Post on 01-Apr-2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES ÁREA DE CONCENTRAÇÃO TEORIA E HISTÓRIA DA ARTE
LINHA DE PESQUISA NEXOS ENTRE ARTE, ESPAÇO E PENSAMENTO
CURSO DE MESTRADO EM ARTES
MÓNICA ELISA CONTRERAS GODÍNEZ
MATERIALIDADE E CONFLITO:
visões sobre corporalidade e o objeto artístico por três artistas latino-americanas. Janine Antoni, Teresa Margolles e
Doris Salcedo
VITÓRIA 2017
MÓNICA ELISA CONTRERAS GODÍNEZ
MATERIALIDADE E CONFLITO:
visões sobre corporalidade e o objeto artístico por três artistas latino-americanas. Janine Antoni, Teresa Margolles e
Doris Salcedo
VITÓRIA 2017
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito final para a obtenção do grau de Mestre em Artes, na área de concentração Teoria e História da Arte. Linha de pesquisa: Nexos entre arte, espaço e pensamento Orientador: Prof. Dr. Aparecido José Cirilo Co-orientador: Prof. Dr. David Ruiz Torres
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Contreras Godínez, Mónica Elisa,1978-C764m Materialidade e conflito : visões sobre corporalidade e o
objeto artístico por três artistas latino-americanas, Janine Antoni, Teresa Margolles e Doris Salcedo / Mónica Elisa Contreras Godínez. – 2017.
114 f. : il.
Orientador: Aparecido José Cirillo.Coorientador: David Ruiz Torres.Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Federal do
Espírito Santo, Centro de Artes.
1. Arte. 2. Figura humana na arte. 3. Escultura. 4. Memória na arte. I. Cirillo, José, 1964-. II. Ruiz Torres, David. III. Universi-dade Federal do Espírito Santo. Centro de Artes. IV. Título.
CDU: 7
MONICA ELISA CONTRERAS GODINEZ
“MATERIALIDADE E CONFLITO: visões sobre corporalidade e
o objeto artístico por três artistas latino-americanas. Janine
Antoni, Teresa Margolles e Doris Salcedo”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes
da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito f inal
para a obtenção do grau de Mestre em Artes.
Aprovada em 09 de maio de 2017.
Comissão Examinadora
____________________________________________________ Prof. Dr. Aparecido José Cirilo
(orientador – PPGA/UFES)
____________________________________________________ Prof. Dr. David Ruiz Torres
(coorientador – PPGA/UFES)
____________________________________________________ Prof. Dr. Erly Milton Vieira Junior (membro interno – PPGA/UFES)
____________________________________________________
Profa. Dra. Isabel Maria Sabino Correia (membro externo – FBAUL)
A D y G, mis compañeros de viaje.
AGRADECIMENTOS
À OEA ,ao programa GCUB e à Universidade Federal do Espírito Santo pela
oportunidade de estudar no Brasil.
À CAPES, pelo financiamento do projeto.
Ao Profr. Dr. Aparecido José Cirillo pela ajuda, a paciência e o apoio.
Ao Profr. Dr. David Ruiz Torres pela ajuda e os conselhos, em ambas as
línguas.
Ao Profr. Dr. João Wesley de Souza pelos ensinamentos e a confiança.
Aos professores do PPGA pela ajuda, a compreensão e o apoio.
A todas as pessoas na Secretaria do PPGA, especialmente à Karina
Pereira e à Natália Correa pela infinita paciência com todos os trâmites.
Aos amigos Beatriz Pimenta, Julio Castro e Sérgio Viveiros pelo abrigo, a
companhia e a ajuda.
À Penha Ribeiro pelo abrigo e a amizade.
Aos colegas/amigos da turma que enriqueceram a experiência da pesquisa e
a vida no Brasil.
E a todos as outras pessoas que direta ou indiretamente colaboraram com o sucesso deste trabalho.
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo trazer a tona uma reflexão sobre a produção
artística contemporânea em três artistas latino-americanas, especificamente Janine
Antoni (Bahamas, 1962- ), Teresa Margolles (México,1963- ) e Dóris Salcedo
(Colômbia 1958- ), artistas que procuram uma exploração da noção de corporalidade
por meio da análise de alguns processos esculturais-objetuais em produções
artísticas que parecem trabalhar de maneira a repetir ou sugerir fatos, embora
evitam a representação realista e que têm um interesse como obra de protesto.
As três artistas utilizam a presença corporal em sua relação com o real
apresentado. A repetição ou impressão é o que retorna, não é o fato original, mas
sim, à sua sombra, sua memória. É no encontro com ela que se produz no sujeito
um estranhamento, uma ansiedade e angústia traumática que parecem permitir sair
do cotidiano e cogitar outras possibilidades de viver no mundo. Os resultados
revelam as obras como testemunhas de processos vivenciais que permitem uma
revisão de diferentes estados da poética corporal envolvida com a problemática de
índole política.
Palavras chave: Arte corpo, Janine Antoni, Teresa Margolles, Dóris Salcedo,
memória, materialidade.
ABSTRACT
This thesis aims to bring up a reflection upon the contemporary artistic
production in three latin-american artists, specifically Janine Antoni (Bahamas, 1962),
Teresa Margolles (México,1963- ) and Dóris Salcedo (Colômbia 1958-), this artists
explore notions of corporality through the analysis of some sculptural-objectual
processes in artistic productions that seem to work repeating or suggesting facts, yet
they seem to evade a realistic representation and have a particular interest as
protest art work.
This three artists use the bodily presence and its relation to real in artworks, in
which repetition and impression is what can be seen, we don´t see the original fact,
but its memory, its shadow. Is in its encounter with the public that takes an
strangeness, a traumatic anxiety that seems to allow an exit from the ordinariness of
day-to-day life and to think in other possibilities to live in this world. The results
reveal the artworks as witnesses of lifestyles that allow a review of different states of
the poetics of the body engaged with problematics of political order.
Keywords: Art, body, Janine Antoni, Teresa Margolles, Dóris Salcedo, memory,
materiality.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Fluxus. Street Cleaning Event, 1967. Performance ................................ 21 Figura 2 - Carolee Schneemann. Interior Scroll. 1975. Performance...................... 21 Figura 3 - Martha Rosler. Semiotics of the kitchen. 1975. Performance................ 22 Figura 4 - Yoko Ono . Cut Piece. 1964. Performance .............................................. 22 Figura 5 - When attitude becomes form,1969, vista da exposição Kunsthalle Berna, Mario Merz, Bruce Nauman, Robert Morris, Barry Flanagan................................................................................................ 25 Figura 6 - Op Losse Schroeven, 1969, vista da exposição, Stedelijk Museum,
Amsterdam...................................................................................................... 25 Figura 7 - César, Ricard. Compression dirigée d'automobile, 1962. Resíduos metálicos compactados,153 x 73 x 65 cm, Col. Centro Pompidou. 27 Figura 8 - Robert Filliou .Galerie Légitime. 1962. Fotografía. .................................. 30 Figura 9 - Galerie Légitime. Robert Filliou. 1962. Descrição do conteúdo do chapeú-galería ..................................................... 31 Figura 10 - Joseph Beuys. Eurasia Siberian Symphony.1963-1966. Quadro com desenho em giz, feltro, gordura, lebre empalhada e remos
pintados, 183x230x50cm. Col. MOMA............................................................ 32 Figura 11 - Günter Brus. Selbstbemalung (Self-Painting). 1964. Registro de ação.
Col. MOMA...................................................................................................... 33 Figura 12 - Carolee Schneemann. Interior Scroll. 1975.performance. .................... 41 Figura 13 - Carolee Schneemann. Interior Scroll. 1975. Pergaminho dobrado e
fotografias ....................................................................................................... 41 Figura 14 - Janine Antoni. Eureka. 1993. Detalhe de Performance.......................... 43 Figura 15 - Janine Antoni. Eureka. 1993. Banheira, gordura, sabão, medidas:
55,8x66x66cm (sabão), 76,2x178x63.5cm (banheira).................................... 43 Figura 16 - Ana Mendieta. Body tracks. 1982. Detalhe de Performance................. 44 Figura 17 - Janine Antoni. Gnaw. 1992. Chocolate e gordura mordidos, vista da
instalação, 2 cubos de 61x61x61cm, cada um.Col. MOMA.NY...................... 45 Figura 18 - Janine Antoni. Gnaw. Janine Antoni. 1992. Chocolates e batons feitos
dos resíduos dos cubos mordidos, medidas variáveis. Col. MOMA NY ......... 46
Figura 19 - Hannah Wilke. Venus Pareve.1982-84 gesso pintado e chocolate.
Jewish Museum, NY ....................................................................................... 47 Figura 20 - Dieter Roth. P.O.TH.A.A.VFB (Portrait of the artist as a
Vogelfutterbüste busto de semente para ave). 1968. Multiple de chocolate e sementes para ave, 21x14x12 cm. Col. The Museum of Modern Art, New York................................................................................................................. 47
Figura 21 - Eva Hesse, Sans II. 1968. Fibra de vidro, poliéster enresina.
96.5x1092x15.6 cm. Col.SFMOMA................................................................. 49 Figura 22 - Eva Hesse. Sans II .1968. copia instalada ao lado do original ............... 50 Figura 23 - Janine Antoni. Lick and Lather. 1993. Instalação no New Museum.Nova
Iorque 1993 ..................................................................................................... 51 Figura 24 - Janine Antoni. Lick and Lather. 1993. 2 bustos, um de chocolate e um
de sabão, 61x40.6x33 cm. SFMOMA ............................................................. 52 Figura 25 - Janine Antoni. Lick and Lather. 1993. 2 bustos, um de chocolate e um
de sabão, detalhe. 61 x 40.6 x 33 cm. Col. SFMOMA ................................... 52 Figura 26 - Janine Antoni. Saddle. 2000. Couro natural de ovino moldeado no corpo
da artista. 68,6x81,3x200,6cm ........................................................................ 53 Figura 27 - Tania Bruguera. Destierro. 1998-1999. Medidas variáveis. Terra cubana,
borracha, madeira, pregos. Performance ...................................................... 60 Figura 28 - Teresa Margolles posando com um cadáver no necrotério da Cidade de
México............................................................................................................. 63 Figura 29 - Teresa Margolles. La herida. 2007. Fenda na galería da
Fundação/Coleção Jumex feita com fluidos de vítimas de assassinatos, coletados da morgue. 15x 800x3cm ............................................................... 64
Figura 30 - Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009. Ação
de esfregar o chão com água ensanguentada, Pavilhão da 53ª Bienal de Veneza ............................................................................................................ 66
Figurra 31 -Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009.
Lençóis tingidos com barro e sangue, Pavilhão da 53ª Bienal de Veneza ..... 67 Figura 32 - Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009.
Bandeira tingida com sangue simulando a bandeira de México no Pavilhão de la 53ª bienal de Veneza .................................................................................. 67
Figura 33 - Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009.
Bandeira ensanguentada e Bordada, Pavilhão da 53 Bienal de Veneza ....... 68
Figura 34 - Giancarlo Scaglia. Stellar 3. 2014. Díptico, tinta sobre papel japonês 310x225 .......................................................................................................... 69
Figura 35 - Teresa Margolles. Entierro. 1999. Cimento e matéria orgânica............. 70 Figura 36 - Teresa Margolles. Catafalco. 2005 matéria orgânica e gesso,
300x300x50cm................................................................................................ 71 Figura 37 - Teresa Margolles. Puntas 4. 2003. Objeto cortante elaborado em prisão,
caixa de aço,10.7x47.5x10.9 cm..................................................................... 73 Figura 38 - Christian Boltanski, Reconstitution. 1970. Caixa de metal, malha, pasta
de modelar e materiais diversos. Col. MAM St. Etienne................................. 74 Figura 39 - Teresa Margolles. Ajuste de cuentas 13. 2007. Joalheria em ouro com
vidro encontrado em cenas de crimes violentos ............................................. 75 Figura 40 - Grupo SEMEFO. Lengua. 2000. Língua de um jovem assassinado...... 77 Figura 41 - Teresa Margolles. En el aire. 2000. Bolhas de sabão feitas com água
usada para lavar cadáveres, medidas variáveis ............................................. 78 Figura 42 - Teresa Margolles. La promesa. 2012. Instalação. Muro feito de
escombro de casas de interesse social abandonadas de Cidade Juárez ...... 79 Figura 43 - Teresa Margolles. Para que aprendan a respetar. 2006. intervenção,
pública no cinema México, Puebla, México .................................................... 80 Figura 44 - Doris Salcedo.Atrabiliarios.1992. Instalação, sapatos, pele de animal................................................................ 87 Figura 45 -Rachel Whiteread.1993. House. Casa moldada em concreto................. 89 Figura 46 - Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, Monumento contra o fascismo.
1986-1993. Coluna com estrutura de aço e revestimento de chumbo. 12mx1mx1m.................................................................................................... 91
Figura 47 - Doris Salcedo, 1550 Chairs Stacked Between Two City Buildings.
