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SomanluRevista de Estudos Amaznicosano 7, n. 1, jan./jun. 2007

Copyright 2007 Universidade Federal do Amazonas SOMANLU REVISTA DE ESTUDOS AMAZNICOS Programa de Ps-Graduao Sociedade e Cultura na Amaznia, da Universidade Federal do Amazonas. (S OMANLU um heri mtico da Amaznia criado pelo escritor Abguar Bastos) E-mail: [email protected] REITOR Hidembergue Ordozgoith da Frota PR-REITOR DE PESQUISA E PS-GRADUAO Prof. Dr. Altigran Soares da Silva DIRETOR DO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS Prof. Dr. Ricardo Jos Batista Nogueira COORDENAO DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO SOCIEDADEE CULTURA NA AMAZNIA

Mrcio Souza (escritor) Milton Hatoum (escritor) Neide Esterci (UFRJ) Octavio Ianni (in memoriam) Renato Athias (UFPE) COMISSO EDITORIAL Prof. Dr. Narciso Jlio Freire Lobo Prof. Dr. Selda Vale da Costa Prof. Dr. Antnio Carlos Witkoski DIRETOR DA EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERALDO AMAZONAS

Prof. Dr. Iraildes Caldas Torres Prof. Dr. Joo Bosco Ladislau de Andrade Prof. Dr. Antnio Carlos Witkoski Prof. Dr. Mrcia Eliane Souza e Mello Elias Brasilino de Sousa (Representante discente) CONSELHO EDITORIAL Alfredo Wagner Berno de Almeida (Ufam-CNPq) Anamaria Fadul (USP) Boaventura de Souza Santos (Univ. Coimbra) Claude Imbert (cole Normale Suprieuse de Paris) Edgard de Assis Carvalho (PUC-SP) Edna Maria Ramos de Castro (UFPa) Flvio dos Santos Gomes (UFRJ) Jos Damio Rodrigues (Univ. Aores) Jos Vicente Tavares dos Santos (UFRGS) Julio Cezar Melatti (UnB) Keila Grimberg (UFF) Mrcio Ferreira da Silva (USP)

Prof. Dr. Renan Freitas Pinto COORDENADORA DE REVISTAS Prof. Dayse Enne Botelho ATUALIZAO DA CAPA (DETALHE/IMAGEM CEDIDA POR BERNADETE ANDRADE) Suellen Freitas PROJETO GRFICO (MIOLO) Vernica Gomes EDITORAO ELETRNICA Raisa Pierre SUPERVISO EDITORIAL Elione Angelin Benj ELABORAO E REVISO DE ABSTRACTS Prof. Dr. Paulo Renan Gomes da Silva

A exatido das informaes, conceitos e opinies so de exclusiva responsabilidade dos autores Publicada em janeiro de 2008 Somanlu: Revista de Estudos Amaznicos do Programa de Ps-Graduao Sociedade e Cultura na Amaznia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). --- Manaus: Edua, 2000 - v.: il.; 17 x 24 cm. Semestral At 2002 publicao anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amaznia. Interrompida em 2001. ISSN 1518-4765 1. Cultura Amaznica 2. Amaznia Sociologia 3. Amaznia Antropologia I. Programa de Ps-Graduao Sociedade e Cultura na Amaznia. CDU 316.722(811)Editora da Universidade Federal do Amazonas Rua Coronel Srgio Pessoa, 147 Praa dos Remdios, Centro CEP 6900-5030 Manaus Amazonas Brasil Telefax: (0xx) 92 3231-1139 E-mail: [email protected] Universidade Federal do Amazonas Instituto de Cincias Humanas e Letras Programa de Ps-Graduao Sociedade e Cultura na Amaznia PPGSCA Av. Rodrigo Octavio Jordo Ramos, 3000/Campus Universitrio ICHL CEP 69077-000 Manaus Amazonas Brasil Fone/Fax: 055 92 3647-4381/4380 www.ufam.edu.br / www.ppgsca.ufam.edu.br E-mail: [email protected]

SUMRIO Apresentao Artigos Indstria fonogrfica no Amazonas: subjugao aos padres globalizados e realizao da liberdade possvelElizabeth Duarte Cavalcante9 5

Do moderno ao selvagem: a fotografia amaznica de George HuebnerAndreas Valentin

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Abram alas que eu quero passar: o desfile do automvel na cidade de ManausTatiana Schor

55

A heterogeneidade representacional da Amaznia nos desenhos de crianas nativasNorma Felicidade Lopes da Silva Valncio, Antonio Roberto Guerreiro Jnior, Milene Peixoto vila e Cnthia Cssia Catia

71

Kumu, bairo e yas. Os especialistas da cura entre os ndios do rio Uaups AmRenato Athias

87

Pesca e conflitos scio-ambientais na Amaznia Central: estudo em uma rea com manejo comunitrioTony Marcos Porto Braga, Jos Fernandes Barros e Maria do Perptuo Socorro Chaves

107

A noo de habitus em O desencantamento do mundoTherezinha de Jesus Pinto Fraxe e Antonio Carlos Witkoski

121

Manejo de recursos naturais por populaes ribeirinhas no Mdio SolimesMaria do Perptuo Socorro Rodrigues Chaves e Dbora Cristina Bandeira Rodrigues

141

A reforma agrria ecolgica na Floresta Nacional de TefThas Brianezi

153

Conferncia Conhecimento e transformao social: para uma ecologia dos saberesBoaventura de Souza Santos175

Entrevista Notas sobre histria da antropologia no BrasilJulio Cezar Melatti193

Resenha Vises sobre a obra de HatoumMarcos Frederico Krger Aleixo211

Documento Os ndios e os caboclos na Amaznia: uma herana culturalantropolgicaSamuel Benchimol221

NoticirioDissertaes defendidas Eventos Publicaes recebidas Produo cientfica dos docentes do PPGSCA Ncleos de Pesquisa dos docentes vinculados ao PPGSCA235 236 236 237 239 243 251

Nmeros anteriores Normas para apresentao de trabalho

Apresentao

Cidade, carros, rdio, fotografia. A Amaznia urbaniza-se, transforma-se, vive em constante processo de metamorfose. Fenmeno que vem sendo estudado h algum tempo, a crescente migrao das populaes ribeirinhas e indgenas para as vilas, sedes municipais e capitais assunto presente em vrios ensaios, embora temas j tradicionais como os dos recursos naturais e os conflitos entre as prticas artesanais e industriais no uso dos mesmos, as reformas agrrias ecolgicas que a regio vem vivenciando, os saberes indgenas recuperados, continuem a merecer a ateno dos estudiosos, pois so fontes que ainda fazem emergir inquietaes epistemolgicas que buscam interpretaes multidisciplinares e tentativas diversas de explicao para a rica e complexa experincia da sociodiversidade da regio. Com trabalhos de pesquisadores de vrias partes do Brasil e do exterior, alm da significativa contribuio de professores e alunos da Universidade Federal do Amazonas, Somanlu, a revista do Programa de Ps-Graduao Sociedade e Cultura na Amaznia, entra em seu oitavo ano de publicao e afirma-se no meio acadmico como um veculo de divulgao cientfica qualificado. A presena em seu corpo editorial de renomados professores e pesquisadores nacionais e internacionais confere-lhe um status de reconhecimento e aceitao na comunidade cientifica e cultural mundial. Ensaios como o do prof. Renato Athias, da Universidade Federal de Pernambuco, sobre a relao entre as prticas indgenas de cura, a medicina indgena e os servios de sade no atual modelo nacional de ateno da sade das populaes indgenas, no rio Uaups Am; a brilhante e lcida conferncia de Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, que nos apresenta proposta nova para uma ecologia dos saberes, e a entrevista com o prof. Julio Cezar Melatti, da Universidade de Braslia, um dos mais conhecidos pilares da Antropologia no Brasil, so exemplares de uma frutfera troca de conhecimentos e de um intercmbio poltico-cultural produtivo. Embora a revista objetive a compreenso dos processos socioculturais na Amaznia, ensaios de cunho terico so por vezes aceitos e publicados, principalmente quando contribuem para abrir, luz das cincias sociais, as portas de passagem para a compreenso da vida na regio. Este o cunho do ensaio de Terezinha Fraxe e Antonio Carlos Witkoski sobre o livro O desencantamento do mundo, de Pierre Bourdieu. Completa esta edio uma esclarecedora resenha de Marcos Frederico Krger sobre o livro Arquitetura da Memria, organizado por Maria da Luz Cristo, queSomanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007 5

homenageia o escritor Milton Hatoum atravs de 28 estudos reflexivos sobre a produo do artista. No j consagrado Documento, lugar de homenagem a estudiosos locais, uma conferncia do prof. Samuel Benchimol sobre ndios e caboclos na Amaznia, apresentada em 1994, em Oslo, em reunio da Sociedade dos Americanistas. importante, aqui, assinalar a produo cientifica dos discentes atravs das suas dissertaes e dos docentes por meio de seus ncleos de pesquisa, seja atravs de projetos em execuo seja na publicao de livros. Este , certamente, um dos itens que vem destacando nosso Programa, que mereceu receber da Capes, no ano de 2007, o nvel de Doutorado. Temos certeza que Somanlu contribuiu para este feito.

Artigos

Indstria fonogrfica no Amazonas: subjugao aos padres globalizados e realizao da liberdade possvel

Elizabeth Duarte Cavalcante*

Resumo Este artigo identifica alguns padres de funcionamento da indstria fonogrfica que se reproduzem, no Brasil, a partir da regio sudeste e que se fragmentam no Amazonas. Mostra que Manaus ainda no efetivou um sistema de cluster em torno da msica regional, mas artistas locais conseguem sadas criativas, exercitando uma liberdade possvel Palavras-chave: indstria fonogrfica; padres globalizados; liberdade possvel.

Abstract This article identifies some operational standards for the phonographic industry, which are widely reproduced in Brazil originating from the Southeastern region and which are fragmented in the State of Amazonas. It shows that Manaus has not yet developed a cluster system around the regional music. Local artists, however, have succeeded in adopting creative ways out by exercising a possible freedom. Keywords: phonographic industry; globalized standards; possible freedom.

* Jornalista. Mestre em Sociedade e Cultura na Amaznia Ufam. Assessora de Imprensa da Secretaria de Estado da Fazenda Am. E-mail: [email protected].

