-se no captulo18 do Livro do Gnesis; narra-se que a malvadez dos habitantes de Sodomae Gomorra tinha chegado ao pice, a ponto de tornar necessria uma

    interveno de Deus para cumprir um gesto de justia e para deter o mal,destruindo aquelas cidades. aqui que se insere Abrao, com a sua precede intercesso. Deus decide revelar-lhe aquilo que est para acontecer, efaz-lhe conhecer a gravidade do mal e as suas terrveis consequncias,porque Abrao o seu eleito, escolhido para se tornar um grande povo efazer chegar a bno divina ao mundo inteiro. A sua misso de salvao,e deve responder ao pecado que invadiu a realidade do homem; atravsdele, o Senhor quer reconduzir a humanidade f, obedincia e justia.

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    E agora, este amigo de Deus abre-se realidade e necessidade do mundo,ora por aqueles que esto para ser punidos e pede que sejam salvos.

    Abrao delineia imediatamente o problema em toda a sua gravidade, e dizao Senhor: E vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado?Talvez haja cinquenta justos na cidade: mat-los-s a todos? Noperdoars a cidade, por causa dos cinquenta justos que nela podem existir?No, no sers capaz de proceder assim, e matar o justo com o culpado,tratando-os da mesma maneira! Longe de ti semelhante pensamento! O

    Juiz de toda a terra no far justia? (vv. 23-25). Com estas palavras, comgrande coragem, Abrao pe diante de Deus a necessidade de evitar umajustia sumria: se a cidade culpada, justo condenar o seu crime einfligir o castigo, mas afirma o grande Patriarca seria injusto punirde modo indiscriminado todos os seus habitantes. Se na cidade existealguns inocentes, eles no podem ser tratados como os culpados. Deus,que um Juiz justo, no pode agir deste modo, diz justamente Abrao aDeus.

    Mas, se lermos mais atentamente o texto, dar-nos-emos conta de que opedido de Abrao ainda mais srio e mais profundo, porque no selimita a pedir a salvao para os inocentes. Abrao pede o perdo paratoda a cidade, e f-lo apelando-se justia de Deus; com efeito, diz aoSenhor: No perdoars a cidade, por causa dos cinquenta justos que nelapodem existir? (v. 24 b). Agindo deste modo, pe em jogo uma nova

    ideia de justia: no aquela que se limita a punir os culpados, como fazemos homens, mas uma justia diferente, divina, que busca o bem e o criaatravs do perdo que transforma o pecador, o converte e o salva.Portanto, com a sua orao, Abrao no invoca uma justia meramenteretributiva, mas uma interveno de salvao que, tendo em consideraoos inocentes, liberte da culpa inclusive os mpios, perdoando-os. Opensamento de Abrao, que parece quase paradoxal, poder-se-ia resumir

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    assim: obviamente, no se podem tratar os inocentes como os culpados,pois isto seria injusto; ao contrrio, necessrio tratar os culpados como os

    inocentes, pondo em aco uma justia superior, oferecendo-lhes umapossibilidade de salvao, porque se os malfeitores aceitam o perdo deDeus e confessam a prpria culpa, deixando-se salvar, j no continuaro acometer o mal, mas tornar-se-o tambm eles justos, e j sem anecessidade de ser punidos.

    Este o pedido de justia que Abrao expressa na sua intercesso, um

    pedido que se baseia na certeza de que o Senhor misericordioso. Abraono pede a Deus algo contrrio sua essncia, bate porta do corao deDeus, conhecendo a sua verdadeira vontade. Sem dvida, Sodoma umagrande cidade, e cinquenta justos parecem poucos, mas no soporventura a justia de Deus e o seu perdo a manifestao da fora dobem, embora ele parea menor e mais frgil que o mal? A destruio deSodoma devia impedir o mal presente na cidade, mas Abrao sabe queDeus tem outros modos e outros meios para deter a propagao do mal.

    o perdo que interrompe a espiral do pecado e, no seu dilogo com Deus,Abrao apela-se precisamente a isto. E quando o Senhor aceita perdoar acidade, se nela encontrar cinquenta justos, a sua orao de intercessocomea a descer rumo aos abismos da misericrdia divina. Abrao como recordamos faz diminuir progressivamente o nmero deinocnetes necessrios para a salvao: se no forem cinquenta, poderiamser suficientes quarenta e cinco, e depois cada vez menos, at dez,

    continuando com a sua splica, que se faz quase ousada na insistncia:Talvez ali se encontrem quarenta... trinta... vinte... dez (cf. vv.29.30.31.32). E quanto menor se torna o nmero, tanto maior se revela ese manifesta a misericrdia de Deus, que ouve com pacincia a orao, aacolhe e a repete a cada splica: Perdoarei... no destruirei... no o farei(cf. vv. 26.28.29.30.31.32).

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    Assim, por intercesso de Abrao, Sodoma poder ser salva, se nela seencontrarem unicamente dez inocentes. Este o poder da orao. Porque

    atravs da intercesso, da prece a Deus pela salvao dos outros manifesta-se a exprime-se o desejo de salvao que Deus nutre sempre pelo homempecador. Com efeito, o mal no pode ser aceite, deve ser indicado edestrudo atravs da punio: a destruio de Sodoma tinha precisamenteesta funo. Mas o Senhor no quer a morte do mpio, mas que seconverta e viva (cf. Ez 18, 23; 33, 11); o seu desejo sempre o de perdoar,salvar, dar vida, transformar o mal em bem. Ora, precisamente este

    desejo divino que, na orao, se torna desejo do homem e se exprimeatravs das palavras da intercesso. Com a sua splica, Abrao empresta aprpria voz, mas tambm o seu corao, vontade divina: o desejo deDeus misericrdia, amor e vontade de salvao, e este desejo de Deusencontrou em Abrao e na sua orao a possibilidade de se manifestar demodo concreto no interior da histria dos homens, para estar presenteonde h necessidade da graa. Com a voz da sua orao, Abrao d voz aodesejo de Deus, que no o de destruir, mas de salvar Sodoma, de darvida ao pecador convertido.

    isto que o Senhor quer, e o seu dilogo com Abrao uma manifestaoprolongada e inequvoca do seu amor misericordioso. A necessidade deencontrar homens justos no interior da cidade torna-se cada vez menosexigente e, no final, sero suficientes dez delas para salvar a totalidade dapopulao. No texto no se diz por que motivo Abrao se limita a dez.

    Talvez seja um nmero que indica um ncleo comunitrio mnimo (aindahoje, dez pessoas so o quorum necessrio para a orao pblica judaica).De qualquer modo, trata-se de um nmero reduzido, uma pequena partede bem pela qual comear para salvar um grande mal. Mas em Sodoma eGomorra, no havia sequer dez justos, e assim as cidades foram destrudas.Uma destruio testemunhada de modo paradoxal como necessria,precisamente pela prece de intercesso de Abrao. Pois foi exactamente

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    aquela orao que revelou a vontade salvfica de Deus: o Senhor estavadisposto a perdoar, desejava faz-lo, mas as cidades estavam fechadas num

    mal totalizador e paralisador, sem sequer poucos inocentes, a partir dosquais comear para transformar o mal em bem. Pois precisamente este ocaminho da salvao, que tambm Abrao pedia: ser salvos no quer dizersimplesmente evitar a punio, mas ser libertados do mal que habita emns. No o castigo que deve ser eliminado, mas o pecado, aquela rejeiode Deus e do amor que j traz em si o castigo. O profeta Jeremias dir aopovo rebelde: Valeu-te este castigo a tua malcia, e as tuas infidelidades

    atraram sobre ti a punio. Sabe, portanto, e v como te foi funesto eamargo abandonar o Senhor teu Deus (Jr 2, 19). desta tristeza eamargura que o Senhor quer salvar o homem, libertando-o do pecado.Mas necessria, portanto, uma transformao a partir de dentro, umagrande ocasio de bem, um incio a partir do qual comear para mudar omal em bem, o dio em amor e a vingana em perdo. Por isso, os justosdevem estar dentro da cidade, e Abrao repete continuamente: Talvez alise encontrem.... Ali: no interior da realidade doentia que deve existiraquele germe de bem que pode purificar e restituir a vida. uma palavradirigida tambm a ns: que nas nossas cidades se encontre o germe dobem; faamos de tudo para que haja no s dez justos, para fazerrealmente viver e sobreviver as nossas cidades e para nos salvar destaamargura interior, que a ausncia de Deus. E na realidade doentia deSodoma e Gomorra no se encontrava aquele germe de bem.

