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    COMO

    AS

    INSTITUIES

    PENSAM

    MARY DOUGLAS

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    Copyright @ 1986 by Syracuse University Press

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do

    Livro, SP, Brasil)

    __________________________________________________________

    Douglas, Mary

    Como as Instituies Pensam / Mary Douglas ; (traduo Carlos

    Eugnio Marcondes de Moura). - So Paulo: Editora da Universidade

    de So Paulo, 1998. (Ponta, 16)

    Ttulo original: How Institutions Think

    Bibliografia

    ISBN 85-314-0455-X

    1. Cognio e cultura 2. Comportamento organizacional

    3. Instituies sociais Aspectos pedaggicos 1. Ttulo.

    98-1938 CDD-306

    ____________________________________________________________

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Instituio: Pensamento: Sociologia 306

    Mary Douglas, antroploga, pesquisadora e professora, lecionou nas Universidades de Oxford ede Londres, na Northwestern University e atualmente professora visitante na PrincetonUniversity.

    Digitalizado a partir de software HP OCR I.R.I.S.

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    SUMRIO

    Apresentao ... ....................................................................6

    Prefcio .. ............................................................................10

    Introduo ... .......................................................................19

    1. As Instituies No Podem Ter Opinies Prprias..........192. Dar um Desconto Pequena Escala...............................31

    3. Como os Grupos Latentes Sobrevivem...........................42

    4. As Instituies se Fundamentam na Analogia.................57

    5. As Instituies Conferem Identidade...............................67

    6. As Instituies Lembram-se e se Esquecem...................82

    7. Um Exemplo de Esquecimento Institucional....................96

    8. As Instituies Operam a Classificao.........................1089. As Instituies Tomam Decises de Vida e Morte ........130

    Bibliografia.......................................................................... 151

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    APRESENTAO

    Mary Douglas apresentou a sexta Conferncia Abrams na Universidade

    de Siracusa, durante as duas semanas de maro de 1985. O evento

    realizado mediante uma dotao da Fundao Exxon Education, em memria

    de Frank W. Abrams, que foi presidente do Conselho da Standard Oil Company

    (New Jersey), a qual antecedeu a Exxon, e presidente do Conselho de

    Curadores da Universidade de Siracusa.

    Durante toda sua vida o sr. Abrams liderou todos os esforos no sentido

    de oferecer apoio educao superior. Ele fundou o Conselho para Ajuda

    Financeira Educao, serviu como presidente do Fundo da Fundao Ford

    para o Avano da Educao e foi curador da Fundao Alfred E. Sloan. O sr.

    Abrams exerceu um papel fundamental ao despertar os empresrios

    americanos, por meio da educao e de precedentes legais, verdadeiros

    pontos de referncia para a necessidade de se prestar apoio financeiro

    educao superior privada.

    A Fundao Exxon Education continua a expandir inspirada no trabalho

    desenvolvido por Frank Abrams. O papel de liderana da Fundao no apoio

    educao superior certamente muito conhecido e respeitado. Somos gratos

    Fundao por seu generoso apoio a vrios empreendimentos da Universidade

    e sentimo-nos particularmente orgulhosos da Conferncia Abrams, j que

    Frank Abrams formou-se em 1912 na Universidade de Siracusa.

    Um agradecimento especial devido aos membros da Comisso de

    Planejamento da Conferncia Abrams, frente da qual se encontra Guthrie S.

    Birkhead, reitor da Escola Maxwell Para a Cidadania e Negcios Pblicos. Com

    o reitor Birkhead trabalham Michael O. Sawyer, vice-chanceler da Universidade

    e professor de Direito Constitucional; Richard Oliker, reitor da Escola de

    Administrao; Richard D. Schwartz; Ernest I. White, professor de Direito; Chris

    J. Witting, presidente do Conselho de Curadores da Universidade de Siracusa

    e ~obert Payton, presidente da Fundao Exxon Education.

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    Mary Douglas revelou-se uma conferencista e uma convidada

    extremamente obsequiosa. Realizou cinco magnficas conferncias, teve

    encontros regulares com os membros do corpo docente e os alunos dos cursos

    de ps-graduao, visitou classes de graduao e trouxe a marca toda especial

    de seu calor humano aos dias, algumas vezes enregelados, do incio da

    primavera em Siracusa.

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    PREFCIO

    Este livro o resultado de um convite feito pela Universidade de

    Siracusa para realizar o sexto conjunto de conferncias da srie que

    homenageia Frank W. Abrams. Em semelhante caso, o tema parcialmente

    indicado pela forma da ocasio. Um convite formulado pela Escola Maxwell

    para a Cidadania e Assuntos Pblicos exige temas com grande

    desenvolvimento. Um convite para realizar conferncias requer que esses

    temas sejam compactados para ocupar pouco espao. O fato de ser escolhida

    como conferencista sugeria que uma sntese pessoal seria apropriada. Para

    mim esse convite era irresistvel, j que eu teria a oportunidade de voltar a

    dizer o que tentei colocar. Dirigir-me, dessa vez, a um auditrio crtico e atento

    na Universidade de Siracusa significava tentar abordar o tema sob novas luzes,

    torn-lo mais claro, mais convincente e, finalmente, transmiti-lo de maneira

    apropriada.

    Torna-se necessria uma teoria das instituies que modifique a atual

    viso no-sociolgica da cognio humana, bem como uma teoria cognitiva

    que oferea um suplemento s debilidades da anlise institucional. O tema

    suficientemente amplo, de interesse momentneo e pouco comentado para que

    se realize uma abordagem especulativa em torno dele. Este o primeiro livro

    que eu deveria ter escrito aps minha produo sobre a pesquisa de campo na

    frica. Em vez disso escrevi Pureza e Perigo (1966), numa tentativa de fazer

    generalizaes a partir da frica e em relao nossa prpria condio. Meus

    amigos disseram-me, naquela poca, que Pureza e Perigo era um livro

    obscuro, intuitivo e despreparado. Eles estavam corretos e, desde ento, venho

    tentando compreender os fundamentos tericos e lgicos de que necessitaria

    para apresentar uma argumentao coerente sobre o controle social da

    cognio. Este volume constitui, na verdade, uma introduo post hoc. como

    um prolegmeno a Risk Acceptability (1986), que aponta um dedo acusador

    para certa cegueira profissional e para uma resistncia arraigada ao tema. Risk

    Acceptability, por sua vez, como uma introduo em acrscimo a Risk and

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    Culture (publicado em 1982, em colaborao com Aaron Wildavsky), um livro

    que demonstra como a anlise antropolgica das crenas pblicas pode ser

    aplicada ao nosso prprio caso. No entanto, Risk and Culture a

    argumentao que deveria ter vindo luz antes que lmplicit Meanings fosse

    publicado em 1970 com um ensaio intitulado O meio-ambiente corre riscos".

    Todos eles deveriam ter sido editados em ordem inversa, terminando com The

    Lele of the Kasai (1963). Se isto tivesse acontecido, a Comisso das

    Conferncias Abrams agora estaria acolhendo a primeira dessas publicaes

    nas sries que ela vem promovendo. Mas como que isto poderia ter

    acontecido se fiquei to endividada no decorrer de um tempo to longo? Muitos

    autores, jovens, velhos e alguns infelizmente mortos ajudaram-me em cada

    estgio. Espero que este livro possa ser to aceitvel a ponto de romper com o

    encantamento de tal forma que eu agora possa escrever para diante e no

    para trs.

    Este livro comea com a hostilidade dispensada a Emile Durkheim e aos

    durkheimianos quando se referiram s instituies ou grupos sociais como se

    eles fossem indivduos. A prpria idia de um sistema cognitivo suprapessoal

    provoca um sentimento profundo de insulto. A ofensa indcio de que, acima

    do nvel do indivduo, outra hierarquia de "indivduos" est influenciando os

    membros que se situam num nvel mais baixo a reagirem violentamente contra

    essa ou aquela idia. Presume-se que um indivduo que contenha em si seres

    humanos pensantes seja algum detestvel, totalitrio, que constitua uma

    ditadura altamente centralizada e eficaz. Por exemplo, Anthony Greenwald

    recorre a Hannah Arendt e a George Orwell tendo em vista modelos totalitrios

    daquilo que ele classifica como os domnios do conhecimento extrapessoal

    (1980). No entanto, a reflexo deixa bem claro que, em nveis mais elevadosde organizao, os controles sobre os membros que a constituem, situados em

    nveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais difusos. Muitos

    pensadores sutis e capacitados ficam de tal forma nervosos devido crua

    analogia entre a mente individual e as influncias sociais que preferem

    descartar o problema.

    Os antroplogos, entretanto, no podem descart-lo. Emile Durkheim, E.

    Evans-Pritchard e Claude Lvi-Strauss so grandes lderes que devem serseguidos. O estudioso cuja marca se faz sentir de maneira mais intensa no

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    tema coberto por este escrito Robert Merton. A ele, com respeito e afeio,

    dedico este livro, confiando que sua generosidade passar por cima de suas

    deficincias. Meu marido merece um tributo especial. Quando dois problemas

    parecem insolveis, nossa longa experincia da vida domstica tem sugerido

    uma abordagem enviesada. Em vez de atacar de frente cada questo

    separadamente, pode-se trabalhar com um conjunto de problemas para

    confrontar os demais. Tal estratgia, que produz novas definies sobre aquilo

    que deve ser solucionado, que fornece a estrutura deste livro.

    Durante duas deliciosas semanas gozei da afetuosa hospitalidade do

    chanceler e da sra. Eggers, bem como de muitos programas e departamentos

    na Universidade de Siracusa. O trabalho se fez menos penoso devido boa

    acolhida e ao apoio de Guthrie Birkhead, reitor da Escola MaxwelI, aos sbios

    conselhos de Manfred Stanley (e no me esqueo das crticas construtivas e

    slidas de sua famlia) e perfeita organizao de James G. Gies.

    Sob uma forma ou outra diferentes segmentos do livro foram objeto de

    algumas tentativas. Os captulos um e dois foram apresentados na Conferncia

    sobre as Categorias Corretas, patrocinada pela Fundao WennerGren, em

    honra de Nelson Goodman, na Universidade Northwestern em 1985 e

    agradeo a todos seus participantes pelas discusses suscitadas. Agradeo

    tambm a Kai Erikson pela oportunidade de ensaiar partes do captulo trs

    durante a Hollingshead Memorial Lecture, na Universidade de Yale. Uma

    primeira verso dos captulos seis e sete foi apresentada no painel sobre "A

    Ordem Social Possvel?", no encontro da Associao Americana de

    Sociologia, realizado em San Antonio em 1983. Agradeo ao presidente,

    James Shorter, a permisso de publicar este estudo alentado sobre a memria

    pblica. Parte do captulo nove foi divulgada no seminrio de RusselI Hardinsobre a tica, realizado na Universidade de Chicago. Meus agradecimentos a

    Russell Hardin e a Alan Gewirth por suas valiosas crticas. David Bloor, Barry

    Barnes e Lawrence Rosen tambm contribuiram com crticas importantes.

