15003598 Como as Instituicoes Pens Am Mary Douglas
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COMO
AS
INSTITUIES
PENSAM
MARY DOUGLAS
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Copyright @ 1986 by Syracuse University Press
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
__________________________________________________________
Douglas, Mary
Como as Instituies Pensam / Mary Douglas ; (traduo Carlos
Eugnio Marcondes de Moura). - So Paulo: Editora da Universidade
de So Paulo, 1998. (Ponta, 16)
Ttulo original: How Institutions Think
Bibliografia
ISBN 85-314-0455-X
1. Cognio e cultura 2. Comportamento organizacional
3. Instituies sociais Aspectos pedaggicos 1. Ttulo.
98-1938 CDD-306
____________________________________________________________
ndices para catlogo sistemtico:
1. Instituio: Pensamento: Sociologia 306
Mary Douglas, antroploga, pesquisadora e professora, lecionou nas Universidades de Oxford ede Londres, na Northwestern University e atualmente professora visitante na PrincetonUniversity.
Digitalizado a partir de software HP OCR I.R.I.S.
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SUMRIO
Apresentao ... ....................................................................6
Prefcio .. ............................................................................10
Introduo ... .......................................................................19
1. As Instituies No Podem Ter Opinies Prprias..........192. Dar um Desconto Pequena Escala...............................31
3. Como os Grupos Latentes Sobrevivem...........................42
4. As Instituies se Fundamentam na Analogia.................57
5. As Instituies Conferem Identidade...............................67
6. As Instituies Lembram-se e se Esquecem...................82
7. Um Exemplo de Esquecimento Institucional....................96
8. As Instituies Operam a Classificao.........................1089. As Instituies Tomam Decises de Vida e Morte ........130
Bibliografia.......................................................................... 151
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APRESENTAO
Mary Douglas apresentou a sexta Conferncia Abrams na Universidade
de Siracusa, durante as duas semanas de maro de 1985. O evento
realizado mediante uma dotao da Fundao Exxon Education, em memria
de Frank W. Abrams, que foi presidente do Conselho da Standard Oil Company
(New Jersey), a qual antecedeu a Exxon, e presidente do Conselho de
Curadores da Universidade de Siracusa.
Durante toda sua vida o sr. Abrams liderou todos os esforos no sentido
de oferecer apoio educao superior. Ele fundou o Conselho para Ajuda
Financeira Educao, serviu como presidente do Fundo da Fundao Ford
para o Avano da Educao e foi curador da Fundao Alfred E. Sloan. O sr.
Abrams exerceu um papel fundamental ao despertar os empresrios
americanos, por meio da educao e de precedentes legais, verdadeiros
pontos de referncia para a necessidade de se prestar apoio financeiro
educao superior privada.
A Fundao Exxon Education continua a expandir inspirada no trabalho
desenvolvido por Frank Abrams. O papel de liderana da Fundao no apoio
educao superior certamente muito conhecido e respeitado. Somos gratos
Fundao por seu generoso apoio a vrios empreendimentos da Universidade
e sentimo-nos particularmente orgulhosos da Conferncia Abrams, j que
Frank Abrams formou-se em 1912 na Universidade de Siracusa.
Um agradecimento especial devido aos membros da Comisso de
Planejamento da Conferncia Abrams, frente da qual se encontra Guthrie S.
Birkhead, reitor da Escola Maxwell Para a Cidadania e Negcios Pblicos. Com
o reitor Birkhead trabalham Michael O. Sawyer, vice-chanceler da Universidade
e professor de Direito Constitucional; Richard Oliker, reitor da Escola de
Administrao; Richard D. Schwartz; Ernest I. White, professor de Direito; Chris
J. Witting, presidente do Conselho de Curadores da Universidade de Siracusa
e ~obert Payton, presidente da Fundao Exxon Education.
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Mary Douglas revelou-se uma conferencista e uma convidada
extremamente obsequiosa. Realizou cinco magnficas conferncias, teve
encontros regulares com os membros do corpo docente e os alunos dos cursos
de ps-graduao, visitou classes de graduao e trouxe a marca toda especial
de seu calor humano aos dias, algumas vezes enregelados, do incio da
primavera em Siracusa.
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PREFCIO
Este livro o resultado de um convite feito pela Universidade de
Siracusa para realizar o sexto conjunto de conferncias da srie que
homenageia Frank W. Abrams. Em semelhante caso, o tema parcialmente
indicado pela forma da ocasio. Um convite formulado pela Escola Maxwell
para a Cidadania e Assuntos Pblicos exige temas com grande
desenvolvimento. Um convite para realizar conferncias requer que esses
temas sejam compactados para ocupar pouco espao. O fato de ser escolhida
como conferencista sugeria que uma sntese pessoal seria apropriada. Para
mim esse convite era irresistvel, j que eu teria a oportunidade de voltar a
dizer o que tentei colocar. Dirigir-me, dessa vez, a um auditrio crtico e atento
na Universidade de Siracusa significava tentar abordar o tema sob novas luzes,
torn-lo mais claro, mais convincente e, finalmente, transmiti-lo de maneira
apropriada.
Torna-se necessria uma teoria das instituies que modifique a atual
viso no-sociolgica da cognio humana, bem como uma teoria cognitiva
que oferea um suplemento s debilidades da anlise institucional. O tema
suficientemente amplo, de interesse momentneo e pouco comentado para que
se realize uma abordagem especulativa em torno dele. Este o primeiro livro
que eu deveria ter escrito aps minha produo sobre a pesquisa de campo na
frica. Em vez disso escrevi Pureza e Perigo (1966), numa tentativa de fazer
generalizaes a partir da frica e em relao nossa prpria condio. Meus
amigos disseram-me, naquela poca, que Pureza e Perigo era um livro
obscuro, intuitivo e despreparado. Eles estavam corretos e, desde ento, venho
tentando compreender os fundamentos tericos e lgicos de que necessitaria
para apresentar uma argumentao coerente sobre o controle social da
cognio. Este volume constitui, na verdade, uma introduo post hoc. como
um prolegmeno a Risk Acceptability (1986), que aponta um dedo acusador
para certa cegueira profissional e para uma resistncia arraigada ao tema. Risk
Acceptability, por sua vez, como uma introduo em acrscimo a Risk and
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Culture (publicado em 1982, em colaborao com Aaron Wildavsky), um livro
que demonstra como a anlise antropolgica das crenas pblicas pode ser
aplicada ao nosso prprio caso. No entanto, Risk and Culture a
argumentao que deveria ter vindo luz antes que lmplicit Meanings fosse
publicado em 1970 com um ensaio intitulado O meio-ambiente corre riscos".
Todos eles deveriam ter sido editados em ordem inversa, terminando com The
Lele of the Kasai (1963). Se isto tivesse acontecido, a Comisso das
Conferncias Abrams agora estaria acolhendo a primeira dessas publicaes
nas sries que ela vem promovendo. Mas como que isto poderia ter
acontecido se fiquei to endividada no decorrer de um tempo to longo? Muitos
autores, jovens, velhos e alguns infelizmente mortos ajudaram-me em cada
estgio. Espero que este livro possa ser to aceitvel a ponto de romper com o
encantamento de tal forma que eu agora possa escrever para diante e no
para trs.
Este livro comea com a hostilidade dispensada a Emile Durkheim e aos
durkheimianos quando se referiram s instituies ou grupos sociais como se
eles fossem indivduos. A prpria idia de um sistema cognitivo suprapessoal
provoca um sentimento profundo de insulto. A ofensa indcio de que, acima
do nvel do indivduo, outra hierarquia de "indivduos" est influenciando os
membros que se situam num nvel mais baixo a reagirem violentamente contra
essa ou aquela idia. Presume-se que um indivduo que contenha em si seres
humanos pensantes seja algum detestvel, totalitrio, que constitua uma
ditadura altamente centralizada e eficaz. Por exemplo, Anthony Greenwald
recorre a Hannah Arendt e a George Orwell tendo em vista modelos totalitrios
daquilo que ele classifica como os domnios do conhecimento extrapessoal
(1980). No entanto, a reflexo deixa bem claro que, em nveis mais elevadosde organizao, os controles sobre os membros que a constituem, situados em
nveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais difusos. Muitos
pensadores sutis e capacitados ficam de tal forma nervosos devido crua
analogia entre a mente individual e as influncias sociais que preferem
descartar o problema.
Os antroplogos, entretanto, no podem descart-lo. Emile Durkheim, E.
Evans-Pritchard e Claude Lvi-Strauss so grandes lderes que devem serseguidos. O estudioso cuja marca se faz sentir de maneira mais intensa no
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tema coberto por este escrito Robert Merton. A ele, com respeito e afeio,
dedico este livro, confiando que sua generosidade passar por cima de suas
deficincias. Meu marido merece um tributo especial. Quando dois problemas
parecem insolveis, nossa longa experincia da vida domstica tem sugerido
uma abordagem enviesada. Em vez de atacar de frente cada questo
separadamente, pode-se trabalhar com um conjunto de problemas para
confrontar os demais. Tal estratgia, que produz novas definies sobre aquilo
que deve ser solucionado, que fornece a estrutura deste livro.
Durante duas deliciosas semanas gozei da afetuosa hospitalidade do
chanceler e da sra. Eggers, bem como de muitos programas e departamentos
na Universidade de Siracusa. O trabalho se fez menos penoso devido boa
acolhida e ao apoio de Guthrie Birkhead, reitor da Escola MaxwelI, aos sbios
conselhos de Manfred Stanley (e no me esqueo das crticas construtivas e
slidas de sua famlia) e perfeita organizao de James G. Gies.