    Mas a misericrdia de Deus na histria do seu povo amplia-seulteriormente. Se, para salvar Sodoma eram necessrios dez justos, oprofeta Jeremias dir, em nome do Todo-Poderoso, que basta um nicojusto para salvar Jerusalm: Percorrei as ruas de Jerusalm, olhai,perguntai; procurai nas praas, vede se nelas encontrais um homem, um shomem que pratique a justia e seja leal; ento Eu perdoarei a cidade (5,1). O nmero diminuiu ainda mais, e a bondade de Deus mostra-se ainda

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    maior. E no entanto isto ainda no suficiente, a misericrdiasuperabundante de Deus no encontra a resposta de bem que procura, e

    Jerusalm cai sob o assdio do inimigo. Ser preciso que o prprio Deus setorne aquele justo. E este o mistrio da Encarnao: para garantir umjusto, Ele mesmo se faz homem. Sempre haver um justo, porque Ele:porm, preciso que o prprio Deus se torne aquele justo. O amor divinoinfinito e surpreendente ser plenamente manifestado, quando o Filho deDeus se fizer homem, o Justo definitivo, o Inocente perfeito, que trar asalvao ao mundo inteiro, morrendo na cruz, perdoando e intercedendo

    por quantos no sabem o que fazem (Lc 23, 34). Ento, a orao de cadahomem encontrar a sua resposta, ento cada uma das nossas intercessesser plenamente atendida.

    Caros irmos e irms, a splica de Abrao, nosso pai na f, nos ensine aabrir cada vez vez o corao misericrdia superabundante de Deus, paraque na prece quotidiana saibamos desejar a salvao da humanidade epedi-la com perseverana e confiana ao Senhor, que grande no amor.

    Obrigado!

    IV

    Luta noturna e encontro com Deus (Gn 32 , 23 -33 )

    Gostaria de meditar convosco sobre um texto do Livro do Gnesis, quenarra um episdio bastante particular da histria do Patriarca Jacob. umtrecho de no fcil interpretao, mas importante para a nossa vida de f ede orao; trata-se da narrao da luta com Deus no vau do Jaboc, da qualouvimos um trecho.

    Como recordareis, Jacob tinha subtrado ao seu irmo gmeo Esa aprimogenitura, em troca de um prato de lentilhas, e depois obtivera com oengano a bno do pai Isaac, j muito idoso, aproveitando-se da sua

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    cegueira. Tendo fugido ira de Esa, refugiou-se na casa de um parente,Labo; casou, enriqueceu e agora voltava para a sua terra natal, pronto a

    enfrentar o irmo, depois de ter tomado algumas prudentes precaues.Mas quando tudo est pronto para este encontro, aps levar aqueles queestavam com ele a atravessar o vau da torrente que delimitava o territriode Esa, Jacob, permanecendo s agredido repentinamente por umdesconhecido, com o qual luta durante uma noite inteira. precisamenteeste combate corpo corpo que encontramos no captulo 32 do Livro doGnesis que se torna para ele uma experincia singular de Deus.

    A noite o tempo favorvel para agir no escondimento, portanto, omelhor tempo para Jacob, para entrar no territrio do irmo sem ser vistoe talvez com a iluso de surpreender Esa. Porm, ele que surpreendido por um ataque imprevisto, para o qual no estava preparado.Tinha usado a sua astcia para procurar subtrair-se a uma situaoperigosa, e pensava que conseguiria ter tudo sob controle, e no entantoagora encontra-se a enfrentar uma luta misteriosa, que o surpreende na

    solido e sem lhe dar a possibilidade de organizar uma defesa adequada.Inerme, no meio da noite, o Patriarca Jacob combate com algum. Otexto no especifica a identidade do agressor; utiliza um termo hebraicoque indica um homem de modo genrico, um, algum; portanto,trata-se de uma definio incerta, indeterminada, que mantm o assaltantevoluntariamente no mistrio. Est escuro e Jacob no consegue ver demodo distinto o seu adversrio, e tambm para o leitor, para ns, ele

    permanece desconhecido; algum se ope ao Patriarca: este o nico dadocerto oferecido pelo narrador. S no final, quando a luta tiver terminado eaquele algum tiver desaparecido, s ento Jacob o mencionar e poderdizer que lutou com Deus.

    Portanto, este episdio tem lugar na obscuridade e difcil reconhecer noapenas a identidade do agressor de Jacob, mas tambm qual o

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    andamento da luta. Lendo este trecho, difcil estabelecer qual dos doisadversrios consegue prevalecer; os verbos utilizados so muitas vezes sem

    um sujeito explcito, e os gestos realizam-se de modo quase contraditrio,de tal forma que quando se pensa que prevalece um dos dois, a acosucessiva desmente imediatamente e apresenta o outro como vencedor.Com efeito, no incio Jacob parece ser o mais forte, e o adversrio rezao texto no podia venc-lo (v. 26); e no entanto, atinge Jacob naarticulao do fmur, provocando-lhe uma luxao. Ento, pensar-se-iaque Jacob deve sucumbir mas, ao contrrio, o outro que lhe pede para o

    deixar partir; e o Patriarca rejeita, pondo uma condio: No te deixareipartir, enquanto no me abenoares (v. 27). Aquele que, com o engano,tinha defraudado o irmo da bno do primognito, agora pretende-a dodesconhecido, cujos vestgios divinos comea a entrever, mas sem o poderainda reconhecer verdadeiramente.

    O rival, que parece detido e portanto derrotado por Jacob, em vez de sesubmeter ao pedido do Patriarca, pergunta-lhe o nome: Qual o teu

    nome?. E o Patriarca responde: Jacob (v. 28). Aqui, a luta passa poruma mudana importante. Com efeito, conhecer o nome de algumimplica uma espcie de poder sobre a pessoa, porque o nome, namentalidade bblica, contm em si a realidade mais profunda doindivduo, revela o seu segredo e o seu destino. Ento, conhecer o nomequer dizer conhecer a verdade acerca do outro e isto permite poderdomin-lo. Portanto, quando pergunta do desconhecido, Jacob revela o

    prprio nome, coloca-se nas mos do seu opositor, uma forma derendio, de entrega total de si ao outro.

    Mas neste gesto de se render, paradoxalmente tambm Jacob vencedor,porque recebe um nome novo, juntamente com o reconhecimento devitria da parte do adversrio, que lhe diz: O teu nome no ser maisJacob, mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens, e venceste

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    (v. 29). Jacob era um nome que evocava a origem problemtica doPatriarca; com efeito, em hebraico recorda o termo calcanhar, e remete o

    leitor para o momento do nascimento de Jacob quando, saindo do ventrematerno, segurava com a mo o calcanhar do irmo (cf. Gn 25, 26), quaseprefigurando a sua superao em detrimento do irmo, que teria realizadoquando fosse adulto; mas o nome Jacob evoca tambm o verbo enganar,suplantar. Pois bem, agora na luta o Patriarca revela ao seu opositor, numgesto de entrega e de rendio, a prpria realidade de enganador, dederrotador; mas o outro, que Deus, transforma esta realidade negativa

    em positiva: Jacob o enganador torna-se Israel, pois recebe um nome novoque assinala uma nova identidade. Mas tambm aqui, a narrao conservaa sua duplicidade voluntria, porque o significado mais provvel do nomeIsrael : Deus forte, Deus vence.

    Portanto, Jacob prevaleceu, venceu o prprio adversrio que o afirma mas a sua nova identidade, recebida do prprio adversrio, afirma etestemunha a vitria de Deus. E quando Jacob perguntar por sua vez o

    nome do seu contendente, ele rejeitar diz-lo, mas revelar-se- num gestoinequvoco, concedendo-lhe a bno. Aquela bno que o Patriarcatinha pedido no incio da luta agora -lhe concedida. E no se trata deuma bno obtida com o engano, mas aquela concedida gratuitamentepor Deus, que Jacob pode receber porque j sozinho, sem proteco, semastcias nem vigarices, se entrega inerme, aceita render-se e confessa averdade sobre si mesmo. Assim, no final da luta, aps ter recebido a

    bno, o Patriarca pode finalmente reconhecer o outro, o Deus dabno: Porque disse eu vi a Deus face a face, e conservei a vida(v. 31), e agora pode atravessar o vau, portador de um nome novo masvencido por Deus e marcado para sempre, coxeando pela feridarecebida.

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    As explicaes que a exegese bblica pode oferecer a propsito deste trechoso mltiplas; de modo particular, os estudiosos reconhecem nele

    intenes e componentes literrios de vrios tipos, assim como refernciasa certas narraes populares. Mas quando estes elementos so assumidospelos autores sagrados e inseridos na narrao bblica, eles mudam designificado e o texto abre-se a dimenses mais amplas. Portanto, noepisdio da luta de Jaboc oferece-se ao fiel um texto paradigmtico emque o povo de Israel fala da prpria origem e delineia as caractersticas deuma relao especial entre Deus e o homem. Por isso, como afirmado

    tambm no Catecismo da Igreja Catlica, a tradio espiritual da Igreja viunesta narrativa o smbolo da orao como combate da f e vitria daperseverana (n. 2.573). O texto bblico fala-nos da longa noite da buscade Deus, da luta para conhecer o seu nome e para ver o seu rosto; trata-seda noite da orao que, com tenacidade e perseverana, pede a Deus abno e um nome novo, uma renovada realidade, fruto de converso eperdo.

