14_Cultura e Psicanálise_Hebert Marcuse
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8/19/2019 14_Cultura e Psicanálise_Hebert Marcuse
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Herbert Marcuse
Cultura e Psicanálise
Seleção Isabel Loureiro
Tradução
WolfgangLeoMaar
Robespierre de Oliveira. , ~ \ ~ : ; ,~ e 1 ~ E
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ffiP Z E TERRA
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© by Paz e TerraEditores responsáveis: Maria Elisa Cevasco e Katia Buffolo
Editora convidada: Isabel LoureiroProdução gráfica: Katia Halbe
Capa: Isabel Carballo
CIP-Brasil. Catalogação na FonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Marcuse, HerbertCultura e Psicanálise Herbert Marcuse; tradução de
Wolfgang Leo Maar, Robespierre de Oliveira, Isabel Loureiro.- São Paulo : Paz e Terra, 200 I.
ISBN 85-219-0394-4
I Cultura. 2 Sociologia. 3. Teoria crítica. 4. Frankfurt,Escola de sociologia. I Título. II. Série.
01-0900 CDU 306CDU 316.7
EDITORA PAZ E TERRA S/ARua do Triunfo, 177
Santa Efigênia, São Paulo, SP CEP: 01212-0 10Te .: O 11) 223-6522
E-mail: [email protected] e: 'Y.lWw.pazeterra.com. br
2001
Impresso no Brasil
010988
umário
Sobre o aráter afirmativo da cultura ................................ 7
omentáriospara uma redefinição da cultura .... .. .......... ... 7 8
A noção deprogresso à luz da psicanálise ......................... 1 1 2
Nota bibliográfica 139
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obre o caráter afirmativo d cultura
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A doutrina segundo a qual todo conhecimento se refe
re em seu sentido à práxis era um elemento nuclear da
filosofia antiga. Aristóteles pensava que s verdades conhe
cidas deveriam gui ar a práxis, seja na experiência cotidiana,seja nas artes e ciências . Em sua luta pel a existência Dasein )
os homens necessitam do esforço do conhecimento daprocura da verdade porque não encontram revelado de
imediato o que é bom, just o e benéfico para eles. O artesãoe o comerciante, o capitão de navio e o médico, o general e
o es t ad i s t a - todos precisam dispor do saber apropriadoem seu campo para poder agir de acordo com o que exigea situação em sua contínua mudança.
Ao insistir no ca ráter prático de todo conhecimento ,
Aristóteles estabelecia uma diferenciação importante entr e
os conhecimentos. Ele os organizava como tais em uma
hierarquia, cuja posição inferior é ocupada pelo sab er orien
tado aos fins relativos às coisas necessária s à exi stência coti-
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diana e em cuja posição suprema está o conhecimento filosó-fico, que não existe para nenhum fim exterior a ele próprio,
mas somente por causa de si mesmo e que deve propor
cionar aos homens a felicidade máxima. No âmbito dessa
ordem encontra-se uma distinção fundamental: entre o ne
cessário e útil, por um lado, e o belo , por outro. A vida
em seu conjunto é também dividida entre ócio e trabalho e
guerra e paz, e as atividades são divididas em necessárias e
úteis e em belas '? Na medida em que essa dist inção não forquestionada, na medida em que a teoria pura se con
solida com s outros âmbitos do belo em uma atividade
autônoma ao lado e acima das outras atividades, desaparece
a pretensão originária da filosofia: de constituir a práxis em
conformidadeàs verdades conhecidas. A separação entre o
útil e necessário do belo e da fruição constitui o início de
um desenvolvimento que, por um lado, abre a perspectiva
para o materialismo da práxis burguesa, e por outro, para oenquadramento da felicidade e do espírito num plano àparte da cultura .
Existe um tema recorrente na fundamentação que seapresenta ao se remeter o conhecimento supremo e o prazer
supremo à teoria pura e desprovida de finalidade: o mundodo necessário, da provisão cotidiana da vida, é inconstante,inseguro e não l i v r essencialmente e não só de fato.
Dispor sobre os bens materiais nunca constitui inteiramen-
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te obra da sabedoria e da labori osidade humanas; eles seencontram sob o domínio do acaso. O indivíduo que colo-
ca seu objetivo supremo, sua felicidade , nesses bens se con-
verte em escravo de homens e de coisas que se subtraem a
seu poder: renuncia à sua lib e rd ade . Riqueza e bem-e star
não são alcançados e mantidos por sua decisão autônoma,
mas devido aos favores mutáveis de relações imprevisíveis.
Portanto os homens subordinam sua existência a um fim
em seu exterior. Que um fim exterior por si só já atrofi e e
escravize os homens , implica o pre ssupos to de uma ordem
perversa das condições materiai s de vida, cuja reprodução
é regulada pela anarquia de interesse s soc iais opostos e ntre
si, uma ordem em que a manutenção da existência gera l
não coincide com a felicidade e a liberdade dos indivíduos.
Na medida em que a filosofia se preocupa com a felicidade
dos h o m n s e a teoria da Antigüidade clássica insiste na
eudemonia como o bem s u p r m o , ela não pode encon -
trá-la na constituição material vigente da vida: ela preci sa
transcender a faticidade desta .
Essa transcendência ating e, junto com a metafí sica, a
teoria do conhecimen to e a ética, também a psicologia. D a
mesma maneira que o mundo exter ior à alma, tamb ém aalma humana se articula em um plano inferior e um plan o
superior; entre os pólos da sensibilidade Sinnlichkeit) 3
e da razão se desenrola a histó ria da alma . A desvalorização
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da sensibilidade ocorre pelos mesmos motivos que a do
mundo material: porque é um plano da anarquia, dainconstância, da não liberdade. O prazer sensível sinnlicheLust) não é perverso em si; ele é perverso p o r q u comoas atividades inferiores dos h o m n s se realiza numa
ordem má. Os setores inferiores da alma prendem os homens à ganância e à possessão, compra e venda; ele é impelido a não se empenhar por mais nada a não ser porpropriedade de dinheiro e tudo o que se relaciona à mesma .4 Neste sentido o lado do desejo begehrlich) da alma,voltado ao prazer sensível , seria também caracterizado porPlatão como do amor ao dinheiro , porque os desejosBegierden) deste tipo são satisfeitos preferencialmente por
meio de dinheiro s
Em todas as classificações ontológicas do idealismoantigo se expressa a perversão de uma realidade social emque o conhecimento da verdade sobre a existência humana
já não é assimilado na práxis. Efetivamente, o mundo doverdadeiro, bom e belo é um mundo ideal , na medida
em que se situa além das condições de vida vigentes, alémde uma forma da existência em que a maioria dos homenstrabalha como escravos ou passa sua vida no comércio demercadorias e onde só uma pequena camada tem a possibilidade de se ocupar daquilo que vai além da conquista
e da garantia das necessidades. Na medida em que are-
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produção da vida material se completa sob o domínio daforma mercadoria, renovando continuamente a misériada sociedade de classes, nessa medida o bom, belo e verdadeiro transcende esta vida. E quando sob esta forma se
produz tudo o que é necessário à conservação e à garantiada vida material, o restante naturalmente é supérfluo .Tudo que é propriamente importante para os homens, as
verdades supremas, os bens supremos e as felicidades supremas são um luxo , distanciando-se por um abismo desentido do que é necessário; Aristóteles não ocultaria essasituação. A primeira ciência , em que se conservam também o bem supremo e o prazer supremo, constituí obrado ócio de alguns poucos, cujas necessidades vitais já se
encontram suficientemente providas por outra parte. Ateoria pura é apropriada como profissão por uma elite,
v.edada à maior parte da humanidade mediante férreasbarreiras sociais. Aristóteles não sustentava que o bom,
belo e verdadeiro fossem valores universais e obrigatóriosque deveriam permear e transfigurar partindo do alto
também o plano do necessário, da provisão material davida. Só quando se instala uma tal pretensão se encontraformado o conceito de cultura, que representa uma peçanuclear da práxis e da visão de mundo burguesas. Para ateoria antiga, a valorização superior das verdades que vãoalém do necessário incluía também o socialmente ele-
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vado : trata-se das verdades localizadas nos setores socialmente dominantes Por outro lado a posição de domina-
ção social desses setores seria corroborada pela teoria aomenos na medida em que a preocupação com as verdadessupremas deveria ser sua profissão .
A teoria antiga se encontra com a filosofia aristotélicajustamente no ponto em que o idealismo recua ante as con
tradições sociais, expressando essas contradições com o esta
dos ontológicos. A filosofia de Platão ainda lutava contra aordem de vida da sociedade mercantilista de Atenas. Oidealismo de Platão s encontra imbuído de motivações
de crítica social. Pela perspectiva das idéias, o que aparececomo faticidade é o mundo material, em que os homens eas coisas se defrontam como mercadorias A ordem justada alma seria destruída pela cobiça da riqueza, q ue ocupa
os homens a ponto de não terem mais tempo para nadaalém da preocupação com suas propriedades. O cidadão seempenha nisto com toda sua alma, de modo que pensa emnada além do ganho diário .6 A exigência idealista funda-
mental consistepropriamente
em que essemundo m t e r i ~ l
seja transformado e aper'feiçoado conforme as verdad es
adquiridas n o conh eciment o das idéias. A resposta de Platão
a essa exigência é seu programa de uma reorganização da
sociedade. A partir do mesmo se esclarece onde se localizaria a raiz do mal: para os setores dirigentes ele exige a
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supressão da propriedade privada (inclusive de mulheres efilhos) e a proibição do comércio. Contudo o mesmo pro
grama pretende basear e eternizar os conflitos da sociedadede classes nas profundeza s da ess ência humana: enquanto amaioria dos membros do Estado se volta do começo ao timde sua existência ao triste atendimento das necessidadesvitais, a fruição do verdad eiro, bom e belo é prerrogativa deuma elite restrita. Embora Aristóteles ainda conceba a éti
ca finalizando na política, a reorganização da sociedade já
não se encontra no centro de sua filosofia. Na mesma proporção em que ele é mais realista do que Platão, seu id ea
lismo também é mais resignado peránte as tarefas históricasda humanidade . Para ele o verdadeiro filósofo já não é es
sencialmente o verdadeiro estadista. A distância entrefaticidade e idéia aumenrou justamente porque são concebidas de uma maneira mais próxima.· O ferrão do idealismo, a realização da idéia, se perde. A história do ideali smotambém é a história da resignação em face do existente.