Sob uma forma ou outra diferentes segmentos do livro foram objeto de
algumas tentativas. Os captulos um e dois foram apresentados na Conferncia
sobre as Categorias Corretas, patrocinada pela Fundao WennerGren, em
honra de Nelson Goodman, na Universidade Northwestern em 1985 e
agradeo a todos seus participantes pelas discusses suscitadas. Agradeo
tambm a Kai Erikson pela oportunidade de ensaiar partes do captulo trs
durante a Hollingshead Memorial Lecture, na Universidade de Yale. Uma
primeira verso dos captulos seis e sete foi apresentada no painel sobre "A
Ordem Social Possvel?", no encontro da Associao Americana de
Sociologia, realizado em San Antonio em 1983. Agradeo ao presidente,
James Shorter, a permisso de publicar este estudo alentado sobre a memria
pblica. Parte do captulo nove foi divulgada no seminrio de RusselI Hardinsobre a tica, realizado na Universidade de Chicago. Meus agradecimentos a
Russell Hardin e a Alan Gewirth por suas valiosas crticas. David Bloor, Barry
Barnes e Lawrence Rosen tambm contribuiram com crticas importantes.
Muitos, na Universidade Northwestern, fizeram indagaes e criticaram
diferentes passagens. Reid Hastie proporcionou o equilbrio necessrio e uma
pilha de referncias, a partir de escritos psicolgicos. Robert Welsch leu todo o
manuscrito e formulou crticas que muito me ajudaram. Andrew Leslie trabalhouna bibliografia e Richard Kerber pesquisou as classificaes relativas ao
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comrcio do vinho. Helen McFaul foi a secretria ideal com que todo escritor
sonha e ela foi muito alm da execuo de um dever profissional.
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INTRODUO
Escrever sobre cooperao e solidariedade significa escrever, ao
mesmo tempo, sobre rejeio e desconfiana. A solidariedade envolve
indivduos prontos para sofrer em benefcio de um grupo mais amplo e sua
expectativa de que cada membro desse grupo faa o mesmo por eles. difcil
falar sobre essas questes com distanciamento. Elas tocam em sentimentos
ntimos de lealdade e sacralidade. Qualquer pessoa que tenha aceito a
confiana, solicitado sacrifcios ou os tenha praticado voluntariamente conhece
o poder do lao social. No caso de um compromisso com a autoridade, dio
tirania ou algo que se situe entre esses dois extremos, o lao social encarado
como algo que se coloca acima da questo. H resistncias s tentativas de o
expr luz do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser examinado.
Toda pessoa afetada pela qualidade da confiana que a cerca. Algumas
vezes uma firmeza simplria leva os lderes a ignorarem as necessidades
pblicas. Algumas vezes a confiana tem breve durao e frgil, dissolvendo-
se facilmente e resultando em pnico. Algumas vezes a suspeita to
profunda que a cooperao toma-se impossvel.
Um exemplo contemporneo ajudar a esclarecer questes abstratas.
No campo da medicina nuclear h um registro magnfico de confiana e
cooperao mtuas. Os cientistas dispem de meios aceitveis de conferir
reciprocamente suas afirmativas. Acreditam em seus mtodos e tm f nos
resultados, do mesmo modo que os pacientes e os mdicos confiam um no
outro. Se a fora da solidariedade puder ser medida pelo mero poder das
realizaes, ento dispomos de um exemplo eloqente. Rosalyn Yalow
apresentou recentemente (1985) um relatrio sobre a histria da subdisciplina
qual dedicou sua vida profissional. O relatrio foi inspirado por indcios de
que o trabalho est para ser interrompido. Ele sofre fortes ataques devido ao
temor dos efeitos negativos da radiao nuclear. Nada do que os cientistas
possam dizer em sua defesa conseguir dissipar a desconfiana.
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Rosalyn Yalow comeou a trabalhar no Hospital Administrativo dos
Veteranos, no Bronx, nos anos de 1940, a fim de implantar um Servio de
Radioistopos que usaria detectores radioativos para investigar a doena.
Desde ento as realizaes do Servio tm suscitado admirao. Inicialmente
os mdicos usaram o iodeto de rdio para investigar a fisiologia da tiride e
trat-la. Ao mesmo tempo empregaram-no para medir o volume do sangue em
circulao no corpo. Isto os capacitou a desenvolver mtodos experimentais de
avaliao das taxas de sntese e degradao das protenas de soro no sangue.
Aplicar essas tcnicas circulao da insulina no corpo levou a uma ampla
reviso do que at o momento se conhecia sobre a diabetes. A partir do
sucesso obtido no tratamento da tiride e da diabetes, o trabalho acabou
resultando no princpio do radioimunoensaio (RIE). um modo de tipificar
processos fisiolgicos administrando radioistopos a pacientes e
acompanhando seu comportamento no corpo. As aplicaes do RIE so
inmeras em todos os campos da medicina. empregado em amplos
programas que objetivam detectar a baixa atividade das glndulas tirides no
recm-nascido. Trata-se de um distrbio que no perceptvel pelos mtodos
clnicos e afeta um em 4000 nascimentos nos Estados Unidos e quatro em 100
nascimentos no denominado "cinturo do bcio", na regio sul dos Himalaias.
Se no for tratado rapidamente aps o nascimento, resultar em retardo mental
irreversvel. Desde a deteco e terapia do cncer maligno s doenas
cardacas, parece no haver limite para a aplicao do RIE
A outra face desse impressionante registro da medicina que milhes
de pessoas foram expostas a baixas doses de radiaes nucleares e algumas
centenas de milhares a doses moderadas. O acmulo de evidncias demonstra
que uma exposio profunda a altas doses pode tomar-se rapidamentemortfera e que a exposio crnica a doses mais moderadas pode resultar em
tumores malignos ou em morte prematura. As atuais crticas que ameaam as
aplicaes mdicas do RIE levam tais perigos em considerao. Como medir o
que uma baixa radiao? O que uma exposio curta ou prolongada? O
medo justificado? So indagaes a que o relatrio de Rosalyn Yalow
procura dar uma resposta.
O assunto altamente tcnico. Desde a alvorada da humanidadenossos ancestrais foram expostos radiao da radioatividade natural do solo
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e do alimento, bem como dos raios csmicos extraterrestres. Eles constituem
os nveis da radiao do meio natural, que variam de uma regio para outra.
Em mdia, a exposio radiao produzida pela medicina significa um
acrscimo quase igual radiao do meio natural. Para saber se isso
perigoso para a sade, factvel realizar pesquisas em regies do mundo onde
a radiao do meio natural particularmente elevada e ento se verificar se
aqueles que foram expostos a ela apresentam taxas mais elevadas de
ocorrncia de cncer. Nos Estados Unidos, sete estados apresentam radiao
do meio natural mais elevada do que os demais, porm neles a taxa de
ocorrncia de cncer mais baixa do que a taxa mdia da doena em todo o
pas. Altitudes elevadas implicam elevada exposio radiao, mas nos
Estados Unidos nota-se uma relao inversa entre a elevao e as leucemias e
linfomas. Um estudo cuidadoso realizado na China examinou 150 mil
camponeses da etnia han, que apresentavam essencialmente o mesmo estilo
de vida e a mesma composio gentica. Metade deles viviam em uma regio
de solo radioativo, onde recebiam uma exposio quase trs vezes maior do
que a outra metade. A pesquisa avaliou um grande nmero de possveis efeitos
da radiao sobre a sade, mas no conseguiu detectar quaisquer diferenas
entre os habitantes das duas regies. Assim, essa e outras investigaes
levam concluso de que a exposio radiao em nveis trs ou at mesmo
dez vezes maiores do que a do meio natural no afeta adversamente a sade.
Este livro no se preocupa em julgar se aquilo que Yalow denomina "um
temor fbico radiao" correto ou no. Um exemplo esclarece vrios outros
pontos que sero discutidos nas pginas que se seguiro. A profunda
discordncia entre os cientistas que praticam a medicina nuclear, de um lado, e
um setor do pblico, de outro lado, ilustra a surdez seletiva, na qual nenhumdos dois interlocutores conseguem, por ocasio de um debate, ouvir o que o
outro est dizendo. Em captulos posteriores atribuiremos a inabilidade da
converso a argumentos racionais ao domnio exercido pelas instituies em
nossos processos de classificao e de reconhecimento. Os praticantes da
medicina nuclear declaram que no correm riscos, em se tratando da vida de
seus pacientes, ou que esto expondo o restante da populao ao perigo. Os
fbicos nucleares negam essa afirmao, pois sabem que toda medicinaacarreta um risco. Simplesmente ignorar a questo seria desonesto. O
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conhecimento e a capacitao mdicas jamais podem bastar. Ao rejeitarem a
alegao de que nenhum perigo se encontra presente, eles tero de enfocar a
situao do doente que foi salvo e de toda uma populao que foi colocada em
perigo. Ningum tem o direito de decidir quem ser sacrificado pelo bem dos
outros. O argumento contrrio que os fbicos nucleares se arrogam o direito
de tomar essa deciso, j que fazem os direitos das pessoas saudveis vir
antes das vidas das vtimas do cncer, do diabetes, das doenas do corao e
da tiride, alm dos recm-nascidos beira do retardo mental, que seriam
salvos por novas tcnicas de diagnose e de tratamento. A resposta estratgica
consiste em declinar da honra de escolher entre as vtimas a serem
sacrificadas. Isto implica insistir que a medicina alternativa e uma dieta
equilibrada melhorariam, tanto quanto a medicina nuclear, nossas chances de
vida, caso lhes fosse dada a mesma oportunidade.
O debate entre os que so favorveis medicina nuclear e os que tm
fobia a ela constitui um exemplo relevante a favor e contra a solidariedade,
expresso sob forma contempornea e sensvel, pois a solidariedade no passa
de um gesto, quando no envolve sacrifcio algum. No ltimo captulo sero
tecidas consideraes sobre semelhantes escolhas. Com o intuito de preparar
o leitor, os captulos anteriores insistiro laboriosamente na base compartilhada
do conhecimento e dos padres morais. A concluso a que se chegar que
os indivduos em crise no tomam sozinhos decises relativas vida e morte.
Para dar nfase ainda maior nossa colocao, diremos que o raciocnio
individual no consegue resolver tais problemas. Uma resposta s parece ser
correta quando apia o pensamento institucional que j se encontra na mente
dos indivduos enquanto eles procuram chegar a uma deciso.