    Assim, a noite de Jacob no vau do Jaboc torna-se para o fiel um ponto dereferncia para compreender a relao com Deus que, na orao, encontraa sua mxima expresso. A orao exige confiana, proximidade, quasenum corpo a corpo simblico no com um Deus adversrio, inimigo, mascom o Senhor que abenoa, que permanece sempre misterioso, que pareceinalcanvel. Por isso, o autor sagrado utiliza o smbolo da luta, queimplica fora de esprito, perseverana e tenacidade para alcanar aquilo

    que se deseja. E se o objecto do desejo a relao com Deus, a sua bnoe o seu amor, ento a luta no poder deixar de culminar no dom pessoal aDeus, no reconhecimento da prpria debilidade, que vence precisamentequando consegue entregar-se nas mos misericordiosas de Deus.

    Caros irmos e irms, toda a nossa vida como esta longa noite de luta ede orao, que deve ser consumida no desejo e na busca de uma bno de

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    Deus, a qual no pode ser arrebatada nem vencida contando com as nossasforas, mas deve ser recebida dEle com humildade, como dom gratuito

    que enfim permite reconhecer o rosto do Senhor. E quando isto acontece,toda a nossa realidade muda, recebemos um nome novo e a bno deDeus. E ainda mais: Jacob, que recebe um nome novo, torna-se Israel, dum nome novo tambm ao lugar onde lutou com Deus, onde Ointerpelou; renomeia-o Penuel, que significa Face de Deus. Com estenome, reconhece aquele lugar repleto da presena do Senhor e tornasagrada aquela terra, imprimindo-lhe quase a memria daquele encontro

    misterioso com Deus. Aquele que se deixa abenoar por Deus abandona-se a Ele, deixa-se transformar por Ele e torna o mundo abenoado. Que oSenhor nos ajude a combater o bom combate da f (cf. 1 Tm 6, 12;2Tm 4, 7) e a pedir, na nossa orao, a sua bno para que nos renove naexpectativa de ver a sua Face.

    V

    A intercesso de Moiss pelo povo (Ex 32, 7-14)

    Lendo o Antigo Testamento, uma figura ressalta no meio das outras: a deMoiss, precisamente como homem de orao. Moiss, o grande profeta eguia do tempo do xodo, desempenhou a sua funo de mediador entreDeus e Israel fazendo-se portador, junto do povo, das palavras e dosmandamentos divinos, conduzindo-o rumo liberdade da Terra

    Prometida, ensinando os israelitas a viverem na obedincia e na confianaem Deus, durante a sua longa permanncia no deserto, mas tambm, ediria principalmente, rezando. Ele reza pelo Fara quando Deus, com aspragas, procurava converter o corao dos Egpcios (cf. x810); pede aoSenhor a cura da irm Maria, atingida pela lepra (cf. Nm 12, 9-13),intercede pelo povo que se tinha revoltado, amedrontado pela descriodos exploradores (cf. Nm14, 1-19), reza quando o fogo estava prestes adevorar o acampamento (cf. Nm11, 1-2) e quando serpentes venenosas

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    faziam matanas (cf. Nm21, 4-9); dirige-se ao Senhor e reage,protestando quando o fardo da sua misso se tinha tornado demasiado

    pesado (cf. Nm 11, 10-15); v Deus e fala com Ele face a face, comoalgum que fala com o prprio amigo (cf. x24, 9-17; 33, 7-23; 34, 1-10.28-35).

    Mesmo quando o povo, no Sinai, pede a Arao que construa o bezerro deouro, Moiss reza, explicando de maneira emblemtica a prpria funode intercesso. Este episdio narrado no captulo 32 do Livro do xodoe

    contm uma narrao paralela no captulo 9 do Deuteronmio. sobreeste episdio que gostaria de meditar na catequese hodierna e, de modoparticular, sobre a orao de Moiss, que encontramos na narrao doxodo. O povo de Israel encontrava-se aos ps do Sinai enquanto Moiss,no monte, esperava a entrega das tbuas da Lei, jejuando durante quarentadias e quarenta noites (cf. x24, 18; Dt 9, 9). O nmero quarenta temum valor simblico e significa a totalidade da experincia, enquanto com ojejum se indica que a vida deriva de Deus, Ele que a sustm. Com efeito,

    o gesto de comer implica a assuno do alimento que nos sustenta; porisso jejuar, renunciando ao alimento, adquire neste caso um significadoreligioso: um modo para indicar que no s de po vive o homem, masde toda a palavra que sai da boca do Senhor (cf. Dt 8, 3). Jejuando,Moiss demonstra que espera o dom da Lei divina como fonte de vida: elarevela a vontade de Deus e alimenta o corao do homem, fazendo-oentrar numa aliana com o Altssimo, que fonte da vida, a prpria

    Vida.

    Mas enquanto o Senhor, no monte, oferece a Lei a Moiss, aos ps domesmo monte o povo transgride-a. Incapazes de resistir expectativa e ausncia do mediador, os israelitas pedem a Arao: Faz-nos um deus quecaminhe nossa frente, porque a Moiss, que nos tirou do Egipto, nosabemos o que lhe aconteceu (x32, 1). Cansado de um caminho com

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    um Deus invisvel, agora que tambm Moiss, o mediador, desapareceu, opovo pede uma presena tangvel, palpvel, do Senhor, e encontra no

    bezerro de metal fundido, construdo por Arao, um deus que se tornaacessvel, manobrvel, ao alcance do homem. Trata-se de uma tentaoconstante no caminho de f: eludir o mistrio divino, construindo umdeus compreensvel, correspondente aos prprios esquemas, aos prpriosprogramas. Aquilo que acontece no monte Sinai demonstra toda ainsensatez e vaidade ilusria desta pretenso porque, como afirmaironicamente o Salmo106, Eles trocaram a sua glria pela esttua de um

    touro que come feno (Sl106 [105], 20). Por este motivo, o Senhor reagee ordena a Moiss que desa do monte, revelando-lhe aquilo que o povoestava a fazer, e terminando com estas palavras: Deixa, pois, que seacenda a minha clera contra eles e os devore; mas de ti farei uma grandenao (x32, 10). Como tinha acontecido com Abrao, a propsito deSodoma e Gomorra, tambm agora Deus revela a Moiss o que pretendefazer, como se no quisesse agir sem o seu consenso (cf. Am3, 7). Ele diz:Deixa, pois, que se acenda a minha clera. Na realidade, este deixa,pois, que se acenda a minha clera pronunciado precisamente para queMoiss intervenha e lhe pea para no o fazer, revelando deste modo que odesejo de Deus sempre a salvao. Como para as duas cidades dostempos de Abrao, a punio e a destruio, em que se exprime a ira deDeus como rejeio do mal, indicam a gravidade do pecado cometido; aomesmo tempo, o pedido do intercessor tenciona manifestar a vontade deperdo do Senhor. Esta a salvao de Deus, que implica misericrdia,

    mas ao mesmo tempo tambm denncia da verdade do pecado, do malque existe, de maneira que o pecador, reconhecendo e rejeitando o prpriomal, possa deixar-se perdoar e transformar por Deus. A prece deintercesso torna deste modo concreta, no contexto da realidadecorrompida do homem pecador, a misericrdia divina, que encontra vozna splica do orante e que se torna presente atravs dele onde hnecessidade de salvao.

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    A splica de Moiss est inteiramente centrada na fidelidade e na graa doSenhor. Ele refere-se em primeiro lugar histria de redeno qual Deus

    deu incio com a sada de Israel do Egipto, para depois fazer memria daantiga promessa feita aos Pais. O Senhor realizou a salvao, libertando oseu povo da escravido egpcia; para que ento pede Moiss osegpcios possam dizer: F-los sair com a malcia, para os deixar morrernas montanhas, para os fazer desaparecer da face da terra? (x32, 12). Aobra de salvao comeada deve ser completada; se Deus fizesse perecer oseu povo, isto poderia ser interpretado como o sinal de uma incapacidade

    divina de completar o plano de salvao. Deus no pode permitir que istoacontea: Ele o Senhor bom que salva, o garante da vida, o Deus demisericrdia e de perdo, de libertao do pecado que mata. E assimMoiss apela-se a Deus, vida interior de Deus, contra a sentena exterior.Mas ento, Moiss argumenta com o Senhor, se os seus eleitos perecerem,mesmo que sejam culpados, Ele poderia parecer incapaz de derrotar opecado. E isto no se pode aceitar. Moiss fez uma experincia concreta doDeus de salvao, foi enviado como mediador da libertao divina e agora,mediante a sua orao, torna-se intrprete de uma dupla inquietao,preocupado com o destino do seu povo, mas ao mesmo tempo tambmpreocupado com a honra que devida ao Senhor, pela verdade do seuNome. Com efeito, o intercessor deseja que o povo de Israel seja salvo,porque o rebanho que lhe foi confiado, mas inclusive a fim de quenaquela salvao se manifeste a verdadeira realidade de Deus. Amor aosirmos e amor a Deus compenetram-se na prece de intercesso, so

    inseparveis. Moiss, o intercessor, o homem contendido entre doisamores, que na orao se sobrepem num nico desejo de bem.