    Muitos, na Universidade Northwestern, fizeram indagaes e criticaram

    diferentes passagens. Reid Hastie proporcionou o equilbrio necessrio e uma

    pilha de referncias, a partir de escritos psicolgicos. Robert Welsch leu todo o

    manuscrito e formulou crticas que muito me ajudaram. Andrew Leslie trabalhouna bibliografia e Richard Kerber pesquisou as classificaes relativas ao

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    comrcio do vinho. Helen McFaul foi a secretria ideal com que todo escritor

    sonha e ela foi muito alm da execuo de um dever profissional.

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    INTRODUO

    Escrever sobre cooperao e solidariedade significa escrever, ao

    mesmo tempo, sobre rejeio e desconfiana. A solidariedade envolve

    indivduos prontos para sofrer em benefcio de um grupo mais amplo e sua

    expectativa de que cada membro desse grupo faa o mesmo por eles. difcil

    falar sobre essas questes com distanciamento. Elas tocam em sentimentos

    ntimos de lealdade e sacralidade. Qualquer pessoa que tenha aceito a

    confiana, solicitado sacrifcios ou os tenha praticado voluntariamente conhece

    o poder do lao social. No caso de um compromisso com a autoridade, dio

    tirania ou algo que se situe entre esses dois extremos, o lao social encarado

    como algo que se coloca acima da questo. H resistncias s tentativas de o

    expr luz do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser examinado.

    Toda pessoa afetada pela qualidade da confiana que a cerca. Algumas

    vezes uma firmeza simplria leva os lderes a ignorarem as necessidades

    pblicas. Algumas vezes a confiana tem breve durao e frgil, dissolvendo-

    se facilmente e resultando em pnico. Algumas vezes a suspeita to

    profunda que a cooperao toma-se impossvel.

    Um exemplo contemporneo ajudar a esclarecer questes abstratas.

    No campo da medicina nuclear h um registro magnfico de confiana e

    cooperao mtuas. Os cientistas dispem de meios aceitveis de conferir

    reciprocamente suas afirmativas. Acreditam em seus mtodos e tm f nos

    resultados, do mesmo modo que os pacientes e os mdicos confiam um no

    outro. Se a fora da solidariedade puder ser medida pelo mero poder das

    realizaes, ento dispomos de um exemplo eloqente. Rosalyn Yalow

    apresentou recentemente (1985) um relatrio sobre a histria da subdisciplina

    qual dedicou sua vida profissional. O relatrio foi inspirado por indcios de

    que o trabalho est para ser interrompido. Ele sofre fortes ataques devido ao

    temor dos efeitos negativos da radiao nuclear. Nada do que os cientistas

    possam dizer em sua defesa conseguir dissipar a desconfiana.

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    Rosalyn Yalow comeou a trabalhar no Hospital Administrativo dos

    Veteranos, no Bronx, nos anos de 1940, a fim de implantar um Servio de

    Radioistopos que usaria detectores radioativos para investigar a doena.

    Desde ento as realizaes do Servio tm suscitado admirao. Inicialmente

    os mdicos usaram o iodeto de rdio para investigar a fisiologia da tiride e

    trat-la. Ao mesmo tempo empregaram-no para medir o volume do sangue em

    circulao no corpo. Isto os capacitou a desenvolver mtodos experimentais de

    avaliao das taxas de sntese e degradao das protenas de soro no sangue.

    Aplicar essas tcnicas circulao da insulina no corpo levou a uma ampla

    reviso do que at o momento se conhecia sobre a diabetes. A partir do

    sucesso obtido no tratamento da tiride e da diabetes, o trabalho acabou

    resultando no princpio do radioimunoensaio (RIE). um modo de tipificar

    processos fisiolgicos administrando radioistopos a pacientes e

    acompanhando seu comportamento no corpo. As aplicaes do RIE so

    inmeras em todos os campos da medicina. empregado em amplos

    programas que objetivam detectar a baixa atividade das glndulas tirides no

    recm-nascido. Trata-se de um distrbio que no perceptvel pelos mtodos

    clnicos e afeta um em 4000 nascimentos nos Estados Unidos e quatro em 100

    nascimentos no denominado "cinturo do bcio", na regio sul dos Himalaias.

    Se no for tratado rapidamente aps o nascimento, resultar em retardo mental

    irreversvel. Desde a deteco e terapia do cncer maligno s doenas

    cardacas, parece no haver limite para a aplicao do RIE

    A outra face desse impressionante registro da medicina que milhes

    de pessoas foram expostas a baixas doses de radiaes nucleares e algumas

    centenas de milhares a doses moderadas. O acmulo de evidncias demonstra

    que uma exposio profunda a altas doses pode tomar-se rapidamentemortfera e que a exposio crnica a doses mais moderadas pode resultar em

    tumores malignos ou em morte prematura. As atuais crticas que ameaam as

    aplicaes mdicas do RIE levam tais perigos em considerao. Como medir o

    que uma baixa radiao? O que uma exposio curta ou prolongada? O

    medo justificado? So indagaes a que o relatrio de Rosalyn Yalow

    procura dar uma resposta.

    O assunto altamente tcnico. Desde a alvorada da humanidadenossos ancestrais foram expostos radiao da radioatividade natural do solo

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    e do alimento, bem como dos raios csmicos extraterrestres. Eles constituem

    os nveis da radiao do meio natural, que variam de uma regio para outra.

    Em mdia, a exposio radiao produzida pela medicina significa um

    acrscimo quase igual radiao do meio natural. Para saber se isso

    perigoso para a sade, factvel realizar pesquisas em regies do mundo onde

    a radiao do meio natural particularmente elevada e ento se verificar se

    aqueles que foram expostos a ela apresentam taxas mais elevadas de

    ocorrncia de cncer. Nos Estados Unidos, sete estados apresentam radiao

    do meio natural mais elevada do que os demais, porm neles a taxa de

    ocorrncia de cncer mais baixa do que a taxa mdia da doena em todo o

    pas. Altitudes elevadas implicam elevada exposio radiao, mas nos

    Estados Unidos nota-se uma relao inversa entre a elevao e as leucemias e

    linfomas. Um estudo cuidadoso realizado na China examinou 150 mil

    camponeses da etnia han, que apresentavam essencialmente o mesmo estilo

    de vida e a mesma composio gentica. Metade deles viviam em uma regio

    de solo radioativo, onde recebiam uma exposio quase trs vezes maior do

    que a outra metade. A pesquisa avaliou um grande nmero de possveis efeitos

    da radiao sobre a sade, mas no conseguiu detectar quaisquer diferenas

    entre os habitantes das duas regies. Assim, essa e outras investigaes

    levam concluso de que a exposio radiao em nveis trs ou at mesmo

    dez vezes maiores do que a do meio natural no afeta adversamente a sade.

    Este livro no se preocupa em julgar se aquilo que Yalow denomina "um

    temor fbico radiao" correto ou no. Um exemplo esclarece vrios outros

    pontos que sero discutidos nas pginas que se seguiro. A profunda

    discordncia entre os cientistas que praticam a medicina nuclear, de um lado, e

    um setor do pblico, de outro lado, ilustra a surdez seletiva, na qual nenhumdos dois interlocutores conseguem, por ocasio de um debate, ouvir o que o

    outro est dizendo. Em captulos posteriores atribuiremos a inabilidade da

    converso a argumentos racionais ao domnio exercido pelas instituies em

    nossos processos de classificao e de reconhecimento. Os praticantes da

    medicina nuclear declaram que no correm riscos, em se tratando da vida de

    seus pacientes, ou que esto expondo o restante da populao ao perigo. Os

    fbicos nucleares negam essa afirmao, pois sabem que toda medicinaacarreta um risco. Simplesmente ignorar a questo seria desonesto. O

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    conhecimento e a capacitao mdicas jamais podem bastar. Ao rejeitarem a

    alegao de que nenhum perigo se encontra presente, eles tero de enfocar a

    situao do doente que foi salvo e de toda uma populao que foi colocada em

    perigo. Ningum tem o direito de decidir quem ser sacrificado pelo bem dos

    outros. O argumento contrrio que os fbicos nucleares se arrogam o direito

    de tomar essa deciso, j que fazem os direitos das pessoas saudveis vir

    antes das vidas das vtimas do cncer, do diabetes, das doenas do corao e

    da tiride, alm dos recm-nascidos beira do retardo mental, que seriam

    salvos por novas tcnicas de diagnose e de tratamento. A resposta estratgica

    consiste em declinar da honra de escolher entre as vtimas a serem

    sacrificadas. Isto implica insistir que a medicina alternativa e uma dieta

    equilibrada melhorariam, tanto quanto a medicina nuclear, nossas chances de

    vida, caso lhes fosse dada a mesma oportunidade.

    O debate entre os que so favorveis medicina nuclear e os que tm

    fobia a ela constitui um exemplo relevante a favor e contra a solidariedade,

    expresso sob forma contempornea e sensvel, pois a solidariedade no passa

    de um gesto, quando no envolve sacrifcio algum. No ltimo captulo sero

    tecidas consideraes sobre semelhantes escolhas. Com o intuito de preparar

    o leitor, os captulos anteriores insistiro laboriosamente na base compartilhada

    do conhecimento e dos padres morais. A concluso a que se chegar que

    os indivduos em crise no tomam sozinhos decises relativas vida e morte.

    Para dar nfase ainda maior nossa colocao, diremos que o raciocnio

    individual no consegue resolver tais problemas. Uma resposta s parece ser

    correta quando apia o pensamento institucional que j se encontra na mente

    dos indivduos enquanto eles procuram chegar a uma deciso.