Recorreu-se a um exemplo fictcio, "O processo dos exploradoresespelelogos", para ilustrar precisamente as respostas divergentes dos
filsofos ao problema de se saber se uma pessoa deve ser sacrificada em
benefcio das vidas alheias (Fuller 1949). A histria passa-se no Supremo
Tribunal de um lugar chamado Newgarth, no ano de 4 300. Quatro homens
foram condenados por homicdio em um tribunal de instncia inferior e o
processo subiu ao Supremo, em grau de apelao. O presidente do Tribunal
resume o acontecido. Cinco membros da Sociedade de Espeleologia decidiramexplorar uma caverna; a queda de uma enorme rocha bloqueou a nica
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entrada; uma grande equipe de resgate comeou a cavar um tnel atravs da
rocha, mas o trabalho era rduo e perigoso. Dez membros da equipe morreram
na tentativa de salvao. No vigsimo dia do desabamento foi estabelecido
contato pelo rdio e os homens aprisionados perguntaram quanto tempo
demoraria para serem resgatados. Estimou-se que o mnimo necessrio seriam
mais dez dias. Eles solicitaram conselhos mdicos sobre a insuficincia de
suas raes e ficaram sabendo que no poderiam esperar sobreviver por mais
dez dias. Indagaram ento se teriam chances de sobreviver se consumissem a
carne de um de seus companheiros e, com muita relutncia, lhes foi dito que
sim, mas ningum sacerdote, mdico ou filsofo se dispunha a aconselh-
los sobre o que fazer. Depois disso cessou a comunicao pelo rdio. No
trigsimo-segundo dia do desabamento o bloqueio da entrada foi rompido e
quatro homens saram da caverna.
Eles disseram que um deles, Roger Whetmore, havia proposto a soluo
de comer a carne de um dos companheiros e sugeriu que a escolha fosse feita
por meio de um lance de dados. Mostrou ento um dado que, por acaso,
trouxera. Os outros acabaram concordando e estavam para pr o plano em
ao quando Roger Whetmore recuou, dizendo que preferia esperar mais uma
semana. Eles, no entanto, foram em frente, jogaram o dado quando chegou a
vez dele, e sendo Roger Whetmore indicado como vtima, mataram-no e
comeram-no.
Iniciando a discusso, o presidente do Tribunal expressou a opinio de
que o jri havia agido corretamente ao declar-los culpados, pois, segundo a
lei, no havia a menor dvida quanto aos fatos; eles, por vontade prpria,
haviam tirado a vida de outra pessoa. Ele props que o Supremo Tribunal
confirmasse a pena e solicitasse clemncia mais alta autoridade do PoderExecutivo. Seguiram-se as declaraes de voto dos quatro outros juzes.
O primeiro deles afirmou que seria uma iniqidade conden-los por
homicdio. Em vez de um pedido de clemncia, propunha que fossem
inocentados. Sua argumentao invocava dois princpios distintos. Os homens,
encurralados, haviam sido geograficamente subtrados da fora da lei;
separados por uma slida muralha de pedra, seria o mesmo que estar em uma
ilha deserta, em territrio estrangeiro. Em circunstncias desesperadoras,encontravam-se moral e legalmente no estado da natureza, e a nica lei a que
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estavam sujeitos era o acordo ou contrato que firmaram entre si. J que a vida
de dez trabalhadores havia sido sacrificada para salv-Ios, quem quisesse
condenar os acusados deveria preparar-se para processar, pela morte
daqueles homens, quem organizou o socorro. Ele insistiu finalmente na
diferena entre o texto da lei e a interpretao de seus objetivos. No fazia
parte dos propsitos da lei definir o homicdio para condenar aqueles homens
famintos, que poderiam ter sido movidos por uma atitude de autodefesa.
O prximo juiz discordou veementemente dessa colocao,
perguntando: "Baseados em que autoridade nos investimos em um Tribunal da
Natureza?", Absteve-se em seguida de tomar uma deciso.
O terceiro juiz tambm no concordou com o primeiro, insistindo que
todos os fatos demonstravam que os acusados haviam tirado a vida de seu
companheiro por vontade prpria. Discordou igualmente da deciso do
presidente do Tribunal quanto ao pedido de clemncia. No cabia ao Poder
Judicirio refazer a lei ou interferir em outros departamentos do governo.
O ltimo juiz concluiu que os acusados eram inocentes no em relao
aos fatos ou lei, mas porque "os homens so regidos no por palavras
escritas numa folha de papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens".
Nesse caso preciso, as pesquisas de opinio mostraram que 90% dos
entrevistados estavam a favor do perdo. Ele, entretanto, no apoiou a
recomendao do presidente do Tribunal por saber que o chefe do Executivo,
entregue a si mesmo, recusaria o perdo e estaria menos inclinado a conceder
a clemncia caso uma recomendao nesse sentido partisse do Supremo
Tribunal. Assim, ele no fez recomendao alguma para o perdo, mas
favoreceu uma absolvio.
Somente o presidente do Tribunal se mostrava favorvel no sentido desolicitar clemncia. Dois juzes favoreceram a absolvio; dois eram a favor da
condenao; um dos juzes se absteve. Estando o Supremo Tribunal
igualmente dividido, foi confirmada a condenao do tribunal de primeira
instncia. Os homens foram sentenciados e condenados a morrer na forca.
Ao relatar essa fbula, Lon Fuller nos apresentou o padro da opinio
jurdica vigente desde a Era de Pricles at a poca em que esse texto foi
escrito. Dois dos juzes demonstraram forte simpatia pelos acusados erecomendaram a reverso da condenao, mas por motivos diferentes.
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evidente que o primeiro juiz no se importa absolutamente com estatutos,
conforme se queixa um de seus doutos confrades. Sente-se pessoalmente
atrado pela idia da natureza, limitada unicamente pelo contrato entre os
indivduos. Exprime-se de maneira comovente, como se se imaginasse na
caverna, estabelecendo um pacto e jogando para ganhar ou perder. Seus
conceitos liberais so apropriados a uma forma de sociedade na qual sua
inclinao a assumir riscos e sua prontido em negociar fariam sentido. to
inerente a ele a idia de um contrato que deixa de levar em considerao que a
vtima havia-se retirado do pacto estabelecido. Ao propor o argumento da
autodefesa ele chega at mesmo a ignorar outro fato: o de que a vtima no
apresentava ameaa alguma vida dos acusados. Os demais juzes no
tiveram dificuldade em encontrar razes para discordar dele.
O ltimo juiz, que tambm recomendou a absolvio, dificilmente parece
estar raciocinando como um advogado. Quer deixar de lado as legalidades
tolas. Sente que consegue ler os pensamentos dos acusados e considera que
seria ultrajante conden-los depois dos horrores por que passaram. Os motivos
e as emoes so o que contam para ele. Tambm consegue ler os
pensamentos do presidente do Executivo, ao qual ligado por laos de famlia.
Aquilo que ele preconiza destina-se precisamente a fazer malograr as
motivaes negativas do chefe do Executivo. Este juiz, ardiloso e afvel, honra
a verdade emocional. Sua postura corresponde aos conceitos expressos pelas
seitas igualitrias fundadas para rejeitar um ritualismo desprovido de sentido e
pregar diretamente ao corao dos homens.
O terceiro juiz no se mostra nem simptico nem antiptico. Para ele o
que importa a lei, a responsabilidade dos juzes em dispens-la e a alocao
existente de diferentes funes em um estado complexo. umconstitucionalista e sente-se vontade em uma sociedade baseada na
hierarquia.
Os trs julgamentos expressam trs filosofias jurdicas distintas. No
por acaso que Lon Fuller escolheu temas recorrentes na histria da
jurisprudncia. Esses temas surgem a cada momento por corresponderem a
formas recorrentes da vida social. Em outro escrito, ns os descrevemos como
individualistas, sectrios e hierrquicos (Douglas & Wildavsky 1982). Nada farcom que esses juzes concordem diante de uma questo de vida e morte to
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complicada. Eles recorrem a seus compromissos institucionais para chegar a
uma reflexo. Este livro foi escrito precisamente para encorajar mais
investigaes em torno do relacionamento entre as mentes e as instituies.
Para enfocar ainda mais os princpios elementares da solidariedade e da
confiana, voltemos histria no ponto em que os cinco homens ficam
sabendo que no conseguiro o sobreviver com o alimento de que dispem.
Poderia ser um grupo de turistas de uma pequena cidade solidria.
Suponhamos que eles compartilhassem o compromisso do ltimo juiz com os
princpios hierrquicos. Ento aceitariam a idia de que um deles poderia muito
justamente ser sacrificado em prol da sobrevivncia dos demais. A idia de
escolher a vtima por meio de um lance de dados pareceria irracional e
irresponsvel. O lder assumiria toda a responsabilidade e se proporia para a
honra do sacrifcio. Como o lder exerce um papel importante na comunidade
onde vivem, os demais contestariam sua deciso. Eles jamais poderiam voltar
a enfrentar a luz do dia aps matar e comer o juiz de paz, o proco ou o lder
dos escoteiros. Ento o membro mais jovem e menos importante se proporia;
os demais no concordariam devido a sua juventude e a toda vida que ele teria
pela frente. Seria ento a vez do mais velho, sob o pretexto de que sua vida
havia chegado ao fim e, ento, entraria em cena o pai de uma numerosa
famlia. Durante os dez dias de seu cativeiro eles passariam o tempo todo
procurando, com muita civilidade, um princpio hierrquico satisfatrio que
designasse sua vtima, mas talvez jamais chegariam a encontr-la.
Suponhamos agora que os prisioneiros da caverna so membros de
uma seita religiosa que esto passando juntos um feriado. Ao tomar
conhecimento de que 500 toneladas de pedra bloquearam a sada eles se
rejubilam, pois se do conta de que chegou o dia do julgamento supremo e queesto irrevogavelmente separados de Armagedon, para sua eterna salvao.
Ento passam o tempo de espera entoando hinos de louvor.
Somente os individualistas, a quem nenhum lao liga mutuamente, que
no esto imbudos de nenhum princpio de solidariedade, acolheriam o jogo
do canibalismo como soluo apropriada.
Discutindo a partir de diferentes premissas, jamais poderemos
aperfeioar nossa compreenso, a menos que examinemos e reformulemosnossos pressupostos. Os captulos que se seguem pretendem esclarecer at
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que ponto o pensamento depende das instituies. Trata-se de uma
argumentao complexa, que necessita quadros de referncia muito claros.
