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Hypolita e sua luta para se manter livre dentro doescravismo no Crato (Cear) e no Exu (Pernambuco)
em 1858
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 352
Hypolita e sua luta para se manter livre dentro doescravismo no Crato (Cear) e no Exu (Pernambuco)
em 1858Antonia Mrcia Nogueira Pedroza
Mestranda em [email protected]
PALAVRAS-CHAVE: Escravido, Liberdade, Jornal.
KEYWORDS: Slavery, Freedom, Newspaper.
[fl. 1]ANNO III. SABBADO 5 DE MAIO DE 1858. N.146.
O ARARIPE.
O ARARIPE destinado a sustentar as ideas livres. Protetor a causa da justia, e
propugnar pela fiel observancia da lei, e interesses locaes. A redaao so responsavel pelos seus
artigos; todos os mais, para serem publicados, deverao vir legalisados.
O preo da assignatura por um anno 4$000 pagos adiantados; e por 6 meses somente3$000. O jornal sair todos os sabados. Os assignantes terao gratis 8 linhas por mes as mais sera
pagas a 60rs. cada uma. Os ns. avulsos avulsos a 80 rs.
CRATO. Typographia de Monte E Comp,- casa do Pisa - N.
AO PUBLICO.
Dous annos fasem que livrei-me das garras de um tiranno que me aviltava e opprimia:
dous annos fasem, que soffro injustias de algumas authoridades locaes. Esperava pelo triumpho
de minha causa, para com a expresso de riso, instruir o publico das atrocidades, porque me fes
passar o homem mais desalmado que existe sobre a terra: mudei de pensamento, porque meos
males continua, por causa dos escrupulos de um juis, embora tenha em socorro de minha causa
a inergia, e philantropia, de dous magistrados que se manifesto contra as injustias de que tenho
sido victima. Sou pois obrigada pela fora de circumstancias a faser por ra um pequeno exboo
de meos soffrimentos, para o publico imparcial aquilatar a perversidade de um homem mu.
Nasci no anno de 1823, no rio de S. Francisco, da provincia de Pernambuco, de ventre
livre, porque, posto minha mi tivesse tido a infelicidade de nascer escrava, foi-lhe dada sua
mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected] -
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liberdade no anno de 1811 na occasio de receber o baptismo, facto este sabido pelas pessoas
mais qualificadas daquelles lugares, e comprovado com o assento de baptisamento existente no
livro de semelhantes.
Em 1825, ou 1826, foi ao rio de S. Francisco Joo Pereira de Carvalho, e casando-se
com D. Anna, filha de D. Joanna Paula, voltou para a freguesia do Ex com sua mulher,
acompanhando a esta, sua mi, que era minha madrinha, e quem me criou j o tendo feito a
minha mi, com todo amor e amisade, t que a casou com Francisco Pil da Costa. Minha mi
certa de que minha madrinha me daria educao e estima, conveio que ella, quando acompanhou
sua filha para o Ex, me condusisse em sua companhia, tanta era a confiana que nella
depositava. Meus soffrimentos porem daisro dessa epocha, porque se eu tinha em meo favor o
zelo e amisade de uma Senhora respeitavel, minha m estrella me condusio ante o homem que,
ao que parece, desde logo assentou em saciar sua avaresa e cobia de bens, com minha pessoa,
protestando faser passar-me por sua escrava. Perversidade inaudita.
Fui criada no Ex e Cariry, e a proporo que ia crescendo Joo Pereira de Carvalho
procurava com propalaes, faser acreditar ser eu sua escrava. Minha madrinha porem dava lhe
solemnes desmentidos, e para no todo neotralisar as tendencias de seu genro, disia s pessoas
com quem conversava serem cavillosas suas intenes, pois que ella propria fra quem concedera
na pia liberdade minha mai, e conseguintemente eu havia nascido de ventre livre.
Eu, innocente victima da ambio desse homem, ignorando seus tramas e urdiduras, em
idade menor no podia vr o abismo em que me queria lanar uma ambio desregrada;
descansava sombra de minha bemfeitora, e sem o pensar achei me no estado de mulher, e no
reflectia que j por este tempo Joo Pereira de Carvalho, por uma barbaridade inqualificavel,
apoderando se de todos os bens que minha madrinha possuia, a havia redusido a comer por
rao, privando-a de todos os recursos, para que sem opposio de sua parte, podesse realisar seo
intento, o de reduisr me escravido. Um de seos calculos, foi querer casar-me contra minhavontade, e da de minha madrinha, com um seu escravo, o que pde realisar, embora minha
madrinha se exforasse contra seu procedimento, seos rogos, e lagrimas na foro bastantes para
o desviar dessa perversidade. Eu fui coagida a ir ao Crato, e sendo arrastada ante um sacerdote
para me casar contra vontade, posto estivesse aterrada pelas innumeras amiaas que se me fasia,
para annuir ao casamento, eu conservei-me calada, porque meu corao repugnnava o casamento,
e meu espirito se achava opprimido pela violencia que se me fasia. Meus cilencio foi fatal, o Padre
tirou delle uma illaao horrivel quem cala consente intreguei a mo, e o fatal casamento foi
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ultimado. Concluido o acto, Joo Pereira de Carvalho, revellou seos planos, immediatamente
disendo em altas voses, estas tremendas palavras = saiba Deus e todo mundo que, Hypolita
dhoje em diante minha escrava =. Eu ops ao fatal pregao o pranto, e era juntamente o
recurso com que contava, outro tanto suecedia minha infelis madrinha. No tive se quer uma
alma bemfaseja que erguesse sua voz contra essa barbaridade. A preopotencia de meu algs, sua
fortuna e indole a todos fes calar.