    Recorreu-se a um exemplo fictcio, "O processo dos exploradoresespelelogos", para ilustrar precisamente as respostas divergentes dos

    filsofos ao problema de se saber se uma pessoa deve ser sacrificada em

    benefcio das vidas alheias (Fuller 1949). A histria passa-se no Supremo

    Tribunal de um lugar chamado Newgarth, no ano de 4 300. Quatro homens

    foram condenados por homicdio em um tribunal de instncia inferior e o

    processo subiu ao Supremo, em grau de apelao. O presidente do Tribunal

    resume o acontecido. Cinco membros da Sociedade de Espeleologia decidiramexplorar uma caverna; a queda de uma enorme rocha bloqueou a nica

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    entrada; uma grande equipe de resgate comeou a cavar um tnel atravs da

    rocha, mas o trabalho era rduo e perigoso. Dez membros da equipe morreram

    na tentativa de salvao. No vigsimo dia do desabamento foi estabelecido

    contato pelo rdio e os homens aprisionados perguntaram quanto tempo

    demoraria para serem resgatados. Estimou-se que o mnimo necessrio seriam

    mais dez dias. Eles solicitaram conselhos mdicos sobre a insuficincia de

    suas raes e ficaram sabendo que no poderiam esperar sobreviver por mais

    dez dias. Indagaram ento se teriam chances de sobreviver se consumissem a

    carne de um de seus companheiros e, com muita relutncia, lhes foi dito que

    sim, mas ningum sacerdote, mdico ou filsofo se dispunha a aconselh-

    los sobre o que fazer. Depois disso cessou a comunicao pelo rdio. No

    trigsimo-segundo dia do desabamento o bloqueio da entrada foi rompido e

    quatro homens saram da caverna.

    Eles disseram que um deles, Roger Whetmore, havia proposto a soluo

    de comer a carne de um dos companheiros e sugeriu que a escolha fosse feita

    por meio de um lance de dados. Mostrou ento um dado que, por acaso,

    trouxera. Os outros acabaram concordando e estavam para pr o plano em

    ao quando Roger Whetmore recuou, dizendo que preferia esperar mais uma

    semana. Eles, no entanto, foram em frente, jogaram o dado quando chegou a

    vez dele, e sendo Roger Whetmore indicado como vtima, mataram-no e

    comeram-no.

    Iniciando a discusso, o presidente do Tribunal expressou a opinio de

    que o jri havia agido corretamente ao declar-los culpados, pois, segundo a

    lei, no havia a menor dvida quanto aos fatos; eles, por vontade prpria,

    haviam tirado a vida de outra pessoa. Ele props que o Supremo Tribunal

    confirmasse a pena e solicitasse clemncia mais alta autoridade do PoderExecutivo. Seguiram-se as declaraes de voto dos quatro outros juzes.

    O primeiro deles afirmou que seria uma iniqidade conden-los por

    homicdio. Em vez de um pedido de clemncia, propunha que fossem

    inocentados. Sua argumentao invocava dois princpios distintos. Os homens,

    encurralados, haviam sido geograficamente subtrados da fora da lei;

    separados por uma slida muralha de pedra, seria o mesmo que estar em uma

    ilha deserta, em territrio estrangeiro. Em circunstncias desesperadoras,encontravam-se moral e legalmente no estado da natureza, e a nica lei a que

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    estavam sujeitos era o acordo ou contrato que firmaram entre si. J que a vida

    de dez trabalhadores havia sido sacrificada para salv-Ios, quem quisesse

    condenar os acusados deveria preparar-se para processar, pela morte

    daqueles homens, quem organizou o socorro. Ele insistiu finalmente na

    diferena entre o texto da lei e a interpretao de seus objetivos. No fazia

    parte dos propsitos da lei definir o homicdio para condenar aqueles homens

    famintos, que poderiam ter sido movidos por uma atitude de autodefesa.

    O prximo juiz discordou veementemente dessa colocao,

    perguntando: "Baseados em que autoridade nos investimos em um Tribunal da

    Natureza?", Absteve-se em seguida de tomar uma deciso.

    O terceiro juiz tambm no concordou com o primeiro, insistindo que

    todos os fatos demonstravam que os acusados haviam tirado a vida de seu

    companheiro por vontade prpria. Discordou igualmente da deciso do

    presidente do Tribunal quanto ao pedido de clemncia. No cabia ao Poder

    Judicirio refazer a lei ou interferir em outros departamentos do governo.

    O ltimo juiz concluiu que os acusados eram inocentes no em relao

    aos fatos ou lei, mas porque "os homens so regidos no por palavras

    escritas numa folha de papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens".

    Nesse caso preciso, as pesquisas de opinio mostraram que 90% dos

    entrevistados estavam a favor do perdo. Ele, entretanto, no apoiou a

    recomendao do presidente do Tribunal por saber que o chefe do Executivo,

    entregue a si mesmo, recusaria o perdo e estaria menos inclinado a conceder

    a clemncia caso uma recomendao nesse sentido partisse do Supremo

    Tribunal. Assim, ele no fez recomendao alguma para o perdo, mas

    favoreceu uma absolvio.

    Somente o presidente do Tribunal se mostrava favorvel no sentido desolicitar clemncia. Dois juzes favoreceram a absolvio; dois eram a favor da

    condenao; um dos juzes se absteve. Estando o Supremo Tribunal

    igualmente dividido, foi confirmada a condenao do tribunal de primeira

    instncia. Os homens foram sentenciados e condenados a morrer na forca.

    Ao relatar essa fbula, Lon Fuller nos apresentou o padro da opinio

    jurdica vigente desde a Era de Pricles at a poca em que esse texto foi

    escrito. Dois dos juzes demonstraram forte simpatia pelos acusados erecomendaram a reverso da condenao, mas por motivos diferentes.

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    evidente que o primeiro juiz no se importa absolutamente com estatutos,

    conforme se queixa um de seus doutos confrades. Sente-se pessoalmente

    atrado pela idia da natureza, limitada unicamente pelo contrato entre os

    indivduos. Exprime-se de maneira comovente, como se se imaginasse na

    caverna, estabelecendo um pacto e jogando para ganhar ou perder. Seus

    conceitos liberais so apropriados a uma forma de sociedade na qual sua

    inclinao a assumir riscos e sua prontido em negociar fariam sentido. to

    inerente a ele a idia de um contrato que deixa de levar em considerao que a

    vtima havia-se retirado do pacto estabelecido. Ao propor o argumento da

    autodefesa ele chega at mesmo a ignorar outro fato: o de que a vtima no

    apresentava ameaa alguma vida dos acusados. Os demais juzes no

    tiveram dificuldade em encontrar razes para discordar dele.

    O ltimo juiz, que tambm recomendou a absolvio, dificilmente parece

    estar raciocinando como um advogado. Quer deixar de lado as legalidades

    tolas. Sente que consegue ler os pensamentos dos acusados e considera que

    seria ultrajante conden-los depois dos horrores por que passaram. Os motivos

    e as emoes so o que contam para ele. Tambm consegue ler os

    pensamentos do presidente do Executivo, ao qual ligado por laos de famlia.

    Aquilo que ele preconiza destina-se precisamente a fazer malograr as

    motivaes negativas do chefe do Executivo. Este juiz, ardiloso e afvel, honra

    a verdade emocional. Sua postura corresponde aos conceitos expressos pelas

    seitas igualitrias fundadas para rejeitar um ritualismo desprovido de sentido e

    pregar diretamente ao corao dos homens.

    O terceiro juiz no se mostra nem simptico nem antiptico. Para ele o

    que importa a lei, a responsabilidade dos juzes em dispens-la e a alocao

    existente de diferentes funes em um estado complexo. umconstitucionalista e sente-se vontade em uma sociedade baseada na

    hierarquia.

    Os trs julgamentos expressam trs filosofias jurdicas distintas. No

    por acaso que Lon Fuller escolheu temas recorrentes na histria da

    jurisprudncia. Esses temas surgem a cada momento por corresponderem a

    formas recorrentes da vida social. Em outro escrito, ns os descrevemos como

    individualistas, sectrios e hierrquicos (Douglas & Wildavsky 1982). Nada farcom que esses juzes concordem diante de uma questo de vida e morte to

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    complicada. Eles recorrem a seus compromissos institucionais para chegar a

    uma reflexo. Este livro foi escrito precisamente para encorajar mais

    investigaes em torno do relacionamento entre as mentes e as instituies.

    Para enfocar ainda mais os princpios elementares da solidariedade e da

    confiana, voltemos histria no ponto em que os cinco homens ficam

    sabendo que no conseguiro o sobreviver com o alimento de que dispem.

    Poderia ser um grupo de turistas de uma pequena cidade solidria.

    Suponhamos que eles compartilhassem o compromisso do ltimo juiz com os

    princpios hierrquicos. Ento aceitariam a idia de que um deles poderia muito

    justamente ser sacrificado em prol da sobrevivncia dos demais. A idia de

    escolher a vtima por meio de um lance de dados pareceria irracional e

    irresponsvel. O lder assumiria toda a responsabilidade e se proporia para a

    honra do sacrifcio. Como o lder exerce um papel importante na comunidade

    onde vivem, os demais contestariam sua deciso. Eles jamais poderiam voltar

    a enfrentar a luz do dia aps matar e comer o juiz de paz, o proco ou o lder

    dos escoteiros. Ento o membro mais jovem e menos importante se proporia;

    os demais no concordariam devido a sua juventude e a toda vida que ele teria

    pela frente. Seria ento a vez do mais velho, sob o pretexto de que sua vida

    havia chegado ao fim e, ento, entraria em cena o pai de uma numerosa

    famlia. Durante os dez dias de seu cativeiro eles passariam o tempo todo

    procurando, com muita civilidade, um princpio hierrquico satisfatrio que

    designasse sua vtima, mas talvez jamais chegariam a encontr-la.

    Suponhamos agora que os prisioneiros da caverna so membros de

    uma seita religiosa que esto passando juntos um feriado. Ao tomar

    conhecimento de que 500 toneladas de pedra bloquearam a sada eles se

    rejubilam, pois se do conta de que chegou o dia do julgamento supremo e queesto irrevogavelmente separados de Armagedon, para sua eterna salvao.

    Ento passam o tempo de espera entoando hinos de louvor.

    Somente os individualistas, a quem nenhum lao liga mutuamente, que

    no esto imbudos de nenhum princpio de solidariedade, acolheriam o jogo

    do canibalismo como soluo apropriada.

    Discutindo a partir de diferentes premissas, jamais poderemos

    aperfeioar nossa compreenso, a menos que examinemos e reformulemosnossos pressupostos. Os captulos que se seguem pretendem esclarecer at

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    que ponto o pensamento depende das instituies. Trata-se de uma

    argumentao complexa, que necessita quadros de referncia muito claros.