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Introduo O presente estudo da indstria fonogrfica concentra-se, inicialmente, na identificao dos padres globalizados de funcionamento do mundo da msica e sua reproduo no Brasil; adentra pelo desenvolvimento do trabalho de produo fonogrfica em Manaus, levando em conta interferncias econmicas e culturais especficas e, por fim, identifica a atuao de artistas locais com vistas realizao de uma liberdade possvel dentro de um jogo de dominao simblica. A indstria fonogrfica movimenta-se num cenrio rico e complexo, onde influncias globais ou extrnsecas so exercidas sobre ambientes locais ou regionalizados, de pblicos mais segmentados, dinamizando o processo de produo musical, interferindo nele, fazendo surgir novos produtos que, por sua vez, podem vir a ser alocados no ambiente mundializado da msica. Essa via de mo dupla evidencia uma perspectiva ambivalente que obriga adoo de um mtodo de trabalho em que se deve ir tentando desvelar, de uma realidade contraditria e repleta de intermedirios, os principais agentes envolvidos no processo, em que espaos atuam, de que maneira forjam os padres globalizados de comportamento desta indstria e porque motivos estes padres so mundialmente adotados. possvel traduzir esse ponto de vista nas palavras de Lucrcia Ferrara (1993 p.161-171), quando prope um novo vetor epistemolgico que permite pensar globalmente a localidade, ou ainda, em que a produo da informao (instantnea nos dias de hoje) vista, percebida e pesquisada como um processo que procura identificar padres globais pr-estabelecidos na sociedade para, em seguida, estranhlos a partir de padres locais do receptor. Entenda-se, aqui, que estes padres so, efetivamente, uma representao vlida no ambiente mundial da indstria fonogrfica e que garante o seu modus operandi. Caso essa representao fosse substituda por outra, o padro se modificaria e as regras do jogo seriam alteradas significativamente dentro do processo. Lanando mo de um recurso da Retrica, introduzido na prtica jornalstica brasileira no fim da dcada de cinqenta pelo jornalista americano Fraser Bond (1962, p. 147), e que tem o objetivo de apreender o contexto em que os fatos noticiosos se desenvolvem, resumindo-os num lead (guia, comando, primazia), cuja origem remonta a Roma Antiga com Marcus Quintilianus (35-95 a.C.) nas suas Instituies Oratrias,10 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007

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distinguiremos cinco perguntas que nos auxiliaro a identificar e entender como se organizam os padres globais. So elas: Quem? (Os agentes que atuam no processo). O qu? (O padro global pr-estabelecido, tpico e vlido do processo) Como? (O mecanismo de atuao do processo) Onde? (O espao ou abrangncia do processo) Para qu? (Com que objetivo atua ou o por que atua da maneira como atua) Os padres globais do processo de produo da indstria fonogrfica Quando Theodor Adorno (2002) trata de sua teoria do tempo livre - aquele tempo em que as pessoas no esto lidando com os seu trabalho -, critica o que se convencionou chamar de hobby, as atividades realizadas com o intuito de matar o tempo, ideologicamente escolhidas atravs da oferta do mundo dos negcios do entretenimento (nas dcadas de 40 e 50 conhecidos como negcios do showbussiness). Para Adorno, escutar msica era um momento integral de sua vida particular, por isso, no aceita esta atividade como um hobby. Ao relembrar, contudo, a ideologia do hobby, mais do que discutir se ela existe ou no nos dias de hoje, com a conceituao dada pelos frankfurtianos, necessrio reconhecer que a indstria fonogrfica desenvolve seus processos no bojo da indstria do entretenimento,1 espao em que a noo de cultura claramente reificada2 e o divertimento toma propores industriais, distanciando-se cada vez mais da realizao artstica intuda por Adorno quando escutava ou compunha msica, em sua vida privada, motivado por um sentimento de puro deleite. O sentimento apropriado aos produtos da indstria fonogrfica no simplesmente o prazer de escutar msica. Trata-se de um sentimento exacerbado de paixo personificada em um cone, um megastar cujas produes so levadas ao extremo de cifras bilionrias e cuidados estilsticos com o objetivo de despertar desejos e, ao mesmo tempo, satisfaz-los.3 No espao da fama internacional ou das celebridades, h algo mais alm da msica e do prprio artista e que constri, efetivamente, o megastar como representao de um processo de produo. Esse algo mais podem ser as grandes gravadoras ou distribuidoras de msica, ou ainda os produtores e especialistas em marketing artstico. Caso que o processo de produo da indstria fonogrfica mundial no seria oSomanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007 11

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mesmo se o megastar no se constitusse em uma dos principais buscas e vantagens das grandes gravadoras e dos produtores que nela atuam. O megastar , assim, o primeiro padro global aqui identificado e que pode ser contextualizado a partir do esquema seguinte: Quem? As transnacionais do disco, as distribuidoras internacionais, as grandes produtoras e agncias. O qu? O megastar. Como? Atravs de produes bilionrias e recursos estilsticos do prprio artista, externos a ele, mas por ele adotados. Onde? No espao denominado mundo da msica ou dos megastars. Para qu? Despertar desejos e satisfaz-los, atendendo a leis de mercado. O fenmeno que se criou a partir da existncia do megastar curioso: crescer mais tornou-se um problema na indstria fonogrfica globalizada. A deciso de investir em um novo artista transformou-se em um desafio, quase um atrevimento. Durante entrevista com um engenheiro e produtor de udio,4 cuja finalidade foi entender a atuao dos produtores artsticos no mundo da msica, ressaltou-se o papel do profissional considerado a figura-chave desta organizao mundial: o diretor de arte e repertrio, ou diretor de A-R, aquele que decide em quem a indstria vai investir. Estes produtores, quando atuam em uma gravadora de nvel mundial, recebem cerca de oito a vinte mil msicas para escutar, por ms, e s selecionam no mximo trs, quatro. Apesar disso, no devem ser apontados como nica causa da projeo de um artista. Observe-se o que diz Edgar Morin (2002, p. 76-77) acerca do que devemos considerar como sendo uma causa, na medida em que se procura apreender uma realidade:[...] preciso aprender a ultrapassar a causalidade linear causa efeito. Compreender a causalidade mtua interrelacionada, a causalidade circular (retroativa, recursiva), as incertezas da causalidade por que as mesmas causas no produzem sempre os mesmos efeitos, quando os sistemas que elas afetam tm reaes diferentes, e por que causas diferentes podem provocar os mesmos efeitos.

Ora, se queremos entender o decurso da projeo de um artista no mundo da msica deve-se, antes, observar que a indstria fonogrfica um sistema12 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007

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atravessado por choques internos de foras, de poder, portanto, uma estrutura de causalidades inter-relacionadas. Note-se, por exemplo, e ainda de acordo com o depoimento dado em entrevista por um produtor artstico, o que ocorre no incio da carreira de um diretor de A-R que recebe de uma grande gravadora uma cota hipottica de dois milhes de dlares para investimento em um grupo de artistas. Com dois milhes ele ir decidir em quem investir. Se nesse investimento consegue vender trs milhes, no prximo ano a gravadora vai confiar a ele quatro milhes e o compromisso ir dobrar a cada ano, nesta ordem. Jamais a gravadora reduzir valores, at o ponto em que o profissional estar com a responsabilidade de investir dez, vinte milhes de reais e caso no obtenha um retorno satisfatrio em um dos investimentos poder ser retirado ou substitudo no mercado. Esta presso de estar fora do mercado, caso no consiga produzir grandes sucessos, e, quem sabe, um megastar, torna a carreira do diretor de A-R uma das mais contraditrias, pois o instiga a conquistar aquilo que ele no vai conseguir gerir. O resultado que estes investidores acabam perseguindo o que chamaremos aqui de uma performance mdia, nem medocre, nem brilhante. Assim, considerando que chegue a formar um grupo de oito artistas que garantam a sua performance mdia, arriscar em, no mximo, dois, trs novos a cada ano, pois mais seguro para ele que, no grupo de artistas em que investe, haja um certo equilbrio, ou seja, um no faa um sucesso estrondoso enquanto outro tenha um desempenho muito baixo. A performance mdia, portanto, configura-se como o segundo padro global de funcionamento da indstria fonogrfica e que segue resumido no modelo proposto: Quem? O diretor ou produtor de A-R ou qualquer produtor que ligue o artista s gravadoras ou distribuidoras. O qu? A performance mdia. Como? Atravs de investimentos em artistas selecionados. Onde? Na rea determinada pela indstria fonogrfica mundializada. Para qu? Evitar sucessos estrondosos junto a baixos desempenhos, em grupos com a mesma origem de investimentos. Importante ressaltar que os diretores de arte e repertrio so, em sua maioria, produtores que foram convidados a se tornar diretores, ou, produtores a quem simplesmente foi dada a incumbncia de decidir pelos novos investimentos. O papelSomanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007 13

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destes profissionais, os produtores em geral, comea, assim, a se configurar quase como uma condio sem a qual o mundo da msica no funcionaria. Os produtores, de maneira geral, parecem ser os responsveis pelas caractersticas representativas prprias dos produtos da indstria cultural. Eles possuem viso multidisciplinar e so dotados de capacidade de criar representaes mundialmente vlidas atravs de uma agudeza de percepo de padres culturais. Pode-se buscar uma relao dos mesmos com um outro tipo de profissional j refletido no campo terico. Ianni (1995, p. 95), lembra a figura do intelectual orgnico, ao referenciar Gramsci:[...] os chamados intelectuais orgnicos so aqueles que atuam nos centros mundiais do poder, nas organizaes e empresas transnacionais e que influenciam, diretamente, nos processos de dominao poltica e apropriao econmica que tecem o mundo, em conformidade com a nova ordem econmica mundial [...].