    Em seguida, Moiss apela para a fidelidade de Deus, recordando-lhe assuas promessas: Recorda-te de Abrao, de Isaac e de Israel, teus servos,aos quais juraste por ti mesmo e disseste: Tornarei a tua posteridade tonumerosa como as estrelas do cu, e toda esta terra, da qual te falei, d-la-

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    ei aos teus descendentes, que a possuiro para sempre (x 32, 13).Moiss faz memria da histria fundadora das origens, dos Pais do povo e

    da sua eleio, totalmente gratuita, em que s Deus tivera a iniciativa. Elesno receberam a promessa por causa dos seus mritos, mas pela livreescolha de Deus e do seu amor (cf. Dt10, 15). E agora, Moiss pede que oSenhor continue na fidelidade sua histria de eleio e de salvao,perdoando o seu povo. O intercessor no apresenta desculpas para opecado do seu povo, no enumera mritos presumveis, nem do povo nemseus, mas apela para a gratuidade de Deus: um Deus livre, totalmente

    amor, que no cessa de procurar quem se afastou, que permanece semprefiel a Si mesmo e oferece ao pecador a possibilidade de voltar para Ele e dese tornar, mediante o perdo, justo e capaz de fidelidade. Moiss pede aDeus que se mostre at mais forte do que o pecado e a morte e, com a suaorao, suscita este revelar-se divino. Mediador de vida, o intercessorsolidariza com o povo; desejoso unicamente da salvao que o prprioDeus deseja, ele renuncia perspectiva de se tornar um novo povoagradvel ao Senhor. A frase que Deus lhe tinha dirigido, de ti farei umagrande nao, nem sequer tomada em considerao pelo amigo deDeus, que ao contrrio est pronto a assumir sobre si mesmo no s aculpa do seu povo, mas todas as suas consequncias. Quando, depois dadestruio do bezerro de ouro, ele voltar ao monte para pedir de novo asalvao de Israel, dir ao Senhor: Rogo-te que lhes perdoes agora estepecado! Seno, apaga-me do livro que escreveste (v. 32). Com a orao,desejando a vontade de Deus, o intercessor entra cada vez mais

    profundamente no conhecimento do Senhor e da sua misericrdia,tornando-se capaz de um amor que chega at ao dom total de si mesmo.Em Moiss, que est no alto do monte face a face com Deus e que se fazintercessor para o seu povo e se oferece a si prprio apaga-me osPadres da Igreja viram uma prefigurao de Cristo que, no alto da cruz,realmente est diante de Deus, no apenas como amigo, mas como Filho.E no s se oferece apaga-me mas com o seu corao trespassado

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    faz-se cancelar, torna-se como diz o prprio so Paulo, pecado,carrega sobre si os nossos pecados para nos salvar a todos; a sua intercesso

    no s solidariedade, mas identificao connosco: traz todos ns no seucorpo. E assim toda a sua existncia de homem e de Filho um clamor aoCorao de Deus, perdo, mas perdo que transforma e renova.

    Penso que devemos meditar sobre estas realidades. Cristo est diante doRosto de Deus e reza por mim. A sua orao na Cruz contempornea atodos os homens, contempornea a mim: Ele reza por mim, sofreu e sofre

    por mim, identificou-se comigo, assumindo o nosso corpo e a nossa almahumana. E convida-nos a entrar nesta sua identidade, fazendo-nos umcorpo, um s esprito com Ele, porque do alto da Cruz Ele no trouxenovas leis, tbuas de pedra, mas trouxe a si mesmo, o seu corpo e o seusangue, como nova aliana. assim que nos faz consanguneos com Ele,um corpo com Ele, identificados com Ele. Convida-nos a entrar nestaidentificao, a estar unidos com Ele no nosso desejo de ser um corpo, ums esprito com Ele. Oremos ao Senhor, para que esta identificao nos

    transforme, nos renove, porque o perdo renovao, transformao.

    Gostaria de concluir esta catequese com as palavras do apstolo Paulo aoscristos de Roma: Quem poderia acusar os escolhidos de Deus? Deusquem os justifica. Quem os condenar? Cristo Jesus, que morreu, oumelhor, que ressuscitou, que est direita de Deus, quem intercede porns! Quem nos separar do amor de Cristo? [...] nem a morte, nem a vida,

    nem os anjos, nem os principados [...] nem qualquer outra criatura nospoder separar do amor que Deus nos testemunha em nosso Senhor JesusCristo (Rm8, 33-35.38.39).

    VI

    Profetas e oraes em confronto (1Rs 18, 20-40)

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    Na histria religiosa do antigo Israel, tiveram grande relevncia os profetascom o seu ensinamento e a sua pregao. Entre eles, sobressai a figura de

    Elias, suscitado por Deus para levar o povo converso. O seu nomesignifica o Senhor o meu Deus e em sintonia com este nome que sedesenvolve a sua vida, inteiramente consagrada a provocar no povo oreconhecimento do Senhor como nico Deus. De Elias, o Ben Sirdiz:Levantou-se depois o profeta Elias, ardoroso como o fogo; as suaspalavras ardiam como uma tocha (Ecli 48, 1). Com esta chama, Israelvolta a encontrar o seu caminho para Deus. No seu ministrio, Elias reza:

    invoca o Senhor para que restitua a vida ao filho de uma viva que o tinhahospedado (cf. 1 Rs 17, 17-24), clama a Deus o seu cansao e a suaangstia, enquanto foge para o deserto procurado pela rainha Jezabel queo queria matar (cf. 1 Rs 19, 1-4), mas sobretudo no monte Carmelo quese mostra em todo o seu poder de intercessor quando, diante de todo oIsrael, reza ao Senhor para que se manifeste e converta o corao do povo. o episdio narrado no captulo 18 doprimeiro Livro dos Reis, sobre oqual hoje meditamos.

    Encontramo-nos no reino do Norte, no sculo IX a.C., na poca do reiAcab, num momento em que em Israele se tinha criado uma situao desincretismo aberto. Alm do Senhor, o povo adorava Baal, o dolotranquilizador do qual se acreditava que derivava o dom da chuva e aoqual, por isso, se atribua o poder de dar fertilidade aos campos e vida aoshomens e ao gado. Embora pretendesse seguir o Senhor, Deus invisvel e

    misterioso, o povo procurava a segurana tambm num deuscompreensvel e previsvel, do qual julgava que podia obter a fecundidadee a prosperidade, em troca de sacrifcios. Israele cedia seduo daidolatria, a tentao contnua do crente, iludindo-se que podia servir adois senhores (cf.Mt 6, 24;Lc16, 13), e facilitar os caminhos imprviosda f do Todo-Poderoso, depositando de novo a sua confiana tambmnum deus impotente, feito pelos homens.

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    precisamente para desmascarar a insensatez enganadora de tal atitudeque Elias manda reunir o povo de Israel no monte Carmelo e que o pe

    diante da necessidade de fazer uma escolha: Se o Senhor Deus, segui-o,mas se Baal, segui Baal (1 Rs 18, 21). E o profeta, portador do amor deDeus, no deixa sozinho o seu povo perante esta escolha, mas ajuda-o,indicando-lhe o sinal que revelar a verdade: tanto ele como os profetas deBaal prepararo um sacrifcio e rezaro, e o Deus verdadeiro manifestar-se-, respondendo com o fogo que consumar o holocausto. Assim comea oconfronto entre o profeta Elias e os seguidores de Baal, que na realidade

    est entre o Senhor de Israel, Deus de salvao e de vida, e o dolo mudo esem qualquer consistncia, que nada pode, nem no bem nem no mal(cf.Jr 10, 5). E comea inclusive o confronto entre dois modoscompletamente diferentes de se dirigir a Deus e orar.

    Com efeito, os profetas de Baal, clamam, agitam-se, danam saltando,entram num estado de exaltao e chegam at a cortar-se com espadas elanas, at se cobrirem de sangue (1 Rs 18, 28). Eles recorrem a si

    mesmos para interpelar o seu deus, confiando nas prprias capacidadespara suscitar a sua resposta. Revela-se deste modo a realidade enganadorado dolo: ele pensado pelo homem como algo de que se pode dispor, quese pode gerir com as prprias foras, ao qual se pode aceder a partir de simesmo e da prpria fora vital. A adorao do dolo, em vez de abrir ocorao humano Alteridade, a uma relao libertadora que permita sairdo espao limitado do prprio egosmo para aceder a dimenses de amor e

    de dom recproco, fecha a pessoa no crculo exclusivo e desesperador dabusca de si mesmo. E o engano tal que, adorando o dolo, o homem seencontra obrigado a gestos extremos, na tentativa ilusria de o submeter prpria vontade. Por isso, os profetas de Baal chegam a angustiar-se, aprovocar feridas no corpo, com um gesto dramaticamente irnico: para teruma resposta, um sinal de vida do seu deus, chegam a cobrir-se de sangue,e com ele simbolicamente de morte.