Por trás da separação, em termos ontológicos e da teo
ria do conhecimento, entre o mundo dos sentidos e o mundo das idéias, entre a sensibilidade Sinnfichkeit) e a razão
( Vernunjt), entre o necessário e o belo, se encontra além darejeição simultaneamente também o alívio de uma má forma histórica da existência. O mundo material (aqui significando as diversas figuras do membro de sta relação que
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em cada caso é inferio r ) em si é apenas simples matéria,simples possibilidades muito mais próximas do não-ser doque do ser e se converte em realidade unicamente quandoparticipa do mundo superior . Em todas as suas configurações o mundo material permanece sendo matéria,material Stojf) para algo distinto e que lhe confere valor.Toda verdade, bondade e beleza só pode lhe advir doalto : por graça da idéia. E toda atividade da provisão ma
terial da vida permanece em sua essência não-verdadeira,má e feia. Mas com essas características ela é tão necessáriacomo o material é necessário para a idéia. A miséria dotrabalho escravo, a degradação de hom ens e coisas em mercadorias, a tristeza e vulgaridade em que continuamentese reproduz o conjunto das relações materiais de existênciasituam-se aquém do interesse da filosofia idealista, porqueainda não constituem a realidade efetiva própria que é oobjeto da filosofia. Por causa de sua inegável materialid adeStojflichkoit), a práxis material materiell) seria isentada da
responsabilidade pelo verdadeiro, bom e belo, que, por suavez deveria se conservar na ocupação teórica. O isolamentoontológi co dos valores ideais em relação aos materiais tra nqüiliza o idealismo no que concerne aos processos vitaismateriais. Uma forma histórica determinada da divisãosocial do trabalh o e da estr uturação social de classes se converte p ara ele numa forma metafísica eterna da relação entre o necessário e o belo, a matéria e a idéia.
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Na época burguesa a teoria da relação entre o necessário e o belo, entre trabalho e prazer experime ntou modificações decisivas. Em primeiro lugar desapareceu o modo
de ver segundo o qual a ocupação com os valores supremosseria apropriada como profissão por determinados setoressociais. Em seu lugar surge a tese da universalidade e validade geral da cultura . A teoria antiga afirmara de boa
consciência que a maioria dos homens são obrigados adespender sua existência com a provisão das necessidadesvitais, enquanto uma pequena parcela se dedica ao prazer e
à verdade. Por menos que tenha se modificado a situação, aboa consciência desapareceu. A competição livre confrontaos indivíduos entre si como compradores e vendedores deforça de trabalho. A abstração pura a que os homens sãoreduzidos em suas relações sociais se estende ao relacionamento com os bens ideais. Já não seria verdade que alguns
são de nascença destinados para o trabalho, e outros, para o
ócio, alguns para o necessário, outros, para o belo. Assimcomo a relação de cada indivíduo com o mercado é ime
diata (sem que suas qualidades e necessidades pessoaisadquiram relevância a não ser como mercadorias), tambémé imediata em relação a Deus, imedi ata em relação à beleza,bondade e verdade. Como essências abstratas todos os homens devem partilhar por igual desses valores. Assim comona práxis material o produto se separa do produtor, auto-
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nomizando-se na forma coisificada geral do bem , assim
também na práxis cultural se solidifica a obra, seu con
teúdo, em um valor de validade universal. Conforme
sua essência, a verdade de um juízo filosófico, a bondade
de uma ação moral, a beleza de uma obra de arte devem
afetar a todos, se referir a todos, comprometer a todos. Independente de sexo e origem, sem referência à sua posiçãono processo produtivo, esses indivíduos precisam se su
bordinar aos valores culturais. Precisam assumi-los em sua
vida, facultando-lhes permear e transfigurar sua existência.A cultura fornece a alma à civilização .
Aqui não serão discutidas s diversas tentativas de defi
nir o conceito de cultura. Existe um conceito de cultura
que pode oferecer um instrumento importante para a pes
quisa social porque nele se expressa o entrelaçamento do
espírito com o processo histórico da sociedade. Refere-se
ao todo da vida social, na medida em que tanto os planos
da reprodução ideal (cultura no sentido estrito, o mun
do espiritual ) quanto também da reprodução material
(da civilização ) formam uma unidade historicamentedistinguível e apreensíveU Entretanto há ainda uma outra
utilização bastante difundida do conceito de cultura, em
que o mundo espiritual é retirado do todo social e por essa
via a cultura é elevada a um (falso) coletivo e a uma (falsa)universalidade. Esse segundo conceito de cultura (par-
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ticularmente caracterizado em variantes como cultura
nacional , c ultura germânica ou c ultura romanística )
joga o mundo espiritual contra o mundo material, na
medida em que contrapõe a cultura enquanto reino dos
valores e dos fins autênticos ao mundo social da utilidade e
dos meios. Por seu intermédio a cultura seria diferenciada
da civilização e separada do processo social nos aspectos
sociológicos e relativos aos valores. 8 Esse conceito de cultu
ra surgiu ele próprio no plano de uma configuração histó
rica determinada da cultura, que na seqüência será designada como cultura afirmativa. Cultura afirmativa é aquela
cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu
próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o
mundo espiritual-anímico, como uma esfera de valores au
tônoma, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, universalmente obriga
tório, incondicionalmente confirmado, ete rnamente me
lhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da
luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode
realizar para si a partir do interior , sem transformar aquela realidade de fato. Somente nessa cultura s atividades e
os objetos culturais adquirem sua solenidade elevada cão
acima do cotidiano: sua recepção se converte em ato de
celebração e exaltação.
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Embora a distinção entre civilização e cultura tambémsórecentemente tenhase convertido em recurso terminológicodas ciências humanas, a situação que ela expressa caracterizahá mui to tempo a práxis da vida e a visão demundo da épocaburguesa. Civilização e cultura não éuma mera traduçãoda antiga relação entre o que tem finalidadeZweckmassigem)e o desprovido de finalidadeZwecklosem), o necessário e obelo. Na medida em que o desprovido de finalidade e o belosão interiorizados e convertidos, comas qualidades da universalidade e da beleza sublime, nos valores culturais da burguesia erige-se na culturaum reino de aparente unidade e aparente liberdade, ondeas relações existenciais antagônicas devemser enquadradas e apaziguadas. A cultura reafirma e ocultaasnovas condições sociais de vida.
Para a Antigüidade o mundo do belo além do necessário era essencialmente omundo da felicidade, do prazer.A teoria antiga nãotinha dúvidasquanto a que o objetivopara s homens neste mundo consistia emsua satisfação,sua felicidade. Objetivoú l t m o e não primeiro. Primeiroimporta a luta pela conservação egarantia da mera existência. Devido ao precário desenvolvimento das forçasprodutivas na economia antiga, a filosofianão imaginavaque a prática material alguma vez pudesse ser configuradade modo a que nelaprópria pudessemse desenvolver espaço e tempo para a felicidade. Otemor de procurar a feli-
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cidadesuprema na práxis idealistase encontra no início detodasas doutrinas idealistas:temor perante a insegurançade todas as condições de vida, ante o acaso da perda, dadependência, da miséria, mas também o temor da saciedade,do fastio, da inveja doshomens e dos deuses.Porém otemor em relação à felicidade queconduziu a filosofiaàseparaçãoentre o belo e o necessárioainda mantém de péa exigência de felicidade, inclusiv e nessa esfera separada.A felicidadese converte emâmbito privado para poder semanter.É a fruição maior que ohomem deveencontrar noconhecimento filosófico do verdadeiro, dobom e do belo.Elase caracteriza pelos traços opos tosà faticidade material:ela oferece apermanência na mudança, a pureza noimpu-ro, a liberdade no planoda ausência de liberdade.
O indivíduo abstrato,que com o inícioda época burguesase apresenta como sujeitoda práxis, se converte, atémesmo pela nova formaçãoda frente social,também em
portador de uma nova exigência de felicidade.Não maiscomo representante e delegado de universalidades superiores, mas como individualidadepor si própria, cada indivíduo deve agoratomar em suas próprias mãos o provimento de sua existência, a satisfação de suas exigências,situando-se de modo imediato em relaçãoàsua destinação
Bestimmung), suas finalidades e suas metas, semas mediações feudais sociais, políticas e da Igreja.Na medida em que
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numa tal postulação se confere ao indivíduo um plano maisamplo de exigências e satisfações individuais- plano que
a produção capitalista em expansão começou por preen
cher com cada vez mais objetos de satisfação possível en
quanto mercador ias- nessa medida a libertação burguesado indivíduo significa a possibilidade de uma nova felicidade. A validade universal da mesma seria imediatamente
suprimida uma vez que na produção capitalista a igualdade abstrata dos indivíduos se realiza como desigualdadeconcreta: só uma pequena parte dos homens dispõe do poderde compra necessário para adq uirir as mercadorias exigidas
para assegurar sua felicidade. A igualdade já não se refereàs condições para adquirir os meios. Nos setores do proletariado rural e urbano de que a burguesia dependia em sualuta contra as potências feudais a igualdade abstrata sópodia ter sentido como igualdade efetiva. Para a burguesia
alçada ao poder bastava a igualdade abstrata para fazer aparecer a liberdade individual efetiva e a felicidade indivi
dual efetiva: ela já dispunha das condições materiais quepodiam prover uma tal satisfação. Permanecer no nível da
igualdade abstrata inclusive era parte das condições de seudomínio que seria ameaçado pelo avanço do abstrato emdireção ao concreto. Por outro lado não podia abandonar
o caráter universal da exigência o de se aplic ar a todos os
homen s sem se denunciar a si própria proclamando aber-
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tamente aos setores dominados que com referência àmelhoria das condições de vida tudo permanece como estápara a maioria dos homens; isto podi a ser feito tan to menosquanto a crescente riqueza social tornava a satisfação efetiva
da exigência universal uma possibilidade real e contrastavacom a miséria relativamente crescente dos pobres na cidade
e no campo. Assim a exigência se converte em postulado eseu objeto em uma idéia. A destinação do homem a quemse nega a satisfação universal no mundo material é hipos
tasiada como ideal.