2003. Instalacion na VIII Bienal de Istambul ................................................... 92 Figura 48- Doris Salcedo, Noviembre 6 y 7. 2002. Instalação e ação ..................... 95 Figura 49 - Doris Salcedo. Sem título. 2015. Vista de instalação, móveis com
intervenções. Museu Guggenheim ................................................................. 96 Figura 50 - Doris Salcedo, Unland: the orphan's tunic. 1997. Madeira, tecido, cola e cabelo, 90 x 245 x 80 cm. "La Caixa" Contemporary Art Collection .......................................................................... 97 Figura 51 - Doris Salcedo,Unland: the orphan's tunic. 1997. Detalhe .................. 98
Figura 52 - Doris Salcedo. Plegaria muda. 2008-2010. Mesas de madeira, terra e
plantas, instalação, medidas variáveis........................................................ 99 Figura 53 - Doris Salcedo, Shibboleth. 2007-2008. Sala das Turbinas, fenda no
chão de turbinas da Galería Tate Modern, 1670cm.x70cm de profundidade.. ............................................................................................... 101
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13 I. AÇÃO, CORPO, ESCULTURA E OBJETO 1. AÇÃO, CORPO, ESCULTURA E OBJETO.......................................................... 16 1.1. O CORPO COMO MATÉRIA.............................................................................. 16 1.2. A ARTE-AÇÃO ................................................................................................... 17 1.3. A AÇÃO COMO FORMA POLÍTICA................................................................... 19 1.4. A FORMA OBJETIVA DA AÇÃO........................................................................ 23 1.5. O OBJETO COMO COMISSURA....................................................................... 27 1.5.1 A PRESENÇA DA AUSÊNCIA ............................................................... 28 1.6. O OBJETO PERVERSO..................................................................................... 29 1.7. ARTE ABJETA.................................................................................................... 32 1.8. O OBJETO HÍBRIDO.......................................................................................... 34 II. OBJETO, ABJEÇÃO, ÍNDICE E O FEMININO. A OBRA DE JANINE ANTONI 2. O OBJETO ANÔMALO E O FEMININO............................................................... 39 2.1. A CONSTRUÇÃO E A DESTRUIÇÃO DA IMAGEM DE SI MESMA ................. 40 2.1.1. A ABJEÇÃO CORPORAL..................................................................... 41 2. 2. A MATERIALIDADE .......................................................................................... 45 2.3. O PARADOXO DO MINIMAL VISCERAL .......................................................... 48
2.3.1 O LABOR ............................................................................................... 53
2.4. CORPO E DISTÂNCIA ....................................................................................... 54 III.VIOLÊNCIA E HORROR NA OBRA DE TERESA MARGOLLES 3. VIOLÊNCIA E HORROR ...................................................................................... 57 3.1. O CORPO COMO MATERIA ABJETA .............................................................. 58 3.2. O REALISMO TRAUMÁTICO COMO ARTE POLÍTICA .................................... 59 3.2.1. O SENSÍVEL......................................................................................... 60 3.2.2. O REALISMO TRAUMÁTICO ............................................................... 61
3.3. PERVERSÃO E PATETICISMO......................................................................... 63 3.4. A MATÉRIA COMO TESTEMUNHO .................................................................. 65 3.5. A RELÍQUIA........................................................................................................ 69 3.6 O ARQUIVO DA VIOLÊNCIA .............................................................................. 72 3.7. VIOLENCIA POSMINIMAL OU ENTRE EL CUBO BLANCO Y EL HORROR .. 76 3.8. ÉTICA E VIOLÊNCIA.......................................................................................... 80 IV. O OBJETO COMO DUELO. DORIS SALCEDO 4. O OBJETO COMO MEMENTO............................................................................. 85 4.1. A SUPERVIVÊNCIA NA NOSTALGIA................................................................ 86
4.2. VAZIO E ÍNDICE ................................................................................................ 87
4.3. ANTIMONUMENTO E RUINA ............................................................................ 88 4.3.1. OS MATERIAIS..................................................................................... 93 4. 4. A TEMPORALIDADE......................................................................................... 94
4. 5. O MÓVEL E A TUMBA ...................................................................................... 95
4. 6. A DOR ALHEIA.................................................................................................. 98
4. 7. É POSSÍVEL A AFETIVIDADE?...................................................................... 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 104
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 109
13
INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem por objetivo trazer à tona uma reflexão sobre a arte-
ação e processos esculturais-objetuais associados ao corpo, tomando como
referência principal algumas obras da produção artística de Janine Antoni (Bahamas,
1962- ), Teresa Margolles (México,1963) e Dóris Salcedo (Colômbia 1958-), artistas
cujas produções parecem permitir e desenhar uma possível linha conceitual sobre a
corporalidade e a objetualidade na arte contemporânea latino-americana, a partir da
segunda metade do século XX.
O campo de análise desta pesquisa é o estudo de algumas das esculturas e
objetos que as artistas utilizam como aparentes extensões da memória de ações e
eventos relacionados com o corpo, e que permitem a abordagem de discussões
envolvendo arte, gênero e política desde o ponto de vista da alteridade. Tal questão
será abordada a partir de uma análise do processo de criação de cada artista. O
processo poético dessas artistas parece compartilhar temas e obsessões ao redor
da sensorialidade e da carga memorial e psíquica dos materiais empregados nas
obras; sua ordem de aparição foi concebida como uma apresentação de diversos
momentos da relação objeto-corpo.
Buscando estratégias para compreender essa aproximação arte-ação,
memórias, corporalidades e a prática artísticas, essa dissertação foi dividida em 4
capítulos. No primeiro capítulo temos o intuito de apresentar os conceitos principais
envolvidos nas obras das artistas, noções sobre a arte-ação, a materialidade e a
ideia do objeto artístico como comissura, que por meio de sua materialidade se
apresenta como possibilidade discursiva na obra; também relacionaremos a ideia da
carga política inerente aos projetos artísticos em estudo.
Tendo feito essa contextualização, no segundo capítulo apresentamos
algumas obras da artista Janine Antoni e a ideia do corpo projetado e abjetado com
uma preocupação em sua natureza perecível. Exploramos a discussão sobre a
construção da identidade por meio da destruição da própria imagem corporal em
peças que apontam um conflito com materiais quotidianos relacionados com o
estereótipo do feminino.
14
O capítulo 3 apresenta a obra da mexicana Teresa Margolles. A obra dessa
artista apresenta a possibilidade da exploração do corpo por meio da presença da
corporalidade violentada, com um interesse na dinâmica do choque e da abjeção em
obras que desenvolvem a ideia do realismo traumático e a matéria como
testemunho.
O capítulo 4, com a obra de Dóris Salcedo, é apresentada uma outra
possibilidade da poética do corpo, a ausência relacionada com noções de ruína e
nostalgia, luto e memória. A pesquisa apresenta algumas obras da artista buscando
evidenciar uma tendência do seu projeto poético no qual parece haver uma
possibilidade afetiva na arte política.
Esperamos, finalmente, que nossas linhas deem conta de apresentar algumas
reflexões e exemplos sobre a relevância da presença do objeto que utiliza marcas,
rastros e a materialidade como importantes meios de repensar a produção artística
sobre o corpo na América Latina.
15
I. AÇÃO, CORPO, ESCULTURA E OBJETO
16
1. AÇÃO, CORPO, ESCULTURA E OBJETO .
O corpo tornou-se elemento fundamental em muitas linguagens artísticas
desde a modernidade. Embora tenha sido interesse de artistas desde os mais
remotos tempos. Mas, a modernidade começou a inserir a ação como parte do
processo criativo e, posteriormente, como matéria e objeto na obra. O corpo é um
lugar onde convergem várias formas de conhecimento, quase tudo tem relação com
ele; é um sÍtio no qual são possíveis todas as necessidades, os processos
fisiológicos, as restrições, as trocas, etc. É ele um lugar de sensação, de mortalidade
e é também um dos lugares materiais onde as memórias são construídas e também
se localizam.
Optamos por um interesse em obras de artistas que envolvem ações
artísticas que têm um encontro com o corpo, a partir do qual são criados objetos
residuais feitos com o propósito de resguardar impressões de processos; são essas
obras fragmentos temporais e físicos que possam funcionar como interstícios entre
as experiências e os espectadores.
1.1. O CORPO COMO MATÉRIA
O corpo, de certa forma, tem presença ao longo da história da arte ocidental,
mas é depois do pós-guerra, na segunda metade do século XX, que a arte encara
uma profunda necessidade de elevar o sujeito humano acima da representação dos
objetos (SCHIMMEL, 2012, p. 37), numa época de objetivação dos sujeitos, na qual
qualquer um é prescindível na persecução dos interesses mais obscuros e
dementes, adquire maior importância a ideia do ser humano como presença vital e
não só tema representado na arte. O corpo se faz necessário diante da crítica ao
sistema artístico e a seus recursos que permitem que o espectador se sinta alheio à
sua consciência, já que “a ilusão estética nos permite a segurança a que aspiramos
17
e garante a liberdade da sensação de culpa depois que nos separamos do objeto ou
ação”. (VERGINE, 2006, p. 27)
Um tópico importante na busca de diversas formas de representação dos
artistas é a demarcação da ideia de identidade, que a partir dos anos de 1960, está,
usualmente, envolvida com o corpo, não só por meio do mapeamento das
manifestações artísticas no desenvolvimento temporal linear ocidental, mas também
considerando uma visão espaço-temporal na qual se pode admitir a coexistência de
localismos, de narrativas particulares, assim como a inclusão de temporalidades
desconexas, paralelas e/ou simultâneas. Cada uma dessas outras dimensões
comportam sua própria lógica, a qual permite questionar a norma e o que é
considerado uma lógica de “progresso“ imperante nas definições dos centros
hegemônicos (BUTLER, et al, 2007, p. 343).
Assim, podemos ver manifestações artísticas desde plataformas
interdisciplinares nas mais diversas latitudes, nas quais se destacam a sagacidade e
originalidade com a qual os artistas abordam suas propostas, além de que aportam
uma visão diferente no relativo a conteúdos e temáticas.
O corpo não é mais só representado, ele transcende esse processo mimético.
Ele parece se tornar um ativador de processos que envolvem uma relação entre vida
e arte; mas, como fazer desta presença corporal uma ferramenta de significação?
Essa questão norteia esta dissertação e será trabalhada ao longo de toda ela.
1.2. A ARTE –AÇÃO
Quando pensamos no desenvolvimento da arte da ação, há ainda uma
discussão acerca de suas denominações, porém procuramos não falar dessa
discussão, já que toda arte é tão diversa dada a sua origem cultural, pelo que, nesta
pesquisa, a referência é de maneira geral como arte-ação ou performance.
No final da década dos anos sessenta e nos anos setenta do século XX,
existiram uma série de questionamentos sobre a dissolução do objeto artístico e das
instituições da arte, inquietações sobre a ideia de gênio, da criação, da
autenticidade, da aura, do poder da linguagem, da representação e sua relação com
os meios de comunicação, neste contexto, surgiu um questionamento sobre a
identidade e a pertinência da arte, o que poderia a definir?
18
A obra de arte tem sido considerada como um espaço de múltiplas dimensões
e significados. Assim, também parece adquirir importância a atitude participativa e
ativa do observador, o qual deve encontrar uma identificação por meio de uma série
de jogos de espelhos, de significados e de encenações nas quais os reflexos se
intensificam e se multiplicam: também o espectador recria, executa, interpreta e
inclusive completa a obra, tornando-se numa espécie de cúmplice e co-participe da
criação, ou ainda poderíamos pensar que ele, o espectador, seria uma espécie de
autor externo (mas esse debate transcende o limite desta dissertação). Essas ações
ganham também dimensão performática, reconfigurando a arte como ação, ou
performance, no fim do século XX.
O conceito envolvido na palavra performance é muito amplo e problemático,
especialmente sendo uma palavra de origem anglo-saxônica importada no contexto
latino-americano para designar certas manifestações da ação, em geral é um
conceito interpretado como uma série de manifestações que compartilham uma
gama de interações entre várias disciplinas - dança, teatro, ritual, música, política,
etc.- , embora, especialmente na América Latina existam comportamentos locais que
estão sendo considerados como intraduzíveis, e resistentes, e o ato que pode ser
considerado uma performance em uma sociedade, pode ser considerado como um
não evento em outra (TAYLOR, 2013, p. 27), o que evidencia a relatividade do termo
e sua condicionada submissão à cultura.
Na presente pesquisa, o termo mais utilizado será arte-ação, embora algumas
das obras sejam consideradas pelo sistema das artes como performances e
nomeadas dessa forma, mais não é o interesse particular nos conceitos aqui
desenvolvidos discutir os termos próprios dessas distinções, pois isto não
acrescentaria muito ao debate que aqui se constrói. Considerado que são práticas
que se desenvolvem no tempo-espaço estético, preferimos tratar essas práticas
dentro do conceito de arte-ação.