Os produtores enquanto intelectuais orgnicos evidenciam-se, desta forma, como o terceiro padro global pr-estabelecido no processo de produo da indstria fonogrfica, o qual detalhamos da seguinte forma: Quem? Os produtores. O qu? Os produtores enquanto intelectuais orgnicos. Como? Atravs da manipulao de cdigos culturais para a criao de representaes mundialmente vlidas. Onde? Nas transnacionais do disco ou em pequenas produtoras e agncias que conseguem se aliar s grandes distribuidoras de msica. Para qu? Validar um processo de dominao poltica e apropriao econmica. Constituem, desta forma, os principais padres globais de funcionamento da indstria fonogrfica mundial estes trs elementos que, por hora, conseguimos identificar como sendo o megastar, a performance mdia e os produtores enquanto intelectuais orgnicos. Dois deles, o megastar e os intelectuais orgnicos de produo, so representados por pessoas, o que os coloca igualmente na condio de sujeitos inter-relacionados do processo; e um outro a performance mdia, uma representao de um processo intrnseco da indstria com influncia decisiva no trabalho e no fazer artstico dos sujeitos, o que a coloca, no conjunto do funcionamento14 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007

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da indstria, na condio de causalidade circular ou retroativa, pois em torno dela movimentam-se, aprisionados, os interesses em jogo. So estes padres de funcionamento da indstria os responsveis pelas grandes ondas de sucesso que se arremessam sobre as localidades gerando uma espcie de estupefao entre os artistas locais. A essa impresso de estar preso a um modelo cclico de funcionamento que denominamos subjugao. Antes, porm, de procurar entender os mecanismos de resistncia que, porventura, se manifestem nas localidades, necessrio ter a percepo do que ocorre com estes padres, ou como eles se reproduzem e se adaptam, no Brasil e no Amazonas. Aspectos da produo fonogrfica no Brasil e no Amazonas Para Tosta Dias (2000), atualmente o Brasil participa do mercado mundial de discos devido a circunstncias, concentradas entre os anos sessenta e setenta, que possibilitaram a expanso da indstria fonogrfica. Essas circunstncias histricas so assim elencadas pela autora: a grande fertilidade musical brasileira da segunda metade dos anos sessenta e incio dos anos setenta, primeiro com o movimento Tropiclia e depois com o movimento Jovem Guarda (nestes dois momentos sui generis da cultura brasileira, o mercado nacional conquistado pela transnacional do disco, que modifica a mentalidade do empresrio local, no mundo do disco e no dos grandes espetculos); o surgimento do long-play que diminuiu gastos de fabricao e otimizou o processo de produo; a introduo da msica estrangeira em substituio s msicas censuradas pelo regime militar; e, finalmente, a msica que se torna sucesso nas rdios de todo o pas por ter sido includa na trilha sonora das novelas da Rede Globo. A expanso da indstria fonogrfica, no pas, contou ainda com ascendncias culturais importantes. Ortiz (apud DIAS, 2000, p. 11) chama ateno para o fato de que, no Brasil, a tradio musical tem se configurado como um campo frtil para a indstria fonogrfica, assinalando que [...] uma diversidade de ritmos, uma pluralidade de gneros musicais, uma rica expresso de msica popular, instrumental e de canto, constituem o seu legado. A lngua portuguesa um outro elemento que merece ser levado em conta, uma vez que o Brasil um pas que pouco fala outras lnguas. Estes fatores conjugados levaram a uma tendncia da msica popular brasileira como mercadoria cultural, que se efetivou nos noventa com umSomanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007 15

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consumo nacional em larga escala, fenmeno este que surpreende a prpria indstria fonogrfica e deixa o pas em posio privilegiada frente ao mercado mundial, pelo menos neste aspecto. Estatsticas da Federao Internacional da Indstria Fonogrfica IFPI (International Federation of the Phonographic Industry), que associa mais de mil e quatrocentas gravadoras em setenta e seis pases, revelam que, no incio da dcada de noventa, o gnero nacional representava menos de 60% do que era comercializado pela indstria. Hoje, 76% da msica vendida no mercado fonogrfico brasileiro so nacionais, o que leva a Associao Brasileira de Produtores de Disco (ABPD, 2002, p. 20) a tecer o seguinte comentrio em sua Publicao Anual:[...] o ano de 2002 manteve o mercado brasileiro como forte produtor de msica nacional, uma vez que 76% do total das vendas foram de produtos de artistas brasileiros. Este percentual um dos mais altos do mundo, perde apenas para o mercado norte-americano e empata com o japons, ficando a frente de vrios pases com forte trao cultural como Frana, Itlia, Inglaterra e Alemanha.

Tudo isso conduziu a indstria fonogrfica brasileira produo de seus prprios megastars e a ondas de sucesso sazonais, sempre a partir da regio sudeste, onde se concentram as associaes de produtores fonogrficos. Estas ondas se propagam pelas diversas regies do pas, que nem sempre conseguem reproduzir, em seus movimentos internos, o processo dos grandes centros do Brasil. o caso do Amazonas, cuja produo de msica gravada acaba se dando de maneira fragmentada. Tal fragmentao no se observa somente no mbito da indstria fonogrfica; pode-se mesmo dizer, concordando com o economista Admilton Salazar (2004, p. 349) que h uma necessidade de desenvolver recursos humanos para o domnio de novas tecnologias que viriam a consolidar o capital intelectual industrial do Estado. A crtica feita pelo autor poltica de desenvolvimento vigente refere-se justamente [...] ausncia de definio e de criao de clusters sinrgicos para o fortalecimento da cadeia produtiva local. Eduardo Athayde,5 em reportagem no stio Wordwatch Institute no Brasil, comenta o surgimento de clusters no pas, com diversas vocaes e tamanhos, sobretudo aqueles ligados ao entretenimento, entre eles, o cluster da msica na Bahia, que difundiu para o Brasil a cultura das festas de rua com trios eltricos e16 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007

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carnavais fora de poca e ritmos como o ax music. Concordando com Salazar, este autor tambm acredita que os clusters diminuem custos, somam esforos, otimizam investimentos e potencializam resultados, todavia, assevera que estes no so uma frmula mgica, de implementao simples, pois requerem pesquisas de mercado para identificao de potencialidades regionais e estratgias de utilizao dos mesmos. No Amazonas, no h uma associao de produtores fonogrficos e os artistas, em sua maioria, realizam o sonho de gravar um disco como um evento isolado de suas prprias vidas, sem que isso faa parte de uma carreira planejada. Os estdios, mal equipados e mal constitudos sob o ponto de vista legal, tentam realizar o papel das gravadoras, mas o resultado sempre defeituoso, displicente. Estes aspectos analisados apenas indicam uma base pouco sinrgica, organizada, por parte de artistas, empresrios e produtores. Eles so insuficientes para uma compreenso das estratgias utilizadas pelos sujeitos, da criatividade e da resistncia exercida pelos mesmos, ainda que isoladamente, com vistas produo local de msica gravada, como se observa a seguir. Realizao da liberdade possvel A metfora cinematogrfica do roteiro do filme de Werner Herzog (1983), Fitzcarraldo, apropriada para possibilitar uma reflexo em torno da luta de foras simblicas entre o nativo e a tecnologia que choca ou paralisa, como expe o trecho da cena intitulada Floresta no Pachitea (1983, p. 63-64):[...] nossos olhos examinam a orla da floresta, nosso olhar desliza lentamente, procura penetrar nas profundezas da mata luzidia. Entretanto, nada se move, h apenas um silncio matutino e um rufar abafado, vibrante e implacvel de todo um grupo de tambores. [...] Fitzcarraldo sobe com seu fongrafo no teto do navio, na pequena plataforma de madeira. Agora Caruso vai ser til, diz para si mesmo. [...] de sbito sente-se um golpe duro e seco ao lado da cabea de Huerequeque, e uma flecha do tamanho de um brao vibra com um zumbido ameaador na parede de madeira da cozinha. No atire, seu filho da puta!, grita-lhe Jaime de cima da ponte. O homem abaixa a arma e refugiase em um dos camarotes abertos. E de repente soa a msicaSomanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007 17

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de Fitzcarraldo, a voz de Caruso, melanclica, bonita, lenta e muito arranhada. A msica se mistura com o rufar dos tambores, sobrepe-se a eles, fazendo com que silenciem pouco a pouco. [...] l em cima, na ponte, Fitzcarraldo descobriu algo com seu binculo. L tem uma canoa, diz ele, posso ver a parte de trs, est bem pertinho da margem. [...] Mais nada. A mata parece paralisada de emoo com a triste e bela voz de Caruso.

A imagem do rufar dos tambores sendo silenciada pela voz de Caruso a se projetar de um fongrafo, causando uma paralisia emocional no ambiente da floresta, parece refletir a reao do artista amazonense diante das influncias hegemnicas. Ao gerar ondas de sucessos mundiais que se arremessam sobre as localidades, transformando-se em ondas nacionais, e depois regionais, impondo-se a mentes e emoes, provocando choques, em virtude da cultura nativa previamente entronizada, a indstria fonogrfica mundial impe um modelo de funcionamento baseado nos padres j estudados. Ao mesmo tempo, no campo da diferenciao simblica, esse modelo gera reaes configuradas em uma busca por tentar fazer diferente. a idia da execuo de uma liberdade possvel, da filsofa Marilena Chau,6 quando sugere que[...] em vez de pensar a liberdade como direito de escolha, vale a pena pens-la como o poder de criar o possvel; a liberdade essa capacidade dos seres humanos de fazer existir o que no existia, o possvel, de inventar o novo.

assim que os sujeitos locais movimentam-se ora na tentativa de apreender os mecanismos globais utilizados pela grande indstria, ora na articulao de aes que a liberdade do processo permite com vistas a inventarem e reinventarem produtos. Em Manaus, a produo da onda local do forr, que no um ritmo tipicamente regional, encontrou um ambiente propcio de divulgao em virtude da forte identificao do amazonense com a regio nordeste, especialmente com a capital do estado do Cear, Fortaleza, de onde migraram os primeiros grupos que influenciaram produtores e artistas locais. O produto foi to bem assimilado que acabou gerando uma onda de sucesso regional apoiada no trabalho de produtores locais.18 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007

Elizabeth Duarte Cavalcante

O forr produzido pelas bandas amazonenses possui letra e dana mais erticas do que o tradicional forr nordestino; assimilou nos ltimos anos forte influncia da dana caribenha e, mais recentemente, de bandas do Estado do Par. Outrossim, esses produtos combinados foram capazes de competir, no mercado, com aqueles outros que lhe deram origem e adquiriram o status de representao musical regional, o que se pode considerar legtimo, uma vez que o forr local ganhou caracteres novos capazes de diferenci-lo dos demais. Essa onda de sucesso regional em que se transformou o forr apresentou ao pblico megastars regionais, sazonais, com elevada presena na mdia local e espaos de projeo em shows, programas populares de rdio, programas locais de televiso e na chamada balada.7 No trabalho que gerou a onda do forr amazonense, agora exportada para o nordeste, ficam, assim, manifestos os padres globalizados do mundo da msica, realocados no ambiente local. As bandas alcanam um alto e rpido sucesso, como no padro megastar, e assim que obtm a expanso desejada pelos produtores, caem no crculo da performance mdia, uma vez que os grupos com mesmo estilo se multiplicam e j no se torna mais proveitoso investir muito em poucos, mas sim, medianamente, em muitos, garantindo a sobrevivncia da onda local por mais tempo. A produo e o consumo da toada de boi-bumb,8 mostra-se emblemtico de uma indstria que deu um passo avanado na trajetria de produo fonogrfica, no Estado, conseguindo oferecer ao Brasil uma identidade musical da regio amaznica, mas que no logrou se sustentar enquanto onda nacional, conservando no seu interior problemas de delicada compreenso. A primeira grande exploso de consumo de toada de boi-bumb, em Manaus, data de 1998, logo aps a construo de um bumbdromo,9 no municpio Parintins, no Amazonas. Tudo que existia antes disso, em termos de fonografia, eram fitas cassetes gravadas artesanalmente. Tanto as agremiaes quanto os prprios artistas reproduziam essas fitas em gravadores portteis e tocavam nas rdios. Esse foi, portanto, o primeiro processo de gravao de toadas: das rdios para os gravadores portteis, em casa. Essa tecnologia denota um movimento recm-sado do bero de suas tradies, da msica passada de pai-para-filho e que demorou cerca de dez anos para chegar a Manaus atravs do rdio, da propaganda boca-a-boca. Enquanto produto fonogrfico nascente, a toada de boi-bumb possua potencial, mas carecia de grandes investidores e da ao de intelectuais de produoSomanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007 19