    Escolhi abordar a solidariedade e a cooperao por meio da obra de Emite

    Durkheim e de Ludwik Fleck. Para eles, a verdadeira solidariedade somente

    possvel na medida em que os indivduos compartilhem as categorias de seu

    pensamento. O fato desse compartilhar ser possvel algo inaceitvel para

    muitos filsofos. Ela contradiz os axiomas bsicos da teoria do comportamento

    racional, segundo os quais cada pensador tratado como um indivduo

    soberano. No entanto, a teoria da escolha racional, desenvolvida a partir desta

    estrutura axiomtica, apresenta dificuldades insuperveis no caso da

    solidariedade. O plano desses escritos foi juntar essas duas abordagens,

    propondo que os conceitos de Durkheim e de Fleck sejam encarados com

    maior seriedade do que aconteceu precedentemente ao se discutir a natureza

    do lao social. H urna tendncia de descartar Durkheim e Fleck porque eles

    parecem estar afirmando que as instituies tm opinies prprias. claro que

    as instituies no podem ter opinies. Vale a pena dedicar um tempo

    compreenso do que esses pensadores realmente disseram.

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    AS INSTITUIES NO PODEM TER OPINIES PRPRIAS

    No qualquer nibus lotado ou um ajuntamento aleatrio de pessoas

    que merece o nome de sociedade. preciso que entre seus membros exista

    algum pensamento e algum sentimento que se assemelhem. Isto no quer

    dizer, porm, que um grupo que se associa possua atitudes prprias. Se ele

    possui algo, devido teoria legal que o reveste de uma personalidade fictcia.A existncia legal, entretanto, no basta. Os pressupostos legais no atribuem

    vezes emocionais ao grupo que se associa. Somente pelo fato de ser

    legalmente constitudo no se pode dizer que um grupo "comporta-se" e muito

    menos que ele pensa ou sinta.

    Se isso for literalmente verdade algo implicitamente negado por boa parte do

    pensamento social. A teoria marxista presume que uma classe social pode

    perceber, escolher e agir de acordo com seus prprios interesses grupais. Ateoria democrtica baseia-se no conceito da vontade coletiva. No entanto,

    quando se trata de empreender uma anlise detalhada, a teoria da escolha

    racional individual s encontra dificuldades ao abordar o conceito de

    comportamento coletivo. axiomtico, para a teoria, que o comportamento

    racional se baseia em motivos de auto-referenciao. O indivduo calcula o que

    aquilo que melhor atende a seus interesses e age de acordo com isso. Este

    o fundamento da teoria sobre a qual se baseia a anlise econmica e poltica,

    e, no entanto, ficamos com a impresso contrria. Nossa intuio nos diz que

    os indivduos contribuem, sim, para o bem pblico com generosidade, at

    mesmo sem hesitaes, sem a inteno bvia de obter um benefcio prprio.

    Esmiuar o significado do comportamento auto-referenciado at que cada

    possvel motivo desinteressado seja includo apenas serve para tomar a teoria

    em algo ocioso, intil.

    Emile Durkheim tinha outro modo de pensar a respeito do conflito entre

    o indivduo e a sociedade (Durkheim 1903, 1912). Ele o transferiu para os

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    elementos conflitantes na pessoa. Para ele o erro inicial est em negar as

    origens sociais do pensamento individual. As classificaes, as operaes

    lgicas e as metforas que nos guiam so dadas ao indivduo pela sociedade.

    Acima de tudo, o senso da correo apriorstica de algumas idias e a

    ausncia de sentido de outras so lidadas como algo que faz parte do entorno

    social. Durkheim era de opinio que a reao de indignao quando

    julgamentos estratificados so desafiados uma resposta visceral devida

    diretamente a um compromisso com um grupo social No seu modo de ver, o

    nico programa de pesquisa que explicaria como um bem coletivo criado

    seria trabalhar a questo da epistemologia.

    O pensamento de Durkheim muito adequado a nossa poca. Ele

    acreditava que o utilitarismo jamais seria responsvel pelas bases da

    sociedade civil. Na poca dele, muitos dos sofisticados problemas e paradoxos

    do utilitarismo no eram levados em conta. Ele, porm, estava convencido o

    tempo todo de que o modelo benthamita, segundo o qual uma ordem social

    produzida automaticamente devido a aes auto-interessadas de indivduos

    racionais, era por demais limitado, j que no explicava a solidariedade grupal.

    A epistemologia sociolgica de Durkheim suscitou considervel oposio

    e, at nossos dias, no se desenvolveu. Ao enaltecer o papel da sociedade na

    organizao do pensamento, ele amesquinhou o papel do indivduo. Por isso

    foi atacado como racionalista e radical. Como no explicou detaIhadamente os

    passos precisos de sua argumentao funcionalista, Durkheim suscitou a

    queixa oposta no ser racional demais, mas ser atraente para o

    irracionalismo. Parecia estar invocando uma entidade mstica, o grupo social,

    revestindo-o de poderes superorgnicos, auto-suficientes. Devido a isto foi

    atacado como um terico social conservador. Apesar dessas fraquezas, seuconceito ainda era bom demais para ser descartado. Os recursos

    epistemolgicos podem ser capazes de explicar aquilo que no pode ser

    explicado pela teoria do comportamento racional.

    De acordo com Robert Merton, o interesse francs pela sociologia do

    conhecimento era grandemente independente das prolficas discusses sobre

    a ideologia e a conscincia social travadas na Alemanha naquela mesma

    poca. O ensaio de Merton sobre Karl Mannheim fornece elementos essenciaispara essa questo (1949). Ele assinalava que os franceses, ao escolher

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    problemas, enfatizavam "a gama de variaes entre diferentes povos, no s

    no que se referia a estruturas morais e sociais, mas tambm no que dizia

    respeito orientao cognitiva". Por outro lado, a sociologia alem do

    conhecimento era profundamente marcada pelo hegelianismo de esquerda e

    pela teoria marxista. Em suas primeiras formulaes, a sociologia do

    conhecimento alem estava presa a problemas relativistas e era dominada por

    intenes propagandsticas. Na medida em que tais elementos foram

    gradualmente eliminados, o enfoque do assunto voltou-se muito mais para as

    relaes do indivduo com a ordem social em geral. Fazia-se e ainda se faz

    visla grossa em relao ao efeito da variao na ordem social. Todo o enfoque

    se direcionava para os interesses. A habitual tipologia do conhecimento, por

    exemplo, tendia a explicar diferentes pontos de vista de acordo com os

    interesses conflitivos de diferentes setores na moderna sociedade industrial.

    No havia uma tentativa de se comparar pontos de vista baseados em tipos de

    sociedade totalmente diferentes. Merton conclui seu ensaio listando as Calhas

    lgicas na argumentao de Mannheim e expe os estratagemas tericos

    empregados por este ltimo com o objetivo de as superar. Fica bem claro que

    nenhuma estrutura comparativa disciplinada poderia surgir de uma sociologia

    que no se mostrava interessada na gama de variedades existentes entre

    diferentes sociedades.

    Os conceitos durkheimianos franceses tm sido menos assimilados pela

    sociologia da cincia em comparao com a contribuio alem. Em primeiro

    lugar, eram menos impositivos devido ao fato de serem menos polticos, pois

    lidavam com exemplos referentes a povos distantes e exticos. Em segundo

    lugar, a sociologia, embora possa ter abordado inicialmente questes

    filosficas e temas polticos, recebeu grande impulso para seu desenvolvimentoporque forneceu um instrumento indispensvel para propsitos administrativos.

    Assim, o programa intelectual de Durkheim extenuou-se.

    Felizmente o atual interesse pela obra de Ludwik Fleck em tomo da

    filosofia da cincia coincide com um vivo interesse pela teoria poltica, ao

    abordar as fontes do compromisso e do altrusmo. Em seu livro sobre a

    identificao da sfilis, The Genesis and Development of a Scientific Fact

    (1935), Fleck elaborou e ampliou a abordagem de Durkheim. Valeria a penarealizar uma comparao detalhada entre seus pontos de concordncia e suas

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    diferenas. Em vrias passagens FIeck foi muito alm de Durkheim; em outras

    faltou-lhe a idia central, sintetizadora. Ambos eram igualmente enfticos em

    relao base social da cognio.

    Em seu ataque to ctico s teorias causais, David Hume j havia

    colocado a questo para Durkheim. Ele afirmou que em nossa experincia

    encontramos apenas sucesso e freqncia, mas nenhuma lei ou necessidade.

    Somos ns que atribumos a causalidade. Citando Hume, Durkheim colocou a

    mesma questo para uma platia imaginria de filsofos apriorsticos,

    desafiando-os a nos demonstrar "se detemos esta surpreendente prerrogativa

    e como possvel ver certas relaes em coisas cujo exame nada nos pode

    revelar." Sua resposta era que as categorias de tempo, espao e causalidade

    possuem uma origem social.

    Elas representam as relaes mais gerais existentes entre as coisas;ultrapassando em extenso todas as outras nossas idias, elasdominam todos os detalhes de nossa vida intelectual. Se os homens noconcordassem com essas idias essenciais em qualquer momento, seno tivessem os mesmos conceitos de tempo, espao, causa, nmeroetc., todo contato entre suas mentes seria impossvel e, com isso, todavida em coletividade. Assim, a sociedade no poderia abandonar as

    categorias relativas livre escolha do indivduo sem abandonar a simesma (...) Existe um mnimo de conformidade lgica que ela no podeultrapassar. Devido a esse motivo, ela lana mo de toda a autoridadeque exerce sobre seus membros para impedir tais dissidncias (...) Anecessidade com a qual as categorias nos so impostas no o efeitode simples hbitos, um jogo de que podemos livrar-nos com poucoesforo; tambm no uma necessidade fsica ou metafsica, j que ascategorias mudam em diferentes lugares e pocas; um tipo especialde necessidade moral, que representa, para a vida intelectual, aquiloque a obrigao moral representa para a vontade (Durkheim 1912, p.29-30).

    Comparemos isto com o que escreve Fleck:

    A cognio a atividade do homem mais socialmente condicionada e oconhecimento a suprema criao social. A prpria estrutura dalinguagem apresenta uma filosofia impositiva, caracterstica daquelacomunidade e at mesmo uma simples palavra pode representar umateoria complexa (...) banal toda teoria epistemolgica que no leve emconta a dependncia sociolgica de lodo cognio, de maneira

    fundamental e detalhada (Fleck 1935, p. 42).