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    A atitude de orao de Elias, ao contrrio, muito diferente. Ele pede aopovo que se aproxime, envolvendo-o deste modo na sua aco e na sua

    splica. A finalidade do desafio por ele dirigido aos profetas de Baalconsistia em reconduzir para Deus o povo que se tinha perdido, seguindoos dolos; por isso, ele quer que Israel se una a ele, tornando-se partcipe eprotagonista da sua orao e daquilo que estava a acontecer. Depois, oprofeta erige um altar utilizando, como o texto descreve, doze pedras,segundo o nmero das doze tribos sadas dos filhos de Jacob, a quem oSenhor dissera: Tu chamar-te-s Israel (v. 31). Aquelas pedras

    representam todo o Israel, e constituem a memria tangvel da histria deeleio, de predileco e de salvao, da qual o povo fora objecto. O gestolitrgico de Elias tem um alcance decisivo; o altar lugar sagrado queindica a presena do Senhor, mas aquelas pedras que o compemrepresentam o povo, que agora, graas mediao do profeta, colocadosimbolicamente diante de Deus, tornando-se altar, lugar de oferenda ede sacrifcio.

    Mas necessrio que o smbolo se torne realidade, que Israel reconhea overdadeiro Deus e volte a encontrar a prpria identidade de povo doSenhor. Por isso, Elias pede a Deus que se manifeste, e aquelas dozepedras, que deviam recordar a Israel a sua verdade, servem tambm pararecordar ao Senhor a sua fidelidade, qual o profeta se apela na orao. Aspalavras da sua invocao so densas de significado e de f: Senhor Deusde Abrao, de Isaac e de Israel, saibam todos hoje que sois o Deus de

    Israel, que eu sou vosso servo e que por vossa ordem fiz todas estas coisas.Ouvi-me, Senhor, ouvi-me: que este povo reconhea que vs, Senhor, soisDeus, e que sois vs que converteis os seus coraes! (vv. 36-37;cf. Gn 32, 36-37). Elias dirige-se ao Senhor, chamando-lhe Deus dos Pais,fazendo assim memria implcita das promessas divinas e da histria deeleio e de aliana, que uniu indissoluvelmente o Senhor ao seu povo. Ocompromisso de Deus na histria dos homens tal que o seu Nome j

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    est ligado de maneira inseparvel ao dos Patriarcas, e o profeta pronunciaaquele Nome santo para que Deus se recorde e se mostre fiel, mas tambm

    a fim de que Israel se sinta chamado pelo nome e volte a encontrar a suafidelidade. Com efeito, o ttulo divino pronunciado por Elias parece umpouco surpreendente. Em vez de utilizar a frmula habitual, Deus deAbrao, de Isaac e de Jacob, ele recorre a um apelativo menos comum:Deus de Abrao, de Isaac e de Israel. A substituio do nome Jacobcom Israel evoca a luta de Jacob no vau do Jaboc, com a troca do nome qual o narrador faz uma referncia explcita (cf. Gn 32, 31) e da qual

    falei numa das ltimas catequeses. Tal substituio adquire um significadoexpressivo no contexto da invocao de Elias. O profeta reza pelo povo doreino do Norte, que se chamava precisamente Israel, distinto de Jud, queindicava o reino do Sul. E agora este povo, que parece ter esquecido aprpria origem e a sua relao privilegiada com o Senhor, sente-sechamado pelo nome, enquanto pronunciado o Nome de Deus, Deus doPatriarca e Deus do povo: Senhor Deus [...] de Israel, saibam todos hojeque sois o Deus de Israel.

    O povo pelo qual Elias reza posto de novo diante da prpria verdade, e oprofeta pede que tambm a verdade do Senhor se manifeste e que Eleintervenha para converter Israel, dissuadindo-o do engano da idolatria elevando-o assim salvao. O seu pedido para que o povo enfim saiba,conhea de modo pleno quem verdadeiramente o seu Deus, e faa aescolha decisiva de seguir s Ele, o Deus verdadeiro. Pois somente assim

    Deus reconhecido por aquilo que , Absoluto e Transcendente, sem apossibilidade de lhe pr ao lado outros deuses, que O negariam comoAbsoluto, tornando-o relativo. Esta a f que faz de Israel o povo deDeus; trata-se da f proclamada no conhecido texto do ShemIsrael: Ouve, Israel! O Senhor, nosso Deus, o nico Senhor. Amarsao Senhor, teu Deus, com todo o teu corao, toda a tua alma e todas astuas foras (Dt 6, 4-5). Ao Absoluto de Deus, o fiel deve responder com

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    um amor absoluto, total, que comprometa a sua vida inteira, as suas forase o seu corao. E precisamente para o corao do seu povo que o

    profeta, com a sua orao, implora a converso: Que este povo reconheaque vs, Senhor, sois Deus, e que sois vs que converteis os seus coraes!(1 Rs 18, 37). Com a sua intercesso, Elias pede a Deus o que o prprioDeus deseja realizar, manifestar-se em toda a sua misericrdia, fiel suarealidade de Senhor da vida que perdoa, converte, transforma.

    E isto que acontece: O fogo do Senhor baixou do cu e consumiu o

    holocausto, a lenha, as pedras, a poeira e at mesmo a gua do sulco.Vendo isso, o povo prostrou-se com o rosto por terra, exclamando: OSenhor Deus! O Senhor Deus! (vv. 38-39). O fogo, este elementonecessrio e ao mesmo tempo terrvel, ligado s manifestaes divinas dasara ardente e do Sinai, agora serve para assinalar o amor de Deus, queresponde orao e se revela ao seu povo. Baal, o deus mudo e impotente,no tinha respondido s invocaes dos seus profetas; o Senhor, aocontrrio, responde, e de modo inequvoco, no s consumindo o

    holocausto, mas at secando toda a gua que tinha sido derramada emvolta do altar. Israel j no pode ter dvidas; a misericrdia divina veio aoencontro da sua debilidade, das suas dvidas e da sua falta de f. AgoraBaal, o dolo intil, derrotado, e o povo que parecia perdido voltou aachar o caminho da verdade e a encontrar-se a si mesmo.

    Estimados irmos e irms, o que nos diz, a ns, esta histria do passado?

    Qual o presente desta histria? Em primeiro lugar est em questo aprioridade do primeiro mandamento: adorar unicamente a Deus. OndeDeus desaparece, o homem cai na escravido de idolatrias, comomostraram, no nosso tempo, os regimes totalitrios e como mostramtambm diversas formas de niilismo, que tornam o homem dependente dedolos, de idolatrias, escravizando-o. Em segundo lugar, a finalidadeprimria da orao a converso: o fogo de Deus que transforma o nosso

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    corao e nos torna capazes de ver Deus e, assim, de viver segundo Deus ede viver para o prximo. E o terceiro ponto: os Padres dizem-nos que

    tambm esta histria de um profeta proftica, se dizem sombrado porvir, do futuro Cristo; um passo ao longo do caminho rumo aCristo. E dizem-nos que aqui vemos o verdadeiro fogo de Deus: o amorque orienta o Senhor at Cruz, at ao dom total de si mesmo. Ento, aautntica adorao de Deus consiste em dar-se a si prprio a Deus e aoshomens, a verdadeira adorao o amor. E a autntica adorao de Deusno destri, mas renova e transforma. Sem dvida, o fogo de Deus, o fogo

    do amor consome, transforma e purifica, mas precisamente por isso nodestri mas, ao contrrio, cria a verdade do nosso ser, volta a criar o nossocorao. E assim, realmente vivos pela graa do fogo do Esprito Santo, doamor de Deus, somos adoradores em esprito e em verdade.

    VII

    O povo de Deus que reza: os Salmos

    Nas catequeses precedentes, reflectimos sobre algumas figuras do AntigoTestamento particularmente significativas para a nossa meditao sobre aorao. Falei a respeito de Abrao, que intercede pelas cidadesestrangeiras; acerca de Jacob, que na luta nocturna recebe a bno;deMoiss, que invoca o perdo para o seu povo; e sobre Elias, que reza pelaconverso de Israel. Com a catequese de hoje, gostaria de comear um

    novo trecho do percurso: em vez de comentar episdios particulares depersonagens em orao, entraremos no livro de orao por excelncia, olivro dos Salmos. Nas prximas catequeses leremos e meditaremos sobrealguns dos Salmos mais bonitos e mais queridos tradio orante daIgreja. Hoje, gostaria de os introduzir, falando sobre o livro dos Salmosnoseu conjunto.

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    O Saltrio apresenta-se como um formulrio de oraes, uma colectneade cento e cinquenta Salmos, que a tradio bblica oferece ao povo dos

    fiis para que se tornem a sua, a nossa orao, o nosso modo de nosdirigirmos a Deus e de nos relacionarmos com Ele. Neste livro, encontraexpresso toda a experincia humana, com os seus mltiplos aspectos, bemcomo toda a gama de sentimentos que acompanham a existncia dohomem. Nos Salmos entrelaam-se e exprimem-se alegria e sofrimento,desejo de Deus e percepo da prpria indignidade, felicidade e sentido deabandono, confiana em Deus e solido dolorosa, plenitude de vida e

    medo de morrer. Toda a realidade do crente conflui nestas oraes, queprimeiro o povo de Israel e depois a Igreja assumiram como mediaoprivilegiada da relao com o nico Deus e resposta adequada ao seurevelar-se na histria. Enquanto oraes, os Salmos constituemmanifestaes da alma e da f, em que todos se podem reconhecer e nosquais se comunica aquela experincia de particular proximidade de Deus, qual cada homem chamado. E toda a complexidade do existirhumano que se concentra na complexidade das diversas formas literriasdos vrios Salmos: hinos, lamentaes, splicas individuais e comunitrias,cnticos de aco de graas, Salmos sapienciais e outros gneros que sepodem encontrar nestas composies poticas.