Os grupos da burguesia em ascensão haviam fundamentado sua exigência por uma nova liberdade social mediante a razão humana universal. Confrontavam a crençana eternidade divina de uma ordem restritiva com a suacrença no progresso em um futuro melhor. Contudo razãoe liberdade não extrapolavam o interesse daqueles gruposque se opunha mais e mais ao interesse da maioria. Aosquestionamentos acusadores a burguesia dava uma resposta decisiva: a cultu ra afirmativa. Em seus traços fundamen
tais ela é idealista. Às necessidades do indi víduo isolado ela
responde com a característica humanitária universal; à miséria do corpo com a beleza da alma; à servidão exterior
com a liberdade interior; ao egoísmo brutal com o mundovirtuoso do dever. Se na época do ascenso combativo danova sociedade todas essas idéias poss uíam um caráter pro-
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gressista não restrito à organização vigente da existência
entretanto com a estabilização da dominação burguesa elasse colocam crescentemente a serviço do controle das massasinsatisfeitas e da mera auto-exaltação legitimadora: elas ocultam a atrofia corporal e psíquica do indivíduo.
Porém o idealismo burguês não é somente uma ideologia: ele expressa também uma situação verdadeira. Nãocontém só a legitimação da forma vigente da existênciamas também a dor causada por seu estado; não só a tran
qüilidade em face do que existe mas também a recordaçãodaquilo que poderia existir. Na medida em que a grande
arte burguesa configuraria o sofrimento e o lamento comoeternas forças do mundo romperia o n t i n u m e n t ~no coração dos homens a injustificada resignação em face do cotidiano; na medida em que pintaria abeleza dos homens e
das coisas e um a felicidade extraterrena nas cores brilhantes ·
deste mundo junto com a falsa consolação e à falsa benção também aprofundaria o. anseio autêntico na raiz da vida . ·
burguesa. Quando a dor e o lam ento a penúria e a solidãosão alçados por ela a forças metafísicas quando situa osindivíduos por cima das mediações sociais confrontando-seentre si e com s deuses em pura imediatez anímica nesse .exagero se encontra a verdade superior: que um mundocomo este não pode ser modificado por meio disso ou daquilo mas unicamente mediante o seu desaparecimento.
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A arte burguesa clá ssica distanciou suas figuras ideais a tal
ponto dos acontecimentos cotidianos que s pessoas sofredoras e esperançosas desse cotidiano ó poderiam se reencontrar por meio de um salto a um mundo totalmente outro. Assim a arte nutriu a crença de que toda a história
constitui até hoje apenas a obscura e trágica pré-história da
existência vindoura. E a filosofia tomaria a idéia suficientemente a sério para se preocupar com a sua realização efetiva . O sistema de Hegel é o derradeiro protesto contra adegradação da Idéia: contra o diligente jogo com o espíritocomo um objeto que propriamente nada tem a ver com ahistória humana. Afinal o idealismo sempre sustentou queo materialismo da práxis burgue sa não constitui a palavrafinal e que a humanidade precisa ser conduzida para alémdisto. Ele pertence a um estágio mais avançado do desenvolvimento do que o positivismo tardio que em seu combate às idéias metafísic as não só an u la seu caráter metafísico mas também seus conteúdos vinculando-se inevitavelmente à ordem vige nte.
A cultura deve assumir a preocupação com a exigênciade felicidade dos indivíduos. Mas os antagonis mos sociaisque a fundamentam admitem essa exigência na cultura
somente enquanto interiorizada e racio nalizada. Numa s -
ciedade que se reproduz por meio da concorrência econômica a simples exigênc ia de uma existência feliz do todo
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já representa uma rebelião: remeter os homens à fruição dafelicidade terrena significa certamente não remetê-los aotrabalho na produção, ao lucro , à autoridade daquelas forças econômicas que preservam a vida desse todo. A exigência de felicidade contém um tom perigoso em uma
ordem que resulta em opressão, carência e sacrifício para amaioria. As contradições de uma ordem como esta impelemà idealização dessa exigência . Mas a ve rdadeira satisfaçãodos indivíduos não pode ser enquadrada em uma dinâmicaidealista que reiteradamente adia a satisfação ou desvia a
mesma para aspirar ao nunca alcançado. Ela pode se imporunicamente contr a cultura idealista; somente contr essacultura ela consegue se manifestar como exigência universal. Ela aparece como exigência de uma mudança efetivadas relações materiais de existência, de uma nova vida, deuma nova forma do trabalho e do prazer. Assim ela permanece atuante nos grupos revolucionários qu e desde ofim da Idade Média combatem a nova injustiça que sealastra. E enquanto o idealismo abandona o mundo a ociedade burguesa e torna suas próprias idéias irreais, na
medida em que se satisfaz com o céu e a alma, a filosofiamaterialista leva a sério a preocupação com a f e l i c i ~ a d e
lutando pela sua realização na história . Na filosofiâ da Ilustração esse vínculo fica claro: "A falsa filosofia, como a teologia , pode nos prometer uma felicidade eterna e, embalando-nos em belas quimeras, nos conduzir a ela às custas
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de nossos dias e de nossa fruição . A autêntica filosofia, bemdiferente daquela e mais sábia, só reconhece uma felicidade
, emporal; ela semeia as ro sas e as flores em nos so caminhoe nos ensina a colhê-la s" .9 Também a filosofia ideali stareconhece que está em questão a felicidade das pes soa s
Contudo, em sua controvérsia com o estoicismo, a Ilu stração adota justamente a figura da reivindicação de felicidade incompatível com o ideali smo e à qual a cultura afirmativa não consegue c o r r e s p o n d ~ r :E como ser em os
antiestóicos Estes filósofos são severos, tristes, duros; nós
seremos meigos, contentes e prestativ os . Alma total, elesabstraem seu corpo; corpo total, nós abstrairemos de nossaalma: Eles se revelam inacessívei s à fruição e à dor; nós nosorgulharemos de sentir tanto uma como outra. Direcionadosao sublime, eles se alçam acima de todos os acontecimentose e consideram efetivam en t e pessoas unicamente enquanto cessam de existir. Nós , nós não disporemos daquilo quenos domina; eles não controlarão nossos sentimentos: namedida em que reconhecemos se u domínio e nossa servi-
. dão, procuraremos torná-los agradáveis a nós, na con vicç ão
de que justamente ni sto reside a felicidad e da vida; e fina l-mente nos consideraremos tanto mais felizes quanto maissomos pessoa s ou tanto mais digna a existência quant o maisnós sentimos a natureza, o caráter humanitário e tod as as
virtudes sociais; não reconheceremos quaisquer outros, e
nem uma vida outr a que es ta aqui". 10
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A cultura afirmativa adotou a exigência histórica dalibertação universal do indivíduo com a sua idéia do caráter humanitário puro. Se consideramos a humanidade
tal comb a conhecemos, de acordo com as leis nela existentes, então não conheceremos nada superior ao caráter
humanitário no homem . 11 Nesse conceito deveria se reunir tudo o que fosse direcionado à nobre formação para arazão e a liberdade , aos sentidos e instinto 's refinados, à
saúde mais delicada e mais vigorosa, plenitude e ao do-mínio da terra . 12 Todas as leis e formas de go verno huma-nas deveriam ter apenas a única finalidade: que cada um,sem ser molestado, possa exercitar suas forças e alcançaruma fruição mais bela e mais livre da vida . 13 A suprema
realização dos homens indica em sua efetivação para umacomunidade de pessoas li vres e racionais em que todos sãodotados da mesma possibilidade de desenvolvimento e de
· realização de todas as suas forças. O conceito de pessoa, em
que a luta contra coletividades opressoras permaneceu vivaaté hoje, se dirige a todos os indivíduos, por cima das con-tradições e das convenções sociais. Ninguém dispensa oindivíduo do fardo de sua existência, mas também nin-guém lhe prescreve o que pode e deve f z e r ninguémexceto a lei em seu próprio peito . A natureza quis que
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o homem criasse a partir de si mesmo tudo o que vai alémda disposição mecânica de sua existência animal, não partilhando de nenhuma felicidade ou perfeição senão aquela.por ele gerada para si mesmo, livre do instinto, pela sua
própria razão . 14 Toda riqueza e toda pobreza provêm dele
próprio e se refletem sobre ele próprio. Cada indivíduo se
relaciona de modo imediato consigo próprio, sem a mediação do céu e da terra. Da mesma maneira também se relaciona imediatamente a todo i restante. Essa idéia de pessoaencontrou sua representação mais clara na poesia clássica
a partir de Shakespeare. Em seus dram as as pessoas são tãopróximas entre si que entre elas não há nada por princípio.indizível, inexprimível. O verso torna possível o que já se
tornou impossível na prosa da realidade. Em versos as
pessoas falam das primeiras e derrad eiras coisas, ultrapassando todos os isolamentos e distanciamentos sociais. Ela ssuplantam a solidão de fato na chama das grandes e belas
palavras , ou fazem a própria solidão aparecer em belezametafísica. Criminoso e santo, príncipe e serviçal, sábio e
tolo, rico e pobre se reúnem numa discussão de cujo livretranscorrer deve surgir a verdade. A unidade representadapela arte, o puro caráter humano d'e suas pessoas é irreal;constitui o oposto do que ocorre na realidade social efetiva.A força crítico-revolucionária do ideal, que justamente emsua irrealidade conserva vivos os melhores anseios dos
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homens em meio a uma má realidade, readquire nitideznaquelas épocas em que a traição dos setores saturados em
relação a seus próprios ideais se realiza expressamente. É
claro que o ideal fora concebido de maneira a tornar do
minantes menos os seus caracteres progressistas do que os
reacionários, menos os criticas do que os apologéticos. Sua
realização deveria ser enfrentada pela formação cultural
dos indivíduos. A cultura não se refere tanto a um mundom ~ l h o rporém rriais nobre : um mundo que não resultaria
de uma transformação da ordem material da vida, mas
mediante um acontecimento na alma do indivíduo. O c a
ráter humano se converte num estado interior; liberdade,
bondade, beleza se tornam qualidades da alma: compreen
são para tudo que ·é humano, conhecimento das grandezasde todos os tempos, valorização de tudo que é difícil e
sublime, respeito em face da história em que tudo isto ocor
reu. A ação que fluiria a partir de um tal estado não deveria
ser dirigida contra a ordem estabelecida. Cultura não tem
quem compreende as verdades da humanidade como grito
de combate, mas como postura. Essa po stura implica umsaber se comportar: revelar harmonia e equilíbrio até na
rotina do cotidiano . A cultura deverá perpassar o dado eno
brecendo-o , e não substituindo-o por algo novo. De ssa
maneira eleva o indivíduo sem libertá-lo de sua subordi-
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nação efetiva. Ela fala da dignidade d o" homem sem se
preocupar com um estado efetivamente m ais digno doshomen s A beleza d a cultura é sobretudo uma bele za in te-
rior e pode alcançar o exterior apenas partindo do int er ior.Seu reino é essencialmente um reino d a alma (See e)
Que a cultura diz respeito a valores da alma, isto éconstitutivo para a cultura a firmativa ao meno s desdeHerder. O s valores da alma pertencem à definição da cultura em oposição à mera civilização. Alfred Weber ap enas
deduzas
conseqüências de umafo
rmação con ceitualhá
muito atuante, ao ddl.nir: Cultura( .. ) é meramente o queé expressão da alma, vontade da alma, e com isto expressãoe vontade de uma 'essê ncia' situada por trás de rodo domínio intelectual da existência, uma 'a lma' que em sua ânsia
de expressão e sua vontade nem questiona por finalidadee utilidade . Disto segue o conceito de cultura como arespectiva forma de expressão e de salvação do anímic o na
substância material e espiritual da ex istência dada". 15 A alma
tal como se encontra na base de uma tal concepção é di- .