Escolhi abordar a solidariedade e a cooperao por meio da obra de Emite
Durkheim e de Ludwik Fleck. Para eles, a verdadeira solidariedade somente
possvel na medida em que os indivduos compartilhem as categorias de seu
pensamento. O fato desse compartilhar ser possvel algo inaceitvel para
muitos filsofos. Ela contradiz os axiomas bsicos da teoria do comportamento
racional, segundo os quais cada pensador tratado como um indivduo
soberano. No entanto, a teoria da escolha racional, desenvolvida a partir desta
estrutura axiomtica, apresenta dificuldades insuperveis no caso da
solidariedade. O plano desses escritos foi juntar essas duas abordagens,
propondo que os conceitos de Durkheim e de Fleck sejam encarados com
maior seriedade do que aconteceu precedentemente ao se discutir a natureza
do lao social. H urna tendncia de descartar Durkheim e Fleck porque eles
parecem estar afirmando que as instituies tm opinies prprias. claro que
as instituies no podem ter opinies. Vale a pena dedicar um tempo
compreenso do que esses pensadores realmente disseram.
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AS INSTITUIES NO PODEM TER OPINIES PRPRIAS
No qualquer nibus lotado ou um ajuntamento aleatrio de pessoas
que merece o nome de sociedade. preciso que entre seus membros exista
algum pensamento e algum sentimento que se assemelhem. Isto no quer
dizer, porm, que um grupo que se associa possua atitudes prprias. Se ele
possui algo, devido teoria legal que o reveste de uma personalidade fictcia.A existncia legal, entretanto, no basta. Os pressupostos legais no atribuem
vezes emocionais ao grupo que se associa. Somente pelo fato de ser
legalmente constitudo no se pode dizer que um grupo "comporta-se" e muito
menos que ele pensa ou sinta.
Se isso for literalmente verdade algo implicitamente negado por boa parte do
pensamento social. A teoria marxista presume que uma classe social pode
perceber, escolher e agir de acordo com seus prprios interesses grupais. Ateoria democrtica baseia-se no conceito da vontade coletiva. No entanto,
quando se trata de empreender uma anlise detalhada, a teoria da escolha
racional individual s encontra dificuldades ao abordar o conceito de
comportamento coletivo. axiomtico, para a teoria, que o comportamento
racional se baseia em motivos de auto-referenciao. O indivduo calcula o que
aquilo que melhor atende a seus interesses e age de acordo com isso. Este
o fundamento da teoria sobre a qual se baseia a anlise econmica e poltica,
e, no entanto, ficamos com a impresso contrria. Nossa intuio nos diz que
os indivduos contribuem, sim, para o bem pblico com generosidade, at
mesmo sem hesitaes, sem a inteno bvia de obter um benefcio prprio.
Esmiuar o significado do comportamento auto-referenciado at que cada
possvel motivo desinteressado seja includo apenas serve para tomar a teoria
em algo ocioso, intil.
Emile Durkheim tinha outro modo de pensar a respeito do conflito entre
o indivduo e a sociedade (Durkheim 1903, 1912). Ele o transferiu para os
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elementos conflitantes na pessoa. Para ele o erro inicial est em negar as
origens sociais do pensamento individual. As classificaes, as operaes
lgicas e as metforas que nos guiam so dadas ao indivduo pela sociedade.
Acima de tudo, o senso da correo apriorstica de algumas idias e a
ausncia de sentido de outras so lidadas como algo que faz parte do entorno
social. Durkheim era de opinio que a reao de indignao quando
julgamentos estratificados so desafiados uma resposta visceral devida
diretamente a um compromisso com um grupo social No seu modo de ver, o
nico programa de pesquisa que explicaria como um bem coletivo criado
seria trabalhar a questo da epistemologia.
O pensamento de Durkheim muito adequado a nossa poca. Ele
acreditava que o utilitarismo jamais seria responsvel pelas bases da
sociedade civil. Na poca dele, muitos dos sofisticados problemas e paradoxos
do utilitarismo no eram levados em conta. Ele, porm, estava convencido o
tempo todo de que o modelo benthamita, segundo o qual uma ordem social
produzida automaticamente devido a aes auto-interessadas de indivduos
racionais, era por demais limitado, j que no explicava a solidariedade grupal.
A epistemologia sociolgica de Durkheim suscitou considervel oposio
e, at nossos dias, no se desenvolveu. Ao enaltecer o papel da sociedade na
organizao do pensamento, ele amesquinhou o papel do indivduo. Por isso
foi atacado como racionalista e radical. Como no explicou detaIhadamente os
passos precisos de sua argumentao funcionalista, Durkheim suscitou a
queixa oposta no ser racional demais, mas ser atraente para o
irracionalismo. Parecia estar invocando uma entidade mstica, o grupo social,
revestindo-o de poderes superorgnicos, auto-suficientes. Devido a isto foi
atacado como um terico social conservador. Apesar dessas fraquezas, seuconceito ainda era bom demais para ser descartado. Os recursos
epistemolgicos podem ser capazes de explicar aquilo que no pode ser
explicado pela teoria do comportamento racional.
De acordo com Robert Merton, o interesse francs pela sociologia do
conhecimento era grandemente independente das prolficas discusses sobre
a ideologia e a conscincia social travadas na Alemanha naquela mesma
poca. O ensaio de Merton sobre Karl Mannheim fornece elementos essenciaispara essa questo (1949). Ele assinalava que os franceses, ao escolher
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problemas, enfatizavam "a gama de variaes entre diferentes povos, no s
no que se referia a estruturas morais e sociais, mas tambm no que dizia
respeito orientao cognitiva". Por outro lado, a sociologia alem do
conhecimento era profundamente marcada pelo hegelianismo de esquerda e
pela teoria marxista. Em suas primeiras formulaes, a sociologia do
conhecimento alem estava presa a problemas relativistas e era dominada por
intenes propagandsticas. Na medida em que tais elementos foram
gradualmente eliminados, o enfoque do assunto voltou-se muito mais para as
relaes do indivduo com a ordem social em geral. Fazia-se e ainda se faz
visla grossa em relao ao efeito da variao na ordem social. Todo o enfoque
se direcionava para os interesses. A habitual tipologia do conhecimento, por
exemplo, tendia a explicar diferentes pontos de vista de acordo com os
interesses conflitivos de diferentes setores na moderna sociedade industrial.
No havia uma tentativa de se comparar pontos de vista baseados em tipos de
sociedade totalmente diferentes. Merton conclui seu ensaio listando as Calhas
lgicas na argumentao de Mannheim e expe os estratagemas tericos
empregados por este ltimo com o objetivo de as superar. Fica bem claro que
nenhuma estrutura comparativa disciplinada poderia surgir de uma sociologia
que no se mostrava interessada na gama de variedades existentes entre
diferentes sociedades.
Os conceitos durkheimianos franceses tm sido menos assimilados pela
sociologia da cincia em comparao com a contribuio alem. Em primeiro
lugar, eram menos impositivos devido ao fato de serem menos polticos, pois
lidavam com exemplos referentes a povos distantes e exticos. Em segundo
lugar, a sociologia, embora possa ter abordado inicialmente questes
filosficas e temas polticos, recebeu grande impulso para seu desenvolvimentoporque forneceu um instrumento indispensvel para propsitos administrativos.
Assim, o programa intelectual de Durkheim extenuou-se.
Felizmente o atual interesse pela obra de Ludwik Fleck em tomo da
filosofia da cincia coincide com um vivo interesse pela teoria poltica, ao
abordar as fontes do compromisso e do altrusmo. Em seu livro sobre a
identificao da sfilis, The Genesis and Development of a Scientific Fact
(1935), Fleck elaborou e ampliou a abordagem de Durkheim. Valeria a penarealizar uma comparao detalhada entre seus pontos de concordncia e suas
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diferenas. Em vrias passagens FIeck foi muito alm de Durkheim; em outras
faltou-lhe a idia central, sintetizadora. Ambos eram igualmente enfticos em
relao base social da cognio.
Em seu ataque to ctico s teorias causais, David Hume j havia
colocado a questo para Durkheim. Ele afirmou que em nossa experincia
encontramos apenas sucesso e freqncia, mas nenhuma lei ou necessidade.
Somos ns que atribumos a causalidade. Citando Hume, Durkheim colocou a
mesma questo para uma platia imaginria de filsofos apriorsticos,
desafiando-os a nos demonstrar "se detemos esta surpreendente prerrogativa
e como possvel ver certas relaes em coisas cujo exame nada nos pode
revelar." Sua resposta era que as categorias de tempo, espao e causalidade
possuem uma origem social.
Elas representam as relaes mais gerais existentes entre as coisas;ultrapassando em extenso todas as outras nossas idias, elasdominam todos os detalhes de nossa vida intelectual. Se os homens noconcordassem com essas idias essenciais em qualquer momento, seno tivessem os mesmos conceitos de tempo, espao, causa, nmeroetc., todo contato entre suas mentes seria impossvel e, com isso, todavida em coletividade. Assim, a sociedade no poderia abandonar as
categorias relativas livre escolha do indivduo sem abandonar a simesma (...) Existe um mnimo de conformidade lgica que ela no podeultrapassar. Devido a esse motivo, ela lana mo de toda a autoridadeque exerce sobre seus membros para impedir tais dissidncias (...) Anecessidade com a qual as categorias nos so impostas no o efeitode simples hbitos, um jogo de que podemos livrar-nos com poucoesforo; tambm no uma necessidade fsica ou metafsica, j que ascategorias mudam em diferentes lugares e pocas; um tipo especialde necessidade moral, que representa, para a vida intelectual, aquiloque a obrigao moral representa para a vontade (Durkheim 1912, p.29-30).
Comparemos isto com o que escreve Fleck:
A cognio a atividade do homem mais socialmente condicionada e oconhecimento a suprema criao social. A prpria estrutura dalinguagem apresenta uma filosofia impositiva, caracterstica daquelacomunidade e at mesmo uma simples palavra pode representar umateoria complexa (...) banal toda teoria epistemolgica que no leve emconta a dependncia sociolgica de lodo cognio, de maneira
fundamental e detalhada (Fleck 1935, p. 42).