A arte-ação é associada com atos de representação e transferência vitais
(TAYLOR, p. 27) e em certas manifestações dá conta de especificidade cultural e
histórica, tanto para o artista que a encena, quanto na recepção do público, daí sua
capacidade para desafiar e influenciar o público e outras performances. Também, é
muito importante na percepção da arte-ação a ideia do público, pois a performance
insiste na participação ou na reação, geralmente ativas, faz parte dessa participação
19
a consideração de que somos todos parte enquanto atores no entorno sócio-cultural,
que estamos ligados por identificação e/ou por participação.
A intenção é “trazer o espectador para dentro da moldura , fazer as pessoas
verem a si mesmas envolvidas” (TAYLOR, p.115), lograr que o sentido principal seja
forçar a eliminação da fronteira construída entre o eles e nós, quebrar o sentido de
falsa segurança e desestabilizar as posições fixas e as identidades assumidas como
estáveis. A arte-ação tenta mostrar que sempre há alguma coisa que excede a
nossa estabelecida compreensão das coisas, criticar o fracasso da normatividade
que embeleza ou avilta o sujeito que fica dentro ou fora dos limites, ou ainda mais
questionar o sentido da realidade que é só um cenário. Além disso, a arte-ação
pretende testar os espectadores em seu próprio bom senso. O que, segundo Taylor
tem uma dimensão crítica “onde os espectadores precisam se posicionar e não há
nenhum lugar seguro ou confortável” (idem, p.118), a ideia é que os espectadores
venham a ver a si mesmos refletidos nas obras.
1.3. A AÇÃO COMO FORMA POLÍTICA
A performance pode ser pensada como uma estratégia que se empresta,
tanto na forma quanto no conteúdo, para o desenvolvimento da arte desde os anos
de 1960. Um recurso na busca da identidade, por parte dos artistas da arte-ação,
tem consistido em questionar a linguagem artística tradicional, seus recursos (tanto
os conceituais, quanto os materiais) e seus valores, essencialmente porque vinham
impostos desde uma tradição eurocêntrica e patriarcal, na qual é referida a exclusão
da mulher na história e na prática das artes no ocidente e a reificação na sua
representação. (CORDERO e SAENZ, 2007, p.17), mesmo com toda a presença
feminina no processo das artes, essa participação foi minimizada em termos
históricos e fadada ao esquecimento, ao apagamento em detrimento de uma história
da arte masculinizada. Essa posição nos aproxima de uma reflexão e engajamento
político na arte – o que irá justificar as artistas escolhidas para a reflexão nesta
dissertação.
A arte política é hoje compreendida como um engajamento cotidiano contra
as diversas modalidades do pensamento único (SELIGMANN-SILVA. p. 21). A
reivindicação de materiais, ofícios manuais e âmbitos de trabalho que foram,
sistematicamente desvalorizados - como os tecidos, a culinária, o artesanato e as
20
artes aplicadas em geral - está presente nas propostas artísticas da década de 1960
que foi um momento de experimentação nas artes, numa tentativa por devolver a
dignidade à tradição criativa destas práticas; questionando por sua vez o poder
material e conceitual da tradicionalmente denominada alta cultura, a qual pode ser
entendida e definida como as produções (referidas especificamente às artes) das
classes privilegiadas, consideradas como equivalente da “civilização” e que é
oposta ás produções do bárbaro que pertence às massas ignorantes e deve ser
educado (WILLIAMS, 1989, p. 3-14). Este conceito ainda é contemporâneo,
permitindo até nossos dias que a utilização destas ferramentas seja objeto da busca
de identidade e qualidade enquanto ser humano integral que possa manifestar suas
qualidades artísticas e estéticas desde que em qualquer plataforma.
No questionamento do considerado alta cultura predomina a ideia de integrar
arte e vida, ideia que já se tinha manifestado nas vanguardas históricas (MICHELI,
1989, p.22) e que surge com nova força, evidenciando que há uma busca nos
comportamentos quotidianos e ordinários, que é conferida importância à
contingência dos fenômenos mais simples, já que ao falar da condição dos
indivíduos, das suas relações sempre em mudança e do absurdo dos
comportamentos, traz à tona a profundidade psíquica do proceder dos mesmos; a
este respeito há uma série de propostas artísticas que orientam sua incidência nas
teorias performáticas e psicológicas que ultrapassam as barreiras tradicionais por
meio da hibridação de sua prática.
A referência ao performativo está relacionada com as teorias de Judith
Butler, nas quais o sujeito não é uma substância fixa e imutável, senão produto de
um constante processo de re-significação (BUTLER, 1993, p.1-16). Por exemplo, os
artistas do grupo Fluxus (Fig. 1) apresentaram os atos mais banais como formas de
arte, Fluxus expande a noção da arte, estabelece que cada indivíduo constitui uma
obra de arte em se mesmo e que a vida pode ser entendida como uma composição
artística global, propõe a interdisciplinaridade e a adoção de meios e materiais
provenientes de diferentes campos para criar a ideia da “arte total” onde se busca
aproximar arte e vida.
Outro tipo de performances está diretamente relacionado com atos políticos,
como é o caso das performances de conteúdo feminista de Carolee Scheeman (Fig.
2), Martha Rosler (Fig. 3) e Yoko Ono (Fig. 4).
21
Fig. 2. Carolee Schneemann. Interior Scroll. 1975. Detalhes de performance. Fonte: <http://www.feminicidio.net/articulo/performance-y-participaci%C3%B3n-social> Acesso em : 20 Jul. de 2015.
Fig. 1. Fluxus. Street Cleaning Event , 1967. Detalhe de performance. Fonte:< http://www.artpool.hu/Fluxus/HiRedCenter.html> Acesso em : 20 Jul. de 2015.
22
Fig. 4. Yoko Ono . Cut Piece. 1964. Detalhe de Performance. Fonte: <http://www.mca.com.au/festival/yoko-ono-morning-peace-2015/.> Acesso em : 20 de Jul. de 2015
Fig. 3. Martha Rosler. Semiotics of the kitchen. 1975. Performance, still de video. Fonte : <http://www.arttattler.com/archiveatelierkitchen.html.> Acesso em : 20 Jul. de 2015.
23
Pode-se observar que parece estar presente, nestas obras, não só o corpo
do outro ou o do artista, mas também os objetos residuais, memórias das ações que
trabalham como vínculos para promover a discussão das relações de gênero, já que
permitem a vinculação dos espectadores que podem ver, que o objeto residual é
uma projeção do corpo humano, mostrando as relações do conceitual, social,
político, emocional , físico, psicológico, sexual, cultural, etc.
O objeto, nestas obras, parece implicar uma forte carga simbólica referida
especialmente às ideias do poder, dominação e violência. Pode-se pensar que elas
nos ensinam o reflexo da ideologia feminista na qual “o pessoal é político” que é o
lema adotado pela Segunda Onda do feminismo1 (NARVAZ, KOLLER, 2006) dos
anos sessenta do século XX, no feminismo radical Nos falam do absurdo do hábito,
da histeria envolvida na vida diária, dos seres (geralmente mulheres) comuns e
ignorados, cujos gestos e dramas se conectam a aqueles de outros seres cujas
existências afetam; parecem aludir a uma certa memória partilhada, à loucura
coletiva de viver, à poética do cotidiano, ao absurdo da existência, e de modo muito
especial, à intimidade.
Estas manifestações da performance parecem revelar uma intencionalidade
de mostrar o lado contraposto da experiência feminina; revelam tendências poéticas
que desnudam aspectos como a dureza, o rudimentar, o áspero e o violento,
embora, ao mesmo tempo, estejam convergindo para uma profunda raiz psicológica
e humana da criação e seu significado.
1.4. A FORMA OBJETIVA DA AÇÃO
No texto de Lucy Lippard e John Chandler, A desmaterialização da arte, de
1968, se falava das explorações na arte (em sua maior parte estadunidense) dos
anos de 1960, de novas linhas de pesquisa, adicionando preocupações linguísticas,
sociais, conceituais e políticas, tentando dar um novo peso a uma obra que pudesse
interagir com o público. Nessas tendências da arte, o inacabado e o imperceptível
tiveram grande relevância na busca de uma revolta da produção artística que
procurava no princípio um distanciamento da matéria em favor da ideia (arte
1 Feminismo que teve início nos anos 70 num momento de crise da democracia. Luta pela valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer, contra a violência sexual. Adotou o lema “o pessoal é político” que foi o título de um dos essaios sobre feimismo mais importantes escrito em 1969 por Carol Hanisch, teorica do feminismo radical
24
conceptual), ou de colocá-la em movimento (arte-ação) (LIPPARD, CHANDLER,
1968).
Assim, os artistas e teóricos da arte dos anos de 1960 parecem ter priorizado
proposições do distanciamento da matéria em favor da ideia (conceito), como na
arte conceitual ou com Allan Kaprow, na performance, que definia a nova arte pelo
escape da instituição da arte e sua distância do objeto por meio da ação. Também
houve uma revisão da importância da obra e das teorias sobre o objeto artístico de
Marcel Duchamp, durante os anos de 1960 e ficou estabelecido que a relevância da
arte não residia na produção de objetos, senão na recepção dos mesmos - embora
muitos artistas não manifestassem uma aversão contra o objeto ou a materialidade
deste -, já que vários dos movimentos fundamentais da época que precisaram da
presencia do espectador, como o Minimalismo2, requeriam necessariamente o
objeto e o espaço para existir e poder estar em situação com ele.
É importante mencionar, por exemplo, as exposições de 1969 que
estabeleceram precedentes na forma de ver a obra e sua relação com os objetos e a
materialidade nas exposições “When attitude becomes form” (1969) (Fig. 5), na
Kunsthalle, em Berna (Suíça), ou Op Losse Schroeven(1968) (Fig. 6 ), em
Amsterdam (Holanda), nas quais foi visível uma articulação da possibilidade do
trabalho artístico que surge do encontro entre as ações artísticas e as características
particulares dos materiais escolhidos. “Prazer intelectual e estético podem fundir-se
nessa experiência quando o trabalho é visualmente forte quanto teoricamente
complexo” (LIPPARD, 1967, p.164).
Os objetos artísticos relacionados com a arte-ação parecem ter o intuito de
puxar os limites tácteis com a missão de tocar o pensamento, apresentam eles
desenvolvimentos conceituais que conseguem chegar até o espectador por meio de
uma rede de equivalências psíquicas, poéticas e memoriais. Por meio da morfologia
própria dos materiais, são criados espaços além da experiência visível, lugares de
estranheza próprios para gerar interstícios e novas conexões.
2 Termo empregado por Michael Fried em 1967 em seu texto Arte e Objetidade para definir a experiência minimalista que incluía ao espectador como parte das obras.
25
Fig. 5. When attitude becomes form, vista da exposição Kunsthalle Berna, Mario Merz, Bruce Nauman, Robert Morris, Barry Flanagan. 1969. Fonte: <http://www.contemporaryartdaily.com/2013/09/when-attitudes-become-form-at-kunsthalle-bern-1969/> Acesso 29 Mai. 2016
Fig. 6. Op Losse Schroeven, vista da exposição, Stedelijk Museum , Amsterdam, 1969. Neil Jenney, Two Wood and Vinyl Plastic Tanks with Very Soapy Water, 1968 (muro). Robert Smithson’s Mirror Displacements ,1968 (chão). Fonte: <http://grupaok.tumblr.com/post/15622939397/installation-view-from-op-losse-schroeven-curated>. Acesso 29 mai. 2016
26
Também, em obras como as do já citado grupo Fluxus, podemos perceber de
maneira física a memória dos objetos que permaneceram; a ideia de não conservar
nada que seja capaz de um devir como mercadoria é um ideal que não opera dentro
dos parâmetros do desenvolvimento da arte, é indispensável a memória e como
qualquer objeto artístico, uma vez produzido, seu destino escapa das mãos do
artista-produtor.
A vida dos objetos parece depender da atitude com que são assumidos, de
seu uso e desuso. É a atitude do artista que pode dotá-los de originalidade e
estranheza, de sua capacidade para existir e significar, de restituir a capacidade de
assombro. A relação com os objetos, apesar de deixar de ser preponderante no
mundo expositivo não deixa de ter um vínculo com o sujeito que os experimenta. O
objeto adquire um novo nível fora das coisas do mundo cotidiano e se torna um
veículo para experimentar o cotidiano, a vida, com outros olhos.
A arte-ação reflete um mundo de sensações tácteis relacionadas com
experiências corporais. A morfologia dos materiais empregados, tende a refletir o eu
interno da pessoa, sua história pessoal, seus medos, conflitos emocionais, mentais
ou físicos.