ferente e mais do que o conjunto de forças e mecanism ospsíquicos (tais como estes são objetos da psicologia empírica): ela deve indicar esse ser n ão -corpóreo do homemcomo a substância propriamente dita do indivíduo.
Desde Descartes o caráter de substância da alma é fundado na peculiarid ade do eu como res cogitam Enquanto
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todo o mundo exterior-ao-eu se converte em matéria porprincípio mensurável e calculável em u m o v i m e n t oo eu
seria a Única dimensão da realidade que se subtrai aoracionalismo materialista da burguesia ascendente. Namedida em que o eu se contrapõe como substância essencialmen te diferen.te ao mundo dos corpos, ocorre uma divisão do eu em dois âmbitos, que é digna de nota. O eucomo sujeito do pensamento mens, espírito) permaneceem auto-assegurada independência do lado de cá do ser damatéria, como o seu a priori, enquanto Descartes procuraria explicar materialisticamente o eu co mo alma anima),como sujeito das paixões (amor e ódio, alegria e tristeza,ciúme, vergonha, arrependimento, gratidão etc.). As paixões da alma seriam atribuídas à circulação do sangue e suamodificação no cérebro. Essa atribuição não seria inteiramente bem-sucedida. Embora todos os movimentos musculares e todas as percepções sensoriais sejam pensadas
como dependentes dos nervos, que provêm do cérebrocomo finos fios ou canais , os nervos eles próprios deveriam conter um ar muito rarefeito, um sopro denominadode espíritos da vida . 6 Apesar desse resíduo ima terial a tendência da interpretação seria inequívoca; o eu seria espírito.(pensamento, cogito me cogitare) ou, na medida em quenão é mero pensamento, cogitatio, não seria mais propriamente eu, mas corpóreo: nesse caso as propriedades e ati-
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vidades que lhe são atribuídas pe rtenceriam à r s extensa. 7
Mas mesmo assim elas não se solucionam inteiramente namatéria. A alma permanece um reino intermédio, fora dedomínio, entre a inabalável certeza de si do pensamentopuro e a certeza físico-matemática do ser material. Aquiloque posteriormente constituiria prop'fiamente a alma: os
sentidos, desejos, instintos e anseios do indivíduo, sai forado sistema já na fase inicial da filosofia da razão. No âmbito da filosofia da razão, a posição da psicologia empírica,a disciplina que efetivamente trataria da alma humana,
·seri a característica: ela ocorre sem poder ser justificada pelaprópria razão. Kant polemizou contra o tratamento da psicologia empírica no plano da metafísica racional (emBaumgarten): ela precisa ser inteiramente banida da metafísica e já à mera idéia desta a exclui intei ramen te . Contudo, ele prossegue: Entretanto, de acordo com o usoescolar, ainda será preciso lhe proporcionar um pequenolugar (embora apenas episodicamente), e isso devido a motivos econômicos, por ainda não ser suficientemente ricapara constituir uma disciplina própria, e ao mesmo tempo·demasiado importante para ser excluída de todo ou incluída em outra parte ( .. ).Assim trata-se meramente deum forasteiro a quem se aloja até que assuma seu própriolugar numa antropologia mais completa 8 Em suas liçõesde metafísica de 1792-93, Kant se manifestaria de modo
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ainda mais cético a respeiro desse forasteir o : É possíveluma psicologia empírica como ciência? Não n o s s o co
. nhecimento da alma é excessivamente restrito . 19
A estranheza da filosofia êl a razão em relação à alma
revela uma situação decisiva. Efetivamente a alma não
participa do processo de trabalho social. O trabalho concreto é reduzido ao trabalho abstrato, que torna possívela troca de produtos do trabalho como mercadorias. A idéia
da alma parece indicar os planos da vida com que a razãoabstrata da práxis burguesa não consegue lidar. A elaboração da matéria é executada por uma parte apenas da res
cogitans: a razão técnica. Iniciando pela Q.ivisão do trabalhonos termos da manufatura e finalizando na indústria mecanizada, as potências espirituais do processo de produção
material se opõem aos produtores imediatos como pro
priedade alheia e poder que os domina . 20 Na medida em
que o pensamento não é imediatamente razão técnica ,desde Descartes ele gradualme nce se separa da vinculaçãoconsciente com a práxis social, mantendo a reificação
( Verdinglichung) por ele próprio promovida. Se nessa práxisas relações humanas aparecem como relações materiais
objetivas sachlich), como leis das próprias coisas Dinge), a
filosofia por sua vez abandona o indivíduo a essa aparênciaSchein), ao se retirar para a constituição transcendental. do
mundo na subjetividade pura. A filosofia transcendental
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não atinge a reificação: ela apenas investiga o processo doconhecimento do mundo já reificado.
A alma não é atingida pela dicotomia entre res cogitame res extensa: ela não pode ser apreendida nem como mera
res cogitans, nem como mera res ex t ens a Kant destruiu a
psicologia racional sem alcan çar a psicologi a empírica. EmHegel qualquer determinação singular da alma é apreendida a partir do espírito, em que se tran sforma como sefora sua verdade. Para Hegel a alma se caracteriza essencialmente por ainda não ser espírito . 2 1 On d e no âmbito desua doutrina do espírito subjetivo, se trat a da psicologia ,portanto da alma humana, o conceit o referencial
Leitbegriff) não é mais a alma, mas o espírito. Hegel seocupa da alma principalmente na antropologia , onde ainda se encontra completamente vinculada às determin a
ções naturais Y Aqui Hegel examina a vi da planetária ge
ral , as diferenças raciais naturais, as gerações, o mágico, osonambulismo, as diversas formas de auto-imagenspsicopáticas e e m poucas linhas a alma verdadeira ,
que para ele constitui nada além da transição ao eu da cons
ciência, com o que já se abandonaria a doutrina da alma,
adentrando a fenomenologia do espírito. Portanto, por umaparte, a alma cabe à antropologia fisiológica, e por outraparte, à fenomenologia do espírito: até mesmo no maiorsistema da filosofia da razão burguesa não há espaço para
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a independência da alma. Os objetos próprios da psicologia: sentimentos, instintos, vontade, se apresentam somen
te como formas existenciais do espírito.A cultura afirmativa, entretanto, entende como alma
tudo aquilo que não é espírito: o conceito de alma, inclu
sive, se contrapõe cada vez mais incisivamente ao conceitode espírito. O que se pretende referir como alma perma
nece para sempre inacessível ao espírito lúcido, ao enten
dimento ( Verstand), à investigação empírica dos fatos( ... ).Haveria mais chances de decompor um tema de Beethovencom um bisturi de dissecação ou mediante um ácido, do
que a alma, com s meios do pensamento abstrato . 23 Atra
vés da idéia da alma as faculdades, atividades e propriedades não corporais do homem (conforme a divisão tradicional, sua representação, sua sensibilidade e sua vontade)se riam reunida s numa unidade indivisível- uma unidadeque se mantém manifestamente em todos os comportamentos do indivíduo, passando a constituir sua individualidade.