    No obstante esta multiplicidade expressiva, podem ser identificados doisgrandes mbitos que resumem a orao do Saltrio: a splica, ligada lamentao, e o louvor, duas dimenses ligadas entre si e quase

    inseparveis. Porque a splica animada pela certeza de que Deusresponder, e de que isto abre ao louvor e aco de graas; e porque olouvor e a aco de graas brotam da experincia de uma salvaorecebida, que supe uma necessidade de ajuda que a splica exprime.

    Na splica, o orante lamenta-se e descreve a sua situao de angstia, deperigo e de desolao, ou ento, como nos Salmos penitenciais, confessa a

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    culpa, o pecado, pedindo para ser perdoado. Ele expe ao Senhor o seuestado de esprito na confiana de ser ouvido, e isto implica um

    reconhecimento de Deus como bom, desejoso do bem e amante da vida(cf. Sb11, 26), pronto a ajudar, salvar e perdoar. Por exemplo, assim rezao Salmista, no Salmo31: Junto de vs, Senhor, refugio-me. Que eu noseja confundido para sempre [...] Vs livrar-me-eis das ciladas que mearmaram, porque sois a minha defesa (vv. 2.5). Por conseguinte, j nalamentao pode sobressair algo do louvor, que se preanuncia naesperana da interveno divina e que em seguida se faz explcita, quando

    a salvao divina se torna realidade. De maneira anloga, nos Salmos deaco de graa e de louvor, fazendo memria do dom recebidocontemplando a grandeza da misericrdia de Deus, reconhece-se tambma prpria insignificncia e a necessidade de ser salvo, que se encontra nabase da splica. Confessa-se assim a Deus a prpria condio de criatura,inevitavelmente caracterizada pela morte, e no entanto portadora de umdesejo radical de vida. Por isso o Salmista exclama, no Salmo86: Louvar-vos-ei de todo o corao, Senhor meu Deus, e glorificarei o vosso nomeeternamente. Porque a vossa misericrdia foi grande para comigo, etirastes a minha alma das profundezas da regio dos mortos (vv. 12-13).De tal modo, na orao dos Salmos, splica e louvor entrelaam-se efundam-se num nico cntico que celebra a graa eterna do Senhor que sedebrua sobre a nossa fragilidade.

    Precisamente para permitir que o povo dos fiis se una a este cntico, o

    livro do Saltrio foi concedido a Israel e Igreja. Com efeito, os Salmosensinam a rezar. Neles, a Palavra de Deus transforma-se em palavra deorao e so as palavras do Salmista inspirado que se torna tambmpalavra do orante que recita os Salmos. Estas so a beleza e aparticularidade deste livro bblico: as preces nele contidas, diversamente deoutras oraes que encontramos na Sagrada Escritura, no esto inseridasnuma trama narrativa que especifica o seu sentido e a sua funo. Os

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    Salmos so dados ao fiel precisamente como texto de orao, que temcomo nica finalidade tornar-se a orao daqueles que os assumem e com

    eles se dirigem a Deus. Dado que so uma Palavra de Deus, quem recitaos Salmos fala a Deus com as palavras que o prprio Deus nos concedeu,dirige-se a Ele com as palavras que Ele mesmo nos doa. Deste modo,recitando os Salmos aprendemos a rezar. Eles constituem uma escola deorao.

    Algo de anlogo acontece quando a criana comea a falar, ou seja, a

    expressar as prprias sensaes, emoes e necessidades, com palavras queno lhe pertencem de modo inato, mas que ele aprende dos seus pais e deque vive ao seu redor. Aquilo que a criana quer manifestar a sua prpriavivncia, mas o instrumento expressivo pertence a outros; e ele apropria-sedo mesmo gradualmente, as palavras recebidas dos pais tornam-se as suaspalavras e atravs destas palavras aprende tambm um modo de pensar ede sentir, acede a um inteiro mundo de conceitos, e nele cresce, relaciona-se com a realidade, com os homens e com Deus. Finalmente, a lngua dos

    seus pais tornou-se a sua lngua, ele fala com palavras recebidas de outros,que j se tornaram as suas palavras. Assim acontece com a orao dosSalmos. Eles so-nos doados para que aprendamos a dirigir-nos a Deus, acomunicarmos com Ele, a falar-lhe de ns com as suas palavras, aencontrar uma linguagem para o encontro com Deus. E, atravs de taispalavras, ser possvel tambm conhecer e aceitar os critrios do seu agir,aproximar-se ao mistrio dos seus pensamentos e dos seus caminhos

    (cf. Is 55, 8-9), de maneira a crescer cada vez mais na f e no amor. Domesmo modo como as nossas palavras no so apenas palavras, masensinam-nos um mundo real e conceitual, assim tambm estas preces nosensinam o Corao de Deus, pelo que no s podemos falar com Deus,mas podemos aprender quem Deus e, aprendendo a falar com Ele,aprendemos como ser homens, como sermos ns mesmos.

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    A este propsito, parece significativo o ttulo que a tradio judaicaconferiu ao Saltrio. Ele chama-se tehillm, um termo hebraico que quer

    dizer louvores, tirada daquela raiz verbal que encontramos na expressoHalleluyah, isto , literalmente: Louvai o Senhor. Por conseguinte,este livro de oraes, no obstante seja to multiforme e complexo, com osseus diversos gneros literrios e com a sua articulao entre louvor esplica, em ltima anlise um livro de louvores, que ensina a dar graas,a celebrar a grandeza do dom de Deus, a reconhecer a beleza das suasobras e a glorificar o seu Nome santo. Esta a resposta mais adequada

    diante do manifestar-se do Senhor e da experincia da sua bondade.Ensinando-nos a rezar, os Salmos ensinam-nos que tambm na desolao,inclusive na dor, a presena de Deus uma fonte de maravilha e deconsolao; pode-se chorar, suplicar, interceder e lamentar-se, mas com aconscincia de que estamos a caminhar rumo luz, onde o louvor poderser definitivo. Como nos ensina o Salmo36: Em vs est a fonte da vida,e na vossa luz que vemos a luz! (Sl36, 10).

    Mas alm deste ttulo geral do livro, a tradio judaica atribuiu a muitosSalmos alguns ttulos especficos, conferindo-os em grande maioria ao reiDavid. Figura de notvel importncia humana e teolgica, David umapersonagem complexa, que atravessou as mais diversificadas experinciasfundamentais do viver. Jovem pastor do rebanho paterno, passando pelasvicissitudes alternadas e por vezes dramticas, torna-se rei de Israel, pastordo povo de Deus. Homem de paz, combateu muitas guerras; incansvel e

    tenaz investigador de Deus, traiu o seu Amor, e isto caracterstico:permaneceu sempre investigador de Deus, no obstante tenha pecadomuitas vezes gravemente; penitente humilde, recebeu o perdo divino,mas tambm a pena divina, e aceitou um destino marcado pela dor.Assim, David foi um rei, com todas as suas debilidades, segundo oCorao de Deus (cf. 1 Sm 13, 14), ou seja, um orante apaixonado, umhomem que sabia o que quer dizer suplicar e louvar. Por conseguinte, a

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    ligao dos Salmos a este insigne rei de Israel importante, porque ele uma figura messinica, Ungido do Senhor, no qual de certa maneira

    ofuscado o mistrio de Cristo.

    Igualmente importantes e significativos so o modo e a frequncia comque as palavras dos Salmos so retomadas pelo Novo Testamento,assumindo e sublinhando aquele valor proftico sugerido pela ligao doSaltrio figura messinica de David. No Senhor Jesus, que na sua vidaterrena recitou com os Salmos, eles encontram o seu cumprimento

    definitivo e revelam o seu sentido mais pleno e profundo. As oraes doSaltrio, com as quais se fala a Deus, falam-nos dele, falam-nos do Filho,imagem do Deus invisvel (cf. Cl1, 15), que nos revela completamente oRosto do Pai. Portanto o cristo, recitando os Salmos, reza o Pai emCristo e com Cristo, assumindo aqueles cnticos numa nova perspectiva,que tem no mistrio pascal a sua ltima chave interpretativa. O horizontedo orante abre-se assim a realidades inesperadas, e cada Salmo adquireuma nova luz em Jesus Cristo, e o Saltrio pode resplandecer em toda a

    sua riqueza infinita.

    Carssimos irmos e irms, tomemos portanto na nossa mo este livrosanto, deixemo-nos ensinar por Deus a dirigir-nos a Ele, faamos doSaltrio uma guia que nos ajude e nos acompanhe quotidianamente nocaminho da orao. E perguntemos tambm ns, como os discpulos deJesus: Senhor, ensinai-nos a rezar! (Lc 11, 1), abrindo o corao para

    receber a orao do Mestre, em que todas as preces ho-de chegar ao seucumprimento. Deste modo, tornando-nos filhos no Filho, poderemosfalar a Deus, chamando-lhe Pai Nosso. Obrigado!