Estando os objetos intimamente ligados às aparências, ao mundo do
consumismo e das coisas, era de se esperar que as ações artísticas questionassem
as relações com os objetos ligados ao capitalismo e ao culto à aparência, à
voracidade do consumo e à construção de sentidos que tornam o objeto artístico em
objeto de desejo. Tal é o caso de algumas peças do grupo francês Novos Realistas
dos anos de 1960, que nos falam de recuperar a poética dos objetos através da
apropriação e transformação de objetos da realidade como os resíduos
compactados de César (Fig. 7).
27
Os objetos que resultam das ações parecem ser, de fato, distintos das ações
que as produziram, Mas igual que a lava pode ser diferente da rocha na que se converterá, também segue sendo o mesmo que era. Neste sentido os objetos que resultam das ações que se tornaram em vestígios de uma ação, estendem a temporalidade implícita experimentada no agora, além do agora e até o depois do agora (SCHIMMEL, 2012, p.23).
Como podem ser sugeridas as marcas de uma ação?. A ideia de tocar, é
tradicionalmente relacionada com uma parte do corpo que quase sempre é a mão do
artista, mas essa tendência tem sido quebrada e deslocada para outras formas nas
quais os artistas usam o corpo para atuar sobre os materiais. Assim também
incorporam as relações como o ambiente que os rodeia.
Os objetos produto das ações prometem uma relação mais pessoal que uma
documentação da ação, ficando o objeto como evidência, convida ao espectador a
imaginar a experiência que deixou essas marcas, convida à evocação por meio da
ausência de um corpo.
Fig. 7. César, Ricard. Compression dirigée d'automobile . 1962. Resíduos metálicos compactados,153 x 73 x 65 cm, Col. Centro Pompidou. Fonte:http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-nouvrea/image02.htm. Acesso em: 20 Jul. 2015.
28
1.5. O OBJETO COMO COMISSURA3.
É importante estabelecer que o objeto residual de uma ação performática
permite uma interlocução com aquele que a experimenta, funcionando como
comissuras (SCHIMMEL, 2012, p. 20): que aproximam o espectador à experiência,
o objeto como coisa pode permitir ao artista criar uma relação com o espectador por
meio de um determinado conceito que será desenvolvido também como uma
experiência físico-temporal, deixam ver sua possibilidade comunicativa, são parte
essencial das ações que sem o objeto ficariam em um plano efêmero e inclusive
esotérico (MEDINA, 2009, p.72 ).
A capacidade dos objetos de ação, enquanto comissuras, os possibilita como
mediadores do sentido: Como comissuras, esses objetos devem compreender-se como
ligados à conduta que é, ela mesma, criada para a observação. Assim nas ações artísticas, confere-se aos objetos – confia-se aos objetos - a capacidade de agirem como conexões dirigidas a conceitos estéticos (SCHIMMEL, 2012, p. 21).
É assim que os objetos artísticos residuais não são resultados finais,
fechados, eles aparecem como uma obra aberta que fica como agente, ação e
resultado que são, por sua vez inseparáveis.
1.5.1 A PRESENÇA DA AUSÊNCIA
Os objetos resíduos de uma ação parecem funcionar como elementos de
reconhecimento não mimético com seus originais, são eles uma combinação entre o
que quer ser visto e o que não precisa ser visível; pretendem intervir na realidade
perceptiva e acionar processos, encontros afetivos e psíquicos que se tornam reais
por meio das práticas indexiais (KRAUSS, 1996).
Estes índices são vestígios, fósseis memoriais de experiências que funcionam
como pontos de encontro, “comissuras” entre os objetos e a memória, e entre os
objetos e os sujeitos para os quais funcionam como signos. Pegadas, impressões,
modelagens, traças, permitem ao artista uma estratégia de representação, cuja
intenção é criar uma forma que não seja nem o objeto nem a sua representação,
3 O termo comissura deriva do latim comissura, que significa unir, e committere que significa conectar, pôr a cargo ou confiar algo, também refere à linha corporal que fica entre as pálpebras, os lábios ou os dedos.” (SCHIMMEL, 2012, p. 20).
29
mas uma impressão (impreinte)4 física, sim, mas psicológica também. São elas
peças criadas a partir de uma série de relações materiais diretamente ligadas a
produzir um objeto concreto, mas também todo um conjunto de relações abstratas,
que permitem que o objeto artístico seja instável e aberto.
Nas artistas associadas a esta pesquisa, Janine Antoni, Teresa Margolles e
Dóris Salcedo, há uma preocupação, ou intencionalidade poética, na qual os
objetos apresentados atuam, eles mesmos, como precursores de memória. É assim
que apresentam objetos indiciais que envolvem um jogo de percepção, são eles um
memento de experiências passadas transferidas, têm uma fisicalidade que induz o
espectador a se perguntar como foi feito, a questionar o porquê de haver apenas
uma memória da forma desaparecida, o porquê dessa memória ter o poder de
provocá-lo.
1.6. O OBJETO PERVERSO
O devir do objeto resíduo de uma ação artística pode ser por demais incerto.
Os processos não são conhecidos de maneira total; o objeto tende a uma condição
de reversibilidade para com os questionamentos impostos nele; seus significados
também variam; e, em muitos, casos tudo é a obra: a ficha, o registro, a ação e seu
resíduo.
A escolha das obras nesta pesquisa foi feita pensando na perversão do
objeto, pensando na capacidade do objeto que se desvia daquilo que é considerado
bom, correto ou razoável, e que além disso é considerado até corrupto e vicioso por
trair noções de pureza associadas à arte. Algumas das obras parecem corromper os
costumes e o estado habitual das coisas e é por meio dele que a consciência da
experiência acontece. O que será trabalhado posteriormente.
Em certas ocasiões, o objeto artístico parece resistir à instituição burguesa
da arte (BURGUER,1974 p.62) quando, ao mesmo tempo, está inserido nela, em
obras como Galerie Légitime (Fig. 8 e 9), do artista Robert Filliou. A ideia do objeto e
seu estreito vínculo com o corpo é evidente, ao mesmo tempo que a galeria de arte
deixa de estar limitada a um espaço físico definido (O´Doherty, 2011) para existir no
chapéu-galería ambulante do artista; nele Filliou deposita pequenas obras e caminha
pelas ruas de Paris perguntando aos pedestres: “você tem interesse na arte?” Se
4 De acordo com a ideia na língua francesa da canção “Faire une empreinte” de Marcel Duchamp.
30
eles respondessem sim, ele mostrava o conteúdo do chapéu como se ele fosse uma
galeria. É esse um objeto carregado, mantém a forma primária da cabeça que molda
a ideia, se assume como uma coisa, que ao final das contas como quase todos os
objetos fluxus foram retomados como objetos de exibição em museus e galerias.
Podemos pensar que o objeto resíduo de uma ação artística é
essencialmente um objeto artificial, pensado na medida de um requerimento, feito e
criado como ponto de união que mostra a “profundidade das ações e dos sujeitos
mesmos que de outra forma não seriam advertidos” (SCHIMMEL, 2012, p. 26).
Fig. 8. Robert Filliou .Galerie Légitime. 1962. Fotografía. Fonte: <http://www.artperformance.org/article-22043947.html.> Acesso em: 21 jul. 2015.
31
Outros artistas nos falam das relações bizarras entre eles e seus objetos. Por
exemplo, Joseph Beuys (Fig. 10) colocava especial atenção à relação vivencial
estética com seus objetos, que não eram aleatórios, ingênuos, nem casuais,
quando exibidos a intenção não é evidente.
Ele, Beuys, conferia aos seus objetos uma forte carga simbólica que, ainda
hoje, os faz parecerem sumidos na referencialidade críptica de seu autor. Contudo,
na busca do estado poético5 são o exemplo de uma arte que se inclina por
demonstrar que é possível e necessário viver uma vida que não só seja pragmática,
senão que possibilite que os indivíduos conciliem o prosaico e o poético da
existência. É por isso que ele pode perveter o sentido prosaico dos objetos e
recolocá-los como obras da arte.
É o objeto, esse vínculo que pode ser sujeito de desejo, de repulsão, de
cumplicidade ou anomalia, e é na perversão de seu poder que os artistas parecem
encontrar um veículo na quebra dos sentidos, na ambiguidade e na incerteza de
seus alcances.
5 O conceito de poiesis como parte da experiência estética “entendida como capacidade poética”, designa a experiência estética fundamental de que o homem, mediante a produção de arte, pode satisfazer sua necessidade de encontrar-se no mundo como em casa, privando ao mundo exterior de sua esquiva estranheza” (ROBERT JAUSS, 2002).
Fig. 9. Galerie Légitime. Robert Filliou. 1962.Descrição do conteúdo do chapeú-galería. Fonte: <http://www.flickriver.com/photos/sachawaldron/6130121476/> Acesso em : 14 mar. 2016.
32
1.7. ARTE ABJETA
A arte do abjeto, como Kristeva a denominou, das excreções, daquilo que desestrutura a ordem, a identidade e os significados controlados/controladores – é uma arte que ao mesmo tempo é fruto da violência da técnica e a desafia : Essa arte é filha de uma "cultura da pulsão de morte" – e do culto dessa pulsão.
Márcio Seligmann-Silva
A arte sofreu um profundo cisma após a crise humanitária da Segunda Guerra
Mundial, nos limites da inexistência, de uma realidade que ao reconhecida poderia
aniquilar o sujeito (KRISTEVA, 2004, p. 9). Surgiram explorações nas quais o corpo
é exposto em uma condição na que o abjeto se introduz na psique dos envolvidos
por meio da perturbação e da repulsa.
Segundo Julia Kristeva (2004), a abjeção é uma escura rebelião do ser contra
de aquilo que o ameaça. Possivelmente é por isso que cobraram uma vitalidade
inusitada as ações artísticas que refletiam várias teorias psicológicas e sociológicas
nas que se sustenta que os sintomas de um indivíduo que padece psiquicamente é o
produto de sua sociedade, de seus contextos específicos locais, de um trauma que
Fig. 10. Joseph Beuys. Eurasia Siberian Symphony. 1963-1966. Quadro com desenho em giz, feltro, gordura, lebre empalhada e remos pintados, 183 x 230 x 50 cm. Col. MOMA NY. Fonte: <http://www.moma.org/explore/multimedia/audios/373/6190> Acesso em: 20 de Jul. 2015.
33
provém de um contexto social amplo e que se torna um problema político, que os
indivíduos, refletem e padecem.
Esta prática é evidente, por exemplo, nas ações ritualísticas de artistas como
Günter Brus (Fig. 11) do Grupo de Acionismo Vienense6. Nelas, por meio de rituais
de degradação corporal, da mistura do sexual e do cultural, os artistas tornam
visível a problemática de uma sociedade hipócrita, reprimida, em crise, com uma
profunda culpa traumática de pós-guerra.
Fig. 11. Günter Brus. Selbstbemalung (Self-Painting). 1964. registro de ação. Col. MOMA. Fonte: <http://www.phaidon.com> Acesso em: 20 jul. 2015. Estas manifestações de degradação, parecem provocar uma sensação de
desconforto, mostrando assim, que o ser humano é sempre uma questão muito mais
complexa, já que o mais escabroso, o mais obsceno, também fazem parte da
condição humana. O corpo não será mais a expressão da aura do belo e do sublime,
por meio da expressão do oposto, a abjeção, vai se rebelar como uma estratégia
que possibilita uma quebra da ordem, expõe a crise do sentido estabelecido e abre a
oportunidade para outros questionamentos.
6 Nos anos 1960 e 1970, junto com o surgimento das performances, aparece o accionismo vienense como um fenômeno limite: da quebra, ultrapassagem e transgressão dos limites do corpo, da mente e das manifestações artísticas (SOLÁNS. 2000).
34
Citando novamente a Julia Kristeva (1988, p. 9) a abjeção é uma rebelião
violenta do ser contra de aquilo que é intolerável, mais que ao mesmo tempo
representa um pólo de sedução na repulsa que posiciona a aquele que experimenta
a abjeção fora de si. Tem o abjeto o peso do sem sentido, possui um certo nível de
equilíbrio, daquilo que descartável para a sobrevivência é tudo aquilo que é
rejeitado, que é expulso pela vida. Há uma arte que trabalha neste limite, apresenta
objetos dos quais quem os experimenta não pode fugir, nem se proteger deles como
o faria de um objeto simples, em palavras de Julia Kristeva (1988, p. 11): “É a morte
infestando a vida”.
Parece haver determinadas manifestações da arte que tem uma intenção
consciente de expor a abjeção, vários artistas de propostas políticas tem encontrado
no objeto abjeto da arte uma maneira para conturbar a ordem, a identidade e o
sistema, já que a abjeção não respeita limites, nem lugares, nem regras. Há várias
características na arte abjeta, uma fascinação pelo opróbrio, pela injúria, pelo
eminente sentido de catástrofe; o desejo inacessível que se torna dor; a alienação
do sujeito; a ambiguidade; a repugnância; essas e algumas outras características
dotam o objeto artístico de uma significância supostamente intolerável, mas que
apresenta uma sedução naquele que a observa.