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    Fleck foi mais longe que Durkheim ao analisar o conceito de um grupo

    social. Ele introduziu vrios termos especializados: a coletividade de

    pensamento (equivalente ao grupo social de Durkheim) e seu estilo de

    pensamento (equivalente s representaes coletivas de Durkheim), que

    conduz e treina a percepo e produz uma proviso de conhecimentos.

    Para Fleck, o estilo de pensamento estabelece as pr-condies para

    qualquer cognio e determina o que pode ser considerado uma questo

    razovel e uma resposta verdadeira ou falsa. Tal estilo propicia o contexto e

    fixa limites para qualquer julgamento relativo realidade objetiva, Seu trao

    essencial que ele est oculto dos membros da coletividade de pensamento.

    O indivduo, no contexto do coletivo, nunca, ou quase nunca, temconscincia do estilo de pensamento predominante que, quase sempre,exerce uma fora absolutamente compulsiva sobre seu pensamento, ecom o qual no possvel discordar (Fleck, 1935, p. 41).

    O estilo de pensamento de Fleck est muito prximo da idia de um

    esquema conceitual, que, de acordo com alguns filsofos, limita e controla a

    cognio individual com tamanho rigor que exclui a comunicao transcultural.

    Para Fleck, o estilo de pensamento to soberano para o pensador quanto arepresentao coletiva o era na cultura primitiva, segundo defendia Durkheim.

    Fleck, porm, no estava se referindo aos primitivos.

    Para Durkheim, a diviso do trabalho responsvel pela grande

    diferena entre a sociedade moderna e a primitiva. Para compreender a

    solidariedade deveramos examinar aquelas formas elementares de sociedade

    que no dependem da troca de servios e produtos diferenciados, De acordo

    com Durkheim, nesses casos elementares, os indivduos passam a pensar damesma forma, ao internalizar sua concepo de ordem social e ao sacraliz-la.

    O carter do sagrado ser perigoso e estar exposto ao perigo, convocando

    todo bom cidado a defender seus baluartes. O universo simblico

    compartilhado e as classificaes da natureza incorporam os princpios de

    autoridade e coordenao. Em um sistema como esse, problemas de

    legitimidade so resolvidos porque os indivduos carregam a ordem social no

    seu ntimo onde quer que vo, projetando-a na natureza. No entanto, uma

    diviso avanada do trabalho destri essa harmonia entre a moralidade, a

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    sociedade e o mundo fsico, substituindo-a por uma solidariedade que depende

    do comportamento do mercado. Durkheim no era de opinio que a

    solidariedade baseada em smbolos sagrados fosse possvel na sociedade

    industrial. Na poca moderna a sacralidade foi transferida para o indivduo.

    Essas duas formas de solidariedade constituem a base da principal tipologia na

    teoria de Durkheim (Durkheim 1893, 1895).

    Fleck distinguia as comunidades de pensamento coletivo,

    compreendendo os verdadeiros crentes, da comunidade de pensamento,

    anteriormente membros daquela primeira, mas no necessariamente sujeitos

    s coeres do estilo de pensamento. Admitia que as comunidades de

    pensamento coletivo variassem de acordo com sua persistncia ao longo do

    tempo, das formaes mais transitrias e acidentais s formaes mais

    estveis. Julgava o estilo de pensamento das formaes estveis mais

    disciplinado e uniforme, a exemplo do que ocorria nas associaes, sindicatos

    e igrejas. Fleck se deu ao trabalho de discutir a estrutura interna dos grupos.

    Uma elite interna, de iniciados hierarquizados, existe no centro e a massa se

    localiza nas bordas. O centro o ponto que pe tudo em movimento. As bordas

    adotam suas idias em um sentido literal e inquestionvel; a ossificao ocorre

    exatamente a. Fleck divisava muitos universos de pensamento, cada um com

    seu centro e suas bordas, interceptando, separando e se fundindo. Era algo

    paralelo densidade moral presente na teoria de Durkheim. Fleck reconhecia

    que a quantidade de interao podia variar; o grau de concentrao e energia

    no centro depende da presso da demanda por parte das bordas externas.

    Quando essa interao forte, a questo da divergncia individual mal se

    coloca. Fleck no estava interessado na sacralidade ou na evoluo social.

    Ainda assim ele aplicava sociedade moderna e at mesmo cincia a idiadurkheimiana de um estilo de pensamento soberano, o que teria horrorizado

    Durkheim. Conforme disse Fleck, os durkheimianos ostentavam "um respeito

    excessivo, que chegava aos limites de uma reverncia pia, aos fatos

    cientficos" (p. 49-51). Ele ridicularizava essa atitude, achando que ela era um

    obstculo simplrio construo de uma epistemologia cientfica.

    As afirmaes de Durkheim evocam freqentemente uma mente grupaI,

    misteriosa e supra-orgnica. Fleck, com toda certeza, no pode ser acusado damesma falha. Sua abordagem era inteiramente positivista. Ao lidarmos com as

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    crticas que afetam a ambos, a boa estratgia consiste em deixar que Durkheim

    e Fleck realizem uma defesa comum. Algumas vezes Fleck tem a melhor

    resposta, outras vezes, Durkheim. Lutando como aliados, de costas um para o

    outro, cada um, com sua fora, pode suprir a fraqueza do outro.

    Em seu prefcio, o organizador-tradutor do livro de Fleck compara a

    rejeio inicial que ele sofreu por parte dos resenhadores ao sucesso

    instantneo e ruidoso alcanado por Logic der Forschung, de Karl Popper,

    publicado quase na mesma poca (Trenn 1979, p. X). A diferena quanto

    receptividade pode ser explicada em boa parte pelo relativo vigor da

    coletividade de pensamento a que cada um desses escritores pertencia.

    Popper era uma personalidade bastante conhecida na prestigiosa confraria de

    filsofos vienenses e Fleck, um intruso em relao filosofia, mas gozava de

    considerao. Um esboo biogrfico descreve Fleck como "um humanista com

    conhecimento enciclopdico" (Fleck, p. 149-53). Mdico e bacteriologista, cujas

    publicaes e pesquisas se referiam serologia do tifo, da sfilis e de vrios

    organismos patognicos, ele no estava bem posicionado para impressionar os

    filsofos. Seria mais durkheimiano adotar o prprio conceito de Fleck, segundo

    o qual a coletividade de pensamento, isto , a organizao social, explica a

    falta de ateno com que ele foi acolhido inicialmente. Ainda assim,

    interessante seguir a idia do organizador da edio, segundo a qual seu

    fracasso inicial foi uma questo de estilos de pensamento incompatveis. Com

    efeito, parece que os primeiros resenhadores acusaram Fleck de uma

    minimizao reducionista do papel do cientista. Ele foi censurado por

    negligenciar as personalidades individuais na histria da cincia. Sua anlise

    sociolgica foi descartada por acrescentar pouco quilo que Max Weber j

    havia dito. No todo, foi criticado por toda sua mensagem global e no porquaisquer elementos incidentais. O vigoroso apelo que fez a favor da

    epistemologia sociolgica e comparativa foi rejeitado. Os organizadores das

    edies de seus livros acreditam que os tempos mudaram e que agora ocorreu

    uma mudana decisiva no estilo de pensamento.

    Existe certamente um novo interesse por distintos estilos de raciocnio

    na histria da cincia. Galileu introduziu um novo estilo de pensamento que

    tomou impossveis antigas indagaes. O captulo "Language, Truth andReason" ("Linguagem, Verdade e Razo"), de Ian Hacking (1982), resenha

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    rapidamente inmeros ensaios recentes e influentes na histria da cincia

    sobre "novos modos de raciocnio que tm incio e trajetrias especficas de

    desenvolvimento" (p. 51). Na maioria dos casos, entretanto, a tendncia

    interessar-se pelo estilo de pensamento e no por sua relao com o

    pensamento coletivo. Se a mudana de direo, em Fleck, for criativa, ela no

    dever separar estilo de pensamento de coletividade de pensamento, o que,

    mais uma vez, levaria ao fracasso da parte sociolgica do . empreendimento.

    Thomas Kuhn foi o primeiro desde 1937 a chamar ateno para o livro

    de Fleck, fazendo uma referncia a ele (Kuhn 1962). Em seu prefcio

    traduo inglesa, ele exprime certas hesitaes que ainda sero amplamente

    compartilhadas. A posio de Fleck, afirmou, no est livre de problemas

    fundamentais.

    (...) para mim eles se agrupam, conforme aconteceu na primeira leitura,em tomo do conceito de uma coletividade de pensamento (...) Consideroeste conceito intrinsecamente equivocado e uma fonte permanente detenso no texto de Fleck. Colocado de maneira resumida, a coletividadede pensamento parece funcionar como a mente individual em largaescala, pelo fato de muitas pessoas o possurem (ou serem possudaspor ele). Com o intuito de explicar sua aparente autoridade legislativa,

    FIeck recorre repetidamente a termos emprestados do discurso sobre osindivduos (Kuhn 1979, p. X).

    Resumindo: pensamento e sentimento so para as pessoas, enquanto

    indivduos. Pode, entretanto, um grupo social pensar ou sentir? Este o

    paradoxo central, incongruente. Kuhn aprecia no livro de Fleck inmeras

    percepes, mas no a principal argumentao deste autor. Ao rejeit-la, Kuhn

    compartilha um certo mal-estar com muitos liberais. A filosofia da justia de

    John Rawls fundamenta-se em total individualismo; na sua opinio, "asociedade constitui um todo orgnico, com vida prpria, distinta e superior

    vida de todos seus membros em suas relaes mtuas" (Rawls 1971, p. 264).

    verdade que existem agora vrios movimentos de idias em cuja

    direo Fleck apontava com tamanha premncia. Por exemplo, podemos lidar

    mais facilmente com termos desconfortveis. Os tradutores refletiam e

    rejeitavam vrias alternativas para o termo denkkollectiv: "escola de

    pensamento" ou "comunidade cognitiva", antes de adotarem a traduo literal,"coletividade de pensamento". Agora, porm, o termo "universo" adquiriu um

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    sentido apropriado, embora universo (incluindo os universos distinguveis da

    teologia, da antropologia e da cincia), no lugar de coletividade de

    pensamento, seria um termo fiel ao conceito essencial de Fleck, ligando-o

    apropriadamente s obras Ways of Worldmaking, de Goodman (1978), e a Art

    Worlds, de Becker (1982). O tema de Fleck era a descoberta cientfica, o de

    Becker, a criatividade artstica, e o de Goodman, a cognio em geral.