    VIII

    A leitura da Bblia , ali mento par a o esprito

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    Quando temos um momento de pausa nas nossas actividades, de modoespecial durante as frias, muitas vezes pegamos num livro, que desejamos

    ler. precisamente este o primeiro aspecto, sobre o qual hoje gostaria demeditar. Cada um de ns tem necessidade de momentos e de espaos derecolhimento, de meditao e de calma... Graas a Deus assim! Comefeito, esta exigncia diz-nos que no fomos feitos apenas para trabalhar,mas tambm para pensar, ponderar, ou simplesmente para acompanharcom a mente e o corao uma narrao, uma histria com a qual nosidentificarmos, num certo sentido, perder-nos, para depois nos

    encontrarmos enriquecidos.

    Naturalmente, muitos destes livros de leitura, que temos nas nossas mosdurante as frias, so sobretudo de evaso, e isto normal. Todavia, vriaspessoas, especialmente se podem contar com espaos de pausa e dedescanso mais prolongados, dedicam-se leitura de algo maiscomprometedor. Ento, gostaria de lanar uma proposta: por que deixarde descobrir alguns livros da Bblia, que normalmente no so conhecidos?

    Ou dos quais, talvez, ouvimos alguns trechos durante a Liturgia, mas quenunca lemos na ntegra? Com efeito, muitos cristos j no lem a Bblia,e tm um seu conhecimento muito limitado e superficial. A Bblia como diz o nome uma colectnea de livros, uma pequenabiblioteca, nascida ao longo de um milnio. Alguns destes livrinhosque a compem permanecem quase desconhecidos para a maior parte daspessoas, inclusive de bons cristos. Alguns so muito breves, como o Livro

    de Tobias, uma narrao que contm um sentido muito elevado da famliae do matrimnio; ou o Livro de Ester, em que a rainha judia, com a f e aorao, salva o seu povo do extermnio; ou ainda mais breve, oLivro deRute, uma estrangeira que conhece Deus e experimenta a sua Providncia.Estes pequenos livros podem ser lidos inteiramente numa hora. Maisexigentes, e autnticas obras-primas, so o Livro de Job, que enfrenta ogrande problema da dor inocente; o Qoelet, que impressiona pela

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    modernidade desconcertante com que pe em discusso o sentido da vidae do mundo; o Cntico dos Cnticos, maravilhoso poema simblico do

    amor humano. Come vedes, so todos livros do Antigo Testamento. E oNovo? Sem dvida, o Novo Testamento mais conhecido, e os seusgneros literrios so menos diversificados. Porm, a beleza da leituraintegral do Evangelho deve ser descoberta, assim como recomendoosActos dos Apstolos, ou uma dasCartas.

    Caros amigos, para concluir, hoje gostaria de sugerir que conserveis ao

    vosso alcance, durante a temporada de Vero, ou nos momentos de pausa,a Bblia Sagrada, para a saborear de modo novo, lendo inteiramente algunsdos seus livros, aqueles menos conhecidos e tambm os mais famosos,como os Evangelhos, mas numa leitura contnua. Assim, os momentos dedescanso podem tornar-se, alm de um enriquecimento cultural, inclusiveum alimento para o esprito, capaz de nutrir o conhecimento de Deus e odilogo com Ele, a orao. E esta parece ser uma bonita ocupao para asfrias: pegar num livro da Bblia, gozar assim de um pouco de descanso e,

    ao mesmo tempo, entrar no grande espao da Palavra de Deus eaprofundar o nosso contacto com o Eterno, precisamente como finalidadedo tempo livre que o Senhor nos concede.

    IX

    Os o sis do espr ito

    Em cada poca, homens e mulheres que consagraram a sua vida a Deus naorao como os monges e as monjas estabeleceram as suascomunidades em lugares particularmente lindos, nos campos, nas colinas,nos vales montanheses, s margens dos lagos ou do mar, ou at mesmo empequenas ilhas. Estes lugares unem dois elementos muito importantes para

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    a vida contemplativa: a beleza da criao, que remete do Criador, e osilncio, garantido pela distncia em relao s cidades e s grandes vias de

    comunicao. O silncio constitui a condio ambiental que melhorfavorece o recolhimento, a escuta de Deus, a meditao. J o prprio factode nos deleitarmos com o silncio, de nos deixarmos por assim dizercumular do silncio, predispe-nos para a orao. O grande profetaElias, no monte Horeb ou seja, o Sinai assistiu a um redemoinho,depois a um tremor de terra e finalmente a clares de fogo, mas noreconheceu neles a voz de Deus; no entanto, reconheceu-a numa brisa

    ligeira (cf. 1 Rs19, 11-13). Deus fala no silncio, mas preciso saber ouvi-lo. Por isso, os mosteiros so um osis em que Deus fala humanidade; eneles encontra-se o claustro, lugar simblico, porque um espao fechado,mas aberto para o cu.

    Caros amigos, amanh (*) celebraremos a memria de Santa Clara deAssis. Por isso, apraz-me recordar um destes osis do espritoparticularmente queridos famlia franciscana e a todos os cristos: o

    pequeno convento de So Damio, situado um pouco abaixo da cidade deAssis, no meio dos olivais que descem gradualmente rumo a Santa Mariados Anjos. Ao p daquela igrejinha, que Francisco restaurou depois da suaconverso, Clara e as primeiras companheiras estabeleceram a suacomunidade, vivendo de orao e de pequenos trabalhos. Chamavam-seIrms Pobres, e a sua forma de vida era a mesma dos Frades Menores:Observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo (Regra de

    Santa Clara, I, 2), conservando a unio da caridade recproca (cf. ibid., X,7) e observando em particular a pobreza e a humildade vividas por Jesus epela sua santssima Me (cf. ibid., XII, 13).

    O silncio e a beleza do lugar em que vive a comunidade monstica beleza simples e austera constituem como que um reflexo da harmoniaespiritual que a prpria comunidade procura realizar. O mundo est

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    ou seja, sobre a meditao. E o que meditao? Quer dizer fazermemria do que Deus fez e no esquecer os seus numerosos benefcios

    (cf. Sl 103, 2b). Muitas vezes vemos s as coisas negativas; temos queconservar na nossa memria tambm as coisas positivas, os dons que Deusnos concedeu, prestar ateno aos sinais positivos que vm de Deus e fazermemria dos mesmos. Portanto, falamos de um tipo de prece que natradio crist chamada orao mental. Em geral conhecemos a oraocom palavras, naturalmente tambm a mente e o corao devem estarpresentes nesta orao, mas falemos hoje de uma meditao que no de

    palavras, mas um contacto da nossa mente com o corao de Deus. E aquiMaria um modelo muito real. O evangelista Lucas repete vrias vezesque Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu corao(2, 19; cf. 2, 51b). Guardi que no esquece, Ela est atenta a tudo o queo Senhor lhe disse e fez, e medita, isto , entra em contacto com vriasrealidades, aprofundando-as no seu corao.

    Portanto, Aquela que acreditou no anncio do Anjo fez-se instrumento

    para que a Palavra eterna do Altssimo pudesse encarnar, e acolheutambm no seu corao o prodgio admirvel daquele nascimentohumano-divino, meditou-o, ponderou com a reflexo sobre o que Deusrealizava nela, para acolher a vontade divina na sua vida e para lhecorresponder. O mistrio da encarnao do Filho de Deus e damaternidade de Maria to grande que exige um processo deinteriorizao, e no s algo de fsico que Deus realiza nela, mas algo que

    requer uma interiorizao da parte de Maria, que procura aprofundar asua compreenso, interpretar o seu sentido e entender as suas influncias eimplicaes. Assim, dia aps dia, no silncio da vida diria, Mariacontinuou a conservar no seu corao os sucessivos eventos admirveis dosquais foi testemunha, at prova extrema da Cruz e alegria daRessurreio. Maria viveu plenamente a sua existncia, os seus deveresquotidianos, a sua misso de Me, mas soube manter em si um espao

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    interior para meditar sobre a palavras e a vontade de Deus, sobre o que serealizava nela, sobre os mistrios da vida do seu Filho.