O conceito de alma típico da cultura afirmativa nãofoi cunhado pela filosofia: as referências a Descartes , Kant
e Hegel deveriam unicamente assinalar o constrangime nto
da filosofia em relação à alma. 4 A idéia de alma encontrariasua primeira expressão positiva na literatura do Renas
cim ento. Nela a alm a seria em primeiro lugar uma parcela '
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inexplorad a do mundo a ser descoberto e fruído, à qualdeveriam se estender aquelas exigências com cujo anúncioa nova sociedade fizera acompanhar o domínio racional domundo através do homem liberto: liberdade e valor próprio Selbstw ert) do indivíduo. A riqueza da alma, da vida
in te rio r , é assim o correlato de riquezas recém-descobertasda vida exterior. O interesse pelas até há pouco tempo negligenciadas situações individuais, únicas, vivas da alma
eraparte do programa de viver sua vida profundamentee até o fim . 5 A preocupação relativa à alma atua sobre acrescente diferenciação das individualidades, e eleva a
consciência da alegria da vida dos homens com um desenvolvimento natural baseado na essência humana .2G Vista
a partir da plenitude da cultura afirmativa, ou seja, mais oumenos p e la p erspectiva dos séculos XVIII e XIX, uma taldemanda da alma parece uma promessa não cumprida. Aidéia do desenvolvimento natural permaneceu; mas elapretende significar sobretudo um desenvolvimento interior. No mundo exterior a alma não consegue medrar livremente. A organização desse mundo por meio do processode trabalho capitalista converteu o desenvolvimento doindivíduo em concorrência econômica e confiou a satis
fação de suas necessidades ao mercado. A cultura afirmativa protesta com a alma contra a reificação, mas termina
sucumbindo a ela mesmo assim. A alma é resguardada como
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único plano da vida ainda não absorvido no processo detrabalho social. A palavra alma fornece aos homens supe
riores um sentimento de sua existência interior, .distinto
de todo real e acontecido, um sentimento bem determi
nado das possibilidades mais secretas e íntimas de sua vida,
seu destino, sua história. N a linguagem de todas s cul
turas, desde s mais remotas, ela constitui um símbolo em
que se engloba o que não é mundo Y E nessa qua l i dade
n e g t i v ela se torna, assim, a única ainda imaculada
garantia dos ideais burgueses. A alma glorifica a resigna
ção. Superando todas as diferenças naturais e sociais, ·O
que importa afinal é o homem, particular, insubstituível;
entre os homens deve existir verdade, bondade e justiça;
todas s fragilidades humanas devem ser expiadas pelo puro
humanitarismo: um ideal assim, numa sociedade deter
minada pela lei do valor da economia, só pode ser repre
sentado pela alma e como acontecimento anímico. Somente
da alma pura pode partir a salvação. Todo o resto é desu
mano, desprovido de crédito. A alma sozinha evidente
mente não tem valor de troca. O valor da alma não é incor
porado nela de modo a se consolidar em seu corpo como
objeto que pode se converter em mercadoria. Há uma bela
alma num corpo feio, uma alma saudável num corpo doen
te, uma alma nobre num corpo m e s q u i n h o - e vice-versa.
Existe um cerne de verdade na afirmação segundo a qual o
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que acontece com o corpo não pode afetar a alma. Mas estaverdade assumiu uma forma terrível na ordem vigente. A
liberdade da alma foi utilizada para desculpar miséria ,
martírio e servidão. Ela serviu para .submeter ideologi
camente a existência à economia do capitalismo. Porém,
apreendida corretamente a liberdade da alma não aponta
para a participação do homem num além-eterno, onde
.por fim de tudo se resolve quando o indivíduo já não usu
frui de nada. Ao contrário, ela pressupõe aquela verdade
superior segundo a qual nesse mundo é possível uma forma
da existência social em que a economia não decide acercade roda a vida dos indivíduos. O homem não vive apenas
de pão: uma verdade como esta não se esgota pela falsa
interpretação de que o alimento espiritual é um substituto
suficiente para a falta de pão.
Assim como a alma parece escapar à lei do valor, também parece escapar à reificação. Quase seria possível defini
la como caracterizada por dis solver e su p e rar em relações
humanas todas s relações reificadas . A alma patro c ina
uma comunidade interior abrangeme o s homens , dedu
ração secular. O primeiro pensam e nto na primeira alma
humana se vincula ao derradeiro pensamento na derra
deira alma humana . 28 A desigualdade e a ausência deliberdade da concorrência cotidi a na são unificadas pela
formação da alma e a grandeza da alma no reino da cultura ,
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em que os indivíduos participam como seres Wesen) livrese iguais. Quem olha para a alma enxerga os próprios ho
mens através das relações econômicas. Onde a alma fala,se transce nde a posição e valorização acidental dos homensno processo social. O amor rompe as barreiras entre rico epobre, superior e inferior. A amizade se mantém fiel mesmo para os banidos e desprezados, e a verdade ergue sua
voz até mesmo pera nte o trono do tirano. A alma prosperano interior do indivíduo apesar de todos os obstáculos edesvios: o menor dos espaços vitais é suficie ntement e grande para poder se estender ao in finito plano das almas. N esses termos a cultura afirmativa em seu período clássico continuamente celebrou a alma.
Inicialmente a alma do indivíduo seria separada doseu corpo. Quando ela é assumida co mo o âmbito decisivo
da vida, isto pode ter dois significados: por um lado umaliberação dos sentidos Sinnlichkeit) enquanto âmbito
irrelevante da vida), ou, por outro, uma subordinação dossentidos à dominação da alma. A cultura afirmativa claramente trilhou a segunda alternativa. A liberação dossentidos seria a liberação da fruição Genuss). Ela pressupõea ausência da má consciência e uma possibilidad e real desatisfação. Na sociedade burguesa ela seria confrontada
crescentemente com a necessidade de disciplinar as massas
insatisfeitas. A interiorização da fruição por meio da alma
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se tornaria uma das tarefas decisivas da educação cultural.Na medida em que os sentidos seriam internalizados nos
acontecimento s da alma, eles deveriam ser domado s e transfigurados. Da conexão entre os sentidos Sinnlichkeit) e a
alma seria gerada a idéia burguesa do amor.A sobreposição da alma aos sentidos funde a matéria
com o céu, a morte com a eternidade. Quanto mais se debilita a crença no além-celestial, tanto mais vigorosa é a
celebração do além d a alma. Na idéia do amor se assumiu oanseio pela constância da felicidade terrena, pela benção da
independência, pela superação do fim. Os amantes da poesia burguesa amam contra a volubilidade cotidiana, contraas imposições do realismo, contra a subserviência do ind ivíduo, contra a morte. Ela não provém de fora: ela prové mdo próprio amor. A libertação do indivíduo se efetivou
numa sociedade erigida sobre a oposição de interesses dos
indivíduos, e não sobre a solidariedade. O indivíduo é considerado uma mônada independente e auto-suficiente. Sua
relação com o mundo humano e extra-humano) ou abstrata e imed ia t a - o indivíduo constitui o mundo já em si
mesmo como um eu dotado de conhecimento, sentidos evon tade ) - ou abstrata e m e d i a t a - é determinada pelasleis cegas da produção de mercadorias e do mercado. Emambos os casos o isolamento do indivíduo enquantomônada não seria superado. Sua superação representaria a
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produção de urna solidariedade efetiva; ela pressupõe a u ~
peração da sociedade individualista em urna forma s u p e ~
rior de existên cia social.Mas a idéia do amor exige a superaçã o individual do
isolamento da rnônada. Ela quer a entrega gratificante daindividualidade à solidariedade incondicional de pessoa apessoa. A urna sociedade em que o prin ipium i n d i v i ~
duationis princípio de individuação) está no conflito de
interesses, essa entrega plena aparece de modo puro s o ~
mente na morte. Pois somente a morte elimina todos q u e ~
les condicionantes externos que destróern urna s o l i d r i e ~dade duradoura, na luta com os quais os indivíduos sedes-gastam. Ela não aparece corno o fim da existência no nada,mas sim corno a única possibilidade de efetivação plena doamor e, justamente por essa via, corno seu sentido maisprofundo.