    Cada um desses pensadores muito independentes tem notvel afinidade

    com os demais. Becker insiste que o esforo coletivo produz uma obra de arte,

    embora ela seja atribuda a determinado artista. Inclui no universo da arte,

    juntamente com o artista, a colaborao annima dos fornecedores, os

    fabricantes de telas e tintas, os moldureiros, os distribuidores, os designers

    grficos dos catlogos, as galerias e o pblico. um acaso histrico que faz

    com que uma classe de atores no mundo artstico da pintura ocidental seja

    designada individualmente e celebrada como "artistas". Em outros universos,

    em outras pocas e lugares, a coletividade do estdio ou a corporao de

    ofcios sobrepuja a fama do indivduo. Todos os universos da arte dependem

    da existncia de um pblico para a obra de arte. A interao com a solicitao

    do pblico constitui uma parte fundamental e criativa do universo da msica ou

    da pintura. Fleck adotou o mesmo partido, enfatizando o papel da prtica de

    laboratrio e o papel do apoio pblico.

    Se no fosse o insistente clamor da opinio pblica a favor do teste desangue de Wassermann jamais teriam gozado daquele respaldo socialabsolutamente essencial ao desenvolvimento da relao, sua"perfeio tcnica" e acumulao da experincia coletiva. Somente aprtica laboratorial explica com facilidade porque o lcool e,posteriormente, a acetona deveriam ser tentados, alm da gua, tendo

    em vista o preparo do extrato, e porque deveriam ter sido usados rgossaudveis, alm de rgos atingidos pela sfilis. Muitos investigadoresrealizaram essas experincias quase simultaneamente, mas averdadeira autoria se deve coletividade, prtica do trabalhocooperativo e em equipe (FIeck, 1935, p. 77-78).

    Fleck chegou mesmo ao ponto de prescrever o anonimato e a modstia

    a todos os cientistas. Este ideal democrtico pode explicar em parte por que

    ele escolheu o modelo russo de uma fazenda coletiva para descrever os

    universos da cincia.

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    Nelson Goodman coloca que a correo das categorias depende de

    como elas se adequam a um universo. A correo, com o significado de

    adequao ao e adequao a outras categorias, corre paralelamente ao

    conceito de harmonia, elaborado por Fleck, entre elementos pertencentes a um

    estilo de pensamento. Quase se equipara ao conceito de Fleck, segundo o qual

    a verdade, em certo sentido, feita de iluses (frase que perturbava Kuhn). O

    modo pelo qual FIeck explicava a construo da realidade objetiva por meio

    das experincias sociais da coletividade de pensamento est muito prximo da

    explicao de Goodman, segundo a qual a correo se adequa prtica.

    Sem a organizao e a seleo de diferentes espcies, efetuada por

    uma tradio que se desenvolve, no existe correo ou erros decategorizao, validade ou invalidade da referncia indutiva,amostragem representativa ou no-representativa, uniformidade oudisparidade entre as amostragens. Assim, justificar testes tendo em vistaa correo poder consistir basicamente em demonstrar, no que elessejam confiveis, mas que sejam fundamentados (Goodman 1978, pp.138-39).

    Os antroplogos tm empregado modos de pensamento para referir-se aos

    mesmos universos e idias fundamentalmente entrelaados (Horton &

    Finnegan 1973).

    Agora mais fcil empregar as expresses universo da cincia, das

    artes, da msica ou do pensamento no lugar de coletividade de pensamento

    para aquele agrupamento social que definido por seu estilo de pensamento

    prprio, pois invoca os contemporneos laos de apoio ao conceito bsico de

    Fleck.

    O cenrio poder estar bem preparado, mas o programa de Durkheim-

    Fleck relativo sociologia do conhecimento fracassar caso se baseie em um

    erro fundamental. Duas graves objees se levantam contra ele. A primeira

    delas diz respeito a explicaes funcionais imprecisas. A tese central de

    Durkheim, segundo a qual a religio mantm a solidariedade do grupo social,

    uma explicao funcional. FIeck tem sua prpria verso de um circuito

    funcional auto-sustentvel:

    A estrutura geral de uma coletividade de pensamento implica que acomunicao de pensamentoa em uma coletividade,

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    independentemente de contedo ou justificativa lgica, deveria levar, porrazes sociolgicas, corroborao da estrutura de pensamento (Fleck1935. p. 103).

    Ambos eram funcionalistas. Coloca-se uma interrogao: suas argumentacoes

    falham ao no proporcionar os passos lgicos necessrios? Caso contrrio,

    poderia existir uma argumentao funcionalista melhor que justificaria as

    correlaes deles?

    A segunda objeo diz respeito base racional da ao coletiva. Se se

    presume que os indivduos sejam racionais e procurem seu prprio interesse,

    faro alguma vez sacrifcios em benefcio do grupo? E caso eles ajam contra

    seu prprio interesse, que teoria de motivao humana explicaria esse

    comportamento? Durkheim recorre religio para oferecer algumas

    explicaes. Para Fleck, qualquer sistema de conhecimento uma espcie de

    bem pblico, conseqentemente, a prpria religio coloca os mesmos

    problemas. Para ambos, a verdadeira questo a emergncia da prpria

    ordem social. As pginas que se seguem no dizem respeito a quem quer que

    afirme que a ordem social nasce espontaneamente. A teoria da escolha

    racional probe que um engajamento espontneo se incorpore argumentao,

    sob o disfarce da religio. O engajamento que subordina os interesses

    individuais a um todo social mais amplo precisa ser explicado. Para muitos

    leitores de Durkheim, sua argumentao parece apoiar-se demais na religio e

    se, tendo em vista os propsitos da epistemologia sociolgica desses leitores,

    a crena religiosa deve equacionar-se com qualquer outro sistema de

    conhecimento, ento a assertiva de Fleck, segundo a qual um estilo de

    pensamento reina soberano sobre seu universo de pensamentos, tambm

    algo que parece suspeito. Como foi que surgiu essa soberania? isso que ostericos da escolha racional exigem que seja explicado.

    Por outro lado, a teoria da escolha racional apresenta grandes

    limitaes. As pessoas no parecem agir de acordo com os princpios dela

    (Hardin 1982). O programa de Durkheim e Fleck pode dar uma resposta

    crtica funcionalista e crtica da escolha racional apenas quando desenvolve

    uma dupla viso do comportamento social. Uma dessas vises cognitiva: a

    existncia individual de ordem, coerncia e controle da incerteza. A outra viso transacional: a utilidade individual maximiza a atividade descrita em um

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    clculo que envolve o custo-benefcio. Na maior parte deste volume pouco

    diremos a respeito desta ltima viso, que j se encontra muito bem

    representada nos escritos acadmicos. O exemplo mal representado o papel

    desempenhado pela cognio na formao do lao social.

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    DAR UM DESCONTO PEQUENA ESCALA

    As sociedades em pequena escala so diferentes. Muitos daqueles que

    so bem informados sobre a dificuldade de explicar a ao coletiva no bojo da

    teoria da escolha racional contentam-se em abrir excees. A pequena escala

    alarga o campo de ao dos efeitos interpessoais. Todo o campo da psicologia

    localiza-se aqui, juntamente com as emoes irracionais. Quando a escala dasrelaes suficientemente pequena para ser pessoal qualquer coisa pode

    acontecer e a teoria da escolha racional reconhece os limites de seus

    domnios. Em conseqncia, parece no existir um problema terico em

    relao ao altrusmo quando a organizao social muito pequena. Entretanto,

    um exame mais detido revela que isentar as sociedades de pequena escala da

    fora da anlise racional algo que no resiste bem a lima crtica. Elas no

    podem ser mais isentas do que as organizaes religiosas. O objetivo destecaptulo ampliar os argumentos da escolha racional, de tal modo a abrir

    aquelas reas interditas onde no se supe que a teoria penetre. Ento a teoria

    se desnuda. Ela enfrentar inelutavelmente dificuldades agudas que no

    podem ser escamoteadas tomando como referncia a escala ou fatores

    religiosos, emocionais ou irracionais. Este passo necessrio para se

    confrontar o registro emprico inoportuno. Sabemos que os indivduos

    submetem seus interesses particulares ao bem dos outros, que o

    comportamento altrusta pode ser observado, que os grupos exercem uma

    influncia sobre o pensamento de seus membros e at mesmo desenvolvem

    estilos de pensamento distintos. Sabemos isso sem dispormos de uma teoria

    do comportamento que leve tal fato em conta.

    Na seqncia aplicaremos a anlise da ao coletiva, realizada por

    Mancur Olson, s questes habitualmente disfaradas pelos efeitos da escala.

    Em The Logic Of Collective Action(1965), Olson parte da teoria econmica dos

    bens pblicos, mas termina por uma teoria geral da ao coletiva. Os bens

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    pblicos constituem um conceito hbrido na teoria econmica. O termo foi

    adaptado para definir gastos governamentais legtimos. Se os impostos foram

    recolhidos para servir objetivos pblicos, estes devem se distinguir dos

    benefcios individuais e ser mantidos sob o controle legislativo pblico. Um bem

    pblico deve beneficiar a todos, conforme ocorre, por exemplo, com o ar no-

    poludo ou, pelo menos, deve ser acessvel a todos, a exemplo de uma auto-

    estrada pblica. Comeando por exemplos escolhidos para ilustrar um

    determinado problema poltico, o conceito se baseou em trs formulaes

    complexas e distintas: primeiro, que o suprimento de um bem no diminudo

    pelo consumo individual; segundo, que um dos lados no pode reivindicar um

    reembolso pelo fato de o ter produzido, j que ele propiciado pela

    coletividade; e terceiro, que nenhum membro da coletividade pode ser excludo

    de seu uso. , essencialmente, um tipo de bem que escapa ao mecanismo dos

    preos e, assim, se esquiva da anlise econmica padro.