Redusida por esta fara ao aviltante estado de captiva, meos soffrimentos se agravaro.
Fui at obrigada a ser carreira, e fazer outros muitos servios alm de minhas foras. A vida a que
estava condemnada, levou me infelismente ao estado de prostituio, porque nunca fis vida com
o marido que me imposero. Tive diversos filhos, e estes infelises ero lanados nos assentos dos
baptisamentos como escravos. Eu tinha consciencia de [ilegvel] liberdade, e horrorisava me o
estado do [ilegvel] captiveiro; mas o que faser, fraca, aviltada, sem proteao tendo contra mim o
coliosso de Rodes? Soffria,
[fl. 1vfl.]
e sofria amargamente meos males, apenas depositava confiana em Deus, esperando o
dia de sua vingana.
De Galdino Rodrigues dos [ilegvel] tive tres filhos; este homem imbuido nos desterrosde minha luta [ilegvel] conhencido do roubo feito minha liberdade, acreditou ter chegado a
epocha em que a justia j podia mais do que um potentado da [ilegvel] Mentira. Por conselho
seu sahi da casa de Joo Pereira e fui ao Crato valer me do Sr Dr. Jos Fernandes Vieira, que
exercia os logares de juis municipal, e delegado de policia do termo; contei lhe as oocorrencias de
minha vida, meos soffrimentos, os soffrimentos de um infelis mi, e roguei lhe que pelo amor
de Deus, contivesse a mo [ilegvel] que roubou minha liberdade: meu pranto, minhas justas
queixas, na faro ouvidas, e esse homem injusto teve a sinica coragem de diser me V para
casa de seo SenhorA justia inda era respeitadora da prepotencia e fortuna de Joo Pereira de
Carvalho, e no se movia aos brados de innocencia opprimida!
Frustrada esta tentativa, da qual resultaro me graves, males, assuntei em procurar a
homens que inspirassem confiana, e que no despresassem a uma infelis, acovardando se a
[ilegvel] de Joo Pereira de Carvalho: do accordo com Galdino, pude em Abril de 1856, [subtrahir]
me do puder desse tiranno oppressor indo ter ao Ex onde procurei a proteco dos Srs Gualter
Martiniano de Alencar Araripe, e de seu mano Luiz Pereira de Alencar, Elles que sabio ser eu
verdadeiramente livre, e das artimanhas e urdiduras desse anjo mo que injustamente me
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flagellava, no duvidaro proteger me, e arrancar me vil condio que me havio redusido.
Deus abenoar as intenes de dous coraes tam bondosos. Aos exforos destes dous anjos
[luteiares] de minha liberdade, devo o apparecimento de provas clarissimas do meu direito, com
ellas. Deus hade permetir que meu barbaro oppressor seja confundido.
Meus protectores j na posse de roubustas provas de minha liberdade, porque o assento
do batisterio de minha mi, e outros documentos, havio apparecido por um milagre da
providencia que no desampara ao preseguido; annunciaro pelo jornal Araripe ser eu livre; por
haver nascido de ventre livre. Joa Pereira de Carvalho, estremeceu com esta publicao, porque
nella via o desmoronamento de seu criminoso edificio, e querendo oppr obstaculos a causa da
justia, entendeo dever ocultar meos infelises filhos que estavo debaixo de seu ezurragae, e
deferi confiando nas basofias e alicanxinas de seu digno genro Joo Evangelista Cavalcante,
morador no Inhamun para l mandou ocultar as victimas. Em verdade Sr. Redactor, este golpe
foi para mim um dos mais senciveis porque tenho passado nesta vida de amarguras: ver meos
infelises filhos sob o dominio de um outro tirando, que tem as mos tintas no proprio sangue de
uma sua infelis irm o madrinha! Oh! no sei, como pode seffrer este terrivel golpe; Deus alentou
meos exforos, e pude resignar-me com este outro infortunio. Joo Evangelista Cavalcante bem
conhecido, seos actos fallo mais alto do que qualquer voz, e a publicao do officio a baixo,
prova com evidencia que meos receios ero justos.Chegaro meos filhos ao Inhamun casa de Cavalcante, mas quis a providencia que o
Sr. Pessoa, delegado de policia do Tauh, sendo disto avisado, e havendo lido o anuncio do qual a
cima tratei, communicasse o facto ao Juis de Orfas, e este mandando judicialmente vir sua
presena Joao Evangelista, e meos filhos [ilegvel] de seos deveres [ilegvel] ouvidos aos boatos da
innocencia, tornou a entregar aquelles infelises ao homem mais perdido na reputaao publica
daquella comarca; apenas porem exigiu que elle estagnasse um termo, obrigando se a dar conta
dos infelises, quando seo sogro fosse provar serem os mesmos seos escravos! Oh! Justia doshomens, ate quando sereis oppressora dos miseraveis?
O Sr. Pessoa, cheio da justia, guiado pelos instinctos de seo corao philantropo,
vendo que o acto praticado pelo juis municipal era revoltante, levou o ao conhecimento de Exm.
presidente da provincia, o qual ordenou Promotoria daquella Comarca as providencias de que
trata o officio de 14 de agosto de 1856, como se v de seu theor constante da publicao tambm
a baixo. Informado meo digno protector, o Sr. Gualter, dessa ordem da presidencia,
opportunamente appresentou-se na Villa do Tauh, com todos os meos documentos, e
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ministrado esta prova ao Promotor, que corroborou com 5 testimunhas do lugar, denunciou de
Joo Pereira de Carvalho, e seu genro Joo Evangelista Cavalcante os quaes foro pronunciados
como incursos do art. 179 do Codigo criminal.