Ao mesmo tempo em que na arte o amor seria alçado
à tragédia, no cotidiano burguês ameaça se converter meramente em obrigação e hábito. O amor contém em si o
princípio individualista da nova sociedade: ele exige ex
clusividade. Urna tal exclusividade aparece na exigência dafidelidade incondicional, que a partir da alma devetarn-
bérn tornar-se obrigatória para s sentidos Sinnlic:hkeit).Mas esta atribuição da alma aos sentidos Beseelung derSinnlichkeit) exige destes algo que são incapazes de ofere-
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cer: eles devem ser subtraíd os à diversificação e à mudançae incorporados à unidade e à indivisibilidade da pessoaPerson). Justarnente nesse ponto deveria existir urna har
monia preestabelecida entre interior idade e exterioridade,
possibilidade e realidade efetiva, que justamente por todaparte se encontra destruída pelo princípio anárquico dasociedade. Essa contradição torna inverídica a fidelidadeexclusiva e atrofia os sentidos, que encontram urna saída
na mesquinhez furtiva do pequeno-burguês.s relações privadas corno o amor e a amizade seriam as
únicas em que o domínio da alma deveria se assegurar narealidade efetiva. Além disto, a alma tem sobretudo a função de alçar aos ideais, sem instar à efetivação dos mesmos.A alma provoca um efeito tran qüilizador. Por ser excluídada re ificação, sofre menos as conseqüências desta e lhe opõea menor resistência. Na medida em que o sentido e o valorda alma não se encontram na realidade histórica, ela podese manter intacta inclusive numa má realidade. s alegriasda alma são menos custosas do que as do corpo: são menos
perigosas e concedidas de bom grado. Urna diferença es
sencial entre a alma e o espírito está em não ser direcionadaao conhecimento crítico da verdade . Onde o espírito preci
sa condenar, a alma ainda pode compreender. O conhecimento conceitual procura separar urna coisa da outra, esupera a oposição ( Gegensatz) apenas com base na necessi-
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dade da coisa em seu avanço inexorável"; para a alma logotodas as oposições "exteriores" se conciliam em uma uni-
dade interior qualquer. Se existe uma alma ocidental,germânica, fáustica, a ela corresponderia também uma
cult ura ocidental, germânica, fáustica, de modo que a sociedade feudal, capitalista, socialista seriam apenas manifestações de tais almas, e suas duras contradições se dissolve
riam na bela e profunda unidade da cultura. A natureza
conciliadora da alma se revela claramen te onde a psicologiaé convertida em organon (instrumento) das ciênçias hu-manas ( Geisteswissenchaften) sem ser fundamentada poruma teoria da sociedade que penetra por trás da cultura. Aalma possui uma forte afinidade com o historicismo. Já emHerder a alma, liberada do racionalismo , deveria ser apta atudo compreender colocando-se na situação respectivaeinfühlen): Natureza conjunta da alma, que domina por
toda parte, que molde a seu modo todas as outras inclina
ções e forças da alma, inclusive as ações mais indife rentesp a r a compreender, não responda pela palavra, mas di
rija-se à época, à regiãb celeste, ao conjunto da história,compreenda colocando-se na situação de tudo . 9 Por sua
característica de compreensão universal, a alma desvalorizaa diferenciação do certo e do errado, do bom e do mau, doracional e do irracional, que pode ser dada pela análise darealidade social efetiva com vistas às possibilidades reali-
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záveis da configuração material da existência. De acordocom Ranke, cada época histórica manifesta então uma ten
dência diversa do mesmo espírito humano ( Geist); cadauma tem seu sentido em si "e seu valor não se baseia no quese produz a partir dela, mas em sua própria existência, emseu próprio ser". 30 - Alma ainda nada significa nos termosde ser certa uma coisa que ela representa. Ela pode engran
decer uma coisa má (o caso Dostoievski)Y As almas pro
fundas e delicadas podem se encontrar distanciadas ou nolado equivocado na luta por um futuro melhor para a hu-
manidade. Em face da dura verdade de uma teoria querevela a necessidade da transformação de uma forma miserável de existência, a alma se assusta: como pode uma mudança exterior decidir acerca da substância própria, interior, dos homens . A alma nos torna suaves, complacentes eobedientes aos fatos que afinal não tê m importâ ncia. Assima alma se converteria num fator útil na técnica de controle
das massas quando na época do Estado autoritário todas as
forças disponíveis precisaram ser mobilizadas contra uma
transformação efetiva da existência social. Com a ajuda da
alma a burguesia tardia sepultou seus antigos ideais. Afirmar que o decisivo é a alma se presta bem a ser um slog nquando é unicamente o poder que importa.
Mas efeti vamente a alma é o decisivo: a vida não realizada e não satisfeita do indivíduo. Na cultura da alma
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foram absorvidas- sob falsas f o r m s aquelas forças enecessidades que não puderam mais encontrar seu lugar no
cotidiano. O ideal cultural assumiu o anseio por uma vidamais feliz: por qualidades humanas, bondade, alegria, ver
dade, solidariedade. Mas todas elas são dotadas de umacaracterização afirmativa: a de pertencerem a um mundosuperior, mais puro, não cotidiano. Ou elas seriam inte
riorizadas como deveres da alma individual (assim a almadeve realizar o que seria continuamente traído na existência exterior), ou então, representadas como objetos artís
ticos (assim sua realidade seria remetida a um plano essencialmente distinto da vida efetiva). A exemplificação do
ideal cultural pela referência à arte tem bons motivos: somente na arte a sociedade burguesa tolerou a realizaçãoefetiva de seus ideais, levando-os a sério como exigênciauniversal. Ali se permite o que na realidade dos fatos éconsiderado utopia, fantasia, rebelião. Na arte a cultura
afirmativa revelou as verdades esquecidas, sobre as quais o
realismo triunfa no cotidiano. O me ium da beleza, descontamina a verdade, afastando-a do presente. O que acon
tece na arte não compromete nada. Na medida em que ummundo belo como este não for representado como do passado (a obra de arte clássica da humanidade vitoriosa, a
Ifigênia de Goethe, é um drama histórico ), se retiraria
sua atualidade justamente pelo recurso magico da beleza.
Nome ium
da belezaos
homens puderam participarda felicidade. Mas também só no ideal da arte a beleza seriaconflfmada com boa consciência, pois em si ela é dotadade um poder perigoso, que ameaça a forma vigente da existência. A qualidade sensorial (Sinnlichkeit) imediata dabeleza remete imediatamente à felicidade no plano dossentidos. Conforme Hume, um caráter decisivo da belezaé estimular fruição: a fruição não constitui uma manifestação secundária da beleza, mas constitui sua própria essênciaY Para Nietzsche a beleza reanima a felicidad e
(Seligkeit) afrodisíaca : ele polemiza co n rra a definiçãokantiana do belo como prazer desinteressado, confrontando-a com a afirmação de Stendhal, de que a beleza é
une promesse de bonheur . Nisto reside seu perigo emuma sociedade que precisa racionar e controla r a felicidade.A beleza é propriamente desavergonhada: 34 ela apresentaà vista o que não pode ser prometido abertamente e o queé negado à maioria. Separada de sua vincub,ção ao ideal,no âmbito puro dos sentidos, a beleza se submete à desvalorização geral dessa esfera. Se parad a de todas as exigências da alma e do espírito, a beleza só pode ser fruída comboa consciência em planos muito claramente delimitados:conscientes de que por essa via a gente por um breve inter
valo relaxa e se perde.A sociedade burguesa libertou os indivíduos, mas como
pessoas que se mantêm sob controle . Desd e o início a liber-
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dade dependia da manutenção da condenação da fruição.A conversão do homem em instrumento de fruição, isto asociedade dividida em classes só conhece mesmo comoservidão e exploração. Na medida em que na nova ordem as
camadas dominadas já não se encontravam imediatamente
disponíveis com suas pessoas, mas eram utilizadas mediatamente pelaprodução de mais-valia para o mercado
era considerado desumano utilizar o corpo dos dominados
como fonte de fruição, usando. os seres human os assim diretamente como meios (Kant); mas a utilização de seus corpos
e de sua inteligência com a finalidade do lucro era considerada, por sua vez, co mo afirmação natu ral da liberdade.Analogamente, para os pobres a coisificação Verdingung)na fábrica se tornaria um dever moral, mas a coisificação docorpo como instrumento de fruição se converteria em depravação , prostituição . Também nessa sociedade a miséria é a condição do ganho e do poder. Contudo a dependência se realiza por intermédio da liberdade abstrata. Avenda da força de trabalho deve ocorrer com base na deci
são do pró prio pobre . Ele realiza o trabalho a serviço de seupatrão ; sua pessoa em si, sepa rada de suas valiosas funções,esta abstração ele pode guardar para si, erigindo-a emsacralidade. Deve mant ê-la pura. A proibição de conduzir
o corpo ao mercado não apenas como instrumento de trabalho, mas também como instrumento de fruição, consti-
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tui uma das raízes sociais e psíquicas básicas da ideologiapatriarcal-burguesa. Aqui se impõem limites à reificaçãocuja manutenção évital para a perpetuação do sistema.Quando mesmo assim o corpo se converte em certa medidaem mercadoria, enquanto manifestação ou portador da função sexual, isso incorre em desprezo geral. Há uma violaçãodo tabu. Isso não vale somente para a prostituição maspara qualquer ocorrência de fruição que não se vincule por
motivos higiênico-sociais à reprodução. Em circunstâncias dessa ordem os estratos sociais mantidos em formassemimedievais, em grande parte desmoralizados e impelidos às margens inferiores, constituem uma recordaçãoantecipatória ( vordeutende Erinnerung). Onde o corpo se
tornou inteiramente objeto, coisa bela, ele possibilita imaginar uma nova felicidade. Na subordinação extrema àreificação, o homem triun fa sobre a reificação. A qualidadeartística do corpo belo, ainda hoje presente unicamente nocirco, nos cabarés e em shows, essa leveza e frivolidadelúdicas, anuncia a alegria da libertação do ideal que o homem pode atingir quando a humanidade, convertida verdadeiramente em sujeito, dominar a matéria. Quando se supera o vínculo com o ideal afirmativo, quando existe fruiçãosem qualquer racionalização e sem o mais leve sentimentode culpa puritano no plano de uma existência provida desabedoria, quando os sentidos se libertam inteiramente daalma, então surge a primeira luz de uma outra cultura.
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Porém na cultura afirmativa os planos desprovidosde alma não pertencem mais à cultura. Como quaisqueroutros bens da esfera da civilização, eles são abandonadosabertamente à lei do valor da economia. Somente a bdezadotada de alma e a fruição dotada de alma que lhe cor-responde foram admitidas na cultura. Pelo motivo de os
animais serem incapazes do reconhecimento e da fruição da
beleza, segue-se para Shaftesbury que também o homem
não é capaz, por intermédio dos sentidos ou da pane animal de sua essência, de apr .eensão e fruição da beleza, mas
a sua fruição da beleza e da bondade se realiza sempre demaneira mais nobre, com o auxílio do que existe de maisnobre, seu espírito e sua razão ( .. ) Quando a fruição édeslocada da alma para outra pane então o próprio pra-
zer não se converte em algo belo e sua manifestação serádesprovida de estímulo e graça . 5 Unicamente no me ium
da beleza ideal, na arte, a felicidade pôde ser reproduzida
como valor cultural com o conjunto da vida social. Isto não
ocorre nos outros dois planos da cultura, que em todas as
outras ocasiões dividem com a arte a representação da ver
dade ideal: a filosofia e a religião. Em sua orientação idealista, a filosofia se tornou progressivamente mais desconfiada em relação à felicidade; e a religião lhe concederia umespaço apenas no além. A beleza ideal constituía a forma
em que se podia expressar o anseio e fruir a felicidade; assim
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a artese
tornaria um mensageiro que anuncia uma verdadepossível. A estética clássica alemã apree ndeu a relação emrebeleza e verdade na idéia de uma educação estética da h umanidade. Schiller afirma que o problema polícico d e
uma organização melhor da sociedade precisa tomar cami
nho através do plano estético, porque é através da belezaque se caminha para a liberdade . 6 E no seu poema Os
artistas ele apresenta a relação entre a cultura vigente e afutura com os seguintes versos: O que aqui sentimos comobeleza/ Algum dia nos defrontará como verdade . Confor
me a medida da verdade socialmente permitida e da felicidade configurada, a arte é o plano superior e represen ca-
tivo da cultura no âmbito da cultura afirmativa. Cultura:domínio da arte sobre a vida , eis a definição de Nietzsche. 37
O que qualifica a arte para esse papel único?A beleza da r t e diferentemente da verdade da teo
ri é compatível com o mau presente: ela pode proporcionar felicidade nesse plano. A teoria verdadeira rec onhece a miséria e a ausência de felicidade do que existe.Mesmo onde ela indica o caminho para a transformação
ela não oferece consolo algum que concilie com o presente .