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Fleck foi mais longe que Durkheim ao analisar o conceito de um grupo
social. Ele introduziu vrios termos especializados: a coletividade de
pensamento (equivalente ao grupo social de Durkheim) e seu estilo de
pensamento (equivalente s representaes coletivas de Durkheim), que
conduz e treina a percepo e produz uma proviso de conhecimentos.
Para Fleck, o estilo de pensamento estabelece as pr-condies para
qualquer cognio e determina o que pode ser considerado uma questo
razovel e uma resposta verdadeira ou falsa. Tal estilo propicia o contexto e
fixa limites para qualquer julgamento relativo realidade objetiva, Seu trao
essencial que ele est oculto dos membros da coletividade de pensamento.
O indivduo, no contexto do coletivo, nunca, ou quase nunca, temconscincia do estilo de pensamento predominante que, quase sempre,exerce uma fora absolutamente compulsiva sobre seu pensamento, ecom o qual no possvel discordar (Fleck, 1935, p. 41).
O estilo de pensamento de Fleck est muito prximo da idia de um
esquema conceitual, que, de acordo com alguns filsofos, limita e controla a
cognio individual com tamanho rigor que exclui a comunicao transcultural.
Para Fleck, o estilo de pensamento to soberano para o pensador quanto arepresentao coletiva o era na cultura primitiva, segundo defendia Durkheim.
Fleck, porm, no estava se referindo aos primitivos.
Para Durkheim, a diviso do trabalho responsvel pela grande
diferena entre a sociedade moderna e a primitiva. Para compreender a
solidariedade deveramos examinar aquelas formas elementares de sociedade
que no dependem da troca de servios e produtos diferenciados, De acordo
com Durkheim, nesses casos elementares, os indivduos passam a pensar damesma forma, ao internalizar sua concepo de ordem social e ao sacraliz-la.
O carter do sagrado ser perigoso e estar exposto ao perigo, convocando
todo bom cidado a defender seus baluartes. O universo simblico
compartilhado e as classificaes da natureza incorporam os princpios de
autoridade e coordenao. Em um sistema como esse, problemas de
legitimidade so resolvidos porque os indivduos carregam a ordem social no
seu ntimo onde quer que vo, projetando-a na natureza. No entanto, uma
diviso avanada do trabalho destri essa harmonia entre a moralidade, a
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sociedade e o mundo fsico, substituindo-a por uma solidariedade que depende
do comportamento do mercado. Durkheim no era de opinio que a
solidariedade baseada em smbolos sagrados fosse possvel na sociedade
industrial. Na poca moderna a sacralidade foi transferida para o indivduo.
Essas duas formas de solidariedade constituem a base da principal tipologia na
teoria de Durkheim (Durkheim 1893, 1895).
Fleck distinguia as comunidades de pensamento coletivo,
compreendendo os verdadeiros crentes, da comunidade de pensamento,
anteriormente membros daquela primeira, mas no necessariamente sujeitos
s coeres do estilo de pensamento. Admitia que as comunidades de
pensamento coletivo variassem de acordo com sua persistncia ao longo do
tempo, das formaes mais transitrias e acidentais s formaes mais
estveis. Julgava o estilo de pensamento das formaes estveis mais
disciplinado e uniforme, a exemplo do que ocorria nas associaes, sindicatos
e igrejas. Fleck se deu ao trabalho de discutir a estrutura interna dos grupos.
Uma elite interna, de iniciados hierarquizados, existe no centro e a massa se
localiza nas bordas. O centro o ponto que pe tudo em movimento. As bordas
adotam suas idias em um sentido literal e inquestionvel; a ossificao ocorre
exatamente a. Fleck divisava muitos universos de pensamento, cada um com
seu centro e suas bordas, interceptando, separando e se fundindo. Era algo
paralelo densidade moral presente na teoria de Durkheim. Fleck reconhecia
que a quantidade de interao podia variar; o grau de concentrao e energia
no centro depende da presso da demanda por parte das bordas externas.
Quando essa interao forte, a questo da divergncia individual mal se
coloca. Fleck no estava interessado na sacralidade ou na evoluo social.
Ainda assim ele aplicava sociedade moderna e at mesmo cincia a idiadurkheimiana de um estilo de pensamento soberano, o que teria horrorizado
Durkheim. Conforme disse Fleck, os durkheimianos ostentavam "um respeito
excessivo, que chegava aos limites de uma reverncia pia, aos fatos
cientficos" (p. 49-51). Ele ridicularizava essa atitude, achando que ela era um
obstculo simplrio construo de uma epistemologia cientfica.
As afirmaes de Durkheim evocam freqentemente uma mente grupaI,
misteriosa e supra-orgnica. Fleck, com toda certeza, no pode ser acusado damesma falha. Sua abordagem era inteiramente positivista. Ao lidarmos com as
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crticas que afetam a ambos, a boa estratgia consiste em deixar que Durkheim
e Fleck realizem uma defesa comum. Algumas vezes Fleck tem a melhor
resposta, outras vezes, Durkheim. Lutando como aliados, de costas um para o
outro, cada um, com sua fora, pode suprir a fraqueza do outro.
Em seu prefcio, o organizador-tradutor do livro de Fleck compara a
rejeio inicial que ele sofreu por parte dos resenhadores ao sucesso
instantneo e ruidoso alcanado por Logic der Forschung, de Karl Popper,
publicado quase na mesma poca (Trenn 1979, p. X). A diferena quanto
receptividade pode ser explicada em boa parte pelo relativo vigor da
coletividade de pensamento a que cada um desses escritores pertencia.
Popper era uma personalidade bastante conhecida na prestigiosa confraria de
filsofos vienenses e Fleck, um intruso em relao filosofia, mas gozava de
considerao. Um esboo biogrfico descreve Fleck como "um humanista com
conhecimento enciclopdico" (Fleck, p. 149-53). Mdico e bacteriologista, cujas
publicaes e pesquisas se referiam serologia do tifo, da sfilis e de vrios
organismos patognicos, ele no estava bem posicionado para impressionar os
filsofos. Seria mais durkheimiano adotar o prprio conceito de Fleck, segundo
o qual a coletividade de pensamento, isto , a organizao social, explica a
falta de ateno com que ele foi acolhido inicialmente. Ainda assim,
interessante seguir a idia do organizador da edio, segundo a qual seu
fracasso inicial foi uma questo de estilos de pensamento incompatveis. Com
efeito, parece que os primeiros resenhadores acusaram Fleck de uma
minimizao reducionista do papel do cientista. Ele foi censurado por
negligenciar as personalidades individuais na histria da cincia. Sua anlise
sociolgica foi descartada por acrescentar pouco quilo que Max Weber j
havia dito. No todo, foi criticado por toda sua mensagem global e no porquaisquer elementos incidentais. O vigoroso apelo que fez a favor da
epistemologia sociolgica e comparativa foi rejeitado. Os organizadores das
edies de seus livros acreditam que os tempos mudaram e que agora ocorreu
uma mudana decisiva no estilo de pensamento.
Existe certamente um novo interesse por distintos estilos de raciocnio
na histria da cincia. Galileu introduziu um novo estilo de pensamento que
tomou impossveis antigas indagaes. O captulo "Language, Truth andReason" ("Linguagem, Verdade e Razo"), de Ian Hacking (1982), resenha
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rapidamente inmeros ensaios recentes e influentes na histria da cincia
sobre "novos modos de raciocnio que tm incio e trajetrias especficas de
desenvolvimento" (p. 51). Na maioria dos casos, entretanto, a tendncia
interessar-se pelo estilo de pensamento e no por sua relao com o
pensamento coletivo. Se a mudana de direo, em Fleck, for criativa, ela no
dever separar estilo de pensamento de coletividade de pensamento, o que,
mais uma vez, levaria ao fracasso da parte sociolgica do . empreendimento.
Thomas Kuhn foi o primeiro desde 1937 a chamar ateno para o livro
de Fleck, fazendo uma referncia a ele (Kuhn 1962). Em seu prefcio
traduo inglesa, ele exprime certas hesitaes que ainda sero amplamente
compartilhadas. A posio de Fleck, afirmou, no est livre de problemas
fundamentais.
(...) para mim eles se agrupam, conforme aconteceu na primeira leitura,em tomo do conceito de uma coletividade de pensamento (...) Consideroeste conceito intrinsecamente equivocado e uma fonte permanente detenso no texto de Fleck. Colocado de maneira resumida, a coletividadede pensamento parece funcionar como a mente individual em largaescala, pelo fato de muitas pessoas o possurem (ou serem possudaspor ele). Com o intuito de explicar sua aparente autoridade legislativa,
FIeck recorre repetidamente a termos emprestados do discurso sobre osindivduos (Kuhn 1979, p. X).
Resumindo: pensamento e sentimento so para as pessoas, enquanto
indivduos. Pode, entretanto, um grupo social pensar ou sentir? Este o
paradoxo central, incongruente. Kuhn aprecia no livro de Fleck inmeras
percepes, mas no a principal argumentao deste autor. Ao rejeit-la, Kuhn
compartilha um certo mal-estar com muitos liberais. A filosofia da justia de
John Rawls fundamenta-se em total individualismo; na sua opinio, "asociedade constitui um todo orgnico, com vida prpria, distinta e superior
vida de todos seus membros em suas relaes mtuas" (Rawls 1971, p. 264).
verdade que existem agora vrios movimentos de idias em cuja
direo Fleck apontava com tamanha premncia. Por exemplo, podemos lidar
mais facilmente com termos desconfortveis. Os tradutores refletiam e
rejeitavam vrias alternativas para o termo denkkollectiv: "escola de
pensamento" ou "comunidade cognitiva", antes de adotarem a traduo literal,"coletividade de pensamento". Agora, porm, o termo "universo" adquiriu um
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sentido apropriado, embora universo (incluindo os universos distinguveis da
teologia, da antropologia e da cincia), no lugar de coletividade de
pensamento, seria um termo fiel ao conceito essencial de Fleck, ligando-o
apropriadamente s obras Ways of Worldmaking, de Goodman (1978), e a Art
Worlds, de Becker (1982). O tema de Fleck era a descoberta cientfica, o de
Becker, a criatividade artstica, e o de Goodman, a cognio em geral.