Concluido que fosse o processo, expedio-se uma precatoria para o termo do Crato,
requisitando a priso destes dous ros. Este precatorio foi entregue a aquelle, que como
presidente mandara processar aos ros escravisadores, e que logo depois que dera ordem, passara
a exercer o lugar do chefe de policia da provincia, em cujo carter achava-se no Crato. Este
homem, infelismente estava nessa cidade constituido em maquina s movida por paixes
mesquinhas; no quis cumprir o deprecato, e menos ordenou as authoridades suas sobalternas q
o comprissem. O Sr. Pereira da Cunha, no era um magistrado de justia, era sim um juis das
paixes, que sobre elles exercio imperio.
Joo Evangelista, com temor de lhe serem tomados meos filhos, havia fugido do
Inhamun, condusindo-os para o termo do Crato, onde achava todo appoio.
Retirando-se do Crato o chefe de policia Pereira da Cunha, o ento delegado o Sr.
Capm. Baptista, posto no estivesse desposto a prender a aquelles dous ros, com tudo os
obrigou a deixar o termo, e l foro elles para o Tauh livrarem se do crime pelo qual foro
processados.
O Sr. Dr. Jaguaribe, que era juis de direito da Comarca, j tendo visto meos
documentos, por lhe os haver mostrado o Sr. Gualter, no duvidou dar cartas de especial
recommendao a Joo Pereira, e seu genro para seos amigos os caracars do Tauh, pedindo-
lhes absolvio dos ros, seos recommendados Seos amigos no hesitarao ao pedido; os ros
foro despronunciados em gro de recurso pelo Sr. Dr. Jos Bastos Fernandes Vieira como juis
municipal, e o Promotor o Dr. Joo Fernandes Vieira, que havia denunciado do crime, no
interps recurso para o juis de Direito, com temor de que este, despresasse o despacho de
despronuncia de seo primo juis municipal.
Tantas iniquidades dero alento a meos oppressores, que redobrando de exforos
tentaro arrancar-me do poder daquelles que garantio minha liberdade.
O Sr. Affonso de Albuquerque e Mello, qexercia o lugar do juis municipal interino do
Crato, deprecou para o Ouricury, requisitando minha captura!
[fl. 2]
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A authoridade do Ouricury posto ja tivesse certa de ser eu livre, com tudo para fins
particulares, no duvidou prestar seo cumpra se a uma requisio criminosa. Por causa desse fatal
cumpra se faro cercadas e varejadas as oasis de meos protectores, e se nessa epocha na existisse
no Ouricury o honrado Sr. Capm. Pentiado, graves succeqsos teria apparecido por esta
deligencia.
Deixando o Ouricury o Sr. Capm. Pentiado, e ficando no commando da fora publica
um sobalterno, debaixo das ordens, do Sr. Delegado Alvaro, o mesmu que havia posto o cumpra-
se no deprecata do Sr. Affonso, mandou uma patrulha de seis praas comandadas por um cadete
do destacamento, debaixo da direco de Joo Pereira, que a reforou com dous filhos, quatro
escravos, e tres cabras criminosos, para me prenderem!!! A casa do Sr. Gualter, foi cercada e
varejada, e lhe valeu no ser victima dos manejos de seo inimigo delegado, a inergia de seos
visinhos que soubero repellir os insultos lanados contra elle e me salva no por esta outra ves.
Meos protectores prevendo as fataes consequencias que poderio apparecer em
occasies iguaes, assentaro em dar-me em deposito judicial no Ouricury e defeito assim o
fisero, perante o juis municipal o Sr. Ten CL Dimas, sendo meo depositario e curador o Sr. Luis
Pereira de Alencar.
Ficaro as cousas neste p por alguns dias, mas a inqualificavel avaresa de Joo Pereira,
animada por alguns aduladores, que ando ao faro de suas patacas, pde obter no Crato segundo
precatorio para o Ouricury com o fim de ser eu condusida para aquelle termo: este deprecato foi
requerido, porque; j no era juis municipal do Ouricury o Sr. Ten CL Dimas, e sim o Sr. Dr.
Wanderley. Este juis, no sei porque fatalidade, prestou seo cumpra-se esta segunda exigencia, e
sem ouvir ao depositario e meo curador, mandou intimar-lhe para entregar-me a meo
escravisador!
Santo Deus, em que epocha vivemos!
Meo curador; nao se quis sugeitar ao comprimento de uma ordem tentatoria de minha
liberdade, e reflexionou sobre elle, mas no foi attendido. Por segunda ves o Sr Dr. Wanderley
ordenou por mandado a entrega de minha pessoa; meu curador insistio redobrando de exforos,
e pde com a logica dos factos, e da justia que me asistia faser com que o Sr. Dr. Wanderley
desistisse de sua birra. Desde ento tenho vivido mais socegada, porem meos infelises filhos tem
passado por amarguras e mos tratos bem horrveis.
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Os Srs Gualter, e Luis Pereira por interveno do muito digno visitador desta comarca,
e do Subdelegado desta freguesia Manoel Florencio de Alencar, levarao estas occorrencias ao
conhecimento do presidente desta provincia, este prestando toda atteno a meos males, ordenou
ao Juis de Direito da comarca, o muito digno Sr. Dr. Joo de Sousa Reis, e ao juis municipal o
Dr. Wanderley, para tomarem conhecimento destas occorrencias, e darem providencias com as
quaes me posesse, e a meos filhos, ao abrigo das tendencias maleficas de meo escravisador.