    Segundo a formulao geral de Olson, um indivduo que se comporta de

    acordo com o interesse prprio racional no contribuir para o bem coletivo e,

    do mesmo modo, no produzir o benefcio que deseja tendo em vista seu

    prprio interesse. Isto ocorre por dois motivos distintos. Uma argumentao

    depende da natureza dos bens pblicos, dos problemas que surgem da

    necessidade de cooperao para providenci-los e da impossibilidade de

    excluir quem quer que seja de goz-los, uma vez produzidos. A outra

    argumentao depende da diminuio dos retornos para cada pessoa que

    contribuiu para a produo medida que aumenta o nmero de pessoas que

    gozam do produto. O primeiro exemplo muito eloqente. O segundo, baseado

    em efeitos de escala, precisa ser qualificado. Separemos essas duas questes

    e comecemos apreciando o primeiro conjunto de problemas que surgem danatureza dos bens pblicos. Olson argumenta que, na medida em que a

    contribuio dele no for suficiente para produzir o bem coletivo e na medida

    em que, por definio, a produo desses bens depende de muitos

    contribuintes, o clculo racional do indivduo tender a lev-lo a deixar de

    proporcionar qualquer bem. Por um lado, sua prpria contribuio tem

    conseqncias limitadas. Assim como ele pode esperar que a ausncia de seu

    pequeno bolo no far diferena, poder tambm esperar pegar uma caronanas contribuies dos outros. "Pode deixar que fulano faz" o princpio do

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    latente. Enquanto tal, deve convocar um esforo combinado tendo em vista

    uma atividade a curto prazo levantamento de fundos ou protestos , porm

    no muito mais do que isto.

    Olson isentou a organizao religiosa de sua teoria geral. Vinte anos

    mais tarde, entretanto, a iseno da organizao religiosa constitui claramente

    um engano. A histria da religio corrobora sua teoria. Sempre que as

    organizaes religiosas tiveram acesso aos poderes coercitivos ou foram

    capazes de oferecer recompensas seletivas de riqueza ou influncia a seus

    membros mais dedicados, suas religies tiveram uma carreira estvel e

    florescente. E sempre que elas estiveram ausentes, quaisquer que fossem os

    motivos, ocorreu uma histria de frico e cismas contnuos (Douglas &

    Wildavsky 1982). No ajuda nossa compreenso da religio para proteg-la de

    um minucioso exame profano traando em torno dela uma fronteira respeitosa.

    A religio no deveria ser isenta de modo algum.

    Olson tambm se mostra disposto a isentar pequenos grupos das

    implicaes de sua teoria. Ele confere uma influncia decisiva escala da

    organizao (Chamberlin 1982) e espera que suas observaes no se

    apliquem a um determinado ponto de uma escala que decresce. Se as

    comunidades de pequena escala devem ser isentas assim como as

    comunidades religiosas, ento aquilo que Durkl1eim tem a dizer no seria

    relevante, j que baseou sua argumentao em ambas.

    Existe, alm disso, a crena de que em algo denominado "comunidade"

    os indivduos podem colaborar desinteressadamente uns com os outros e

    construir um bem comum. Em uma comunidade como esta as injunes da

    escolha racional no se aplicam. Trata-se de uma idia emotiva

    extraordinariamente vigorosa.Estas isenes aparentemente melhores investigao analtica

    representam um territrio no demarcado pelo qual uma pessoa pode

    perambular conforme lhe agradar. Tal liberdade prejudicial ao projeto de

    Durkheim e de Fleck. As isenes no so de pouca monta ou carecem de

    importncia. Sua aceitao debilita a fora de toda a investigao. Em

    particular, as isenes desviam a ateno do interessante e pessimista

    conceito de Olson relativo ao grupo latente. Ningum que esteja empenhadoem explicar a ao coletiva pode descartar superficialmente os formidveis

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    problemas enfrentados por uma pequena comunidade que tenta continuar

    existindo tal como . Pior ainda identificar as reas isentas da vida social

    como aquelas que so pequenas em escala. Isto implica afirmar que, na poca

    moderna, ela so poucas e carecem de importncia. Porm, esta colocao

    falsa. Estamos falando de coaes sistemticas colaborao, que se aplicam

    a uma extensa gama, que vai da Associao de Pais e Professores local aos

    sindicatos, aos representantes do Poder Legislativo e cooperao

    internacional (Olson 1965, pp. 66-131). vasta a escala dos grupos latentes na

    sociedade; as conseqncias de seu fracasso em se aglutinar so graves.

    Assim, deveramos nos encorajar e entrar naquela reserva toda cercada. A

    essa altura a religio pode ser parcialmente deixada de lado porque por

    demais bvio que a organizao religiosa no constitui exceo ao exemplo

    geral e porque algumas coisas especficas sero ditas sobre a religio e a

    sacralidade em captulos posteriores. Este o ponto em que se devem

    concentrar os efeitos de escala.

    A argumentao falha pode ser expressa da seguinte maneira: a escala

    pequena promove a confiana mtua; a confiana mtua a base da

    comunidade; a maior parte das organizaes, caso no se baseiem em

    benefcios individuais seletivos, tm seu incio sob a forma de comunidades

    pequenas e confiantes. Ento, as caractersticas especiais da comunidade

    resolvem o problema de como a ordem social pode aflorar. Muitos mantm

    que, aps o nascimento inicial, por meio da experincia comunitria, o restante

    da organizao social pode ser explicado pelo complexo entrelaamento de

    sanes e recompensas individuais. O prprio Olson parece adotar esta viso.

    As duas grandes dificuldades em aceit-Ias so de natureza emprica e terica.

    Na prtica, as sociedades de pequena escala no exemplificam a visoidealizada da comunidade. Algumas delas promovem a confiana e outras no.

    Algum j escreveu sobre este tema j viveu alguma vez em uma aldeia? J

    leu romances? J tentou levantar fundos claro que existem comunidades

    bem-sucedidas, mas vai contra o esprito da investigao racional selecionar

    apenas os exemplos que se adequam e negligenciar tantos outros. Pode-se

    indagar se isto uma forma de investigao, uma ideologia ou uma doutrina

    quase religiosa. Ela fornecer um exemplo pertinente de um conjunto de idiasque adquirem sua validade e, portanto, seu poder mais pelos usos

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    reconhecveis, no interior das instituies, do que pela fora da razo. A

    atrao exercida pela comunidade pequena, idealizada, ntima forte na

    retrica poltica.

    Michael Taylor apresenta o mrito especial de ter tratado a ordem social como

    um bem pblico. Ele tambm se inclui entre muitos daqueles que acreditam

    que as comunidades pequenas so uma forma de sociedade na qual o auto-

    interesse racional no impe o desfecho das decises (1982). Contanto que a

    comunidade seja suficientemente pequena e estvel, supe-se que seus

    membros tenham a liberdade de fazer contribuies que eles manteriam em

    aglomeraes maiores e mais fluidas. Esta frmula um tanto imprecisa, pois

    a questo consiste em saber como a comunidade consegue ser estvel. Taylor

    analisou trs espcies de comunidades. Em primeiro lugar, temos as comunas

    modernas (ou comunidades intencionais), estudadas por muitos. Em segundo

    lugar, existem as sociedades camponesas, que geraram toda uma indstria de

    pesquisa acadmica em torno da vida campestre. Seguem-se, finalmente, as

    sociedades tribais de pequena escala, descritas na literatura antropolgica.

    Todos os trs tipos de comunidade possuem uma documentao to vasta,

    variada, repleta de detalhes, que a maior parte dos filsofos, em uma atitude

    compreensvel, a evitam e assim, o conceito segundo o qual as pequenas

    comunidades so isentas da anlise do comportamento racional, tende a

    escapar aos constrangimentos impostos pela crtica.

    Taylor comea localizando a comunidade no extremo, em pequena

    escala, de um continuumde elementos, cada um deles vulnervel ao aumento

    da escala. Assim a comunidade , por definio, pequena, interage face a face

    e multiforme em seus relacionamentos. Em segundo lugar, a participao em

    seus processos de tomada de deciso ampla. Em terceiro lugar, os membrosda comunidade apresentam crenas e valores em comum; seu exemplo mais

    perfeito seria o consenso total. Em quarto lugar, a comunidade se mantm

    enquanto tal devido a uma rede de trocas recprocas.

    Taylor afirma que tais disposies tornam inaplicvel a anlise da

    escolha racional. "Em muitas comunidades de pequena escala no se

    necessita de 'incentivos seletivos' ou de controles; racional cooperar

    voluntariamente na produo do bem pblico da ordem social" (Taylor 1982, p.94).

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    Deixando de lado essa afirmativa to pouco matizada, segundo a qual

    os indivduos que se beneficiariam do bem pblico na verdade combinam para

    produzi-lo, precisamos saber quais so as etapas de suas negociaes uns

    com os outros. Qualquer ordem social envolve questes controvertidas de

    justia e moral. Taylor supe que elas so resolvidas, em comunidades muito

    pequenas, ao se instituir a igualdade econmica e a ampla participao nos

    negcios pblicos.

    A fim de manter essa posio em relao sociedade tribal, Taylor

    precisaria excluir o governo que opera pelas associaes secretas, panelinhas

    e intrigas, o que equivale a grandes e arbitrrias supresses de seus prprios

    exemplos de comunidade. Alm disso, ele sugere que, em uma comunidade

    real, a coero fsica inexiste. Isto depende do que ele considera coero. A

    menos que se d a este termo um significado muito restrito, seria sensato

    eliminar desta definio muitas sociedades tribais de pequena escala.

    verdade que em muitos bandos errantes de caadores, a igualdade e a

    participao esto bem exemplificadas. Nesses bandos, porm, no

    especificamente a escala diminuta, mas outros fatores, que criam as condies

    favorveis para uma vida comunitria no-coercitiva. A disperso da

    populao, a abundncia de recursos destinados a satisfazer as necessidades

    em um nvel baixo e a fcil movimentao entre os bandos de caadores

    permite que o conflito se tome difuso graas separao (Service 1966; Lee &

    DeVore 1968). Muito provavelmente so estas as condies que a teoria de

    Olson espera que os grupos latentes apresentem com abundncia: o indivduo

    no tem muito a ganhar ou a perder permanecendo com o grupo; sua lealdade

    muda facilmente e ele resiste prontamente a qualquer tentativa de coero,

    ameaando cindir-se. O baixo nvel do dispndio de energia por parte dessesgrupos e o baixo grau em que sua existncia pressionou os recursos do meio

    ambiente sugere que, pelo menos, seja corroborada a tese, segundo a qual,

    quando as condies so favorveis ao indivduo, no se obtm muita coisa

    em termos de colaborao.

    David Hume afirmou que o problema da ao coletiva pode ser melhor

    resolvido em comunidades muito pequenas, j que elas possuem muito pouca

    coisa que seja objeto de disputas. Isto tambm marca um ponto a favor deoutro argumento: as comunidades pequenas fracassaram ao criar evidncias

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    muito visveis de um benefcio coletivo. Quando nos distanciamos do exemplo

    especial dos bandos de caadores, outras comunidades em pequena escala

    no so visivelmente bem-sucedidas ao criar uma ordem social que proteja

    efetivamente as poucas pessoas e seus modestos haveres.