A arte abjeta trabalha com base na ideia de que há conteúdo inconsciente na
obra que permite que o repulsivo seja excluído de uma forma estranha, a exclusão
não é radical, o receptor da obra percebe que precisa de uma posição de defesa,
percebe que a abjeção é imoral e tenebrosa, turva, quando ao mesmo tempo há um
nível no objeto em que, por meio da arte, o abjeto é sublimado.
A arte abjeta aparece em inúmeros conteúdos e práticas simbólicas, que se
manifestam em objetos que expressam questões limites e incertas e que não
chegam a integrar-se a um certo julgamento consciente, esses jogos possibilitam ao
artista introduzir uma discursividade estética na obra, isto implica em um jogo entre o
artista, a obra e o espectador, que parece permitir ao espectador reconhecer-se na
abjeção, encontrar que ele mesmo não é outro que não seja abjeto.
Nas artistas que formam o corpus desta pesquisa, podemos ver
manifestações objetuais, esculturais, ações e instalações, nas quais estabelecem
uma realidade impossível, por meio de um sem sentido, do abjeto, podemos ver
como trabalham sobre o limite do narcisismo, do perverso, falam do absurdo, da
35
falta de moral, pervertem os conteúdos originais da realidade como forma de
protesto.
Cada artista tem uma abordagem distinta da abjeção, mas compartilham um
mal estar sobre a sociedade contemporânea. Em seu momento a abjeção
estabelece uma conexão em cada tempo, na contemporaneidade tem se adaptado a
sociedade das crise. Podemos pensar que a obra dessas artistas nos leva a pensar
em um objeto complexo e híbrido no qual o abjeto dá conta desse mal estar.
1.8. O OBJETO HÍBRIDO
As artistas aqui pesquisadas parecem ter uma relação com seus objetos
definidas em grande parte por processos ligados a seus contextos. Nelas, podemos
apreciar uma atuação do objeto que responde a uma ordem estabelecida por
teóricos como o argentino Nestor García Canclini (2001) em países com uma
situação pos-colonial7: o hibridismo.
A hibridação oferece um conceito para se pensar sobre a tradição e a
modernidade na América Latina, contém um aspecto mais planejado que só o
aspecto botânico ou científico, dirigido neste caso particular às práticas envolvidas
em processos escultóricos e objetuais que se referem à diferentes camadas, tanto
de significado quanto materiais, nas quais ”formas se separam das práticas
existentes e se recombinam em novas formas, em novas práticas” (TAYLOR, 2013,
p.154).
Os processos das manifestações culturais latino-americanas locais, em cada
país, são afetados pelas grandes trocas transnacionais, isso implica que a
significação de uma obra dentro de uma cultura específica se deriva da diferença
estabelecida entre os distintos sistemas simbólicos dominantes nessa cultura, bem
como da tradição histórica acumulada que lhe é própria.
Há uma discussão ao redor da legitimidade e legibilidade dos sistemas
simbólicos que são empregados para comunicar, em outros âmbitos culturais, uma
determinada experiência local em termos artísticos. Para os artistas latino-
americanos é muito importante estabelecer uma posição que sustente uma obra
coerente com sua própria responsabilidade histórica e cultural, frente a seus
7 O pós-colonial como aquela teoria sobre a alteridade geralmente dirigida ao estudo da situação de países que sofreram uma situação colonial e suas relações com os países colonizadores.
36
contextos locais e/ou de origem, embora haja uma certa incompreensão das mais
complexas e críticas produções artísticas do continente quando são expostas em
cenários mais globalizados.
Devido aos paradigmas estéticos, históricos e críticos hegemônicos, muitos
artistas têm trabalhado com a desconstrução dos esquemas dominantes na arte
contemporânea, já que no momento de outorgar o título de arte a certas operações
artísticas é inevitável o choque da teoria ocidental da arte que desde Kant (1790) dá
autonomia ao espaço da arte e separa forma e função. Este resulta em um problema
para a arte latino-americana, já que ficam de lado produções tais como os usos
rituais, as práticas orais, a política, o folclore, as costumes, entre muitas outras.
Condicionado pelas próprias particularidades de sua história, a arte ocidental
requer certos requisitos para poder integrar uma obra: autonomia, genialidade,
renovação, caráter único, originalidade etc. O problema desse pensamento
(moderno) sobre a arte é que tem estabelecido um modelo que tem funcionado
como cânone universal de todas as produções artísticas e é utilizado para
desqualificar aquelas obras que não se adaptam a esses termos (TAYLOR, 2013). É
uma realidade que essas teorias operam desde a hegemonia que é uma
extrapolação abusiva da perspectiva de um setor o que leva a uma única maneira
de olhar o mundo e enunciá-lo
A experiência estética latino-americana parece compartilhar uma dimensão
híbrida que integra a própria natureza geográfica e humana da região. A diversidade,
mesmo antes do período colonial nunca permitiu falar de uma única América Latina.
Era, naturalmente, um território complexo, contrastante se considerarmos o
avançado estado civilizatório das comunidades andinas, maias ou aztecas por
exemplo, como o estado silvícola dos nativos amazônicos, ou mais ao sul do
continente. Mas, esse hibridismo parece não estar considerado pelo meio
acadêmico, que reluta em falar de um hibridismo pré-colonial (TAYLOR, 2013),
hibridismo este menos percebido em regiões da América Portuguesa, mas
fortemente instaurado na América Espanhola.
Geralmente as noções de hibridação ligadas à experiência pós-colonial,
incluem misturas interculturais que são diferentes das ideias sobre a retomada dos
objetos nas teorias culturais dos centros, já que, neste caso, há uma luta subjacente
entre diversos códigos nos quais podemos apreciar uma troca recíproca. Os artistas
37
apropriaram-se deles para poder estabelecer as problemáticas constitutivas dos
contextos culturais para os quais suas práticas são dirigidas. Assim, podemos ver
trocas em que parece haver um domínio de uma coisa sobre a outra, embora haja
uma afetação de todas as partes, uma mistura em que “ao invés de indicar uma
coisa ou outra, resulta em tanto uma quanto a outra” (TAYLOR, p.153).
Cada artista fala sobre seu contexto específico, da sua realidade. Mas esta
realidade é compartilhada nas práticas e diálogos culturais de seu entorno coletivo.
Nas artistas referidas nesta pesquisa é importante a leitura que se pode dar desde a
condição do país pós-colonial que vive uma situação diferente a respeito da
produção dos objetos, que é formulada através do desenvolvimento de uma relação
vital distinta com os mesmos, geralmente por um excesso de contato com a
matéria-prima que é mais próxima e por uma cultura dos resíduos diferente, que
forja todo um imaginário sobre os restos materiais e sua importância como índice da
presença do corpo. Assim, dadas as particularidades regionais, culturais, políticas e
pessoais, estas artistas serão tratadas a partir de uma aproximação com o corpo, a
memória e com o feminino no campo da arte latino-americana.
38
II. OBJETO, ABJEÇÃO, ÍNDICE E O FEMININO. A OBRA DE JANINE
ANTONI
39
2. O OBJETO ANÔMALO E O FEMININO
Na criação de objetos indiciais na política do feminino, os artistas parecem se
valer de uma busca de materiais não considerados na história da arte como
artísticos; e os artistas contemporâneos, pertencentes às latitudes não hegemônicas
parecem revelar uma tendência ao uso de elementos próprios das suas culturas.
Estes elementos, misturados com a cultura ocidental dominante, parecem
desenvolver uma ordem de correspondências simbólicas próprias de manifestações
artísticas pós-nacionais, nas quais não é mais um assunto de concretizar a
identidade como um discurso de um pertencimento nacional ou cultural, mas sim,
uma importação e exportação de culturas na era global - assunto que esses artistas
pretendem questionar procurando “uma nova compreensão da relação entre a
história e a atuação social, o campo dos afetos e aquele da política, os fatores da
grande escala e os fatores locais.” (GUASCH, 2004, p. 20).
O processo da escultura híbrida, como é conhecida na arte contemporânea
parece ser mais um processo de reciclagem e re-motivação dos signos através de
uma espécie de reinvenção de um objeto dado que é pervertido, é convertido em um
objeto anômalo.
A hibridação no objeto anômalo pode ter mobilidade desde o campo da
natureza e da forma orgânica, passando pela identificação de gênero. Em alguns
casos, pode perverter a sensualidade dos objetos, tentando uma quebra do sentido
relacionando objetos conhecidos como prazerosos com a repulsão e os resíduos.
Ato que gera uma certa inquietação.
A inquietação dos sentidos é uma tendência utilizada como parte das
estratégias das artistas feministas que questionam a identidade, porque é “ aquilo
que perturba uma identidade, um sistema uma ordem. Aquilo que não respeita os
limites, os lugares, as regras. É cumplicidade, ou ambíguo, ou misto”. ( KRISTEVA,
2004).
40
Cada artista fala sobre seu contexto específico e é importante a leitura que
se pode dar das condições da cultura pós-colonial que compartilham e que as leva a
viver situações diferentes na produção dos objetos. Essa produção parecer que é
formulada através do desenvolvimento de uma relação vital distinta com os mesmos
aspectos coletivizados, geralmente marcada por um excesso de contato com a
matéria-prima que é mais próxima, e por uma cultura dos resíduos abordada de
modo diferente; essa combinação constrói elementos poéticos que forjam todo um
imaginário sobre os restos materiais e a sua importância como índices da presença
do corpo, seja o das artistas ou de outros corpos subjugados pelos mesmos destinos
culturais que constroem imagens de si.
2.1. A CONSTRUÇÃO E A DESTRUIÇÃO DA IMAGEM DE SI MESMA As obras que têm marcas de um encontro com o corpo fazem parte da
tradição na arte feminista como uma estratégia que busca a proximidade com
aquele que olha por meio da identificação com esses rastros físicos, e tem por
intenção a criação de respostas psico-afetivas, sejam elas de rejeição, repulsão,
cumplicidade ou empatia. Parece que destroem a ideia de uma forma de “eu” físico e
mental estável e imutável. Há nas obras que guardam os traços de uma ação, uma
intensiva pesquisa da temporalidade e da instabilidade corporal e por meio da
exposição a diferentes situações reconstroem a representação da identidade.
Um exemplo desta tendência de um projeto criativo que revela a
intencionalidade de criar estratégias de destruição da própria imagem no próprio
corpo da artista, fica claro no feminismo de artistas como Carolee Scheeman. Na
obra Interior Scroll , 1975 (Fig. 12 e 13), na qual a artista executa uma ação
ritualística em que primeiro pinta seu corpo nu com barro; depois, extrai um papel
escrito que está enrolado dentro de sua vagina. Podemos perceber a utilização de
objetos que possuem uma impressão memorial: depois de ter um encontro íntimo
com o corpo, objetos que falam de poder e vulnerabilidade, de intimidade e
sexualidade, os quais, através da utilização do índice, parecem interagir com o
espectador a partir de um outro olhar não mimético sobre a política da
representação corporal, na construção de um imaginário que pretende evocar, sem
ter relação com uma imagem de forma direta.
41
Essa obra revela como, desde os anos de 1960, os artistas que têm utilizado
seu próprio corpo para questionar e desarmar convenções e hierarquias de poder.
Podemos ver sua influência em obras contemporâneas, como aquelas da artista
Janine Antoni (Bahamas, 1962- ). No seu trabalho, podemos observar uma continua
relação com a própria imagem, problematizada por meio de ações ritualísticas, nas
quais a ideia da identidade, ou o contato do espectador com uma obra, se revelam a
partir de uma materialidade atraente, mas que, no fundo, convidam para assistir a
destruição da imagem da própria artista.
2.1.1 A ABJEÇÃO CORPORAL A partir da obra da artista, podemos pensar que o corpo atua como um molde que
produz objetos carregados; que buscam uma quebra com os significados já
estabelecidos pelo sistema; têm uma intenção iconoclasta que não procura mais a
Fig 12 e 13. Carolee Schneemann. Interior Scroll. 1975. Detalhe da performance , vista do pergaminho dobrado e registro fotográficos. Fontes: (12) <https://arcobloggers.wordpress.com/2013/01/17/re-act-feminism-2-un-archivo-de-performance-feminista-en-continua-expansion/carolee-schneemann-interior-scroll-perofrmance-1975jpg/> Acesso em : 18 mar.2016. (13)< https://a-r-t-history.tumblr.com/post/5020917413/carolee-schnneeman-interior-scrol-1975/ >Acesso 18 mar. 2016.
42
beleza. Então, neles, o corpo parece ser um meio para mostrar a falha do sentido,
esses objetos procuram quebrar a tela da realidade e uma das formas é a
perturbação por meio da abjeção corporal.
A primeira abjeção, segundo as ideias de Julia Kristeva (2004), é o
nascimento, a saída do corpo materno com a intenção de ser um ente independente.