Mas num mundo de infelicidade, a felicidad e sempre precisa ser um consolo: o consolo do instante belo na seqüência interminável da infelicidade. O prazer da felicidade éconfinado no instante de um episódio. Mas o instante con-
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tém em si a amargura de seu desaparecimento. E no isola-mento dos indivíduos solitários não existe ninguém com
quem a felicidade própria estaria preservada após o desa-parecimento do instante, ninguém que não fosse vítima
da mesma solidão. O efêmero que não deixa atrás de si uma
solidariedade dos sobreviventes necessita ser eternizado parapoder ser suportado, pois se repete em cada instante da
existência e antecipa a morte também em cada instante.
Uma vez que cada instante porta em si a morte, o instantebelo precisa ser perpetuado como tal, para tornar possível
algo como a felicidade. A cultura afirmativa eternizao ins-tante belo na felicidade que ela proporciona; ela eternizao
efêmero.Uma das tarefas sociais decisivas da cultura afirma
tiva se baseia nessa contradição entre o efêmero desprovidode felicidade de uma existência má e a necessidade d a feli-
cidade que torna tolerável uma existência como esta. Noâmbito dessa existência ela própria, a solução só pode ser
aparente. A possibilidade da solução repousa justamenteno caráter de aparência Schein) 8 da beleza da arte. Porum lado, a fruição da felicidade só pode ser liberada sob
forma idealizada, da alma. Por ou io, a idealização suprimeo sentido da felicidade: o ideal não pode ser fruído; qual-
quer fruição lhe é estranha, já que destruiria o rigor e apureza que precisam lhe corresponder na realidade efetiva
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desprovida de ideal dessa sociedade se pretende cumprir
sua função de disciplina e interiori zação, o ideal persegui-
do pela pessoa abnegada, que subordina a si própria aoimperativo categóric o do dever esse ideal kantiano é ape-
nas a reunião de todas as tendências f i r ~ t i v sda cul-tura), é insensível em relação à felicidade; não pode des-pertar nem felicidade, nem consolo, uma vez que nunca
existe uma satisfação no presente. Para que o indivíduo
efetivamente alguma vez possa se submeter ao ideal de modoa acreditar reencontrar nele, satisfeitos e realizados, seus
anseios e suas necessidades de fato, para isto o ideal deve ser
provido da aparência de uma satisfação no presente. Justa-mente esta realidade de parecência Schein- Wirklichkeit) 39
nem a filosofia nem a religião logram atingir: soment e a arteo consegue - justamente no me ium da beleza. Goethe
revelou o papel enganoso e confortante da beleza: O es-pírito humano se encontra numa situação maravilhosa,quando ele admira, quando ele venera, quando eleva um
objeto e é elevado pelo mesmo; só que ele não consegueficar muito tempo neste estado; o conceito de gênero, ageneralidade, o deixou frio, o ideal o elevou acima de si
mesmo; mas agora ele pretende retornar a si mesmo; ele
pretende novamente a fruição daquela disposição anteriorque dispensou ao 'indivíduo', sem retornar àquela limi
tação e também não quer abandonar o que é significativo,
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o que eleva o espírito. O que seria dele neste estado, se abeleza não interviesse, resolvendo o mistério de um modofeliz ela que fornece vida e calor ao que é científico, ena medida em que suaviza o que é significativo e elevado,provendo-o de uma graça celestial, reaproxima o mesmode nós. Uma obra de arte bela percorreu todo o círculo eagora constitui novamente uma espécie de indivíduo deque nos acercamos com disposição, de que podemos nosapropriar". 40
o decisivo nessa situação não é que a arte apresente arealidade efetiva ideal, mas que a apresente como realidadeefetiva bela. A beleza confere ao ideal o caráter da amabilidade, do dotado de alma, do que traz satisfação d a
felicidade. Somente ela torna perfeita a aparência da arte,na medida em que só por seu intermédio o mundo daparecência Scheinwelt) desperta a aparência Anschein) defamiliaridade, de disponibilidade, e portanto de realidadeefetiva. A aparência (Schein)'efetivament e leva algo a aparecer Erscheinen); na beleza da obra de arte o anseio se
realiza por um instante: quem a contempla sente felicidade. E uma vez configurado na obra, o instante belo podeser sempre repetido; encontra-se eternizado na obra dearte. Quem contempla pode sempre reproduzir essa felicidade na fruição da arte.
A cultura afirmativa foi a forma histórica em que se
preservaram as necessidades dos homens que iam além da
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reprodução material da existência, e nessa medidase
aplicaa ela, bem como à forma da realidade social a que corresponde, a afirmação: o direito se encontra do seu lado. Embora ela tenha desobrigado "as relações externas" da responsabilidade pela "determinação do homem -estabilizando
assim a injustiç a das mesmas - , ela também as confrontacom a imagem de uma ordem melho r que se impõe à ordemvigente. A imagem se encontra distorcida, e a distorçãofalseou todos os valores culturais da burguesia. Mesmoassim trata-se de uma imagem da felicidade: há uma par
cela de contentamento mundano nas obras da grande arteburguesa, inclusive ao pintarem o céu. O indivíduo frui abeleza, a bondade, o brilho e a paz, a alegria vitoriosa; atémesmo a dor e o sofrimento, a crueldade e o crime. Vivenciauma libertação. Compre ende e encontra compreensão, resposta a seus instintos e demandas. Oco rre um rompimentoprivado da reificação. Na arte não há precisão de ser realista: nela o impor tante é o homem e não sua profissão ou suaposição. O sofri mento é sofriment o, e a alegria, alegria. Omundo reaparece como aquilo u ~é por trás da forma mercadoria: uma paisagem efetivamente é uma paisagem, umhomem, efetivamente um home m e uma coisa, efetivamenteuma co1sa
Naquela forma da existência a que pertence a culturaafirmativa, a "felicidade da existência( ) só é possível como
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felicidade da aparência . 4 Mas a aparência gera um efeito
real: acontece uma satisfação. Contudo seu sentido sofre
uma transformação decisiva: se coloca a serviço do exis-
tente. A idéia rebelde se converte em alavanca da justi-
ficação. A existência de um mundo superior, de um bem
maior do que a existência material, obstrui a verdade se-
gundo a qual pode ser produzida uma existência material
melhor em que uma felicidade assim se torna realidade efe-
tiva. Na cultura afirmàtiva até mesmo a felicidade se con-verte em meio de enquadramento e moderação. Na medida
em que a arte apresenta a beleza como atual, a arte pacifica
a ansiedade que se revolta. Em conjunto com as outras
esferas culturais ela contribuiu para a grande realização
educacional dessa cultura: disCiplinar o indivíduo liberto,
ao qual a nova liberdade trouxera uma nova forma de ser-
vidão, de modo a tornar súportável a ausência de liberdade
da existência social. A evidente oposição entre as possibi-
lidades de uma vida mais rica, descobertas justamente com
o auxílio do pensamento moderno, e a pobre forma atualda vida reiteradamente impeliu esse pensamento a inte-
riorizar suas próprias demandas, a desviar suas próprias
conseqüências. Foi necessária uma educação secular para
tornar tolerável aquele grande choque cotidianamente re-
produzido: por um lado, a permanente prédica de liber-
dade, grandeza e dignidade inalienáveis da pessoa, da
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magnificência e autonomia da razão, da bondade do
humanitarismo e da imparcialidade do amor ao próximo e
da justiça e, por outro, a humilhação geral da maioria da
humanidade, a irracionalidade do processo de vida social,
a vitória do mercado de trabalho sobre o humanitarismo,
do lucro sobre o amor ao próximo. Toda essa falsificação,
como a transcendência e o além, cresceu ( .. ) no solo da vida
empobrecida 42 , mas o enxerto da felicidade cultural na in -
felicidade, a relação da alma aos sentidos, ameniza a po -breza e a enfermidade dessa vida em uma sadia capaci-
dade de trabalho. Este é o milagre propriamente dito da
cultura afirmativa. Os homens podem se sentir felizes in-
clusive quando efetivamente não o são. O efeito da apa-
rência Schein) torna incorreta até mesmo a afirmação da
felicidade própria. O indivíduo, remetido a si mesmo,
aprende a suportar e de certo modo até a amar seu isola-
mento. A solidão de fato é alçada à solidão metafísica e
como tal adquire roda a benção e a ventura da plenitude
interior na presença da pobreza exterior. A cultura afir-mativa reproduz e glorifica em sua idéia da personalidade o
isolamento e empobrecimento social dos indivíduos.