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que entronizassem a toada no mundo da tecnologia fonogrfica, com a gravao de CDs, o que s chegou a ser viabilizado em 1995.10 Aps consolidada no ambiente local, a toada de boi-bumb alimentou os sonhos de projeo nacional de artistas e produtores. E os passos nesse sentido foram dados at o ano de 1998, que apontou os indcios de um lanamento nacional a qualquer instante. Todavia, algumas contradies com estratgias primordiais adotadas no mundo da msica, entre elas a adoo de um planejamento de marketing e de mdia, acabaram vindo tona, demonstrando toda a fragilidade do sistema em formao. Um fato que influenciou negativamente na tentativa amazonense foi protagonizado pela gravadora Amazon Record, que detinha o contrato com os artistas da toada de boi-bumb.11 Ainda outro elemento que merece destaque que o Brasil acabou conhecendo diversos estilos de uma mesma toada, como no caso do lanamento da msica Tic-Tic-Tac. 12 Ao lado da questo da incongruncia rtmica houve a fragmentao interna do movimento boi-bumb que mantinha, de um lado, as agremiaes folclricas Garantido e Caprichoso e, de outro, os artistas do boi-bumb, numa concorrncia velada por mercado, denunciando uma relao indefinida sob o ponto de vista legal, entre os artistas e a direo das agremiaes folclricas.13 Resta-nos a reflexo em torno do regionalismo enquanto luta simblica num mercado de bens simblicos. Para Pierre Bourdieu (2003, p. 124) [...] o regionalismo , de fato, um caso particular de luta simblica em que os sujeitos esto envolvidos em dois estados: individualmente e dispersos ou coletivamente e organizados. Tanto em um quanto em outro a luta que se trava em torno de vantagens correlativas de natureza econmica e de natureza simblica, estas ltimas referentes aos estigmas utilizados para reforar a idia de um produto local, regional, pertencente a um povo, em confronto ao universal, igual e dominador, como so os produtos da grande indstria fonogrfica. Nesse campo aparentemente dominado pelo poder global trava-se, na verdade, uma luta de foras assim configurada: os estigmas regionais brigando por visibilidade, num espao em que os estigmas universais so os mais visveis. Conscientes das dificuldades de se inserirem num modelo gigantesco, sem contarem com a alavanca financeira de produtores executivos e arrastados pelo desejo natural de todo artista em difundir um trabalho e ter um pblico que o20 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007

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aprecie, artistas locais seguem uma trajetria de sobrevivncia que abriga, em seu interior, no uma marginalidade com toda a carga negativa embutida nesta palavra, mas sim uma digresso criativa do caminho imposto pela indstria fonogrfica, caracterizada pela bandeira ou pelo estigma regionalista.14 No Amazonas, o grupo musical Razes Caboclas15 ilustra bem essa digresso. O grupo chegou a Manaus em fins dos anos 80 e ao longo desse tempo tentou se firmar no mercado como referncia musical regional. No primeiro momento enfrentou a onda do forr, em seguida o choque do boibumb de Parintins e depois, novamente, uma onda de forr. Ainda assim o grupo oscila entre as dez maiores vendagens do grupo Bemol, conseguindo se manter sobretudo nas entressafras desses ciclos, em espaos onde so chamados a representar a msica amaznica.16 Nas oitenta obras gravadas pelo Razes Caboclas so identificados dezesseis ritmos retirados do ecletismo musical amaznico, entre eles a balada, a cano, a salsa, a toada, o forr e a msica andina.17 O trabalho em relao mdia envolve a realizao de shows transmitidos ao vivo por canais locais, entrevistas em rdio, televiso, jornais e revistas e participaes em trilhas sonoras de grandes reportagens e documentrios.18 A prospeco de mercado do grupo realizada atravs de pesquisa particular encomendada indica, por exemplo, um contingente de vinte milhes de pessoas, potenciais ouvintes de msica regional. Em um trabalho exclusivamente voltado para a regio, objetivando alcanar apenas dez por cento desse pblico, a venda anual apontada de cem mil discos, o que daria uma sustentao muito boa para qualquer artista. Pode-se, atravs da anlise desses trs movimentos de produo local de msica gravada (forr, toada e ritmos regionais), reinterpretar a mtafora da resistncia do artista amazonense, contida na cena de Fitzcarraldo, sempre considerando tratarse de uma luta simblica. A indstria fonogrfica local, representada na cena pelos nativos, comea a descobrir as flechas ou as armas que pode utilizar no campo dessa luta, ainda que isolada. Estas armas imitam a forma corriqueira das ondas de sucesso, como no caso do forr. De outra feita so atiradas quase a esmo, como na toada de boibumb, produzindo enorme euforia, mas sem lograrem consolidao no bojo do mercado estrangeiro e massificado. A maior arma nativa, todavia, a digresso para aSomanlu, ano 7, n. 1, jan./jun. 2007 21

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criao do novo, permanece ainda sendo gestada, realizando pequenas convulses que aqui e ali causam surpresa. Aparecem, de uma hora para a outra, sem que ningum espere, comunidades, grupos de consumidores de produtos musicais at ento desconhecidos das massas; artistas duramente apartados da mdia ressurgem da obscuridade dignificados por um pblico fidelizado. Notas O termo indstria do entretenimento veio citado em pesquisa recente assinada pela consultoria Pricewaterhouse Coopers, reproduzida na revista Exame de maro de 2005, A prxima atrao. A indstria do entretenimento rene no s a indstria fonogrfica, mas o rdio, o cinema, as gravadoras, o teatro e as editoras. Segundo a reportagem, ela faturou no ano de 2004 1,3 trilho de dlares, alcanando um patamar maior que a indstria blica e equivalente ao da indstria automobilstica e da telecomunicaes. 2 No processo de alienao, o momento em que a caracterstica de ser uma coisa se torna tpica da realidade objetiva. 3 A mesma reportagem de capa da revista explica como a indstria do entretenimento vem atraindo o interesse dos demais segmentos empresariais que desejam criar uma relao de intimidade com o mundo das celebridades. 4 Entrevistamos um produtor que conjuga a perspectiva ambivalente do global e do local. Ele amazonense, licenciado em estudos mercadolgicos da indstria fonogrfica pela School of Audio Engineering e pela Middle University, ambas da Inglaterra. Contribuiu com este trabalho no dia 03.11.2004. tambm proprietrio de uma rdio cuja principal caracterstica manter links, em seus boletins noticiosos ao vivo, com jornalistas de diversas agncias do mundo. Atualmente montou uma produtora, em Manaus, com sede conjugada na prpria rdio, por meio da qual pretende lanar artistas amazonenses em espaos internacionais. 5 Eduardo Athayde administrador, empresrio, diretor da Universidade Livre da Mata Atlntica UMA e editor do Wordwatch Institute WWI no Brasil, ligado ao grupo Gazeta Mercantil. 6 Marilena Chau fala sobre a idia da liberdade possvel no curso em vdeo sobre tica, da TV Cultura. Ver referncias.1

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O termo em que se inclui a gria balada refere-se aos pontos noturnos de divertimento na cidade e que so alugados ou comprados para compor o ambiente onde o pblico consumidor da onda musical pode ouvir e danar o que elegeu para gostar, dado o cardpio que lhe fornecido. 8 Referncia toada de boi-bumb originada na tradio folclrica do municpio de Parintins, no Amazonas, em que dois bumbs se enfrentam, Garantido e Caprichoso. Embora tendo sido herdada dos imigrantes nordestinos, a toada enquanto gnero musical tem origem na melopia grega ou arte de compor melodias atravs de sons simples ascendentes ou descendentes, e na cantiga dos trovadores do sculo 17, que se constitua em uma poesia cantada, tal qual ocorre na toada. No Amazonas, a toada de boi-bumb do Nordeste aliou-se cultura indgena nativa, sofrendo modificaes na temtica das cantigas, que passaram a celebrar os rituais das lendas dos habitantes originrios da regio, bem como na dana, que em muito se identifica aos movimentos dos ritos religiosos indgenas. 9 Neologismo de sambdromo, que a pista onde as escolas de samba se exibem danando e cantando. Por similaridade, o bumbdromo a pista, porm chamada Arena, onde se apresentam os bumbs rivais, Garantido e Caprichoso, um de cada vez. 10 A partir desse ano foram firmadas parcerias com o Governo do Estado, CocaCola, hotis de selva, empresas de turismo e empresas de rdio e televiso e os bumbs passaram a realizar ensaios abertos, alcanando um pblico fiel que se deslocava para Parintins, no ms de julho, quando ocorria a festa. 11 A Amazon Record era de propriedade do empresrio Heitor Santos e tinha outros produtos alm da toada de boi-bumb. O principal deles, que gerava o maior capital da gravadora, era a parceria com a fornecedora Lighting Records, empresa inglesa especializada em catlogos e discos compilatrios. A Amazon Records fez um excelente trabalho de distribuio dos produtos da Lighting, tornando-se representante oficial desses discos, no Brasil, com vinte e trs subrepresentaes espalhadas no pas. De acordo com o ento consultor da Amazon Record, no ano de 1998 a gravadora amazonense resolveu aceitar pedidos no valor de quase um milho de dlares em CDs e a Lighting no deu garantia de entrega e nem cumpriu os prazos combinados. A Amazon Record, por sua vez, no cumpriu os seus prazos com os clientes brasileiros, caindo em descrdito nacional, deixando mais de setecentos mil dlares em discos sem vender e a falncia foi inevitvel.7