Na obra de Janine Antoni, Eureka (1993) (Fig. 14 e 15) podemos ver como ela
produz a abjeção de si mesma, de uma maneira que parece evocar essa ideia. O
corpo imprime sua presença, após emergir de uma tina de gordura.
Eureka (1993) tem como imagem geradora a história de Arquimedes sobre a
descoberta da medida dos volumes por meio do deslocamento de água em uma
tina. Mas, na obra de Janine Antoni, essa fratura de sentidos adquire um outro
significado: a matéria não e é água, é gordura solidificada e biotransformada, e é o
volume do corpo da artista que fica, moldado após a ação num cubo de sabão.
Parece existir uma clara implicação sobre as práticas do horror nazista, uma
analogia inevitável, e é no hibridismo (CANCLINI, 2001) de sua poética que Janine
Antoni retoma essa referência para falar do desparecimento. Eureka não parece ser
uma expressão da alegria por uma descoberta afortunada, esta obra se coloca como
uma revelação da proximidade da morte, como uma espécie de metáfora do
cadáver e do horror daquela que se descobre a si mesma perecível. O sabão é um
resto que ficou e a performance continuou com esse resto, a artista empregou o
cubo de sabão para esfregar seu corpo. O resto foi diluído como uma metáfora do
desaparecer, da instabilidade da matéria. Os restos vão desparecer, os materiais
envelhecerão; do mesmo modo que os corpos, a temporalidade é implícita na ênfase
do caráter efêmero das obras.
43
Fig. 14. Janine Antoni. Eureka. 1993. Performance, banheira, gordura , sabão, medidas : 55,8 x 66 x 66 cm (sabão), 76,2 x 178 x 63.5 (banheira). Fonte : https://willvlytle.wordpress.com/2012/02/27/a-debate-with-body-artists-janine-antoni-and-stelarc/. Acesso em :18 mar. 2016.
Fig. 15. Janine Antoni. Eureka. 1993. Vista da instalação. Banheira, gordura, sabão, medidas, 55,8 x 66 x 66 cm (sabão), 76,2 x 178 x 63.5 (banheira). Fonte:http://www.artnet.com/usernet/awc/awc_workdetail. Acesso em: 12 Jan. 2016.
44
A obra de Janine Antoni tem uma forte conexão com outras artistas sobre
questões relacionadas com a identidade corporal. Podemos mencionar o trabalho da
artista cubana Ana Mendieta (Habana 1948-1985), artista com a qual compartilha a
condição da diáspora, de uma artista latino-americana morando nos Estados Unidos
na busca de sua própria linguagem.
Em ambas as artistas, há uma abjeção do corpo. Em Ana Mendieta há uma
busca de uma relação com a natureza especialmente em suas obras mais
conhecidas, Silhuetas Series (1983), nas quais geralmente é mencionada a ideia de
uma integração, mas é também uma encenação da separação do ventre materno.
Parece que podemos pensar que uma e outra vez ela é separada e deixa marcas
na natureza dessa sua separação originaria; marcas e feridas na paisagem, embora
em Antoni a separação de si mesma parece ser mais uma cisão na psiquê, na
personalidade.
Também podemos ver a importância dos objetos como restos das ações
performáticas. Em Antoni, o objeto dá conta da presença do corpo da artista, em
Mendieta, geralmente é o registro. Mas, em obras como Body Tracks (1982) (Fig.16)
Fig. 16 Ana Mendieta. Body tracks. Performance .1982. Fonte: <https://www.studyblue.com/#flashcard/flip/1678890> Acesso 7 Jun 2016.
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fica a presença da tela impressa pela ação do corpo da artista. Nos trabalhos de
Antoni, ela parece não ter interesse na mistificação deles como relíquias das ações,
mas sim como presenças materiais capazes de criar uma comissura com os
processos vivenciais com os que foram feitos.
2. 2. A MATERIALIDADE
Continuando essa análises na produção de Janine Antoni, pode-se perceber
na obra Gnaw (1992) (Fig. 17 e 18), assim como em Lick and Lather (1993) (Fig. 24
e 25), que aparecem outras das abjeções corporais: o asco e a fobia da comida. Em
Gnaw, a artista mordeu cubos de gordura e cubos de chocolate de 272 kg cada;
depois cuspiu os restos para formar outros objetos. Com a gordura se elaboraram
uma espécie de batons, e com os restos de chocolate, pequenas peças de chocolate
em forma de coração à maneira daqueles feitos para presente do dia dos
namorados, apresentados em caixas e com invólucro.
Fig. 17. Janine Antoni. Gnaw. 1992. Chocolate e gordura mordidos, vista da instalação, 2 cubos de 61 x 61 x 61 cm. cada um. Col. MOMA NY. Fonte: http://www.artnet.com/usernet/awc/awc_workdetail.asp?aid=424261583&gid=424261583&cid=75386&wid=424422823&page=1 Acesso em :12 Jan. 2016.
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Vale aqui destacar que o uso dessa materialidade: chocolate e gordura não é
uma ação nova na arte. O chocolate e a gordura são materiais com uma história de
uso na arte contemporânea; Joseph Beuys já tinha utilizado a gordura como parte de
suas obras; e também o chocolate tem aparecido em inúmeras ocasiões, como na
obra do artista alemão Dieter Roth (Fig. 21). Também as citações diretas à arte
norte-americana de gênero dos anos setenta do século XX, são importantes, como
no caso da artista Hanna Wilke (Fig. 20) que já tinha feito referências à
corporalidade, ao consumo, à beleza e à própria forma feminina da artista .
Fig. 18 . Janine Antoni. Gnaw. 1992. Chocolates e batons feitos dos resíduos dos cubos mordidos, medidas variáveis. Col. MOMA NY. Fonte: http://www.artnet.com/usernet/awc/awc_workdetail.asp?aid=424261583&gid=424261583&cid=75386&wid=424422823&page=1 Acesso em :12 Jan. 2016.
47
Fig. 20. Dieter Roth. P.O.TH.A.A.VFB (Portrait of the artist as a Vogelfutterbüste busto de semente para ave). 1968. Multiple de chocolate e sementes para ave, 21 x 14 x 12 cm. Col. The Museum of Modern Art, New York. http://www.moma.org/explore/inside_out/2013/03/20/wait-later-this-will-be-nothing-no-really-ive-seen-it-for-myself Acesso 2 abr. 2016.
Fig. 19. Hannah Wilke. Venus Pareve. 1982-84. gesso pintado e chocolate, Jewish Museum, NY.Fonte: <http://www.blouinartinfo.com/photo-galleries/slideshow-14-delicious-works-of-chocolate-art?image=12> Acesso 2 abr. 2016.
48
A discussão da expansão das possibilidades materiais na obra de Janine
Antoni mantém suas associações originais e ganham novos significados no
momento de assumir suas formas enquanto objetos da arte. O encontro do corpo da
artista com esses materiais fica envolvido de raízes psicológicas e culturais, é ela
mesma com suas próprias limitações físicas e experiências quem limita ou expande
o objeto da arte, por exemplo Gnaw (1992 ) fica definida pela abertura da boca da
artista e as várias relações construídas ao redor da boca, assim também Eureka
(1993) relaciona materiais que estão ligados ao corpo, mas no caminho da
construção do objeto dirige a atenção a aspectos geralmente deixados de lado na
cotidianidade desses objetos, por exemplo o fato da origem do sabão e seu
consumo, que é feito de gordura animal, corpos que consomem outros corpos. As
obras são especialmente viscerais, íntimas e desconstrutivas dos estereótipos da
identidade do considerado feminino.
2.3. O PARADOXO DO MINIMAL VISCERAL
A autobiografia, o humor, o uso do próprio corpo como processo e como
sujeito-objeto, as referências à experiência feminina como conteúdo na obra, o
trabalho de arte-ação, são todas estratégias de artistas do feminismo dos anos
1970, mostrando uma linha de preocupações conceituais e materiais que afetaram
toda uma geração de artistas dos quais Antoni faz parte.
Na obra de Janine Antoni, há também uma aparente tendência às questões
formais e conceituais que a aproximam da estética da arte minimalista8, pois
trabalha geralmente com formas escultóricas e seus deslocamentos conceituais e
materiais a respeito das ideias do objeto minimalista e sua autoreferencialidade; mas
o trabalho desta artista também problematiza estas aspirações por meio do absurdo,
8 Segundo Martha Burskik, em seu livro The Contingent object of contemporary Art (2003), a utilização do termo Arte Minimalista não é muito clara, embora o Minimalismo seja uma classificação historizada, abrange inúmeras práticas artísticas, incluídas aquelas relacionadas com o post-minimal. Pode parecer um termo muito poroso que inclui de forma errática várias gerações que as vezes estão relacionadas mais com a forma em que a obra é percebida pela crítica que com a própria identificação dos artistas com o termo. No ano 1996, a exposição retrospectiva “More than minimal: Feminism and abstraction in the 70´s”, no Rose Art Museum, na Universidade Brandeis, (Waltham/Boston, Massachusetts). Mostrou uma seleção de trabalhos de onze artistas mulheres que tinham como tópico comum a relação entre o feminismo e o minimalismo em obras que referiam as problemáticas entre política e cultura, subjetividade e arte. A importância de “More than minimal” foi, principalmente, a visibilidade dada a artistas que mostravam a expansão das fronteiras tradicionais da arte oferecendo uma alternativa aos conceitos em aparência monolíticos e imutáveis do minimalismo.
49
na manipulação contraditória das relações entre a materialidade, o espaço e o corpo
da artista.
A obra Gnaw (Fig. 17) parece, inicialmente se referir de maneira direta à arte
minimalista. A artista parece subverter os princípios de pureza, de assepsia e da
presença. Apresenta cubos de matérias perecíveis, imperfeitos, impressos com os
traços da criação, feita a mordidas; por meio da presença da artista a estrita
geometria de cada cubo é alterada.
Em Gnaw, a impoluta presença intacta de uma pretensa superfície
minimalista é destruída a mordidas, fica marcada, ferida; deixa aberto o caminho às
associações livres de cada espectador com materiais que são fisicamente próximos
e reconhecíveis, seja por prazer ou repulsa.
Nos questionamentos sobre a materialidade da obra, o gênero e a
aproximação com a arte minimalista, podemos ver uma linhagem direta com a obra
da artista americana Eva Hesse (Fig. 22 e 23). Em ambas as artistas, o acaso e a
indeterminação na utilização de materiais inesperados quebram com as formas
estabelecidas da estética minimalista. Esta artista compartilha também certo drama
enquanto À conservação dos materiais no tempo.
Fig. 21. Eva Hesse, Sans II. 1968. Fibra de vidro e resina.96.52 cm x 218.44 cm x 15.56 cm. Col. São Franciso MOMA. Fonte: <http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/08/thoughts-on-replication-and-the-work-of-eva-hesse> Acesso 28 mai. 2016.
50
De alguma maneira, a obra de Janine Antoni parece voltar à dimensão das
produções da arte-ação corporal que procuram a liberação das culpas do prazer
básico, visceral, instintivo e animal, coloca a presença e a materialidade não só
como um objeto para ser vivenciado em termos intelectuais, ela tenta tragar os
preceitos. Mas, aparentemente, não consegue. O cubo perfeito é desinteressante e
intragável, não faz mérito para entrar no corpo da artista. É só depois do labor da
artista que o transforma em uma outra coisa, depois de ter sido abjetado,
transfigurado, sublimado11.
Na obra Lick and Lather (Fig. 24, 25 e 26), a imagem de si mesma é
consumida. Esta peça está constituída por quatorze bustos, sete de chocolate e
sete de sabão; os primeiros foram lambidos; com o segundo grupo, ela lavou o
próprio corpo. Em ambos os casos, os rasgos, os vestígios da ação inicial foram 11 O conceito de sublimação é utilizado aqui em seu sentido figurado, enquanto exaltação ou purificação.
Fig. 22. Eva Hesse. Sans II , copia instalada ao,lado do original. Fonte: <http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/08/thoughts-on-replication-and-the-work-of-eva-hesse> Acesso 28 mai. 2016.
51
apagados ou deformados. Nesta peça, podemos ver uma possível referência à
história do retrato na escultura e uma possível quebra com essa tradição, cuja ideia
principal era a permanência dos rasgos do retratado, o rosto não permanece, a
mimese é corrompida.
O nojo parece ser uma das referências mais claras nas peças de Antoni sobre
a comida; a expulsão daquilo que não se quer assimilar. Neste caso, refere-se a si
mesma e sua corporalidade: é um eu que se apresenta, que se impõe por meio da
auto-abjeção, são as peças os próprios restos da artista. Tal intencionalidade revela
um processo corporal que refere a morte mesma na perecibilidade da obra, na
violência do gesto.
A autofagia parece dar conta de uma fixação com a própria imagem, há uma
relação de amor-ódio, numa possível referência ao horror pela imagem corporal, a
capacidade de autoconstrução e destruição da própria imagem , a obsessão pela
comida e a limpeza, (clássicos estereótipos sobre o feminino), ficam manifestas
nesses objetos, mordidos, feridos, cuspidos, destruídos, esculpidos e que ao mesmo
tempo constroem outros, vazios, contingentes.