    No nosso tempo vivemos absorvidos por numerosas actividades ecompromissos, preocupaes e problemas; muitas vezes tendemos apreencher todos os espaos do dia, sem ter um momento para parar,meditar e alimentar a vida espiritual, o contacto com Deus. Maria ensina-nos como necessrio encontrar nos nossos dias, com todas as actividades,momentos para nos recolhermos em silncio e meditar sobre aquilo que o

    Senhor nos quer ensinar, sobre o modo como est presente e age nomundo e na nossa vida: sermos capazes de parar um momento e demeditar. Santo Agostinho compara a meditao sobre os mistrios deDeus com a assimilao do alimento, e usa um verbo que se repete emtoda a tradio crist: ruminar; isto , os mistrios de Deus devemressoar continuamente em ns mesmos, para que se tornem familiares,orientem a nossa vida e nos nutram, como acontece com o alimentonecessrio para nos sustentarmos. E so Boaventura, referindo-se s

    palavras da Sagrada Escritura, diz que devem ser sempre ruminadas parapoderem ser fixadas com aplicao ardente do esprito (Coll. In Hex, ed.Quaracchi 1934, p. 218). Portanto, meditar quer dizer criar em ns umasituao de recolhimento, de silncio interior para ponderar, assimilar osmistrios da nossa f e de quanto Deus realiza em ns; e no s sobre ascoisas que vo e vm. Podemos fazer esta ruminao de vrios modos,lendo por exemplo um breve trecho da Sagrada Escritura, sobretudo os

    Evangelhos, os Actos dos Apstolos, as Cartas dos Apstolos, ou entouma pgina de um autor de espiritualidade que nos aproxima e torna maispresentes as realidades de Deus no nosso hoje, talvez deixando-nostambm aconselhar pelo confessor ou pelo director espiritual, ler e meditarsobre o que lemos, ruminando sobre isto, procurando compreend-lo,entender o que me comunica, o que me diz hoje, abrir a nossa alma quiloque o Senhor nos quer dizer e ensinar. Tambm o Santo Rosrio uma

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    prece de meditao: repetindo a Ave-Maria somos convidados a repensar emeditar sobre o Mistrio que proclamamos. Mas podemos meditar

    inclusive sobre alguma experincia espiritual intensa, sobre palavras quenos ficaram gravadas mediante a participao na Eucaristia dominical.Ento, vede, h muitos modos de meditar e assim de entrar em contactocom Deus e de nos aproximarmos de Deus e, desta forma, de estar acaminho do Paraso.

    Caros amigos, a constncia ao reservar o prprio tempo a Deus um

    elemento fundamental para o crescimento espiritual; o prprio Senhorque nos infundir o gosto pelos seus mistrios, suas palavras, sua presenae aco, sentindo como bom quando Deus fala connosco; far-nos-compreender de modo mais profundo o que deseja de ns. No final, mesmo esta a finalidade da meditao: entregar-nos cada vez mais nasmos de Deus, com confiana e amor, certos de que s no cumprimentoda sua vontade seremos enfim verdadeiramente felizes.

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    expressam a f. Podemos ter um exemplo, quando visitamos uma catedralgtica: sentimo-nos arrebatados pelas linhas verticais que se perfilam rumo

    ao cu e atraem para o alto o nosso olhar e o nosso esprito enquanto, aomesmo tempo, nos sentimos pequenos, e no entanto desejosos deplenitude... Ou ento quando entramos numa igreja romnica: somosconvidados de modo espontneo ao recolhimento e orao.Compreendemos que nestes edifcios maravilhosos est como queencerrada a f de geraes. Ou ainda, quando ouvimos uma pea demsica sacra, que faz vibrar as cordas do nosso corao, a nossa alma

    como que dilatada e ajudada a dirigir-se a Deus. Volta-me ao pensamentoum concerto de msicas de Johann Sebastian Bach, em Munique daBaviera, dirigido por Leonard Bernstein. No final da ltima pea, uma dasCantatas, senti, no por raciocnio mas no profundo do corao, quequanto eu ouvira me tinha transmitido a verdade, a verdade do sumocompositor, impelindo-me a dar graas a Deus. Ao meu lado estava obispo luterano de Munique e, espontaneamente, eu disse-lhe: Ouvindoisto, compreende-se: verdadeiro; so verdadeiras a f to forte, e a belezaque a presena da verdade de Deus exprime de maneira irresistvel. Masquantas vezes quadros ou afrescos, fruto da f do artista, nas suas formas,nas suas cores e na sua luz, nos impelem a dirigir o pensamento para Deuse fazem aumentar em ns o desejo de beber na fonte de toda a beleza.Permanece profundamente verdadeiro aquilo que foi escrito por umgrande artista, Marc Chagall, ou seja, que durante sculos os pintoresmolharam o seu pincel naquele alfabeto colorido que a Bblia. Ento,

    quantas vezes as expresses artsticas podem ser ocasies para nosrecordarmos de Deus, para nos ajudar na nossa orao ou tambm naconverso do corao! Paul Claudel, dramaturgo e diplomata francs,poeta famoso na Baslica de Notre Dame em Paris, em 1886,precisamente ouvindo o canto doMagnificat durante a Missa de Natal,sentiu a presena de Deus. No tinha entrado na igreja por motivos de f,

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    mas precisamente para procurar argumentos contra os cristos e, noentanto, a graa de Deus agiu no seu corao.

    Queridos amigos, convido-vos a redescobrir a importncia deste caminhotambm para a orao, para a nossa relao viva com Deus. As cidades e ospovoados do mundo inteiro encerram tesouros de arte que exprimem a fe nos exortam relao com Deus. Ento, a visita aos lugares de arte noseja apenas uma ocasio de enriquecimento cultural tambm isto mas possa tornar-se sobretudo um momento de graa, de estmulo para

    refortalecer o nosso vnculo e o nosso dilogo com o Senhor, para nosdetermos a contemplar na passagem da simples realidade exterior paraa realidade mais profunda que exprime o raio de beleza que nos atinge,que quase nos fere no ntimo e nos convida a elevar-nos rumo a Deus.Termino com a orao de um Salmo, o Salmo 27: Uma s coisa pedi aoSenhor, e desejo-a ardentemente: poder habitar na casa do Senhor todosos dias da minha vida, contemplando a beleza do Senhor e orando no seutemplo (v. 4). Esperemos que o Senhor nos ajude a contemplar a sua

    beleza, tanto na natureza como nas obras de arte, assim como a sermossensibilizados pela luz da sua face, a fim de que tambm ns possamos serluzes para o nosso prximo.

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    Salmos: O livro de orao

    Sl 3 - "Levanta -te, Senhor, Sa lva -me "

    Gostaria de comear a meditar sobre alguns Salmos que constituem olivro de orao por excelncia. O primeiro Salmo sobre o qual medito de lamentao e de splica, imbudo de profunda confiana, no qual acerteza da presena de Deus funda a prece que brota de uma condio deextrema dificuldade em que se encontra o orante. Trata-se do Salmo 3,

    referido pela tradio judaica a David no momento em que foge do filhoAbsalo (cf. v. 1): um dos episdios mais dramticos e duros na vida dorei, quando o seu filho usurpa o seu trono rgio e o obriga a deixarJerusalm para salvar a prpria vida (cf.2 Sm 15 ss.). Portanto, a situaode perigo e de angstia experimentada por David serve de base para estaprece e ajuda a compreend-la, apresentando-se como a situao tpica emque tal Salmo pode ser recitado. No brado do Salmista, cada homem podereconhecer os sentimentos de dor, de amargura e tambm de confiana emDeus que, segundo a narrao bblica, tinham acompanhado a fuga deDavid da sua cidade.

    O Salmo comea com uma invocao ao Senhor:

    Senhor, quo numerosos so os meus adversrios,quo numerosos os que se levantam contra mim!

    Muitos dizem a meu respeito:No h salvao para ele em Deus! (vv. 2-3).

    Portanto, a descrio que o orante faz da sua situao marcada por tonsfortemente dramticos. Repete-se trs vezes a ideia de multido numerosos, muitos, tantos que no texto original dita com amesma raiz hebraica, de modo a frisar ainda mais a enormidade do perigo,de forma repetitiva, quase martelante. Esta insistncia sobre o nmero e a

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    grandeza dos inimigos serve para expressar a percepo, da parte doSalmista, da desproporo absoluta existente entre ele e os seus

    perseguidores, uma desproporo que justifica e funda a urgncia do seupedido de ajuda: os opressores so muitos, prevalecem, enquanto o oranteest sozinho e inerme, merc dos seus agressores. E no entanto, aprimeira palavra que o Salmista pronuncia Senhor; o seu grito comeacom a invocao a Deus. Uma multido incumbe e revolta-se contra ele,gerando um medo que amplia a ameaa, fazendo-a parecer ainda maior emais terrificante; mas o orante no se deixa vencer por esta viso de morte,

    mantm firme a relao com o Deus da vida e antes de tudo dirige-se aEle, em busca de ajuda. Mas os inimigos procuram tambm romper estevnculo com Deus e debilitar a f da sua vtima. Eles insinuam que oSenhor no pode intervir, afirmam que nem sequer Deus pode salv-lo.Portanto, a agresso no s fsica, mas diz respeito dimenso espiritual:O Senhor no pode salv-lo dizem o fulcro central da alma doSalmista deve ser agredido. a extrema tentao qual o crente submetido, a tentao de perder a f, a confiana na proximidade deDeus. O justo supera a ltima prova, permanece firme na f e na certezada verdade e na plena confiana em Deus, e precisamente assim encontra avida e a verdade. Parece-me que o Salmo nos toca muito pessoalmente: emmuitos problemas somos tentados a pensar que talvez nem Deus me salve,no me me conhea, talvez no seja capaz; a tentao contra a f a ltimaagresso do inimigo, e a isto temos que resistir, pois s assim encontramosDeus e a vida.

    Portanto, o orante do nosso Salmo chamado a responder com a f aosataques dos mpios: os inimigos como eu disse negam qu