O Sr. Dr, Reis, vindo ao Ouricury, para os trabalhos do jury. aproveitou essa occasio
para cumprir a ordem do Exm Sr presidente. Officiou ao juis municipal, disendo-lhe mandasse
citar a meos protectores, e a Joo Pereira de Carvalho, para que em audiencia de seo juiso
appresentassem os documentos que houvessem pr e contra minha liberdade: isto feito, a hora
aprasada os documentos comprobatorios de minha liberdade foro apresentados por ditos meos
pretectores; Joo Pereira que os no possue, apenas compareceo na audiencia com seo Advogado
o Sr. Dr. Jos Paulino que na falta de outros meios para provar alguma cousa contra mim, lanou
no da chicana. arma favorita de quem advoga uma causa injusta que s tem em resultado fazer
jus ao dinheiro do cliente; mas despresada pelo juis a chicana do Sr. Dr . Jos Paulino, e insistindo
na apresentao das provas de Joo Pereira, fora por este Advogado exigido uma dilao de oito
dias para puder exibir em juiso seos encantados documentos. alegando nao os ter alli nessa
occasio, o que era evidentemente caviloso, porque tendo Joa Pereira ido para o Ouricury, comseo Advogado com o designio de tratar dessa questa, era visto que quaes quer documentos que
contra mim tivesse, os levaria; o juis concedeo-lhe a dilaa, mas no dia aprasado, Joo Pereira
em ves de ministrar provas, deo uma amostra de seu genio terrivel, rompendo em insultos e
doestos proprios de sua educao He fora confessar que o Sr. Dr. Paulino na aprovara o
procedimento de seo cliente, mas que na deficiencia de provas sahio se com iguaes sofismas da
primeira audiencia.
Meus documentos fora entregues em juiso, e alem delles, tive a fortuna de que osinnumeros espectadores que assistira ao acto confirmava com a verdade o facto de minha
liberdade Apenas dous espuletas de Joa Pereira, que se achara presentes, trahira suas
consciencias, se que as tinho.
Tudo que occorreo nesta audiencia, foi redusido a termo, no qual se mencionara
minhas provas, e as palavras lanadas pelo Sr. Dr. Jos Paulino, feito o que devolveo-se o termo
ao Sr. Dr. Juis de Direito.
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Resultou da investigao de meos documentos, a prova de minha liberdade, e esta
evidencia fasendo echo no coraa dos juises de Direito, e municipal, elles me reconhecera livre,
victima do canibalismo de Joa Pereira, e de injustias de alguns juises facinados pela bella
posia desse homem atrs.
Meos infelises filhos continuo a soffrer as barbaridades de Joa Pereira, no puder de
quem se acha, embora exista no juiso municipal do Crato um deposito delles, assignado pelo sr.
Capm. Severino de Oliveira Cabral, mas quem nao sabe ser tal deposito uma mera formalidade,
para que meos ifelises filhos continuem no barbaro captiveiro de Joo Pereira?
Eu tremoo pela sorte de meos filhos, eu sinto dentro dalma terriveis presentimentos, e
uma vs no cessa de bradar-me Posto teos filhos seja livres, t os perders, elles
desapparecera do alcance de teos protectores. Meo Deus, na me desempareis, dai me
exforos para chegar ao termo de meos soffrimentos. Um destes infelises; j faleceu no Piauhy
para onde o havia mandado seo vedugo, dos outros apenas sei, que sa victimas do bacalhau, da
nuds, e da fome, com que nos escondrijos das matas os maltrata seo carcereiro. Barbaros, a
chaga, qdilacera meo coraa, algum dia se sicatrisada, porq Deos v l do Ceo meos
padecimentos.
O Sr. Dr Reis, officialmente exigio, do Sr. Dr. Manoel Thomas Barbosa Freire, actual
juis municipal do Crato, o levantamento do deposito de meos filhos, remettendo os para o
Ouricury, mas este juis negou se a tal exigencia, e mais ainda, continuar a na poder faser rial tal
deposito.
[fl. 2vfl.]
Pela segunda ves o Sr. Dr. Reis officiou ao Sr. Dr Barbosa reforando seu pedido,
[ilegvel] igualmente ao Sr Dr. Sette, juis de Direito do Crato, e por mais esta ves fara [baldados] os
exforos dos dous juises de Direito. Na sei se me deva queixar do procedimento do Sr. Dr.Barbosa, mas lastimarei se elle se tornar do aos [ilegvel] de meos infelises filhos, que nao devem
continuar a estar sugeitos aos rigores, e violencias daquelle que os tem redusido escravida. Ao
menos queria q o Sr. Dr. Basbosa por caridade fisesse effectivo o deposito dessas infelises
creaturas, t que Joo Pereira de Carvalho seja convencido do crime de redusir a escravida
pessoas livres, o q no levar longos dias Confio do caracter probidoso do sr. dr Barbosa q ao
menos nesta parte me attender.
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Eu vou terminar, Sr. redactor do Araripe, para no abusar da indulgencia publica, mas o
na devo faser, sem na manifestar meos agradecimentos, aos dous juises de direito do Ouricury
e Crato, que se ha condoido de minha infelis sorte, e termino esta succinta narraa, sem nada
diser em relaa as injustias e tormentos de que tenho sido victima, mas logo que termine tam
prolongada luta, voltarei a seo jornal para instruir ao publico de tudo quanto tem accorrido, no
drama infernal representado por meo escravisador seccundado por juises [arques] e por aquelles
que como j disse. q anda ao faro das patacas de Joo Pereira.
Os homens justos, meditara sobre minha succinta naraa e eu serei julgada livre no
seo juiso.