Fig. 23. Janine Antoni. Lick and Lather. 1993. Instalação no New Museum. Nova Iorque. 1993. Fonte: <http://www.artnews.com/2013/02/21/chocolate-self-portraits-by-janine-antoni-and-dieter-rot/> Acesso: 22 Mar. 2017.
52
Fig. 24. Janine Antoni. Lick and Lather. 1993. 2 bustos, um de chocolate e um de sabão, 61 x 40.6 x 33 cm. Col. San Franciso MOMA. Fonte: <http://www.smithsonianmag.com/smithsonian-institution/art-chocolate-and-soap-180954180/?no-ist.> Acesso em : 18 mar. 2016.
Fig. 25. Janine Antoni. Lick and Lather. 1993. 2 bustos, um de chocolate e um de sabão, detalhe . 61 x 40.6 x 33 cm. Col. San Francisco MOMA. Fonte: http://ericafaithlewis.blogspot.com.br/2015/09/response-to-janine-antonis.html Acesso em : 18 mar. 2016.
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Pelas considerações apontadas, nos parece que na obra de Antoni, os
objetos resultado das ações ficam como uma única presença, não há aparentemente
mais nada, só a ficha; nestas obras o espectador passa a ser um arqueólogo que
deve mergulhar na sua própria história e corporalidade para encontrar um sentido.
2.3.1. O LABOR
Na obra de Janine Antoni o corpo é um instrumento para ser utilizado de
forma consciente que confere poder ás ações repetitivas e ao acaso do
subconsciente, que materializa obsessões de forma mecânica e instrumental em
objetos e esculturas. Em obras como Saddle (2009) (Fig. 27 ) O labor da artista faz
transcender esses objetos e dá conta da importância do corpo como parte da
construção de sentido. O corpo feminino é um produtor de significados e não só um
fato biológico e incidental no mundo.
Fig. 26. Janine Antoni. Saddle. 2000. Couro natural de ovino modelado no corpo da artista. 68,6 x 81,3 x 200,6 cm. Fonte:<https://mollyharcombe.wordpress.com/2015/11/06/janine-antoni/> Acesso: 22 Mar. 2017.
54
O labor compulsivo e até doloroso em obras como Gnaw (1993) ou Lick and
lather (1993) é uma crítica do consumismo e se opõe à ideia da produção massiva
por meio do próprio corpo como produtor mecânico, estabelece um paradoxo entre
um meio de produção delimitado pelas condições da corporalidade, (a fadiga, a
fraqueza etc.) e as intenções da arte minimalista que falam da produção industrial na
qual a mão do homem não é visível.
Na obra tudo é feito na medida da artista, porque os processos devem passar
pelo corpo dela e todo material passa a ser sublimado pelo processo íntimo e até
doloroso de ser transformado. No final esses objetos são separados, expulsos e a
projeção da artista na obra fica evidente, fazer as obras é um processo minucioso,
sistemático e que requer tempo, fala do conflito de gênero na transformação de
materiais marcados como femininos e os crítica por meio do uso de ofícios
considerados também femininos. No trabalho de Janine Antoni os objetos são
transformados por meio do labor, de um tipo híbrido (CANCLINI, 2001) de ações que
permitem a elaboração de um discurso do feminino. É por meio da ação que
transforma os objetos, embora no momento de ser apresentados ao espectador, que
ela cria por sua vez determinada distância.
2.4 CORPO E DISTÂNCIA
Antoni afasta sua própria corporalidade de certas ações, “[…]Pela remoção de
mim mesma, permito ao espectador ter uma relação com o objeto…o espectador é
deixado para preencher a história no buraco - o espaço entre o processo e o
objeto“,12 (BURSKIRK, 2003, p. 139), Antoni tem um interesse especial em uma
leitura do espectador em ativar a experiência por meio dos restos e as traças
deixadas neles, é por isso que não há presença de registros de nenhum tipo, nesse
sentido ela pretende mais uma vez referenciar seu trabalho com a tradição da arte
minimalista na que é necessária a presença do espectador para experimentar a
obra.
Janine Antoni utiliza uma estratégia que aproxima a artista do espectador,
revelando uma intencionalidade ao fazê-lo, embora não por meio da representação
descritiva ou realista, e sim, por uma proximidade corporal imanente nos objetos que
12 By removing myself, I allow the viewer to have a relationship to the objetc…the viewer is left to fill in the story within the gap -the space between process and objetc- Tradução da autora.
55
ficam depois das ações. As obras de Janine Antoni não são simples objetos, mas
objetivações de experiências. Os atos fisicamente laboriosos dão ao espectador
uma aproximação distinta sobre a maneira em que se pode aproximar da arte. A
aproximação intelectual às obras é dada pela própria internalização das situações
que o público pode relacionar com sua própria experiência, o que faz que os objetos
fiquem como um tipo de presença, suscetível de ser apreendida não só
intelectualmente, mas empaticamente também por meio do próprio corpo de aquele
que olha.
As obras são índices da presença, mas não de qualquer uma. A expressão da
problemática do gênero sempre fica, é tornada expresa por meio do corpo da artista
que dá conta da destruição de si mesma para acessar a seu espectador. A escolha
dos materiais não é gratuita, eles são perecíveis e instáveis. É por meio da escolha
desses materiais que quebra a tradição da materialidade escultórica e dos ideais
sobre a pureza da arte.
Os objetos de Antoni, podemos dizer, passam por um processo de
sublimação e desublimação13 ao mesmo tempo, mas como pode ser possível isso?.
Ela parece estabelecer um paradoxo ao transformar os objetos, poderia parecer que
são sublimados, que na transformação em obras de arte por meio da labor corporal quase expiatória da artista o poder da corrupção corporal poderia ser dissolvido,
mas também se apresentam ao público como objetos de consumo, homenagens ao
banal, (como no caso dos batons) ou como objetos nojentos que vão desaparecer
ao longo da exposição, corrompendo a noção clássica da arte enquanto objeto de
desejo e transformando-o em objeto de repulsa (BUSKIRK, 2003, p. 111), enquanto
ao mesmo tempo todos trazem à tona o cruel jogo da identidade feminina e do
horror corporal.
Há na obra, uma luta entre opostos entre dentro e o fora, entre o que é
consciente e inconsciente. É uma obra que não faz perguntas sobre seu lugar
enquanto corpo feminino, mas explora fisicamente os limites. Na ação e na expulsão
se distância de suas ações e pode assistir como um terceiro a seu próprio consumo,
a sua própria queda.
13 Aqui em referência aos conceitos da psicanálise de Freud. (CONSUEGRA, 2010, p.266 )
56
III. VIOLÊNCIA E HORROR NA OBRA DE TERESA MARGOLLES
57
3. VIOLÊNCIA E HORROR Os limites críticos9 na arte contemporânea não podem limitar seus quadros de
ação só nas margens que acabam sendo totalizadores em seu valor desde e para
com o sistema das artes. Os limites também devem questionar outras esferas de
atuação geralmente consideradas menos ascépticas, tal como mencionado por
Rancière (p. 23, 2005), não é apenas uma maneira de estabelecer uma estética da
política na arte senão também na vida em geral.
Certo tipo de arte contemporânea latino-americana urge a uma arte crítica, a
polarização ainda existente de desenvolvimentos não hegemônicos, que discute
desde as plataformas críticas e teóricas da globalização e que põe a considerar uma
visão espaço-temporal na qual se pode admitir a coexistência de localismos e suas
narrativas particulares, bem como a inclusão de temporalidades desconexas,
paralelas e/ou simultâneas que comportam sua própria lógica, que permitem
questionar a norma e o que poderia se considerar uma lógica de progresso e poder
que impera nas definições dos centros.
As dinâmicas da narco-violência10 na América Latina tem afetado grande
parte da vida daqueles que moram nessas latitudes, pertencem já a uma certa
moldura de atitudes que permeiam a cultura toda, em todos os níveis, como parte
desse sensório. Há artistas que debatem esses quadros de atuação, apresentam
varias questões relacionadas com a violência quotidiana, com o esquecimento,
apresentam o objeto artístico como um mediador de experiências e também como
um medidor das consciências.
A revelação e a subversão perceptiva da corporalidade é uma parte
importante na arte latino-americana, na redefinição dos parâmetros dos centros há
uma presença que tem sido afastada da visibilidade por ser mal vista, tabu e sem 9 Aqui em referência ao ensaio de Daniel Buren: Limites Críticos, que questiona a arte política e seus possíveis níveis de atuação, que no caso dos artistas desta pesquisa tem uma relação direta com as teorias expostas no livro Marcos de Guerra de Judith Butler, quando fala do conceito da moldura ao respeito da apresentação midiática das vidas em guerra, já que a arte da violência trabalha sobre esses limites. 10 A narco-violência é uma expressão que se refere à violência generalizada em paises ou regiões com problemas de narcotráfico, onde há uma luta entre as instituições dos governos com o crime organizado. Assim também rerere-se às lutas internas entre os cartéis das drogas pelas áreas de poder e influência.
58
uso nas sociedades contemporâneas ocidentais: a morte. Na urgência por encontrar
estratégias que confiram visibilidade às pessoas vítimas da violência na América
Latina há artistas que utilizam o conflito da morte e do corpo violentado como objeto
de pesquisa, esse é o caso da mexicana Teresa Margolles ( Sinaloa, 1963- ).
O impacto que provoca nos espectadores se deve ao fato que suas obras não
são simulacros, nem representações. Suas obras têm tanto elementos materiais
corpóreos (sangue, órgãos e gordura) como objetuais (cobertores, roupas, vidros),
que pertenceram em algum momento a vítimas da violência pelo crime organizado
encontrados no necrotério ou restos que foram abandonados, depois de recolher o
corpo, no lugar onde os fatos violentos ocorreram.
3.1. O CORPO COMO MATÉRIA ABJETA Vivemos em uma época de objetivação dos sujeitos, na qual qualquer um é
prescindível na perseguição dos interesses mais obscuros e dementes. Adquire
importância a ideia do ser humano como presença vital na arte; para tal, o corpo se
faz necessário diante da dura realidade. Percebe-se que alguns artistas exploram,
em seus projetos poéticos, recursos que permitem uma aproximação a esses
horrores.
Em algumas práticas da arte contemporânea, a presença do grotesco se
impõe como parte da consciência vital das sociedades retratadas. A forma última da
abjeção se apresenta por meio da presença da pulsão de morte, do total rasgamento
do anteparo da realidade citada por Hal-Foster11 ( 2001, p. 150), ante nós se mostra
o cadáver enfrentado a seu devir como objeto, como um duplo de uma sociedade
que o abjeta e, ao mesmo tempo, o requer como a evidência forense que exercerá
como depoimento das atrocidades infringidas nele. Não há mais testemunhas
presenciais e na mudez de seu trauma seus restos falarão sem voz .
Esta tendência para o abjeto parece persistir, já que na busca de oferecer
resistência ao esquecimento, o objeto artístico refere-se à a realidades e
experiências que mostram a sobrevivência na cultura do mais rejeitado, do mais
grotesco, do mais morto (HUBERMAN, 2009). Mas, assim, parecem atestar também
que o mais pulsante, o mais móvel, o mais “vivo” desse objeto mortuário é dado em
11 Foster, Hal, El retorno de lo real , La vanguardia a finales de siglo, Ed. Akal, Madrid. p. 150.
59
sua possibilidade enquanto índice12 e se encontra em sua proximidade com a
realidade, com seu parecido ao vivo. Sangue, fluídos, restos corporais dão conta de
uma arte da escritura da morte, que pretende a quebra do tabu do culto aos mortos,
da conta do real por meio da apresentação dos restos e ao mesmo tempo pretende
uma quebra do sentido , um rompimento do adormecimento de uma sociedade que
perdeu a capacidade de surpresa e tenta essa quebra por meio do choque, do
escândalo.
3.2. O REALISMO TRAUMÁTICO COMO ARTE POLÍTICA Hal Foster aponta, no livro O retorno do real (2001), uma tendência na arte,
especialmente em finais dos anos oitenta do século XX, à exploração do horror, do
abjeto, do grotesco e do obsceno onde se entrelaça também o sinistro, se fala do
realismo traumático ligado às teorias psicanalíticas de Lacan, o corpo modificado,
mutilado, doente, o cadáver, os resíduos corporais, o monstro, o mutante, as
práticas sexuais periféricas, imagens de violência extrema etc. aparecem em várias
possibilidades no discurso das artes.