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A msica Tic, tic, tac de autoria do amazonense Ronaldo Barbosa, tendo sido gravada e lanada nacionalmente pelo Grupo Carrapicho durante o movimento que projetou a toada de boi-bumb como referncia musical do Estado do Amazonas, no ano de 1998. A msica sofreu um arranjo que se distancia da tradicional batida da toada, apesar de ter mantido intacta sua base meldica. 13 H casos ilustrativos dessa forma de contratao das agremiaes. Davi Assayag representa um item do Boi que o Levantador de Toadas. Arlindo Jnior, pelo lado do Caprichoso, era, at ento, o item Apresentador e Levantador. No perodo de outubro a dezembro de cada ano abrem-se as inscries de msicas novas para o CD do ano seguinte. Uma comisso das prprias agremiaes seleciona as toadas que acha interessantes para o Boi e essas msicas so gravadas. O artista assina um contrato item do Boi. 14 Ao contrrio do que se pode imaginar, esse caminho no o do abandono do racionalismo tcnico, da mdia, do marketing, da gravao de disco, da preocupao com a formao de pblico, com distribuio e mercado. Para realizar um passeio fora das trilhas convencionais determinadas pelos padres globais do mundo da msica, e ainda assim alcanar algum resultado de pblico e de vendagem, parece necessrio estar de posse dos elementos capazes de forjar um produto de qualidade, ao mesmo tempo em que exige a noo de como ir ao encontro de novos pblicos com novos produtos. 15 Grupo de msica que atua h quarenta anos, composto por oito integrantes e que realiza um trabalho de catalogao e expresso dos diversos estilos musicais encontrados na Amaznia, concentrando, por isso, influncias diversas. Nas palavras de seu vocalista: o carimb, a toada, a lambada de beira de rio, essas msicas dos tocadores ribeirinhos, (...) o Razes a traduo desse universo musical e, em meio a tudo isso, de vez em quando, uma msica instrumental. 16 Entrevista concedida por Celdo Braga, vocalista e compositor do grupo Razes Caboclas em 05.03.2004. 17 Os cenrios so sempre criados pelo msico Eliberto Barroncas e os arranjos eruditos pelo msico Adalberto Holanda. O grupo se auto-sustenta no que diz respeito cenografia dos shows, aos arranjos eruditos que se fazem necessrios em apresentaes com orquestra, s composies, pois todos os integrantes so compositores e arranjadores, e ainda, fabricao de instrumentos musicais confeccionados em madeiras regionais numa oficina destinada somente a isso.12

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O msico Celdo Braga comentou que o trabalho com trilhas sonoras levou produo do CD Trilhas. O trabalho de Trilhas foi publicado no Jornal do Brasil e o programa Globo Ecologia, da Rede Globo, chegou a solicit-lo para sonorizao de um documentrio. Alm disso, a ONG ambientalista Greenpeace fez de Trilhas a base musical de um documentrio produzido em 2003, no Amazonas. Diversas msicas e trechos de msicas do grupo tambm j fizeram parte da sonorizao de programas como Globo Reprter e Viagens pela Amaznia.

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Do moderno ao selvagem: a fotografia amaznica de George Huebner

Andreas Valentin*

Resumo: A vasta produo do alemo George Huebner, em especial aquela realizada em Manaus pela Photographia Allem entre 1898 e 1920, ainda pouco estudada e de grande importncia para a histria da fotografia brasileira. Talvez a fora maior de suas fotografias esteja justamente no permanente dilogo entre o moderno e o selvagem, entre o futuro industrializado e o passado romntico representado pelos povos em extino e pelo sublime da natureza exuberante. Palabras-chave: Amaznia; fotografia; povos indgenas; Photographia Allem. Abstract: The rich production by the German George Huebner, particularly that carried out in Manaus by the Photographia Allem between 1898 and 1920 is still very little studied, despite being of great importance for the history of the Brazilian photography. Perhaps the major force of his photographs lies exactly in the ongoing dialog between the modern and the wild, between the industrialized future and the romantic past represented by endangered peoples and by the sublime in the exuberant nature. Keywords: Amazon region; photography; indigenous people; photographia allem.

* Graduado em Historia da Arte e Cinema (Swarthmore College). Mestre em Cincias da Arte UFF. Doutorando em Historia Scial UFF. Professor da Universidade Candido Mendes. E-mail: [email protected].

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George Huebner1 foi um dos principais fotgrafos da segunda gerao de europeus que se estabeleceu no Brasil. Sua extensa obra, ainda pouco conhecida tanto aqui como no exterior, revela um profundo conhecimento da regio Amaznica e um fotgrafo muito alm do documental. Por trs das imagens de inmeras etnias amaznicas (muitas das quais hoje extintas), da natureza superlativa, da implantao da modernidade nas duas cidades da era da borracha Manaus e Belm e de seus habitantes, ilustres e desconhecidos, est um homem de rara sensibilidade e slida formao cultural. Huebner , ao mesmo tempo, germanicamente preciso e amazonicamente grandioso e delirante. Suas imagens refletem a paixo pela Amaznia e seu trabalho se insere na produo fotogrfica tpica do fim do sculo 19 e incio do 20 , atendendo a uma demanda especfica da poca. A expanso e a consolidao do poder colonial europeu particularmente o da Inglaterra, Frana e Alemanha passava, tambm, pelo conhecimento e a percepo do outro e do outro lugar. A fotografia foi ferramenta fundamental nesse processo, uma vez que estreitava e presentificava o contato com as diferenas culturais, registrava a fauna e flora exticas e simbolizava a superioridade tecnolgica do homem branco. Analisaremos aqui algumas das fotografias de indgenas que Huebner realizou em seu estdio de Manaus, Photographia Allem. Estas imagens surpreendem por seu esmero tcnico e os cuidados com a sua realizao, ao mesmo tempo em que apontam para uma produo caracterstica do olhar do estrangeiro sobre o outro encontrada em outras regies do mundo colonizado, como na ndia, na frica, na Austrlia e nas Amricas. Manaus: modernidade na selva necessrio, primeiro, situar no espao e no tempo a cidade onde Huebner se estabeleceu. Por volta de 1850, quem se aventurava a chegar a Manaus (depois de uma viagem a partir de Belm e que, rio acima, em frgeis embarcaes, poderia levar at cinco meses) encontraria ali um vilarejo de casario baixo, em sua grande parte coberto de palha, formado por ruas escuras e enlameadas em torno de uma fortificao h muito abandonada. Em sua Viagem ao Brasil 1865-1866, o casal Louis e Elizabeth Agassiz2 assim a descreviam:

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Que poderei dizer da cidade de Manaus? uma pequena reunio de casas, a metade das quais parece prestes a cair em runas, e no se pode deixar de sorrir ao ver os castelos oscilantes decorados com o nome de edifcios pblicos: Tesouraria, Cmara Legislativa, Correios, Alfndega, Presidncia. Entretanto, a situao da cidade, na juno do rio Negro, do Amazonas e do Solimes, foi das mais felizes na escolha. Insignificante hoje, Manaus se tornar, sem dvida, um grande centro de comrcio e navegao (AGASSIZ, 1938, p. 247).

Na antiga Vila da Barra existiam poucas escolas e at o idioma portugus era rejeitado pela populao de aproximadamente cinco mil habitantes, muitos dos quais ainda falavam nheengatu, a lngua geral dos indgenas. Diferente de Belm, quase na foz do rio Amazonas e contando, desde o sculo 18, com forte presena do governo central, a regio de Manaus permaneceu, durante quase trs sculos, isolada geogrfica, poltica e economicamente do resto do pas e do mundo. Entre 1850 e 1870, o governo imperial, com o objetivo de fortalecer o vale do rio Amazonas, adotou medidas que viriam a incorporar definitivamente a regio ao conjunto do Imprio. Entre elas, destacavam-se a criao formal de uma nova unidade administrativa, a provncia do Amazonas, cuja capital seria a cidade de Manaus; a abertura dos principais rios a embarcaes de qualquer nacionalidade; e, talvez, a mais importante, a introduo da navegao a vapor. Em 1852, um decreto imperial concedia ao Baro de Mau o monoplio da navegao a vapor no rio Amazonas, estabelecendo a primeira linha regular na regio. O navio a vapor tecnologia que j vinha rasgando as distncias ocenicas entre os continentes agora, ao subir o rio Amazonas e penetrar nos seus afluentes, parans e igaraps, comeava, tambm, a inserir o selvagem interior amaznico no contexto mundial, permitindo a circulao mais rpida de pessoas, mercadorias e informaes. S pela fora do vapor se poderia tornar possvel o impossvel, escrevia em 1859 Robert Av Lallemant3 no seu dirio de viagem, No Rio Amazonas. Em 1853, chegava a Manaus o primeiro navio mercante, o Maraj, marcando a abertura de uma nova era. O progresso e a prosperidade comearam a brotar da seringueira, a Hevea brasiliensis, espcie vegetal nativa da Amaznia e h milnios conhecida pelos nativos. Do seu tronco, eles extraam o ltex que, aps ser cozido, se tornava elstico eSomanlu, ano 6, n. 2, jul./dez. 2006 29

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impermevel. A partir da segunda metade do sculo 19, a borracha se inseria no repertrio de produtos industriais comercializados para gerar riquezas. Com as inovaes tecnolgicas caractersticas desse sculo, multiplicaram-se suas aplicaes prticas: pneus para bicicletas, carruagens e automveis; luvas cirrgicas; bolsas; sapatos impermeveis e preservativos eram fabricados a partir do ltex amaznico. Entre 1850 e 1912, a quantidade de borracha exportada da Amaznia saltou de 1.467 para 42.000 toneladas por ano, representando o principal item da pauta comercial brasileira. A borracha, ao mesmo tempo em que refletia os avanos da tecnologia e o domnio da natureza pelo homem, alavancou a Amaznia para a modernidade. Com o rpido crescimento econmico provocado pela extrao e processamento da seringa, criava-se na regio um mercado promissor para os produtos e servios da era industrial. Afinal, dizia-se, em Manaus e em Belm, tornamo-nos civilizados! No auge da prosperidade, as duas cidades amaznicas esbanjavam riqueza e atraam gente de toda parte do Brasil e do mundo. Enquanto mais de 300.000 nordestinos, fugidos da seca e em busca de trabalho, migravam para o interior selvagem, nas metrpoles chegavam comerciantes, tcnicos e profissionais liberais, burocratas e aventureiros. O fotgrafo alemo George Huebner foi um deles e, certamente, um dos responsveis por dar visibilidade e projetar internacionalmente Manaus como uma cidade moderna em meio ao selvagem e ao distante. Huebner: o olhar do alemo caboclo Antes do boom da borracha, a Amaznia j havia sido fotografada por outro alemo. Em 1867, Albert Frisch realizou uma srie de fotografias que, possivelmente, seriam as primeiras imagens de ndios da Amaznia a circular pela Europa. Frisch trabalhava para a Casa Leuzinger4 de propriedade do suo Georges Leuzinger e viajou at Manaus acompanhando a expedio do engenheiro alemo Franz Keller-Leuzinger, genro de Georges. De l, Frisch subiu o rio Solimes at Iquitos, no Peru, para realizar seu prprio projeto fotogrfico. O resultado desse trabalho foram aproximadamente 400 imagens que retratam em detalhes a paisagem, a fauna, a flora e a vida ribeirinha nos ermos da Amaznia. Desse vasto repertrio, Leuzinger selecionou 98 fotografias para editar uma srie destinada ao mercado europeu5 e com clara pretenso artstica e documental (KOHL, 2006, p. 199). Alm das mais antigas vistas da cidade de Manaus destacam-se as dos indgenas, em30 Somanlu, ano 6, n. 2, jul./dez. 2006