Confio que os Exm Srs. presidentes de Pernanmbuco e Cear, ao conhecimento de
quem hade chegar as informaes de minha triste chronica dadas pelo Sr. Dr Reis, juis de direito
desta Comarca, tomara e [ilegvel] consideraa factos de tanta magnitude, nos quaes incerra-se
graves crimes e prevaricaes, q [ilegvel] contra os progressos da civilisaa.
Ex 25 de Maio 1858 Hypolita Maria das Dores.
Officios a que se refere a publicao a cima.
Illm. Exm. Sr Tenho de levar ao conhecimento de V. Exc. o seguinte facto occorrido
aqui, para V. Exc. dar o merecimento que entender. Tive esta Delegacia uma denuncia que JooEvangelista Cavalcante morador no Riacho dos Cavalos deste Termo tinha em sua companhia
seis meninos livres por captivos, e alem da denuncia, que tive tambem me veio s mas o
Periodico Araripe, que junto achar V. Exc., aonde vem um annuncio, assignado por duas
pessoas qualificadas do conhecimento desta Delegacia, do Ex Provincia de Pernambuco, em
que tambem disse serem livres ditos minimos, pois os quer levar ao Captiveiro Joo Pereira de
Carvalho, que sogro de Joo Evangelista Cavalcante, que dito Carvalho os no podendo ter l
no lugar de sua moradia, os bota para c, para dar-lhe o destino, que lhe possa convir, assimcomo os vender Joo Pereira de Carvalho criara de tenra idade Hypolita Maria das Dores, e logo
dando a criaao como sua captiva, e desta Hypolita sa filhos os meninos em questa Hypolita
filha ligitima de Francisco Pil da Costa e Maria das Dores, aqual foi liberta na Pia Baptismal, e
filha do Rio de S. Francisco, pois duvida alguma resta de ser forra a mi de Hypolita, na Pia, e
na podendo mais continuar o captiveiro em si quanto mais os filhos e netos. E como esta
Delegacia na queira dar providencia alguma em consequencia da denuncia, que teve e mesmo
pelo annuncio do jornal Araripe, por julgar ser mais competente o Juis dOrfas communicou
respeito do que sabia ao Juis dOrfas Manoel Luis de Paula para mandar a casa de Joa
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Evangelista Cavalcante aprhender ditos meninos, e entrar na averiguaa do facto, de que, juis
dOrfas na despresando a minha requisia o fes e mandou buscar os meninos de que a escolta
que foi faser esta diligencia s trouxe tres, ficando outros tres de que nao trouxe por subterfugio
de Joa Evangelista, que soube Illudir o commandante da escolta, e logo tambem se apresentou
aqui Joa Evangelista, entendendo se com o Juis dOrfos este Juis cedeo a entrega dos tres
meninos, que a escolta trouxe, e satisfes se o Juis por um termo que passou Joa Evangelista
Cavalcante para em todo tempo dar conta de todos seis meninos at que seo sogro justificasse
serem captivos, ou se fossem forros os entregaria. Como esta Delegacia intende que o Sr. Juis
dOrfas na obrou em regra para com aquelles infelises; que se disem forros, a tornar sem ser
pelos meios legitimos, para o captiveiro, pois o Juis de Orfas devia dar aquelles meninos a um
curador que tratasse de seos direitos, e por em deposito em puder de pessoas boas e qualificadas,e nunca os entregar a Joa Evangelista Cavalcante, porque julgo no caso de serem livres aquelles
meninos: tambem considero Joa Evangelista como seo sogro Joa Pereira de Carvalho, pois os
veio acoitar em um lugar differente de sua moradia, porque logo que se publicou, e a vos publica
dice serem livres aquelles meninos nunca Joa Pereira de Carvalho os devia mandar acoitar em
lugar distante de sua moradia, aonde alli devia justificar se, e mostrar os titulos pelos quaes
possuia aquelles escravos, e assim na obrando justifica o monopolio de Joo Pereira de
Carvalho, e combinado com o seo genro Joa Evangelista Cavalcante. Lendo V. Exc. com muita
attena o annuncio de Araripe, firmado por Luis Pereira de Alencar e Gualter Martiniano de
Alencar, pessoas estas destinctas por seos merecimentos, e fortuna na detehr de dar o peso que
as circunstancias exigem.
Joo Evangelista Cavalcante em puder de quem esto os meninos e hoje por
concentimento do juis de Orfos, tenho a informar a V Exc que no o julgo capaz da justia faser
delle esta confiana pelos seos precedentes que nada o abona. Com quanto tenha alguns bens
da fortuna muito desconceituado por ser um homem de m fe e ja tem sido neste Juiso ro de
crime de homicidios e que pelas indulgencias de nossos Jurados no est na cadeia homem este,
que com suas proprias mos assassinou sua irm e madrinha. Tenho exposto a V. Exc. Para obrar
como julgar e for de justia.
Delegacia de S Joa do Principe, 23 de Julho de 1856 Illm Exc. Sr Dr. Herculano
Antonio Pereira da Cunha. Presidente da Provincia.
Joaquim Jos Pessoa. Delegado supplente.
- Palacio do Governo do Cear em 14 de Agosto 1856.
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Tendo em vista o officio junto por copia, com o incluso annuncio extraido do periodico
Araripe; trate Vmc de promover os meios de libertar do Cativeiro aos infelises de que trata o
mesmo officio, promovendo igualmente a devida accusao contra os individuos que os
redusiro a escravido, convindo que os mesmos infelises sejo postos sob as vistas e cuidado de
um Curador idoneo; afim de evitar que elles sejo subtrahidos. Herculano Antonio Pereira da
Cunha.
Sr. Promotor de S Joao do Principe.
(Imp. Por Manoel Brigido dos S. Junior.)