    Na perspectiva da antropologia, os fatores favorveis tm menos a ver com a

    escala e mais com a proporo da populao que tem acesso aos recursos,

    juntamente com a possibilidade de satisfazer necessidades sem obrigar

    algum a executar aquele tipo de trabalho rduo, montono e contnuo que

    tenta alguns a coagir outros a prestar servio. Seria, entretanto, um grande erro

    qualificar essas comunidades como grupos latentes no sentido empregado por

    Olson. Elas, na verdade, constituem comunidades morais, persistentes e

    verdadeiras. Est ocorrendo algo que no desafia a anlise e nada tem a ver

    com a escala, mas que deixado de lado devido falsa plausibilidade dos

    efeitos da escala.

    Suponhamos que uma forma de ordem social tenha se realizado de

    certa forma; ento, no segundo estgio, Michael enumera quatro maneiras

    pelas quais a comunidade trabalha para manter essa ordem. Muitos outros

    escritores aderiram a essa lista. Nenhuma dessas formas constitui um exemplo

    convincente. A primeira dessas supostas formas extra-racionais de controle

    social se apia em ameaas e ofertas. Elas no passam de apelos ao interesse

    prprio do indivduo, Este processo , com efeito, muito bem documentado

    pelos antroplogos, porm sua anlise por demais compatvel com a teoria

    predominante da escolha racional para poder isentar as pequenas

    comunidades de seu vigor.

    A socializao o segundo modo pelo qual se afirma, com freqnIcia,

    que a ordem social mantida. Os adultos so expostos ao vexame pblico e ascrianas passam por iniciaes dolorosas que as ensinam a tomar as atitudes

    corretas. Podemos, entretanto, imaginar como os pais so induzidos a deixar

    seus filhos passar por esses tormentos e indignidades, que fazem parte de um

    padro. As sanes coletivas so uma forma de ao coletiva. Retrair-se do

    processo da socializao outra maneira de no cooperar. O que acontece

    quando uma me alega que seu filhinho por demais sensvel ou

    excessivamente jovem? O que a impede de afastar seu filho e todas as outrasmes de afastar os seus, por meio de uma ao precipitada, que os subtrai

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    socializao? A resposta est em seu compromisso com determinada ordem

    social. Mas no essa escolha coletiva o que estamos tentando explicar?

    A terceira maneira pela qual a ordem social presumivelmente mantida

    nas sociedades primitivas se d pelas caractersticas estruturais daquelas

    sociedades. Trata-se de uma questo sutil. Essas caractersticas no

    constituem mecanismos especficos de controle social; no podem ser

    separadas daquilo que controlado, mas fornecem uma estrutura para os

    controles sociais. Elas so, essencialmente, os padres de reciprocidade,

    parentesco e casamento. Entretanto, tais padres de troca constituem a

    articulao da ordem social que, em si, apenas uma articulao do

    comportamento; assim, o argumento circular. Pode ser salvo unicamente por

    uma presuno funcionalista explcita de um sistema de atividades interligadas

    que mantm a si mesmo.

    A caracterstica mais amplamente demonstrada da sociedade primitiva

    que, segundo se diz, mantm a ordem social, a crena nas sanes

    sobrenaturais como o medo bruxaria, feitiaria ou aos ancestrais punitivos,

    Se outros argumentos falham e se essas crenas carregam o principal fardo

    naquele exemplo que separa a comunidade do resto do mundo, ento toda a

    argumentao submeteu-se a fatores irracionais, Ou a criao da comunidade

    algo que apenas os primitivos podem fazer graas a suas crenas

    supersticiosas na bruxaria e nos ancestrais, ou tais crenas precisam ser

    generalizadas de um modo que tambm se aplique sociedade moderna.

    A interpretao antropolgica ortodoxa, que foi aceita durante toda a

    dcada de 1960, assumiu um modelo auto-estabilizador, no qual cada item da

    crena exerce seu papel na manuteno da ordem social. Entretanto, algumas

    sublevaes interessantes neste ltimo quarto de sculo lanaram dvidassobre a existncia de tendncias que contribuem para o equilbrio nas

    sociedades estudadas pelos antroplogos. Um fator o desenvolvimento

    terico do tema e o modo como ele lida com novas descobertas. Entre estas, a

    mais relevante o crescimento da antropologia marxista crtica, cujo

    materialismo histrico rejeita a nfase homoesttica da gerao anterior

    (Abramson 1974; Bailey & LIobera 1981; Sahlins 1976; Terray 1969). Outro

    fator importante o fim do colonialismo. Ainda outro o desenvolvimento dapesquisa de campo na Nova Guin, pas que no havia sido colonizado antes

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    da pesquisa antropolgica. Agora possvel pr-se de lado e avaliar o efeito do

    governo colonial sobre todos os incentivos individuais e sobre o emprego da

    fora.

    claro que nas condies coloniais costumava ser mais fcil imaginar

    uma comunidade no-coercitiva. J no se permitia mais s populaes

    sujeitas ao poder colonial prosseguir seu lucrativo trfico de armas, marfim e

    escravos. Tambm no Ihes era mais possvel competir pela glria na caada

    s cabeas humanas, nas ousadas expedies para o roubo do gado, j no

    podiam mais estender armadilhas, roubar esposas ou executar vinganas

    violentas. Na economia colonial, em que o nico incentivo econmico ao

    trabalho era um baixo rendimento proveniente dos pagamentos vista pelas

    colheitas, era fcil supor que a comunidade original no havia oferecido

    incentivos individuais ao lucro. Os registros antropolgicos atuais, mais

    sofisticados, mostram essas sociedades em pequena escala numa posio

    jamais esttica ou auto-estabilizadora, mas sendo continuamente estruturadas

    por um processo de negociaes e trocas racionais. As categorias do discurso

    poltico, as bases cognitivas da ordem social so negociadas. Em qualquer

    momento desse processo em que o antroplogo acione sua mquina

    fotogrfica e ligue seu gravador, habitualmente, conseguir registrar alguns

    equilbrios temporrios de satisfao, quando o indivduo se encontra

    momentaneamente constrangido por outros e pelo ambiente que o cerca. A

    anlise de custo-benefcio individual aplicava-se inexorvel e

    esclarecedoramente menor das microtrocas, no que se refere tanto a eles

    quanto a ns. Os antroplogos testam mutuamente a credibilidade dos relatos

    etnogrficos examinando de perto o que eles relatam sobre o equilbrio das

    trocas recprocas. As evidncias obtidas demolem o exemplo de princpiosextra-racionais que produzem uma comunidade, em um ponto no especificado

    de uma escala que diminui. E quando eles fazem ameaas e oferendas que os

    indivduos invocam com freqncia o poder dos fetiches, dos fantasmas e dos

    bruxos e bruxas para atender suas solicitaes. A cosmologia resultante no

    forma um conjunto separado de controles sociais. Na obra de Durkheim todo o

    sistema de conhecimento visto como um bem coletivo que a comunidade

    est em conjunto. este processo que precisamos enfocar particularmente nosprximos captulos.

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    A esta altura o conceito comum de uma comunidade anrquica utpica

    pode ser deixado de lado como uma iluso acalentada. A evidncia

    antropolgica, obtida de sociedades de pequena escala, apia a vasta

    extenso da principal tese de Mancur Olson, segundo a qual, os indivduos so

    facilmente desencorajados de contribuir para o bem coletivo. Tal tese no

    sustenta o ponto de vista desse autor, o qual afirma que a escala o fator

    principal. Qualquer tentativa no sentido de investigar as bases da ordem social

    faz emergir as bases paradoxais do pensamento. A esse nvel de abstrao

    no a circularidade auto-referencial que est errada. Ao acreditar nos efeitos

    da escala, a argumentao foi derrotada. Ela deixou de dar aquele passo lgico

    anterior que questionaria como nascem os sistemas de conhecimento. H

    muito boas razes para acreditar que a teoria de escolha racional inadequada

    para explicar o comportamento poltico, Ocorre algo nos negcios cvicos que a

    teoria da escolha natural no apreende. De acordo com a posio de Durkheim

    e Fleck, o erro ter ignorado o problema epistemolgico. Em vez de supor que

    um sistema de conhecimento passa a existir mais fcil e naturalmente, a

    abordagem desses autores amplia o ceticismo quanto possibilidade de um

    conhecimento e de crenas compartilhados. Esta dvida mais abrangente

    sobre as bases da comunidade indica o caminho para uma resposta.

    3

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    COMO OS GRUPOS LATENTES SOBREVIVEM

    Se a escala diminuta no d conta da origem das comunidades

    cooperativas, talvez algo mais o faa. Para explicar o fato, sem apoiar

    explicitamente a abordagem funcionalista intrnseca s colocaes de

    Durkheim e de Fleck, vrias sugestes psicolgicas e sociolgicas foram

    apresentadas. Entretanto, as explicaes psicolgicas precisam ser rejeitadas

    caso ultrapassem os quadros axiomticos nos quais o problema se coloca.Assim, podemos descartar qualquer invocao de processos que encorajem o

    auto-sacrifcio, pois isto satisfaz a necessidade psquica de manter a auto-

    estima ou proporciona o prazer de dar prazer aos outros. Estas satisfaes

    psquicas em seu funcionamento no so suficientemente confiveis para

    carregar o peso da explicao. Se algumas vezes funcionam e algumas vezes

    no, a interrogao retrocede e ento indaga-se o que desencadeia as

    vigorosas atitudes emocionais pblicas.

    Outra forma de explicao coletiva faz com que a ao coletiva dependa

    do complexo entrelaamento das mltiplas trocas recprocas, diretas e

    indiretas. De acordo com a forma forte desta explicao, o indivduo racional

    est atado a um complexo conjunto de relaes, nas quais precisa agir munido

    de confiana j que no lhe resta alternativa. Na forma fraca, ele tem alguma

    escolha e se escolher no cooperar acabar estragando o espetculo. Surge

    ento a reao: as sanes sociais sero aplicadas a fim de penalizar o

    comportamento no-cooperativo. No entanto, aplicar sanes, conforme vimos

    no exemplo das sociedades de pequena escala, uma forma de ao coletiva

    e necessita igualmente de uma explicao.

    A objeo forma forte nasce do conceito de algum que se encontra

    em uma situao em que a escolha no possvel. Claro que possvel, e at

    mesmo acontece com freqncia, que uma pessoa se encontre sob uma

    coe