Cada um desses pensadores muito independentes tem notvel afinidade
com os demais. Becker insiste que o esforo coletivo produz uma obra de arte,
embora ela seja atribuda a determinado artista. Inclui no universo da arte,
juntamente com o artista, a colaborao annima dos fornecedores, os
fabricantes de telas e tintas, os moldureiros, os distribuidores, os designers
grficos dos catlogos, as galerias e o pblico. um acaso histrico que faz
com que uma classe de atores no mundo artstico da pintura ocidental seja
designada individualmente e celebrada como "artistas". Em outros universos,
em outras pocas e lugares, a coletividade do estdio ou a corporao de
ofcios sobrepuja a fama do indivduo. Todos os universos da arte dependem
da existncia de um pblico para a obra de arte. A interao com a solicitao
do pblico constitui uma parte fundamental e criativa do universo da msica ou
da pintura. Fleck adotou o mesmo partido, enfatizando o papel da prtica de
laboratrio e o papel do apoio pblico.
Se no fosse o insistente clamor da opinio pblica a favor do teste desangue de Wassermann jamais teriam gozado daquele respaldo socialabsolutamente essencial ao desenvolvimento da relao, sua"perfeio tcnica" e acumulao da experincia coletiva. Somente aprtica laboratorial explica com facilidade porque o lcool e,posteriormente, a acetona deveriam ser tentados, alm da gua, tendo
em vista o preparo do extrato, e porque deveriam ter sido usados rgossaudveis, alm de rgos atingidos pela sfilis. Muitos investigadoresrealizaram essas experincias quase simultaneamente, mas averdadeira autoria se deve coletividade, prtica do trabalhocooperativo e em equipe (FIeck, 1935, p. 77-78).
Fleck chegou mesmo ao ponto de prescrever o anonimato e a modstia
a todos os cientistas. Este ideal democrtico pode explicar em parte por que
ele escolheu o modelo russo de uma fazenda coletiva para descrever os
universos da cincia.
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Nelson Goodman coloca que a correo das categorias depende de
como elas se adequam a um universo. A correo, com o significado de
adequao ao e adequao a outras categorias, corre paralelamente ao
conceito de harmonia, elaborado por Fleck, entre elementos pertencentes a um
estilo de pensamento. Quase se equipara ao conceito de Fleck, segundo o qual
a verdade, em certo sentido, feita de iluses (frase que perturbava Kuhn). O
modo pelo qual FIeck explicava a construo da realidade objetiva por meio
das experincias sociais da coletividade de pensamento est muito prximo da
explicao de Goodman, segundo a qual a correo se adequa prtica.
Sem a organizao e a seleo de diferentes espcies, efetuada por
uma tradio que se desenvolve, no existe correo ou erros decategorizao, validade ou invalidade da referncia indutiva,amostragem representativa ou no-representativa, uniformidade oudisparidade entre as amostragens. Assim, justificar testes tendo em vistaa correo poder consistir basicamente em demonstrar, no que elessejam confiveis, mas que sejam fundamentados (Goodman 1978, pp.138-39).
Os antroplogos tm empregado modos de pensamento para referir-se aos
mesmos universos e idias fundamentalmente entrelaados (Horton &
Finnegan 1973).
Agora mais fcil empregar as expresses universo da cincia, das
artes, da msica ou do pensamento no lugar de coletividade de pensamento
para aquele agrupamento social que definido por seu estilo de pensamento
prprio, pois invoca os contemporneos laos de apoio ao conceito bsico de
Fleck.
O cenrio poder estar bem preparado, mas o programa de Durkheim-
Fleck relativo sociologia do conhecimento fracassar caso se baseie em um
erro fundamental. Duas graves objees se levantam contra ele. A primeira
delas diz respeito a explicaes funcionais imprecisas. A tese central de
Durkheim, segundo a qual a religio mantm a solidariedade do grupo social,
uma explicao funcional. FIeck tem sua prpria verso de um circuito
funcional auto-sustentvel:
A estrutura geral de uma coletividade de pensamento implica que acomunicao de pensamentoa em uma coletividade,
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independentemente de contedo ou justificativa lgica, deveria levar, porrazes sociolgicas, corroborao da estrutura de pensamento (Fleck1935. p. 103).
Ambos eram funcionalistas. Coloca-se uma interrogao: suas argumentacoes
falham ao no proporcionar os passos lgicos necessrios? Caso contrrio,
poderia existir uma argumentao funcionalista melhor que justificaria as
correlaes deles?
A segunda objeo diz respeito base racional da ao coletiva. Se se
presume que os indivduos sejam racionais e procurem seu prprio interesse,
faro alguma vez sacrifcios em benefcio do grupo? E caso eles ajam contra
seu prprio interesse, que teoria de motivao humana explicaria esse
comportamento? Durkheim recorre religio para oferecer algumas
explicaes. Para Fleck, qualquer sistema de conhecimento uma espcie de
bem pblico, conseqentemente, a prpria religio coloca os mesmos
problemas. Para ambos, a verdadeira questo a emergncia da prpria
ordem social. As pginas que se seguem no dizem respeito a quem quer que
afirme que a ordem social nasce espontaneamente. A teoria da escolha
racional probe que um engajamento espontneo se incorpore argumentao,
sob o disfarce da religio. O engajamento que subordina os interesses
individuais a um todo social mais amplo precisa ser explicado. Para muitos
leitores de Durkheim, sua argumentao parece apoiar-se demais na religio e
se, tendo em vista os propsitos da epistemologia sociolgica desses leitores,
a crena religiosa deve equacionar-se com qualquer outro sistema de
conhecimento, ento a assertiva de Fleck, segundo a qual um estilo de
pensamento reina soberano sobre seu universo de pensamentos, tambm
algo que parece suspeito. Como foi que surgiu essa soberania? isso que ostericos da escolha racional exigem que seja explicado.
Por outro lado, a teoria da escolha racional apresenta grandes
limitaes. As pessoas no parecem agir de acordo com os princpios dela
(Hardin 1982). O programa de Durkheim e Fleck pode dar uma resposta
crtica funcionalista e crtica da escolha racional apenas quando desenvolve
uma dupla viso do comportamento social. Uma dessas vises cognitiva: a
existncia individual de ordem, coerncia e controle da incerteza. A outra viso transacional: a utilidade individual maximiza a atividade descrita em um
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clculo que envolve o custo-benefcio. Na maior parte deste volume pouco
diremos a respeito desta ltima viso, que j se encontra muito bem
representada nos escritos acadmicos. O exemplo mal representado o papel
desempenhado pela cognio na formao do lao social.
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DAR UM DESCONTO PEQUENA ESCALA
As sociedades em pequena escala so diferentes. Muitos daqueles que
so bem informados sobre a dificuldade de explicar a ao coletiva no bojo da
teoria da escolha racional contentam-se em abrir excees. A pequena escala
alarga o campo de ao dos efeitos interpessoais. Todo o campo da psicologia
localiza-se aqui, juntamente com as emoes irracionais. Quando a escala dasrelaes suficientemente pequena para ser pessoal qualquer coisa pode
acontecer e a teoria da escolha racional reconhece os limites de seus
domnios. Em conseqncia, parece no existir um problema terico em
relao ao altrusmo quando a organizao social muito pequena. Entretanto,
um exame mais detido revela que isentar as sociedades de pequena escala da
fora da anlise racional algo que no resiste bem a lima crtica. Elas no
podem ser mais isentas do que as organizaes religiosas. O objetivo destecaptulo ampliar os argumentos da escolha racional, de tal modo a abrir
aquelas reas interditas onde no se supe que a teoria penetre. Ento a teoria
se desnuda. Ela enfrentar inelutavelmente dificuldades agudas que no
podem ser escamoteadas tomando como referncia a escala ou fatores
religiosos, emocionais ou irracionais. Este passo necessrio para se
confrontar o registro emprico inoportuno. Sabemos que os indivduos
submetem seus interesses particulares ao bem dos outros, que o
comportamento altrusta pode ser observado, que os grupos exercem uma
influncia sobre o pensamento de seus membros e at mesmo desenvolvem
estilos de pensamento distintos. Sabemos isso sem dispormos de uma teoria
do comportamento que leve tal fato em conta.
Na seqncia aplicaremos a anlise da ao coletiva, realizada por
Mancur Olson, s questes habitualmente disfaradas pelos efeitos da escala.
Em The Logic Of Collective Action(1965), Olson parte da teoria econmica dos
bens pblicos, mas termina por uma teoria geral da ao coletiva. Os bens
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pblicos constituem um conceito hbrido na teoria econmica. O termo foi
adaptado para definir gastos governamentais legtimos. Se os impostos foram
recolhidos para servir objetivos pblicos, estes devem se distinguir dos
benefcios individuais e ser mantidos sob o controle legislativo pblico. Um bem
pblico deve beneficiar a todos, conforme ocorre, por exemplo, com o ar no-
poludo ou, pelo menos, deve ser acessvel a todos, a exemplo de uma auto-
estrada pblica. Comeando por exemplos escolhidos para ilustrar um
determinado problema poltico, o conceito se baseou em trs formulaes
complexas e distintas: primeiro, que o suprimento de um bem no diminudo
pelo consumo individual; segundo, que um dos lados no pode reivindicar um
reembolso pelo fato de o ter produzido, j que ele propiciado pela
coletividade; e terceiro, que nenhum membro da coletividade pode ser excludo
de seu uso. , essencialmente, um tipo de bem que escapa ao mecanismo dos
preos e, assim, se esquiva da anlise econmica padro.