Comentrio sobre o documento transcrito
O peridico O Araripe1 em seu nmero 146, de 05 de junho de 1858, foi dedicadointegralmente ao caso de Hypolita: foram quatro pginas do jornal tratando de sua histria, das
quais mais de trs pginas destinadas a um relato da sua vida. No restante dessa edio foram
publicadas transcries de ofcios, referentes ao de liberdade movida por Hypolita e seus
curadores, contra Joo Pereira de Carvalho, apontado como escravizador de Hypolita e de seus
seis filhos: Rafael, Gabriel, Maria, Daniel, Paulo e Pedro.
O documento original, que foi mandado publicar no foi encontrado. possvel que
tenha se perdido, o que torna a publicao do jornal uma fonte preciosa, pois ainda so raros osdocumentos que apresentam os escravos, ou aqueles sob ameaa de serem escravizados, como
sujeitos de suas vidas, na luta para a conquista ou manuteno da liberdade, ou no esforo para
abrir brechas a seu favor no sistema escravista.
O jornal traz Hypolita como autora. Mas certamente no foi ela quem escreveu esse
texto. Formulamos a hiptese de que um dos irmos Gualter Martiniano de Alencar Araripe e
(ou) Luis Pereira Alencar, tenham escrito esse texto, baseando-se, ainda que parcialmente, na
verso contada por Hypolita sobre a sua trajetria de vida. Proximidade entre eles e Hypolitatinha existido, pois entre 1856 e 1858 ela viveu, em depsito, morando um tempo na casa de
Gualter e outro perodo na casa de Luis Pereira (ambas no Exu). Vrios indcios apoiam essa
interpretao: Exu e Crato foram os lugares em que Hypolita viveu na condio de escrava. Em
nenhum desses lugares houve registro de escravo que soubesse ler e escrever, segundo os dados
1O jornal cratense O Araripefoi publicado como semanrio durante uma dcada (1855/65). Seu acervo encontra-semicrofilmado e acessvel pesquisa por meio digital na Biblioteca Pblica Governador Menezes Pimentel(Fortaleza/CE). O peridico foi fundado, redigido e publicado por Joo Brgido dos Santos, que foi jornalista,
poltico, cronista e historiador e autor dos seguintes livros:Apontamentos para a histria do Cariri (1888), Miscelniahistrica(1889), O Cear: lado cmico(1899) Cear: homens e fatos(1919).
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trazidos no recenseamento do Imprio de 18722, que traz informaes sobre as habilidades de
leitura e escrita dos escravos. De acordo com esse censo, a totalidade dos 377 escravos
recenseados do Exu (Provncia de Pernambuco) apresentada como composta de
analphabetos (usando a escrita da poca, na ntegra do documento de recenseamento) e todos
os 728 escravos do Crato (Provncia do Cear) foram igualmente declarados. Por outro lado, o
vocabulrio refinado e a linguagem de folhetim utilizados n O Araripedemonstram que a pessoa
que o escreveu dominava plenamente o cdigo escrito e, mais que isso, sabia argumentar de
maneira a atrair a ateno dos leitores e de conquistar adeptos causa da liberdade de Hypolita.
Alm disso, patente a semelhana entre a escrita do documento transcrito e exibido acima com
outros textos tambm publicados nO Araripe, e assinados por Gualter Martiniano de Alencar
Araripe e Luis Pereira de Alencar, os curadores de Hypolita. Por fim, notrio no texto oenaltecimento das qualidades dos irmos Gualter e Luiz Pereira, colocando-os na posio de
protectores, philantropos, de coraes tam bondosos e anjos [luteiares] de minha
liberdade (da liberdade de Hypolita).
Os jornais servem como instrumentos dos partidos polticos, de faces ou grupos,so opinativos. Como afirmou Lilia Moritz Schwarcz, os jornais so aqui percebidos comoproduto social, isto , comoresultado de um ofcio exercido e socialmente reconhecido,constituindo-se como um objeto de expectativas, posies e representaes especficas3. O
jornal O Araripe foi uma publicao veiculada ao Partido Liberal da cidade do Crato. Dentreos objetivos dos idealizadores do jornal estava o plano de criao da provncia do Cariri, cujacapital deveria ser localizada no Crato, que conheceu um maior desenvolvimento. Para aconcretizao desse projeto, o jornal assumiu um papel pedaggico civilizatrio da populaodo Cariri, nos moldes do sculo XIX, em vrias aes. Props a civilizao dos moradores doCariri, principalmente do Crato, publicando textos sobre a conduta moral dos habitantes,sobre os usos adequados dos espaos rurais e urbanos, prticas de higienizao, etc. Oprogresso e enriquecimento econmico do Cariri tambm faziam parte da proposta de O
Araripe, mas isso no significava um posicionamento contra a escravido. Diferentemente,pretendia-se conservar a mo de obra cativa, bastante valorizada na regio na dcada de 1850.
Darlan de Oliveira Reis Junior desenvolveu um estudo dos inventrios post-mortemdo Crato,do perodo de 1850 a 1860, identificando a mdia de valor dos bens arrolados. De acordo como autor, possvel notar a importante participao do valor dos escravos na distribuio dos
2Disponvel em:. Acessoem: 21 jul. 2012.
3 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidados em So Paulo no final do sculoXIX. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 15.