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particular, aquelas dos ndios umau e miranha. Essas imagens foram realizadas atravs de um processo de montagem de duas fotografias originais. Os ndios foram provavelmente retratados em locais bem iluminados e prximos s beiras dos rios, onde atracavam os vapores; ou, at mesmo, na periferia de Manaus, onde Frisch j havia fotografado famlias de tapuias6. Os ndios posam em um cenrio idlico com lanas, arcos e flechas ou vasilhas de gua, beira de um igarap, talvez o de So Vicente ou Tarum, prximo a Manaus, locao onde, antes, Frisch se auto-retratara em seu barco-laboratrio. As figuras foram fotografadas em um local diferente daquele em que aparecem na imagem final. Cuidadosamente recortadas a mo, atravs de uma montagem de superposio, elas foram reproduzidas sobre o fundo fotografado em outra ocasio. Esse mesmo fundo foi utilizado para vrias outras imagens, como a de ndias, intitulada Mestias beira de um lago. Longe de atender s expectativas das ainda incipientes cincias antropomtricas de ento, pelo contrrio, essas fotografais procuram situar os ndios em seu habitat natural, idealizado e romantizado para agradar aos anseios estticos e imaginrios do pblico europeu. Coube ao seu conterrneo Huebner, no entanto, documentar exaustivamente a Amaznia do fim do sculo 19 e incio do 20. At se fixar definitivamente em Manaus em 1898, Huebner j havia passado pela cidade duas vezes: em 1885, a caminho do Peru e, em 1894, antes das expedies para o alto rio Orinoco e para o rio Branco. Seu interesse pela aventura foi despertado atravs do convvio, ainda em Dresden, com seu professor Oscar Schneider, naturalista e membro de diversas sociedades cientficas. Foi ele quem lhe abriu as portas para publicar seus primeiros artigos e fotografias nas revistas especializadas em viagens, aventuras, geografia e histria natural. Em sua primeira viagem Amrica do Sul, Huebner pecorreu todo o rio Amazonas e se estabeleceu na regio de Iquitos e do rio Ucayali, na Amaznia peruana. A extrao e o comrcio da borracha j estavam em pleno desenvolvimento e, provavelmente, Huebner se envolveu com essa atividade durante dois anos, at se firmar em Lima. Sabe-se pouco sobre esses primeiros anos do jovem aventureiro em terras sul americanas. Em 1888, ele conheceu o fotgrafo alemo Charles Kroehle. Durante trs anos, os dois percorreram milhares de quilmetros do territrio peruano, cobrindo desde os altiplanos andinos costa do pacfico e a regio amaznica. O resultado dessa expedio foram centenas de fotografias da regio e de seus habitantes que levam a assinatura dos dois fotgrafos.Somanlu, ano 6, n. 2, jul./dez. 2006 31

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As primeiras imagens realizadas por Huebner so, tambm, as primeiras das quais se tem notcia de etnias peruanas, como os campa, mayonisha, caxibo, cunivo, pito, xipibo, muitas das quais j extintas (FIG. 1). Esse trabalho pioneiro, realizado a quatro mos7, revela um olhar atento, no apenas dos fotgrafos como tambm dos prprios fotografados. So retratos dirigidos e produzidos, geralmente sobre um fundo de lona, onde o retratado precisava permanecer imvel por um longo tempo. No se propem a ser instantneos, at porque a tecnologia da poca no o permitia. Pelo contrrio, so estudos antropofsicos, geralmente de frente e de perfil, compondo um atlas tipolgico, emblemtico das preocupaes antropolgicas de ento. Esse esforo dos dois fotgrafos fazia parte da tentativa coletiva de se produzir dados antroplogicos, produzindo, reunindo, permutando e arquivando fotografias de todas as partes do mundo, para anlise nas metrpoles, em particular na Inglaterra, Frana e Alemanha. (EDWARDS, 1996, p. 4). Foi no Peru que Huebner aprimorou a tcnica da fotografia, treinou seu olhar e assimilou as qualidades que caracterizariam seu trabalho mais maduro e duradouro: as de exmio retratista e paisagista da Amaznia. De acordo com Schoepf (2000, p. 29), na sua relao com o fotografado, Huebner mobiliza-o, envolve-o e, quando esto influenciados um pelo outro, capta a imagem desse momento. Afirma, assim, o peso de sua presena e acaba por remover a identidade da pessoa fotografada. Ao retornar para Dresden, em 1892, a publicao de alguns de seus textos ilustrados em revistas de cincia popular e viagens, como a Globus e a Deutsche Rundschau fr Geographie und Statistik, lhe rendeu seus primeiros momentos de fama e sucesso. Ele foi convocado por sociedades cientficas para ministrar palestras e fornecer imagens. Em 1894, voltava Amaznia onde, a partir de Manaus, empreendeu duas expedies: a primeira, nascente do Orinoco, j na Venezuela; a outra, por um longo trecho do rio Branco, afluente do rio Negro, no atual estado de Roraima. Nos oito meses em que permaneceu no ermo da floresta amaznica, alm de fotografar, Huebner se aperfeioou na observao, documentao e coleta cientfica de espcies da flora amaznica, principalmente de orqudeas. Essa atividade lhe assegurou importantes contatos no meio cientfico europeu e sua sobrevivncia em Manaus aps o declnio da borracha. George retornou definitivamente ao Brasil em 1898. Permaneceu por alguns meses em Belm e seguiu viagem at Manaus, onde fixou residncia pelo resto de sua vida. Trs anos depois, em sociedade com Libnio Amaral, inaugurava seu estdio32 Somanlu, ano 6, n. 2, jul./dez. 2006

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Photographia Allem, no centro da cidade, em frente ao Palcio do Governo. importante lembrar que Huebner chegou em Manaus no apogeu econmico da era da borracha. A cidade fervilhava com obras pblicas por toda a parte. Abriam-se ruas, aterravam-se igaraps, construam-se imponentes prdios. Instalava-se a primeira linha de bondes eltricos do pas. Surgiam empreendimentos comerciais de toda espcie, sempre direta ou indiretamente ligados ao cada vez mais lucrativo comrcio da borracha. Em 1902, Euclides da Cunha descrevia Manaus como[...] rasgada em avenidas, largas e longas pelas audcias do Pensador8 [...]uma grande cidade, estritamente comercial, de aviadores solertes, zanges vertiginosos e ingleses de sapatos brancos Comercial e insuportvel. O crescimento abrupto levantou-se de chofre fazendo que trouxesse, aqui, ali, salteadamente, entre as roupagens civilizadoras, os restos das tangas esfiapadas dos tapuias. Cidade meio caipira, meio europia, onde o tejupar se achata ao lado de palcios e o cosmopolitismo exagerado pe ao lado do ianque espigado o seringueiro achamboado [...] a impresso que elas nos incute a de uma maloca transformada em Gand[...](apud BRAGA, 2002, p. 43, 48).

Durante os quatro anos do governo de Eduardo Ribeiro, Manaus deu um salto qualitativo e quantitativo. medida que cresciam os nmeros da exportao de borracha, aumentava, tambm, a populao da cidade. Medidas fiscais do governo republicano asseguravam a permanncia de tributos e taxas na provncia, gerando uma enorme circulao de capital. Ousado, astuto e agressivo, Ribeiro soube administrar corretamente esse patrimnio e acabou transformando a rude aldeia em uma Paris da Selva, tendo como modelo as reformas implantadas naquela cidade pelo Baro de Haussman durante o governo de Napoleo III. exatamente nessa poca, tambm, que a fotografia assume grande importncia no cotidiano da vida moderna. Equipamentos e processos tecnologicamente mais avanados permitiram maior agilidade na captao e na reproduo de imagens, tornando-as imprescindveis nas mais diversas esferas da sociedade. A fotografia se massificava e se firmava, tcnica, esttica e existencialmente. A verdade cientfica inerente imagem fotogrfica, preservando um fragmento do passado que transportado em aparente totalidade para o presente (EDWARDS,Somanlu, ano 6, n. 2, jul./dez. 2006 33

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1996, p. 7), era incontestvel, uma vez que o fotgrafo e sua mquina estavam l, registrando o fato. A rapidez da circulao e a prpria avidez por informao abria um amplo leque de novas possibilidades para a fotografia, muito alm dos estudos etnogrficos e relatos de viagens: anncios publicitrios, documentao jornalstica, divulgao, cartes de visita, cartes postais, lbuns comemorativos, ilustraes para livros e revistas, retratos de famlia e da sociedade. Huebner trabalhou em praticamente todos esses segmentos. Em pouco mais de trs anos de atuao, sua Photographia Allem se firmava como o maior e mais bem equipado estdio fotogrfico do norte do Brasil. Por um lado, devido qualidade de seus equipamentos de ponta, trazidos de Dresden, cidade que, na poca, j abrigava as melhores fbricas de suprimentos fotogrficos9. Por outro, pelo esmero de Huebner, profissional j maduro e personalidade que aliava o rigor germnico afabilidade brasileira temperada por algumas caractersticas caboclas, adquiridas ao longo de suas viagens pela Amaznia. Ele teceu uma ampla rede de relacionamentos e foi conquistando, passo a passo, a confiana da sociedade manauara e estreitando, cada vez mais, os laos com os poderes polticos e econmicos. Em 1901, se associou a Libnio do Amaral, professor de belas artes, pessoa querida e admirada na cidade. Em 1906, eles adquiriram, em Belm, o ateli fotogrfico Fidanza, ampliando seu mercado de trabalho. Quatro anos mais tarde, abriam uma filial no Rio de Janeiro, no edifcio dO Paiz, na Avenida Central. (SCHOEPF, 2000). George Huebner fez parte de uma gerao de alemes que atingiu a maioridade quando a Alemanha comeava a se firmar como nao, unificada em 1871, aps a guerra franco-prussiana. Nesse novo estado cresciam os sentimentos de grandeza e poderio nacionais. Abriam-se agora - ainda que tardiamente em relao s outras naes europias - os caminhos para o status de grande potncia, juntandose a Alemanha ao perigoso crculo mgico dos Estados lutando pela hegemonia (ELIAS, 1997, p. 185-6). Em poucas dcadas, a Alemanha, fortemente identificada com a prpria imagem de seu lder, o Kaiser Wilhelm II, expandiu suas fronteiras, incorporando colnias na frica, na Oceania e buscou slidas parcerias comerciais em outras partes do mundo, como, por exemplo, na Amaznia. Esse novo ethos nacionalista permeou o imaginrio dos alemes no s na ptria-me, como tambm nas colnias. de se supor que uma parcela significativa34 Somanlu, ano 6, n. 2, jul./dez. 2006