Segundo a formulao geral de Olson, um indivduo que se comporta de
acordo com o interesse prprio racional no contribuir para o bem coletivo e,
do mesmo modo, no produzir o benefcio que deseja tendo em vista seu
prprio interesse. Isto ocorre por dois motivos distintos. Uma argumentao
depende da natureza dos bens pblicos, dos problemas que surgem da
necessidade de cooperao para providenci-los e da impossibilidade de
excluir quem quer que seja de goz-los, uma vez produzidos. A outra
argumentao depende da diminuio dos retornos para cada pessoa que
contribuiu para a produo medida que aumenta o nmero de pessoas que
gozam do produto. O primeiro exemplo muito eloqente. O segundo, baseado
em efeitos de escala, precisa ser qualificado. Separemos essas duas questes
e comecemos apreciando o primeiro conjunto de problemas que surgem danatureza dos bens pblicos. Olson argumenta que, na medida em que a
contribuio dele no for suficiente para produzir o bem coletivo e na medida
em que, por definio, a produo desses bens depende de muitos
contribuintes, o clculo racional do indivduo tender a lev-lo a deixar de
proporcionar qualquer bem. Por um lado, sua prpria contribuio tem
conseqncias limitadas. Assim como ele pode esperar que a ausncia de seu
pequeno bolo no far diferena, poder tambm esperar pegar uma caronanas contribuies dos outros. "Pode deixar que fulano faz" o princpio do
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latente. Enquanto tal, deve convocar um esforo combinado tendo em vista
uma atividade a curto prazo levantamento de fundos ou protestos , porm
no muito mais do que isto.
Olson isentou a organizao religiosa de sua teoria geral. Vinte anos
mais tarde, entretanto, a iseno da organizao religiosa constitui claramente
um engano. A histria da religio corrobora sua teoria. Sempre que as
organizaes religiosas tiveram acesso aos poderes coercitivos ou foram
capazes de oferecer recompensas seletivas de riqueza ou influncia a seus
membros mais dedicados, suas religies tiveram uma carreira estvel e
florescente. E sempre que elas estiveram ausentes, quaisquer que fossem os
motivos, ocorreu uma histria de frico e cismas contnuos (Douglas &
Wildavsky 1982). No ajuda nossa compreenso da religio para proteg-la de
um minucioso exame profano traando em torno dela uma fronteira respeitosa.
A religio no deveria ser isenta de modo algum.
Olson tambm se mostra disposto a isentar pequenos grupos das
implicaes de sua teoria. Ele confere uma influncia decisiva escala da
organizao (Chamberlin 1982) e espera que suas observaes no se
apliquem a um determinado ponto de uma escala que decresce. Se as
comunidades de pequena escala devem ser isentas assim como as
comunidades religiosas, ento aquilo que Durkl1eim tem a dizer no seria
relevante, j que baseou sua argumentao em ambas.
Existe, alm disso, a crena de que em algo denominado "comunidade"
os indivduos podem colaborar desinteressadamente uns com os outros e
construir um bem comum. Em uma comunidade como esta as injunes da
escolha racional no se aplicam. Trata-se de uma idia emotiva
extraordinariamente vigorosa.Estas isenes aparentemente melhores investigao analtica
representam um territrio no demarcado pelo qual uma pessoa pode
perambular conforme lhe agradar. Tal liberdade prejudicial ao projeto de
Durkheim e de Fleck. As isenes no so de pouca monta ou carecem de
importncia. Sua aceitao debilita a fora de toda a investigao. Em
particular, as isenes desviam a ateno do interessante e pessimista
conceito de Olson relativo ao grupo latente. Ningum que esteja empenhadoem explicar a ao coletiva pode descartar superficialmente os formidveis
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problemas enfrentados por uma pequena comunidade que tenta continuar
existindo tal como . Pior ainda identificar as reas isentas da vida social
como aquelas que so pequenas em escala. Isto implica afirmar que, na poca
moderna, ela so poucas e carecem de importncia. Porm, esta colocao
falsa. Estamos falando de coaes sistemticas colaborao, que se aplicam
a uma extensa gama, que vai da Associao de Pais e Professores local aos
sindicatos, aos representantes do Poder Legislativo e cooperao
internacional (Olson 1965, pp. 66-131). vasta a escala dos grupos latentes na
sociedade; as conseqncias de seu fracasso em se aglutinar so graves.
Assim, deveramos nos encorajar e entrar naquela reserva toda cercada. A
essa altura a religio pode ser parcialmente deixada de lado porque por
demais bvio que a organizao religiosa no constitui exceo ao exemplo
geral e porque algumas coisas especficas sero ditas sobre a religio e a
sacralidade em captulos posteriores. Este o ponto em que se devem
concentrar os efeitos de escala.
A argumentao falha pode ser expressa da seguinte maneira: a escala
pequena promove a confiana mtua; a confiana mtua a base da
comunidade; a maior parte das organizaes, caso no se baseiem em
benefcios individuais seletivos, tm seu incio sob a forma de comunidades
pequenas e confiantes. Ento, as caractersticas especiais da comunidade
resolvem o problema de como a ordem social pode aflorar. Muitos mantm
que, aps o nascimento inicial, por meio da experincia comunitria, o restante
da organizao social pode ser explicado pelo complexo entrelaamento de
sanes e recompensas individuais. O prprio Olson parece adotar esta viso.
As duas grandes dificuldades em aceit-Ias so de natureza emprica e terica.
Na prtica, as sociedades de pequena escala no exemplificam a visoidealizada da comunidade. Algumas delas promovem a confiana e outras no.
Algum j escreveu sobre este tema j viveu alguma vez em uma aldeia? J
leu romances? J tentou levantar fundos claro que existem comunidades
bem-sucedidas, mas vai contra o esprito da investigao racional selecionar
apenas os exemplos que se adequam e negligenciar tantos outros. Pode-se
indagar se isto uma forma de investigao, uma ideologia ou uma doutrina
quase religiosa. Ela fornecer um exemplo pertinente de um conjunto de idiasque adquirem sua validade e, portanto, seu poder mais pelos usos
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reconhecveis, no interior das instituies, do que pela fora da razo. A
atrao exercida pela comunidade pequena, idealizada, ntima forte na
retrica poltica.
Michael Taylor apresenta o mrito especial de ter tratado a ordem social como
um bem pblico. Ele tambm se inclui entre muitos daqueles que acreditam
que as comunidades pequenas so uma forma de sociedade na qual o auto-
interesse racional no impe o desfecho das decises (1982). Contanto que a
comunidade seja suficientemente pequena e estvel, supe-se que seus
membros tenham a liberdade de fazer contribuies que eles manteriam em
aglomeraes maiores e mais fluidas. Esta frmula um tanto imprecisa, pois
a questo consiste em saber como a comunidade consegue ser estvel. Taylor
analisou trs espcies de comunidades. Em primeiro lugar, temos as comunas
modernas (ou comunidades intencionais), estudadas por muitos. Em segundo
lugar, existem as sociedades camponesas, que geraram toda uma indstria de
pesquisa acadmica em torno da vida campestre. Seguem-se, finalmente, as
sociedades tribais de pequena escala, descritas na literatura antropolgica.
Todos os trs tipos de comunidade possuem uma documentao to vasta,
variada, repleta de detalhes, que a maior parte dos filsofos, em uma atitude
compreensvel, a evitam e assim, o conceito segundo o qual as pequenas
comunidades so isentas da anlise do comportamento racional, tende a
escapar aos constrangimentos impostos pela crtica.
Taylor comea localizando a comunidade no extremo, em pequena
escala, de um continuumde elementos, cada um deles vulnervel ao aumento
da escala. Assim a comunidade , por definio, pequena, interage face a face
e multiforme em seus relacionamentos. Em segundo lugar, a participao em
seus processos de tomada de deciso ampla. Em terceiro lugar, os membrosda comunidade apresentam crenas e valores em comum; seu exemplo mais
perfeito seria o consenso total. Em quarto lugar, a comunidade se mantm
enquanto tal devido a uma rede de trocas recprocas.
Taylor afirma que tais disposies tornam inaplicvel a anlise da
escolha racional. "Em muitas comunidades de pequena escala no se
necessita de 'incentivos seletivos' ou de controles; racional cooperar
voluntariamente na produo do bem pblico da ordem social" (Taylor 1982, p.94).
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Deixando de lado essa afirmativa to pouco matizada, segundo a qual
os indivduos que se beneficiariam do bem pblico na verdade combinam para
produzi-lo, precisamos saber quais so as etapas de suas negociaes uns
com os outros. Qualquer ordem social envolve questes controvertidas de
justia e moral. Taylor supe que elas so resolvidas, em comunidades muito
pequenas, ao se instituir a igualdade econmica e a ampla participao nos
negcios pblicos.
A fim de manter essa posio em relao sociedade tribal, Taylor
precisaria excluir o governo que opera pelas associaes secretas, panelinhas
e intrigas, o que equivale a grandes e arbitrrias supresses de seus prprios
exemplos de comunidade. Alm disso, ele sugere que, em uma comunidade
real, a coero fsica inexiste. Isto depende do que ele considera coero. A
menos que se d a este termo um significado muito restrito, seria sensato
eliminar desta definio muitas sociedades tribais de pequena escala.
verdade que em muitos bandos errantes de caadores, a igualdade e a
participao esto bem exemplificadas. Nesses bandos, porm, no
especificamente a escala diminuta, mas outros fatores, que criam as condies
favorveis para uma vida comunitria no-coercitiva. A disperso da
populao, a abundncia de recursos destinados a satisfazer as necessidades
em um nvel baixo e a fcil movimentao entre os bandos de caadores
permite que o conflito se tome difuso graas separao (Service 1966; Lee &
DeVore 1968). Muito provavelmente so estas as condies que a teoria de
Olson espera que os grupos latentes apresentem com abundncia: o indivduo
no tem muito a ganhar ou a perder permanecendo com o grupo; sua lealdade
muda facilmente e ele resiste prontamente a qualquer tentativa de coero,
ameaando cindir-se. O baixo nvel do dispndio de energia por parte dessesgrupos e o baixo grau em que sua existncia pressionou os recursos do meio
ambiente sugere que, pelo menos, seja corroborada a tese, segundo a qual,
quando as condies so favorveis ao indivduo, no se obtm muita coisa
em termos de colaborao.
David Hume afirmou que o problema da ao coletiva pode ser melhor
resolvido em comunidades muito pequenas, j que elas possuem muito pouca
coisa que seja objeto de disputas. Isto tambm marca um ponto a favor deoutro argumento: as comunidades pequenas fracassaram ao criar evidncias
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muito visveis de um benefcio coletivo. Quando nos distanciamos do exemplo
especial dos bandos de caadores, outras comunidades em pequena escala
no so visivelmente bem-sucedidas ao criar uma ordem social que proteja
efetivamente as poucas pessoas e seus modestos haveres.