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bens inventariados, chegando a quase 15%4. No Crato, no perodo do processo de liberdadede Hypolita e seus filhos (1856 a 1858), os escravos representavam os bens de valor maisexpressivos nas propriedades. Essa pode ter sido a razo ou uma das razes pelas quais JooPereira, ao contratar o servio de dois advogados para defender seus interesses nessa luta
judicial, investiu para legitimar a sua posse sobre Hypolita e seus filhos. Reis Junior observoutambm que no raro, no Crato, no referido perodo, um escravo possua valor maior do que asoma de todos os outros bens da propriedade. A mo de obra cativa era utilizada, sobretudona agricultura, principal atividade econmica da cidade, que recebia o apoio dO Araripe.
Nos seus quase dez anos de atividades jornalsticas, O Araripe foi um grande
viabilizador do apresamento de escravos evadidos. Entre os seus servios de reclames, estava a
publicao de anncios das fugas de escravos. Esses anncios tinham o objetivo de denunciar
para toda populao o sumio do escravo, de modo a facilitar a sua captura. Desse modo, O
Araripe colaborava com a manuteno da escravido no Crato, bem como, nas reas do Cear e
Pernambuco onde ele circulava. A luta de Hypolita pela sua liberdade e a de seus filhos,
amplamente divulgada num jornal que tinha interesses na conservao da escravido s se
justifica pela particularidade da situao: tratava-se de uma escravizao ilegal. Embora tenham
sido poucos os casos de escravizao ilegal, denunciados nO Araripe, o de Hypolita sem dvida
foi o que obteve maior repercusso. O jornal acompanhou em grandes traos a primeira instncia
de sua ao de liberdade. Publicou o relato da vida de Hypolita, cuja transcrio foi apresentada
acima, correspondncias e protestos das duas partes envolvidas, colocando nfase maior nacomprovao da liberdade de Hypolita. Tambm foram transcritos e publicados nO Araripe
peas do processo: ofcios, declaraes, depoimentos, peties, certides, cpia de registro de
batismo e sentena do juiz. Os outros casos de escravizao ilegal publicados nO Araripe so
bastante especficos, consistindo apenas em revogaes de alforrias pelos proprietrios ou
herdeiros. Cumpre acrescentar que, ao longo de toda sua existncia, O Araripe no publicou
material de teor abolicionista.
A dcada de 1850, perodo em que correu a ao de liberdade de Hypolita, foi umperodo de intensos debates acerca da escravido no Brasil, particularmente em torno da lei do
fim do trfico e suas consequncias, sobre a medida da ingerncia do Estado nos assuntos da
escravido, do direito propriedade privada, deixando, desse modo, expostos os impasses a
respeito dos encaminhamentos para uma libertao lenta e gradual dos escravos. Essas polmicas
j haviam ganhado espao no parlamento na dcada de 1840 e se intensificaram nos ltimos anos
4 REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Trabalho e uso da terra no Cariri cearense. Ponencia presentada al VIIICONGRESO LATINOAMERICANO DE SOCIOLOGA RURAL, Porto de Galinhas, 2010. Disponvel em:
. Acesso em: 27nov. 2012.
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da escravido. A dcada de 1850 foi tambm um perodo de intensas lutas contra a escravizao
ilegal.
Em 1852, ocorreu em vrios lugares do Brasil algo digno de ateno, um medo
generalizado das pessoas, livres e libertas, de cor de serem escravizadas. Essa temtica da
precariedade da liberdade das pessoas de cor foi abordada por Sidney Chalhoub. Ele partiu da
narrao e anlise dos acontecimentos de 1852. O estopim que provocou a atuao coletiva
dessas pessoas foi a entrada em vigor, em todo o Imprio, de um decreto do governo em janeiro
daquele ano, que estabelecia a obrigatoriedade dos registros de bito e nascimento. Outro decreto
da mesma data estabelecia a obrigatoriedade da realizao do recenseamento do Imprio em
1852. Populaes de cor de vrias provncias, como Alagoas, Piau e Pernambuco, rebelaram-se
contra a obrigatoriedade dos registros, e isso por medo de serem escravizadas. Os motins
deixaram mortos em vrias provncias. A justificativa dos revoltosos para os atos era a relao
que faziam dessas novas leis de obrigatoriedade dos registros de bito e nascimento e da feitura
do recenseamento com a Lei de 1850 que determinava o fim do trfico. Com a proibio de
traficar escravos, as pessoas livres de cor e seus descendentes acreditavam que seriam
escravizados e esses registros seriam utilizados para legitimar e organizar a escravizao dessas
pessoas. Chalhoub pde concluir em seu estudo que o medo de ser reduzido ao cativeiro se lhe
afigurava como um sentimento popular autntico, no se tratando, segundo o autor, de algoexgeno5.
Os acontecimentos de 1852 nos levam a abordar uma questo essencial no
entendimento da histria de Hypolita: as fronteiras entre a liberdade e a escravido. Assim,
podemos colocar as questes: como foi possvel uma mulher que nasceu livre tornar-se escrava?;
o que significava ser escravo no Crato no sculo XIX?; e o que significava ser livre, pobre e de
cor? Os acontecimentos de 1852 e a prpria histria de Hypolita revelam a instabilidade vivida
pelas pessoas de cor, sempre ameaadas pela real possibilidade de serem escravizadas. Sugere oquanto era frgil a condio social dessas pessoas e a necessidade e dificuldade constante da
manuteno da liberdade, no apenas por parte dos libertos mas tambm das gentes livres de cor,
como era o caso de Hypolita, j que era uma mulata.
Aparentemente banal, o caso de Hypolita est atravessado por uma infinidade de
condutas sociais, econmicas e polticas. Como tal, embora na escala de pequena dimenso, a
5CHALHOUB, Sidney.A fora da escravido: ilegalidade e costume no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2012,p. 24.
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histria de Hypolita pode iluminar a compreenso da onipresena da escravido no mundo dos
indivduos livres.