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do sucesso comercial e da ascenso social de Huebner se deve sua insero na relativamente numerosa colnia alem estabelecida em Manaus. Eram, em sua grande maioria, direta ou indiretamente ligados ao pujante comrcio da borracha, madeira e outros produtos da floresta, como a castanha, as peles e os leos essenciais. Os Scholz, Dsendschn, Andresen, Schlee, Bender, Moers, Ruckert10 e tantos outros atuavam no ramo da importao e exportao. Os alemes recebiam em suas amplas manses os conterrneos viajantes e aventureiros, oferecendo-lhes, em plena Amaznia, os confortos, sabores e aromas de casa (wie Daheim). Todos eram nacionalistas ferrenhos. Elias menciona que, o mero som da palavra Deutschland parecia, para os alemes, estar impregnado de extraordinrias associaes, de um carisma que beirava o sacrossanto (ELIAS, 1997, p. 288). No difcil de se imaginar, portanto, num domingo escaldante de Manaus, os alemes reunidos no salo nobre do Rudderklub (Clube de Remo) ou do Kegellklub, (Clube de Boliche) discutindo os rumos da economia da borracha e, na grande parede ao fundo, um enorme retrato a leo do Kaiser Wilhelm II em posio de prontido. interessante destacar que um dos autoretratos que Huebner produziu o mostra em pose semelhante. (FIG. 2) Os primeiros cartes postais com imagens da Amaznia foram produzidos por Huebner em seu estdio a partir de 1895 e tiragens regulares continuaram sendo emitidas at 1920. Cuidadosamente impressas em Dresden por seu editor Oscar Schleich Nachf, essas sries constituem um repertrio que rene uma preciosa documentao iconogrfica da cidade de Manaus em constante transformao, alm de fornecer raros testemunhos de regies longnquas, como as atividades nos seringais nas calhas dos rios Juru e Javar. A partir das ltimas dcadas do sculo 19, a melhoria da qualidade e o barateamento das tcnicas de reproduo de imagens fotogrficas somadas massificao das comunicaes, em particular atravs dos sistemas de correios, provocou um grande aumento na produo de cartes postais, em todas as partes do mundo. Qualquer tema poderia ser motivo para a produo de um carto postal: paisagens, vistas urbanas, retratos, grupos de pessoas, ndios e cenas domsticas. Os postais de Huebner tiveram uma larga aceitao. Sua ampla circulao, certamente, contribuiu para produzir uma representao da Amaznia que transitava, com igual importncia, do selvagem ao moderno, do popular ao elitista.

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Estdio: um espao de criao fotogrfica e pesquisa etnogrfica. Enquanto seu estdio se mantinha com encomendas oficiais e particulares de toda a espcie, Huebner, no entanto, continuou viajando pelo interior amaznico. Empreendeu inmeras expedies fotogrficas, subindo a calha do rio Negro, do rio Branco e penetrando na selva em regies mais prximas a Manaus. Seu olhar se dirigia para a flora11, para a etnografia e para os hbitos e costumes dos ribeirinhos, habitantes das beiras dos rios. As imagens desse perodo impressionam tanto pela qualidade tcnica, como pela preciso de enquadramento e revelam um fotgrafo ao mesmo tempo documentarista e inquisidor. Huebner tinha, tambm, uma grande preocupao com as etnias nativas que, medida que o progresso avanava rio acima, perdiam seus hbitos e costumes. Na impossibilidade de impedir esse processo, ele buscava, ao menos, atravs das imagens, preservar os primeiros brasileiros (FIG.. 3). Desse conjunto de imagens, h uma srie que se destaca das demais (FIG.s. 4, 5, 6 e 7). So retratos de casais ou pequenos grupos de ndios, posando para a cmara com adornos, objetos e utenslios. Eles no esto em seu ambiente natural: todas essas fotografias foram produzidas no estdio da Photographia Allem. Vem-se nitidamente os fundos pintados com cenas europias: colunas clssicas, jardineiras e idlicas paisagens romantizadas, com efeitos simulando bruma e nvoa. Os objetos de cena arcos, flechas, remos, galhos, folhas, palha, cestos, panos so cuidadosamente arrumados. Em algumas fotos, nota-se o piso de madeira do estdio, parcialmente coberto de palha. Essas imagens revelam algumas caractersticas do processo de trabalho de Huebner, como o esmero tcnico e a cuidadosa produo e ateno aos detalhes que se somam suas qualidades de cientista e investigador, ao trazer para dentro do estdio esses indgenas com seus utenslios originais. bem provvel que muitos deles nem sejam das etnias descritas. No importa. As imagens, to bem compostas e realizadas, tm fora prpria e, certamente, cumprem com seu objetivo nos aproximando com clareza e preciso de um universo fisicamente to distante. Ciente de que no poderia apreender os indgenas, seus hbitos e costumes no seu cotidiano, Huebner os leva para dentro do estdio, dessa forma recriando aquele instante almejado, porm jamais alcanvel. Ao mesmo tempo em que essas fotografias mostram um olhar para o outro semelhante quele lanado em outras36 Somanlu, ano 6, n. 2, jul./dez. 2006

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partes do mundo, elas tambm revelam um relacionamento conscientizado com os indivduos e grupos fotografados. O olho preciso e, certamente, o corao sensvel e a formao cultural de Huebner nos inserem nesse ambiente estranho e distante. Schoepf (2000, p. 30) ressalta que uma foto tirada por Huebner inclui, como em subimpresso, algo da relao entre o fotografado e si mesmo como se em cada imagem estivesse impressa tambm a conscincia e a expresso corporal do relacionamento com o outro e portanto para com ns mesmos. Apesar de reconhecer ter sido influenciado pela antropologia do final do sculo 19 que buscava a descrio e especificao dos tipos fsicos resultando nas chamadas fotografias antropomtricas, em suas sries de fotos de indgenas em estdio Huebner foi muito alm desse processo meramente analtico. Mesmo inseridas ainda como representaes de questes de raa e pureza tnica caractersticas tpicas da poca essas fotografias de nativos se destacam justamente por terem sido realizadas por um fotgrafo e no por um etngrafo ou um pesquisador. Elas so construdas conforme cdigos estticos e formais estabelecidos e conduzidos por um artista. Nelas, os sujeitos deixam de ser apenas objetos de investigao cientfica e passam a se comportar como atores que representam sua prpria identidade. Sobre a paisagem de fundo cuidadosamente pintada (provavelmente na Alemanha), os indgenas se transformam em retratados, de acordo com as normas de fotografia de retrato vigentes. Alguns desses retratos foram reproduzidos como postais, assegurando uma ampla circulao, principalmente na Europa. Nesse sentido, interessante comparar as imagens de Huebner com algumas realizadas no mesmo perodo por fotgrafos no sul do Chile, retratando os Mapuche. Dentre eles vrios europeus e, especificamente alemes12 destaca-se Gustavo Milet que estabeleceu seu estdio na cidade de Traigun. L, ele produziu uma vasta srie de fotografias em formato Cabinet de ndios Araucanos, abrangendo desde retratos individuais a grupos portando armas, utenslios ou outros objetos. Notamse o mesmo cho de pranchas de madeira parcialmente coberto de palha, as poses dirigidas e, particularmente, os fundos pintados com cenas que remetem a um imaginrio europeu. Como Huebner, Milet tambm vai muito alm do meramente documental e da retratstica. Suas imagens possuem qualidades poticas prprias que criam uma atmosfera expressiva e um cenrio onde se desenrola o drama desses indivduos e, eventualmente, dessas culturas perdidas (FIG. 8).

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Em contraponto, algumas imagens realizadas na Austrlia, na Inglaterra e at no Brasil por outros fotgrafos na mesma poca (FIGs. 9, 10 e 11) mostram abordagens bem diferentes. O pescador aborgine retratado em terra firme, com seus utenslios; ele mostrado de perfil e seu olhar to distante quanto o do fotgrafo. Com suas armas colocadas de lado e sua selvageria neutralizada pelo ambiente de estdio, ele se transformou em espcime como as plantas que o rodeiam (POIGNANT, 1992, p. 54, traduo nossa). Ainda mais distante se torna a imagem dos pigmeus levados para Londres para serem exibidos como se fossem animais exticos. Ambas, no entanto, exemplificam o importante papel que a fotografia teve na mediao entre o processo colonialista e os propsitos antropolgicos dessa poca. Finalmente, a imagem do cacique realizada por Marc Ferrez em seu estdio no Rio de Janeiro nos revela, alm do distanciamento emocional ainda um afastamento fsico do fotgrafo e de sua cmara. Seja pela sua rigorosa formao germnica, ou por seu interesse pela cincia despertado ainda na Alemanha, desde o incio de sua trajetria, Huebner no deixou de atribuir s suas fotografias um certo olhar inquisidor. Schoepf (2000, p. 32) destaca que ele no tinha o temperamento de um caador de imagens, mas o olhar analtico de um recrutador de imagens. Diferente de seus contemporneos no Brasil e em outras partes do mundo, ele consegue apreender os seres e as coisas, e a nossa relao com eles e com elas, com a mesma amplitude e mincia nos detalhes. Essa aproximao com a cincia fez com que mantivesse contato com e trabalhasse para muitos pesquisadores que vinham para a Amaznia. Dentre eles, foi com o etnlogo Theodor Koch-Grnberg13, no entanto, que se estabeleceu uma amizade duradoura e uma parceria de quase 20 anos documentada em cartas trocadas entre eles. Numa delas, de 2 de fevereiro de 1906, Huebner faz aluso a uma fotografia de ndios yauapery trazidos prisioneiros a Manaus:Desde a chegada dessas pessoas, que foram vestidas com o uniforme dos soldados daqui, encontrei-me com elas no rio Cachoeira Grande14 e as fotografei em grupo [...] pude tirar boas fotografias, se bem que com grande dificuldade. Como eles logo mergulharam na gua e no foi possvel faz-los sair mais, fotografei-os no igarap. [...] Alguns dias mais tarde, trouxe-os a meu estdio para tirar fotos antropolgicas.