Na perspectiva da antropologia, os fatores favorveis tm menos a ver com a
escala e mais com a proporo da populao que tem acesso aos recursos,
juntamente com a possibilidade de satisfazer necessidades sem obrigar
algum a executar aquele tipo de trabalho rduo, montono e contnuo que
tenta alguns a coagir outros a prestar servio. Seria, entretanto, um grande erro
qualificar essas comunidades como grupos latentes no sentido empregado por
Olson. Elas, na verdade, constituem comunidades morais, persistentes e
verdadeiras. Est ocorrendo algo que no desafia a anlise e nada tem a ver
com a escala, mas que deixado de lado devido falsa plausibilidade dos
efeitos da escala.
Suponhamos que uma forma de ordem social tenha se realizado de
certa forma; ento, no segundo estgio, Michael enumera quatro maneiras
pelas quais a comunidade trabalha para manter essa ordem. Muitos outros
escritores aderiram a essa lista. Nenhuma dessas formas constitui um exemplo
convincente. A primeira dessas supostas formas extra-racionais de controle
social se apia em ameaas e ofertas. Elas no passam de apelos ao interesse
prprio do indivduo, Este processo , com efeito, muito bem documentado
pelos antroplogos, porm sua anlise por demais compatvel com a teoria
predominante da escolha racional para poder isentar as pequenas
comunidades de seu vigor.
A socializao o segundo modo pelo qual se afirma, com freqnIcia,
que a ordem social mantida. Os adultos so expostos ao vexame pblico e ascrianas passam por iniciaes dolorosas que as ensinam a tomar as atitudes
corretas. Podemos, entretanto, imaginar como os pais so induzidos a deixar
seus filhos passar por esses tormentos e indignidades, que fazem parte de um
padro. As sanes coletivas so uma forma de ao coletiva. Retrair-se do
processo da socializao outra maneira de no cooperar. O que acontece
quando uma me alega que seu filhinho por demais sensvel ou
excessivamente jovem? O que a impede de afastar seu filho e todas as outrasmes de afastar os seus, por meio de uma ao precipitada, que os subtrai
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socializao? A resposta est em seu compromisso com determinada ordem
social. Mas no essa escolha coletiva o que estamos tentando explicar?
A terceira maneira pela qual a ordem social presumivelmente mantida
nas sociedades primitivas se d pelas caractersticas estruturais daquelas
sociedades. Trata-se de uma questo sutil. Essas caractersticas no
constituem mecanismos especficos de controle social; no podem ser
separadas daquilo que controlado, mas fornecem uma estrutura para os
controles sociais. Elas so, essencialmente, os padres de reciprocidade,
parentesco e casamento. Entretanto, tais padres de troca constituem a
articulao da ordem social que, em si, apenas uma articulao do
comportamento; assim, o argumento circular. Pode ser salvo unicamente por
uma presuno funcionalista explcita de um sistema de atividades interligadas
que mantm a si mesmo.
A caracterstica mais amplamente demonstrada da sociedade primitiva
que, segundo se diz, mantm a ordem social, a crena nas sanes
sobrenaturais como o medo bruxaria, feitiaria ou aos ancestrais punitivos,
Se outros argumentos falham e se essas crenas carregam o principal fardo
naquele exemplo que separa a comunidade do resto do mundo, ento toda a
argumentao submeteu-se a fatores irracionais, Ou a criao da comunidade
algo que apenas os primitivos podem fazer graas a suas crenas
supersticiosas na bruxaria e nos ancestrais, ou tais crenas precisam ser
generalizadas de um modo que tambm se aplique sociedade moderna.
A interpretao antropolgica ortodoxa, que foi aceita durante toda a
dcada de 1960, assumiu um modelo auto-estabilizador, no qual cada item da
crena exerce seu papel na manuteno da ordem social. Entretanto, algumas
sublevaes interessantes neste ltimo quarto de sculo lanaram dvidassobre a existncia de tendncias que contribuem para o equilbrio nas
sociedades estudadas pelos antroplogos. Um fator o desenvolvimento
terico do tema e o modo como ele lida com novas descobertas. Entre estas, a
mais relevante o crescimento da antropologia marxista crtica, cujo
materialismo histrico rejeita a nfase homoesttica da gerao anterior
(Abramson 1974; Bailey & LIobera 1981; Sahlins 1976; Terray 1969). Outro
fator importante o fim do colonialismo. Ainda outro o desenvolvimento dapesquisa de campo na Nova Guin, pas que no havia sido colonizado antes
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da pesquisa antropolgica. Agora possvel pr-se de lado e avaliar o efeito do
governo colonial sobre todos os incentivos individuais e sobre o emprego da
fora.
claro que nas condies coloniais costumava ser mais fcil imaginar
uma comunidade no-coercitiva. J no se permitia mais s populaes
sujeitas ao poder colonial prosseguir seu lucrativo trfico de armas, marfim e
escravos. Tambm no Ihes era mais possvel competir pela glria na caada
s cabeas humanas, nas ousadas expedies para o roubo do gado, j no
podiam mais estender armadilhas, roubar esposas ou executar vinganas
violentas. Na economia colonial, em que o nico incentivo econmico ao
trabalho era um baixo rendimento proveniente dos pagamentos vista pelas
colheitas, era fcil supor que a comunidade original no havia oferecido
incentivos individuais ao lucro. Os registros antropolgicos atuais, mais
sofisticados, mostram essas sociedades em pequena escala numa posio
jamais esttica ou auto-estabilizadora, mas sendo continuamente estruturadas
por um processo de negociaes e trocas racionais. As categorias do discurso
poltico, as bases cognitivas da ordem social so negociadas. Em qualquer
momento desse processo em que o antroplogo acione sua mquina
fotogrfica e ligue seu gravador, habitualmente, conseguir registrar alguns
equilbrios temporrios de satisfao, quando o indivduo se encontra
momentaneamente constrangido por outros e pelo ambiente que o cerca. A
anlise de custo-benefcio individual aplicava-se inexorvel e
esclarecedoramente menor das microtrocas, no que se refere tanto a eles
quanto a ns. Os antroplogos testam mutuamente a credibilidade dos relatos
etnogrficos examinando de perto o que eles relatam sobre o equilbrio das
trocas recprocas. As evidncias obtidas demolem o exemplo de princpiosextra-racionais que produzem uma comunidade, em um ponto no especificado
de uma escala que diminui. E quando eles fazem ameaas e oferendas que os
indivduos invocam com freqncia o poder dos fetiches, dos fantasmas e dos
bruxos e bruxas para atender suas solicitaes. A cosmologia resultante no
forma um conjunto separado de controles sociais. Na obra de Durkheim todo o
sistema de conhecimento visto como um bem coletivo que a comunidade
est em conjunto. este processo que precisamos enfocar particularmente nosprximos captulos.
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A esta altura o conceito comum de uma comunidade anrquica utpica
pode ser deixado de lado como uma iluso acalentada. A evidncia
antropolgica, obtida de sociedades de pequena escala, apia a vasta
extenso da principal tese de Mancur Olson, segundo a qual, os indivduos so
facilmente desencorajados de contribuir para o bem coletivo. Tal tese no
sustenta o ponto de vista desse autor, o qual afirma que a escala o fator
principal. Qualquer tentativa no sentido de investigar as bases da ordem social
faz emergir as bases paradoxais do pensamento. A esse nvel de abstrao
no a circularidade auto-referencial que est errada. Ao acreditar nos efeitos
da escala, a argumentao foi derrotada. Ela deixou de dar aquele passo lgico
anterior que questionaria como nascem os sistemas de conhecimento. H
muito boas razes para acreditar que a teoria de escolha racional inadequada
para explicar o comportamento poltico, Ocorre algo nos negcios cvicos que a
teoria da escolha natural no apreende. De acordo com a posio de Durkheim
e Fleck, o erro ter ignorado o problema epistemolgico. Em vez de supor que
um sistema de conhecimento passa a existir mais fcil e naturalmente, a
abordagem desses autores amplia o ceticismo quanto possibilidade de um
conhecimento e de crenas compartilhados. Esta dvida mais abrangente
sobre as bases da comunidade indica o caminho para uma resposta.
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COMO OS GRUPOS LATENTES SOBREVIVEM
Se a escala diminuta no d conta da origem das comunidades
cooperativas, talvez algo mais o faa. Para explicar o fato, sem apoiar
explicitamente a abordagem funcionalista intrnseca s colocaes de
Durkheim e de Fleck, vrias sugestes psicolgicas e sociolgicas foram
apresentadas. Entretanto, as explicaes psicolgicas precisam ser rejeitadas
caso ultrapassem os quadros axiomticos nos quais o problema se coloca.Assim, podemos descartar qualquer invocao de processos que encorajem o
auto-sacrifcio, pois isto satisfaz a necessidade psquica de manter a auto-
estima ou proporciona o prazer de dar prazer aos outros. Estas satisfaes
psquicas em seu funcionamento no so suficientemente confiveis para
carregar o peso da explicao. Se algumas vezes funcionam e algumas vezes
no, a interrogao retrocede e ento indaga-se o que desencadeia as
vigorosas atitudes emocionais pblicas.
Outra forma de explicao coletiva faz com que a ao coletiva dependa
do complexo entrelaamento das mltiplas trocas recprocas, diretas e
indiretas. De acordo com a forma forte desta explicao, o indivduo racional
est atado a um complexo conjunto de relaes, nas quais precisa agir munido
de confiana j que no lhe resta alternativa. Na forma fraca, ele tem alguma
escolha e se escolher no cooperar acabar estragando o espetculo. Surge
ento a reao: as sanes sociais sero aplicadas a fim de penalizar o
comportamento no-cooperativo. No entanto, aplicar sanes, conforme vimos
no exemplo das sociedades de pequena escala, uma forma de ao coletiva
e necessita igualmente de uma explicao.
A objeo forma forte nasce do conceito de algum que se encontra
em uma situao em que a escolha no possvel. Claro que possvel, e at
mesmo acontece com freqncia, que uma pessoa se encontre sob uma
coe