O caso Hypolita pode interessar particularmente a dois domnios temticos da
historiografia: a histria das mulheres e a histria da escravido. Numa sociedade em que as
regras so estabelecidas por uma hierarquia masculina, o fato de Hypolita ser uma mulher e de
cor deve ser levado em conta na explicao de tantos infortnios na sua histria, como por
exemplo, o de ter sido coagida a se casar. No documento apresentado acima, Hypolita declarou
que Joo Pereira obrigou-a a casar-se com um escravo que lhe pertencia. Foi uma das estratgias
empregadas por Joo Pereira para legitimar a escravizao de Hypolita. O relato transcrito acima
revela que aquele casamento despertava repugnncia em Hypolita. Ela no foi a nica escrava a
repudiar um casamento imposto pelo seu senhor: a historiografia tem revelado grandes dramas
nas unies dos cativos. Um desses exemplos apresentado por Sandra Lauderdade Graham. Em
Caetana diz no: histrias de mulheres da sociedade escravista brasileira6, a autora analisa a histria
de Caetana, uma escrava que repugnava o casamento arranjado e o noivo. A escrava contrariou a
sociedade patriarcalista e conseguiu adeptos para sua causa pela anulao deste casamento.
Cabe mencionar que durante muito tempo, a mulher foi silenciada nas pesquisas
histricas, sem que se atentasse para seu papel de sujeito. No raro, foi percebida como vtima,
passiva, sem autonomia e quando se trata da mulher escrava essa situao se agravava. Adiscusso de gnerocontribuiu para pr fim ao silncio das mulheres nas pesquisas histricas.
Rachel Soihet, observa que o gnero se torna, inclusive, uma maneira de indicar as construes
sociais a criao inteiramente social das idias sobre os papis dos homens e das mulheres7.
Nas ltimas dcadas, essas construes sociais indicadas pela autora vm sendo
evidenciadas no constante crescimento de estudos especficos, voltados para o papel social da
mulher. O livro de Maria Odila Dias, intitulado Quotidiano e poder:em So Paulo no sculo XIX8,
est inserido nesse conjunto de trabalhos historiogrficos que analisam as histrias das mulheressob novas perspectivas. A autora interpreta essas mulheres como construtoras de suas prprias
histrias, uma vez que conquistaram sua sobrevivncia e a de seus dependentes a partir de suas
prticas de trabalho informal e das relaes que estabeleciam com a vizinhana. Na histria de
6 GRAHAM, Sandra Lauderadale. Caetana diz no: histrias de mulheres da sociedade escravista brasileira. Trad.Pedro Maia Soares, So Paulo: Companhia das Letras, 2005.
7SOIHET, Rachel. Histria das Mulheres. In. CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. (Orgs.). Domniosda histria:ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 1997, p. 279.8DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder:em So Paulo no sculo XIX. So Paulo: Brasiliense, 1995.
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Hypolita e sua luta para se manter livre dentro doescravismo no Crato (Cear) e no Exu (Pernambuco)
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Hypolita, foram as relaes que ela estabeleceu com pessoas livres, como, por exemplo, seus
curadores Gualter e Luis Pereira, que apesar de serem escravocratas, fizeram a diferena,
potencializando sua luta na justia pela liberdade. Como afirmou Elciene Azevedo os escravos
no estavam, porm sozinhos em sua aproximao com o mundo do direito. (...) [S]ua busca por
liberdade era amparada, nos tribunais ou fora deles, por advogados que assumiam sua defesa9.
Estratgia de liberdade utilizada tambm pela escrava Liberata, apresentada em estudo de Keila
Grinberg, Liberata: a lei da ambiguidade, as aes de liberdade da corte de Apelao do Rio de
Janeiro no sculo XIX10. A autora problematiza a vida de Liberata, uma escrava que conquistou a
alforria, mas, assim como Hypolita, somente aps travar a luta judicial e ter vivido grandes
infortnios junto com seus filhos e no relacionamento com o seu proprietrio.
A fonte jornalstica que transcrevemos na ntegra, uma edio completa de O Araripe,
que julgamos de grande valor para o estudo da histria das aes de liberdade, o que lhe confere
importncia e o que justifica nossa escolha por essa documentao. Este campo de pesquisa
relativamente recente na historiografia da escravido e emergiu posteriormente ao debate
ocorrido na dcada de 1980 entre historiadores que defendiam a ideia de que o escravo estivera
reduzido condio de coisa, e historiadores (principalmente dos quadros da Unicamp) que
defendiam uma nova linha de interpretao, a do escravo-sujeito. No Brasil, Silvia Lara foi a
primeira a criticar a ideia da coisificao do escravo demonstrando que as relaes entre senhorese escravos eram definidas no cotidiano de luta e acomodao entre ambos.11O sucesso dessa
linha interpretativa tem aberto caminhos para estudos sobre as histrias de vida dos escravos e a
individualizao desses sujeitos. Para concluir, preciso ressaltar que a interpretao do mundo
dos escravos como um mundo em que eles lutam para se afirmar como sujeitos tem dominado o
interesse dos historiadores recentemente. Os tipos de fontes que eles tm privilegiado so as
aes cveis e criminais e as publicaes de jornais do perodo escravocrata como o documento
que apresentamos acima.
Recebido em: 20/11/2012Aprovado em: 29/01/2013
9AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurdicas e abolicionismo na provncia de So Paulo. Campinas, SP:Editora da Unicamp, 2010, p. 32.10GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade, as aes de liberdade da corte de Apelao do Rio de Janeirono sculo XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994.11LARA, Silvia Hunold. Campos da violncia: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1988, p. 355.