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Muitos dos artigos cientficos de Koch-Grnberg publicados em revistas especializadas contaram com preciosas informaes e imagens cedidas ou mediadas pelo fotgrafo. Suas expedies eram sempre preparadas e planejadas em Manaus por Huebner. Profundo conhecedor da regio, com excelentes contatos no s em Manaus, como em diversas outras localidades, alm de suas aptides como fotgrafo, ele tornara-se uma espcie de consultor cientfico para assuntos amaznicos. E foi justamente a cincia que permitiu que Huebner sobrevivesse em Manaus aps o declnio vertiginoso da economia da borracha. Em 1912, j soavam os primeiros sinais de alerta. Com o advento da primeira guerra mundial e o aumento vertiginoso da produo das seringueiras plantadas pelos ingleses no sudeste asitico, o preo da borracha comeava a despencar no mercado internacional. Muitos empreendimentos faliram, provocando o xodo da maioria dos comerciantes e empreendedores manauaras. Como bom caboclo, Huebner, no entanto, no se abalou. J havia alguns anos, ele vinha montando um stio em Cacau Pirera, na outra margem do rio Negro, defronte a Manaus. Nas vrias viagens que fez ao interior, sempre coletava orqudeas e palmeiras que plantava no seu horto particular. Durante todos os anos em que morou em Manaus, manteve e frutificou seus contatos internacionais com renomadas instituies botnicas e pesquisadores independentes. Aps o fechamento definitivo da Photograhia Allem, em 1920, e at a sua morte, em 1935, George Huebner se dedicou exclusivamente ao manejo, descoberta e coleo de espcies da flora amaznica com o mesmo cuidado com que registrou imagens da cidade, dos ndios e das paisagens que conheceu e amou profundamente. A vasta produo de George Huebner, em especial aquela realizada em Manaus pela Photographia Allem entre 1898 e 1920, ainda pouco estudada e de grande importncia para a histria da fotografia brasileira. Talvez a fora maior de suas fotografias esteja justamente no permanente dilogo entre o moderno e o selvagem, entre o futuro industrializado e o passado romntico representado pelos povos em extino e pelo sublime da natureza exuberante. Profundamente alemo em seu comportamento e em sua produo fotogrfica, Huebner, vivendo na Amaznia a maior parte de sua vida, no entanto acabou adquirindo hbitos nitidamente amaznicos que se expressam em seu corpus fotogrfico, em especial naquelas imagens de indgenas cuidadosamente realizadas no seu estdio em Manaus.

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Fig. 1: A Jovem xipibo da regio do Ucayali (frontal); ass. Kroehle & Huebner, 1888.

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Fig. 2: Huebner, autoretrato, 1910.

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Fig. 3: ndio macuxi, carto postal 1903-4.

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Fig. 4: casal indgena.

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Fig. 5: ndios uapixanas do Rio Branco.

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Fig. 6: ndios canela.

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Fig. 7: Mascarados em traje de dana caraj.

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Fig. 8: Gustavo Milet, ndios Araucanos, Chile (c. 1890)

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Fig. 9: J. W. Lindt, Aborgine australiano (c. 1870).

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Fig. 10: W. N. Downey, retrato em estdio de pigmeus Batwa (1905).

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Fig. 11: Marc Ferrez, cacique conibo (1874).

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Notas Nascido Georg Hbner, em Dresden, 1862. Aps fixar residncia em Manaus, onde faleceu em 1935, ele latinizou seu nome para George Huebner. 2 Luiz Agassiz (1807-1873), naturalista, antroplogo e ictilogo suo, fora atrado ao Brasil quando ainda muito jovem. Em 1829, por recomendao de Alexander Von Humboldt, com quem estudara, foi encarregado pelo botnico Karl Phillip Von Martius de descrever os peixes colecionados no Brasil por ele e seu colaborador, o zologo Johann Baptist Spix, na sua viagem no Brasil entre 1817 e 1820. Em 1848, tornou-se professor de antropologia em Harvard e, em 1850, casou-se com Elizabeth Cary radicando-se definitivamente em Cambridge, onde fundou a Escola e o Museu de Histria Natural. Entre 1865 e 1866, o casal viajou de navio pelo Brasil, do Rio de Janeiro at o alto Solimes. Seu relato de viagem, escrito por Elizabeth, traa um perfil geogrfico, zoobotnico, antropolgico e social do imprio do Brasil. aqui, tambm, onde aparecem as primeiras referncias a fotografias de ndios brasileiros, realizadas em Manaus e atribudas a um dos membros da expedio, Walter Hunnewell. 3 O mdico alemo Robert Av-Lallemant (1812-1884) viajou extensivamente pelo mundo, em particular por todo o Brasil, aportando aqui pela primeira vez em 1836. Estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde abriu um consultrio e, alguns anos depois, dirigindo um sanatrio, desenvolveu pesquisas sobre a febre amarela. De volta Alemanha, manteve contato com o naturalista Alexander Von Humboldt que o convidou a participar de sua expedio para a Amrica do Sul. No Rio de Janeiro, abandonou a expedio e prosseguiu sozinho suas viagens, inicialmente por todo o sul, parte do sudeste e do nordeste do Brasil e, em 1859, pela Amaznia, subindo o rio Amazonas de Belm at Tabatinga. Seus relatos, ao mesmo tempo cientficos e sentimentais, traam um perfil preciso de um Brasil que buscava se inserir no contexto mundial. Nesse sentido, essas viagens, parcialmente subsidiadas pelo imperador D. Pedro II, faziam parte de um grande empreendimento nacional de projeo da jovem nao brasileira. A partir da segunda metade do sculo 19, vieram para c inmeros viajantes, cientistas, fotgrafos e artistas europeus que redesenharam um Brasil at ento romantizado pelo olhar europeu e que, agora, constri sua memria e seus smbolos nacionais, se civiliza como anncio do Novo Mundo (SEGALLA, 1998, p. 146).1

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A Casa Leuzinger foi fundada pelo editor e litgrafo suo Georges Leuzinger no Rio de Janeiro em 1840, inicialmente como papelaria e estamparia e, em seguida, praticando a tipografia, a litografia, a fotografia e, principalmente, o comrcio dessas imagens. Durante a dcada de 1860, Leuzinger documentou o Rio de Janeiro, Niteri, Terespolis e Petrpolis, alm de contratar outros fotgrafos, como Albert Frisch e Franz Keller-Luezinger para realizar trabalhos para sua editora. A Casa Leuzinger foi responsvel por aproximar a produo visual brasileira com a europia, tanto em termos tcnicos e estticos como, principalmente, por massificar a representao do Brasil imperial no circuito internacional. 5 Em 2006, o Instituto Moreira Salles realizou no Rio de Janeiro uma exposio com o acervo da Casa Leuzinger, incluindo fotografias, litografias e publicaes. A srie de fotografias produzidas por Frisch em sua viagem pela Amaznia faz parte desse acervo. 6 ndios destribalizados que habitavam a periferia das cidades amaznicas. 7 provvel que Huebner tenha aprendido com Kroehle a arte e a tcnica da fotografia. 8 Apelido dado a Eduardo Ribeiro, jovem maranhense que governou a provncia do Amazonas, pela segunda vez, entre 1892 e 1896 e foi um dos principais responsveis pela modernizao da cidade de Manaus. 9 Em 1900, havia na Alemanha 51 fabricantes de cmaras fotogrficas, a grande maioria dos quais sediados em Dresden. A conhecida marca de equipamentos fotogrficos Zeiss Ikon foi estabelecida em 1926, com sede em Dresden, a partir da fuso de diversas empresas, duas das quais daquela cidade: Ica AG e Heinrich Ernemann AG. interessante constatar, tambm, que, desde a infncia, Huebner j estava cercado pelo mtier fotogrfico. Em 1871, seu pai alugara o primeiro andar de sua casa em Dresden para um fabricante de papel fotogrfico, enquanto que a casa vizinha abrigava litgrafos (SHOEPF, 2000 e homepage da Deutsche Gesellschaft fr Photographie). 10 A presena alem em Manaus nesse perodo merece um estudo mais aprofundado. Quem eram esses alemes? Quais outros motivos, alm daqueles estritamente comerciais, poderiam justificar sua permanncia na regio num perodo em que a Alemanha se firmava como nao e mostrava claros interesses imperialistas? 11 Huebner localizou algumas espcies de orqudeas desconhecidas, entre as quais uma cujo nome, Huebneria yauperiensis, lhe presta homenagem. 12 Em Valdivia, sul do Chile, havia uma importante colnia alem.4

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Andreas Valentin

A principal obra de Koch-Grnberg (1872-1924), Vom Roroma zum Orinoco, considerada um clssico da antropologia e compreende seis volumes que abrangem a etnologia, a mitologia e o folclore da regio de Roraima e da bacia do Orinoco. Foi dela que Mrio de Andrade extraiu os traos bsicos de seu famoso heri Macunama. Grnberg considerado um dos fundadores da moderna pesquisa de campo e dos estudos amerndios. Foi ele quem primeiro classificou etnias de acordo com grupos lingusticos. A Editora da Universidade do Amazonas acaba de publicar uma traduo em portugus de sua obra Zwei Jahre unter den Indianern. Reisen in Nordwest Brasilien 1903-1905, contendo inmeras fotografias, muitas das quais mediadas por Huebner no que se refere a aspectos tcnicos. Huebner e Grnberg trocaram cartas durante quase 20 anos. Esse acervo, arquivado no Wissenschaftlisches Nachlass Theodor Koch-Grnberg em GiessenMarburg traz uma preciosa descrio tanto das atividades do fotgrafo, como as do etnlogo, alm de desvelar os habitus da Manaus das primeiras dcadas do sculo 20. 14 Um igarap hoje situado na rea urbana de Manaus.13

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Do moderno ao selvagem: a fotografia amaznica...

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Abram alas que eu quero passar: o desfile do automvel na cidade de Manaus

Tatiana Schor*

I am in love with my car, I am in love with my automobil. Grupo The Queen Resumo Entender o processo de transformao urbana de Manaus, a conseqncia das opes tomadas, significa compreender a figura do automvel em todos os seus aspectos de smbolo da modernidade. Este artigo analisa o automvel como mercadoria smbolo da modernidade e com esta chave interpretativa abre caminhos conscientes do dilogo sobre as transformaes urbanas e as conseqncias dessas transformaes para o direito cidade, o qual os manauaras no devem abandonar. Palavras-chave: Manaus; automvel; mercadoria; modernidade. Abstract In order to understand the process of urban transformation of Manaus, the consequences of the options taken at a determinate time, means to understand the figure of the automobile in all its symbolic aspects. This paper analyses the automobile as a symbolic commodity of modernity and with this interpretative key opens up conscientious paths to the dialogue about urban transformations and the consequences of such transformation