A personalidade é o portador do ideal cultural. Ela
deve representar a felicidade tal como essa cultura a pro-
clama como bem supremo: a harmonia privada no meio da
anarquia geral, da atividade prazerosa no meio do trabalho
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amargo. Ela absorveu em si tudo o que é bom e rejeitou ou
enobreceu tudo o que é ruim. O importante não é que ohomem viva sua vida; o importante é que ele a viva tão bemquanto for possível. Este é um dos lemas da cultura afirmativa. Bem refere-se aqui essencialmente à própria cul
tura: participação nos valores espirituais e da alma, formação da existência individual mediante o humanitarismo
da alma e com os valores do espírito. A felicidade da fruiçãoirracional foi retirada do ideal da felicidade. Uma felicidadeassim não deve violar as leis da ordem vigente, e também
não precisa fazê-lo; há que realizá-la em sua imanência. Apersonalidade, tal como deve ser a felicidade supremados homens com a realização da cultura afirmativa, precisarespeitar os fundamentos do existente; um a de suas virtudes é o respeito às relações de dominação dadas. Ela só
pode se exceder enquanto mantiver a consciência a respeitoe reabsorver o excesso.
. Nem sempre foi assim. Outrora, no início da nova época, a personalidade revelava uma outra face. Antes de
nada e l a como a alma, cuja plena corporificação humana
deveria s e r pertencia à ideologia da libertação burguesado indivíduo. A pessoa era a fonte de todas as forças e
propriedades que capacitavam o indivíduo a se tornar se-
nhor de seu destino e constituir o seu ambiente conformesuas necessidades. J cob Burckhardt apresentou essa idéia
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da personalidade no uomo universale do Renascimento. 43
Quando o indiv íd uo era referido como personalidade, pretendia-se enfatizar que tudo o que fizera de si próprio, oindivíduo devia unicamentea si mesmo e não a seus ante
passados, sua posição, seu deus. A marca característica dapersonalidade não era apenas da alma (uma b ela alma )
mas sim poder, influência, fama u m espaço vital o maisamplo e pleno de suas ações. No conceito de personalida
des tal como é representativo da cultura afirmativa desdeKant, não há mais vestígios de um tal ativismo expansivo .
A personalidade é senhora de sua existência unicament ecomo sujeito ético e anímico. A liberdade e independência do mecanismo do conjunto da natureza que agora devecaracterizar sua essência é ainda apenas uma liberdade inteligível 44, que toma as circunstâncias dadas da vida com o
materialdo dever. O espaço da realização externa se tornoumuito restrito, o espaço da realização interior, muito grande. O indivíduo aprendeu a cobrar em primeiro lugar de si
mesmo todas as exigências. O domínio da alma se torn ou
mais exigente para o plano interior e mais modesto pa ra o
plano exterior. A pessoa já não é um trampolim para oataque ao mundo, mas uma l inh a de recuo protegida por
trás do front. Em sua interioridade, como pessoa ética, elaconstitui a única propriedade segura que o indivíduo não
pode perder. 5 Ela não é mais fonte da conquista, mas da
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renúncia. Personalidade é sobretudo aquele que renuncia,o homem que logra sua realização no interior das circuns
tâncias dadas, por mais pobres que sejam. Ele encontra suafelicidade no existente. Mas mesmo sob forma tão
empobrecida, a idéia da personalidade contém o momento
progressivo, segundo o qual afinal se trata do indivíduo. A
singularização cultural dos indivíduos em personalidades
fechadas e m si mesmas , portadoras de sua realização em si
mesmas, afinal corresponde ainda a um método liberal dedisciplina que não exige domínio sobre um determinadoplano da vida privada. Ela deixa o indivíduo persistir como
pessoa enquanto não perturba o processo de trabalho, deixando as leis imanentes desse processo de trabalho, as for
ças econômicas, cuidarem da integração social dos homens.
3A situação se altera quando uma mobilização parcial
(em que a vida privada do indi víduo permanece reservada)já não é suficiente para a preservação da forma estabelecida
do processo de trabalho exigindo-se em seu lugar amobilização total pela qual o indi víduo deve ser subordi
nado à disciplina do Estado autoritário em todas os planosde sua existência. Agora a burguesia entra em conflito com
sua própria cultura. A mobilização total da época do
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talismo monopolista é incompatível com aqueles momentos progressistas da cultura centrados na idéia da perso
nalidade. Começa a auto-abolição da cu l 1 . 1 afirmativa.A ruidosa luta do Estado autoritário contra os ideais
liberais de humanitarismo, individualidade, racionalidade ,
contra a arte e a filosofia idealistas, não consegue ocultar
tratar-se de um processo de auto-abolição. Assim como a
reorganização soci al da democracia parlamentar em Estado
autoritário de liderança Führerstaat) é apenas uma reorganização no âmbito da ordem existente, assim também a
reorganização cultural do idealismo liberal em realismo
heróico ainda ocorre internamente ao âmbito da própriacultura afirmativa; trata-se de uma nova defesa das velhas
formas d a existência. A função básica da cultura se mantém
a mesma; só mudam os caminhos pelos quais essa função serealiza .
A identidade do·conteúdo mantida sob total mudançada forma se revela de uma maneira particularmente clara
na idéi a de interiorização . Interiorização: a conversão deinstintos e forças explosivas do indivíduo em domínios daalma fora uma das alavancas mais vigorosas do processodisciplinador. 46 A cultura afirmativa havia superado osantagonismos sociais numa universalidade abstrata inte
rior: enquanto pessoas, na liberdade e dignidade de suas
almas, rodos os homens possu em o mesmo valor; acima das
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contradições de fato se locali za o reino d a so lidaried adecultural. Essa comunidade interior abstrata absuata, por
manter a subsistência das contra dições efetivas) se convertedurante o último período da cultura aflrmativa numa comunidade exterior igualmente abstrata. O indivíduo se insere numa falsa coletividade raça, povo, sangue e solo).Mas uma tal exteriorização tem função idêntica à dainteriorização; renúncia e enqua dramento no existente, tornados suportáveis pela aparência real da satisfação. A cultura afirmativa contribui em grande parte para que os indi
víduos, libertos já por mais de quatrocencos anos, marchemtão bem nas colunas comunitárias do Estado autoritário.
Os novos métodos do processo disciplinador não são
possíveis sem a rejeição dos momentos progressistas contidos nos estágios anteriores da cultura. Pelo prism a dos
últimos desenvolvimentos, a cultura daqueles estágios aparece como um passado mais feliz. Mas, por mais que a reorganização autoritária da existência de fato apenas beneficieos interesses de grupos sociais muito reduzidos, ela representa novamente o caminho em que o todo social se con
serva na situação transformada; nesse sentido ela r e p r e s ~ -t numa forma má e nos termos de uma maior infelicidade da m a i o r i a - o interesse de todos os indivíduos cujaexistência se vincula à manutenção dessa ordem. Trata-se
justamente daquela ordem a que se ligava também a cultu-
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ra idealista. Nessa dupla cisãose
baseia em parte a debilida.de com que a cultura protesta hoje contra a sua nova forma.
A dimensão da aflnidade entre a interioridade ideali s tae a exterioridade heróica é demonstrada pela posição co
mum de ambas ante o espíriro Geist . Paralelamente à altaestima em relação ao espírito que con sti ruía característicade algu ns setor es e indivíduos da cultura afirmat iva, sempre houve um profundo desprezo pelo espírito na práticaburguesa, que podia se justificar pelo descaso da filosofiacom os problemas efetivos dos homens. Porém também
por outros motivo s a cultura afirm ativa era esse ncialm enteuma cultura da alma, e não do espíri to . Até mesmo onde
ainda não entrara em decadência, o espíritO já sempre erasuspeito; ele é mais tangível, promove mais e é mais próximo da realidade do que a alma; sua lumin osidad e e raci onalidade críti cas, sua contradição em relação a uma faticidade desprovida de racionalidade é difícil de ocultar esilenciar. Hegel se acomoda mal ao Estado autoritário. Ele
era a favor do espírito; s mais modernos são a favor daalma e do sentimento. O espírito não consegue se furtar àrealidade efetiva sem renunciar a si mesmo; a alma pode edeve fazê-lo. E justamente porque a alma vive além da economia, a economia consegue se impor tão facilmente a ela.A alma adquire seu valor justamente pela sua característica
de não se sujeitar à le i do valor. O indivíduo provido de
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alma se submete mais facilmente, se curva mais humildemente ao·destino , obedece mais à autoridade. Pois ele con
serva para si toda a riqueza de sua alma, podendo se transfigurar de modo trágico e heróico. A educação intensiva
para a liberdade interi or que se realizava desde Lutero geraagora os mais belos frutos onde a liberdade interior se supera a si própria em ausência .de liberdade exterior. En- .
quanto o espírito se submete ao ódio e ao desprezo, a alma
permanece valorosa. Recrimina-se inclusive o liberalismoque a lma e conteúdo ético já nada significam para ele;
exalta-se como caract erística espiritual mais profunda daarte clássica a grande za da alma e a personalidade dotada
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aparentemente mais plausível para se evitar as decisõespolíticas . A propaganda culrural é uma espécie de ópio
pelo qual se disfarça o perigo e se desperta uma enganosaconsciência de ordem. Este contudo é um luxo insupor
tável em uma situação em que não se trata do discurso,mas da criação da tradição. Vivemos num período da história em que tudo depende de uma enorme mobilização econcentração de forças que se encontram disponíveis . 49
1 Mobilização e concentração para quê? Aquilo que Ernst~ Jünger ainda designa como salvação da totali dade de nossa vida , como criação do heróico mundo do trabalho ecoisas assim, revela-se durante o transcurso de modo cadavez mais claro como a transformação de toda existência ae caráter , a ampliaç ão da alma ao infinito As festas e
celebrações do Estado autoritário, seus desfiles e sua serviço dos interesses econômicos mais poderosos . Eles determinam inclusive as exigências de uma nova cultura. Anecessária intensificação e expan são da disciplina do trabalho faz que pareça perda de tempo a ocupação com osideais de uma ciência objetiva e com uma arte existente por
si própria ; torna desejável uma redução do lastro nessasquestões. Toda a nossa chamad a cultura não consegueevitar a violação territorial mesmo pelo menor dos Esta
dos fronteiriços ; e justamente esta é a questão decisiva. Omundo precisa saber que o