Segundo Foster, apareceu uma nova proximidade entre a obra e a realidade:
menciona as obras de Andy Warhol sobre desastres, nas quais podem ser vistas
serigrafias que reproduzem imagens de catástrofes publicadas em jornais, ou a
interferência do abjeto e do grotesco na obra dos artistas que, na década dos anos
de 1970 e 1980, fizeram uso e exploração de imagens da cultura de massas e da
imagem fotográfica como seu meio principal de trabalho, a chamada geração
Pictures pelo crítico Douglas Crimp (1979). Porém, podemos ver que existem outras
vertentes do abjeto e do patético na arte, que têm uma relação mais próxima com
outras experiências vivenciais e materiais (outros sensórios).
Podemos mencionar o trabalho da mexicana Ambra Polidori (Cidade do
México,1954- ) com suas obras sobre o presente estado de violência no México
que fazem um uso instrumental da fotografia e da instalação nas quais explora
imagens reconhecíveis no contexto específico do país. A violência instrumental do
estado cubano nas performances de crítica política de Tania Bruguera, que utilizam
materiais específicos da ilha como na obra Destierro (1998-1999) (Fig. 28) em que
12 De acordo com a ideia expressada no capítulo 1 e em relação com o conceito do indicial de Rossalind Krauss.
60
faz referência à origem da identidade cubana com seus fetiches mágicos e sua
problemática. Todas essas vertentes mostram as ambiguidades da modernidade em
América Latina por meio do patético, do bizarro, problematizando a legitimidade das
políticas e da cultura, tentando provocar condições reflexivas, críticas.
Se bem a figura real do artista em sua dimensão central, constitutiva não
muda e deveria continuar sendo definida como uma expansão do conhecimento,
embora no artista que refere a outras experiências vivenciais deve existir uma
consciência e uma urgência na eleição dos destinatários aos quais a obra se dirije.
3.2.1. O SENSÍVEL
A presença do efeito sensível no realismo traumático se dá a partir da
perturbação dos sentidos. É lógico que seja utlizado como parte da busca da
identidade desde a trincheira política, já que é considerado por teóricos como Julia
Kristeva( p. 11) como ”Aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem.
Aquilo que não respeita os limites, os lugares, as regras. A cumplicidade, o ambíguo,
o misto […]” compensa o dizível com o sensível, em uma sociedade que como
menciona Debord (1967) tende a espetacularizar qualquer prática, o realismo
Fig. 27. Tania Bruguera. Destierro. 1998-1999. Medidas variáveis. Terra cubana, borracha, madeira, pregos. Performance. Fonte: taniabruguera.com/cms/104-1-Destierro.htm Acesso: 10 fev. 2017.
61
traumático propõe radicalizar o efeito sensível na busca de um choque que possa
retirar o espectador do estado de anestesia. O realismo traumático parece expressar uma derrota da imagem do real como
se a tivesse interpretado na história da arte; uma derrota da verossimilhança, da
objetividade científica, da possibilidade de representar, embora apresente também
sua capacidade de enunciação de um conflito existente13, convoque uma estranheza
no anteparo do real. Essa estranheza e a incapacidade do realismo como forma de
expressão da realidade, parece levar a uma experimentação tanto a nível conceitual,
quanto material. Há uma encenação do horror, uma chamada a olhar de frente o
trauma; se assume que há um reconhecimento e um princípio de catarse, mas
também cinismo e falta de empatia. Dependendo do critério de cada artista e de
cada contexto, a transgressão pode ir desde e para a própria obra, seu autor, seus
espectadores, as instituições, a sociedade, os valores, etc.…
É a partir da negatividade de obras com um efeito traumático apresentadas
como antítese de uma prova fidedigna que se abre ao público a possibilidade de
choque e de resposta. O objeto artístico torna-se um referencial do real, À medida
do impacto no espectador, será diferente em cada caso, em função dos efeitos
afetivos e da semelhança destes com aqueles vividos por cada individuo.
3.2.2. O REALISMO TRAUMÁTICO14
O trauma é uma ferida na memória, uma incapacidade de assumir um evento
que nos desborda (SELIGMANN-SILVA,p. 87, 2000), estremece as nossas
faculdades até o ponto de tornar-se algo sem forma, dado que “o problema do horror
da violência , é que o trauma deixa um resto que” não é nem o vivo nem o morto,
mas outro gênero da vida das cosas que já passaram e seguem nos frequentando”
(HUBERMANN, 2009, p. 180). As ações e os objetos artísticos ligados às noções de
trauma parecem conter certas manifestações da ideia da arte enquanto ritual. Às
vezes de liberação, outras de denúncia, quase sempre relacionadas com teorias da 13 Um conflito que pode apresentar várias naturezas, pode ser um conflito na imagem, um conflito no sensório consensuado do real, do político, do social, etc… 14 Quando referimos a noção de trauma com Hal Foster falamos do real enquanto o termo freudiano que não deve ser confundido com o termo de realidade, aquI faz menção ao trauma, como um evento que resiste à representação, como a recordação inconsciente de vivências insuportáveis e angustiantes.
62
psicologia, desenvolvem a interioridade, a abjeção, a catarse, o sofrimento psíquico,
a reencenação de uma experiência, a liberação da sexualidade reprimida; em geral
procuram uma restauração da psiquê ou pelo menos expor sua ruptura, sua quebra.
A condição de evidenciar o mais infame de uma sociedade por meio da arte
pode funcionar como um deslocamento: na projeção de si mesma, a sociedade
revela os seus piores elementos de violência e degradação e permite registrar uma
crise na ordem. Por meio da arte abjeta parece se dá uma exposição obscena do
trauma e as suas consequências, nele há uma operação reguladora (FOSTER, p.
160, 2011), ao retornar o real como traumático, que na sua expressão patológica
busca obter uma sensação de catarse.
Nas teorias freudianas, o trauma gera uma compulsão por repetir a cena
traumática; na arte abjeta, a repetição é dada na construção do objeto artístico que
nunca é original, mas, sim, um remanescente, uma comissura entre o fato real - já
acontecido - e sua possibilidade de existir como testemunha. Um fato traumático não
parece ser susceptível de ser historicizado como aconteceu, sua temporalidade é
inapreensível e sua atrocidade inenarrável, por isso o objeto artístico nos apresenta-
se como fragmento manejável de memória, que dá conta do fato, embora não
pretenda abarcá-lo de maneira total.
Como menciona o filósofo Didi-Hubermannn, em A Imagem Sobrevivente
(2009): “Sob o efeito do golpe nos esquecemos de tudo, no entanto no contragolpe
rememoramos tudo ainda que de forma inconsciente, o homem não esquece a dor
originaria”. Assim, podemos afirmar que o objeto artístico funciona como repetição e
contragolpe, é uma memória que lembra a dor original, mesmo quando não o seja.
Os objetos artísticos se relacionam com o espectador como uma espécie de
memorama15 e só têm efeito e sentido se encontrarem um par comum de
identificação na experiência do outro. Seja esta identificação por repulsa ou empatia,
é esta uma arte que apela a uma intersubjetividade chocada, em uma relação que
pode tornar-se até tóxica.
Neste sentido, na obra de artistas como a mexicana Teresa Margolles (Fig.
29) demanda-se à atenção daqueles que partilham essas vivências no tempo e
espaço, é referencial, contextual e local, porém, apela a uma universalidade no
extremo choque dos sentidos em relação ao horror do crime e da morte. Ao contrário 15 O memorama é um jogo de mesa para o exercitar a memória, tem figuras ou imagens em pares as quais devem ser localizadas entre várias outras cartas com figuras similares.
63
de muita da obra que utiliza noções de trauma desde o âmbito psicanalítico da
catarse, a obra de Margolles busca um retorno do rejeitado por meio da patologia e
de uma identificação participativa, mais não uma cura.
3.3. PERVERSÃO E PATETICISMO
Cada registro de um fato violento é uma tumba da memória; e cada tumba
pode ser corrompida pelo pilhagem, pelo vandalismo. É no limite da degradação que
Teresa Margolles parece agir. A artista manipula uma perversão dos objetos e os
coloca no museu como produtos patéticos da nossa mórbida cultura contemporânea,
embebida na cultura do choque. Estima-se aqui que a obra de Teresa Margolles (Fig. 30) age como uma
espécie de antropologia da violência. Contudo, não é uma antropologia neutra; seu
projeto poético parece que introduz uma falha, uma anomalia no fundo; é como
uma profanadora de cadáveres. A obra tenta provocar um terror visceral, um
pateticismo (CONSUEGRA, 2010)16, e é por meio de sua própria monstruosidade
16 Pateticismo: Aqui em referência à ideia do patético como uma qualidade capaz de mover o ânimo de forma veemente se concentrando na dor, na tristeza e a melancolia, longe das definições comuns, nas que se tem uma conotação negativa de afetação do sentimento.
Fig. 28. Teresa Margolles posando com um cadáver no necrotério da Cidade de México. Fonte:<https://rvcic.wordpress.com/2016>Acesso 10 Fev 2017.
64
que corrompe tudo que toca, as ruínas, as pegadas. As relíquias dos fatos têm sido
pervertidas.
No âmbito das estratégias empregadas na obra, o patêtico adquire forma e
corpo por meio do uso reiterado e virulento do abjeto - é sua intenção a quebra dos
muros da repressão e dos julgamentos morais -. Parece ser nos limites da
abominação que recorre à sublimação do objeto abjeto que a fascina.
Ela busca transformar e transmutar a pulsão de morte; e parece fazê-lo por
meio da manipulação da materialidade expressada no objeto que introduz toda uma
série de possibilidades técnico-conceituais, que tornam a obra não só em um
sintoma do trauma infligido, senão em uma expressão simbólica a qual pertence.
Fig. 29. Teresa Margolles. La herida. 2007. Fenda na galería da Fundação/Coleção Jumex feita com fluidos de vítimas de assassinatos, coletados do necrotério. 15 x 800 x 3 cm. Fonte: <http://oscardavidlopez.blogspot.com.br/2008_09_01_archive.html> Acesso: 26 fev. 2017.
65
3.4. A MATÉRIA COMO TESTEMUNHO
Há uma discussão da arte de testemunho na América Latina, apesar da
grande tradição testemunhal do século XX parecer mais forte em outro cenário - o
extermínio judeu pelos nazistas-. A experiência latino-americana, que derivada da
sua condição pós-colonial, ganhou seu próprio espaço dentro do testemunhal global
e tem gerado, por sua vez, uma reflexão no campo da arte contemporânea:
exploração, pauperização, narcotráfico, ditaduras, repressão, extermínio de grupos
minoritários e/ou dissidentes etc. Esse conjunto forma parte do imaginário de uma
arte da violência que adquire características próprias e particulares a cada país e
região, tendo ainda uma potencialidade para o desenvolvimento de uma arte política
e crítica muito específica.
Na obra de alguns artistas contemporâneos da América Latina, podemos ver
a presença de uma “revolta das matérias” 17 que define a presença da obra
enquanto rastro, por meio do contato físico com materiais carregados que definem
uma relação metonímica com um fato violento, que dão testemunho, que enunciam,
mas não definem; que procuram uma aproximação com o real por meio da
experimentação material mais longe do referente mimético. É a partir dessa
experimentação que “a pedra, o metal, a terra, o barro (o corpo com sua pele e seus
fluidos) entram em cena como ingredientes de rememoração (retemporalização e
espacialização) da obra da arte” (SELIGMANN-SILVA. 2005 p. 29).
O trabalho de Teresa Margolles, desde os anos de 1990, revela uma
tendência a definir sua obra nos restos materiais, não só na representação
fotográfica enquanto registro, tal é o caso de sua presença na Bienal de Veneza de
2009, quando realizou uma instalação intitulada ¿De qué otra cosa podríamos
hablar?, na que colocou uma série de substâncias materiais orgânicas que fazem
referência à perda, à narcoviolência e à exclusão social, às quais expôs em um
palácio veneziano do século XVI já historicamente carregado e decadente.
17 Aqui em referência à obra que confia na relação de deslocamento e associação de significados baseada na fisicalidade dos materiais da obra e a experiência sensorial-vivencial daquele que entra em contato com ela.
66
Nessa instalação, apresentou obras que dão testemunho do horror a partir de
ações discretas e até quotidianas: o chão das galerias era esfregado com água com
fluidos de cadáveres (Fig. 31). Apresentou uma instalação de lençóis com barro e
sangue coletados de cenas de assassinatos nas ruas (Fig. 32), além de expor
grandes pedaços de tecido impregnados com sangre e bordados em ouro a modo
de bandeiras e sudários (Fig. 33), uma dessas peças foi inclusive colocada na
entrada do pavilhão no lugar da bandeira Mexicana( Fig. 34), como símbolo que
representava ao seu país na Bienal.
Fig. 30. Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009. Ação de esfregar o chão com água ensanguentada, Pavilhão da 53 Bienal de Veneza. Fonte: <http://arteypoliticateresamargolles.blogspot.com.br/2013/01/de-que-otra-cosa-podriamos-hablar.html> Acesso 27 ago. 2016.
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Fig. 31. Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009. Lençóis tingidos com barro e sangue, Pavilhão da 53 Bienal de Veneza. Fonte: <http://www.artinamericamagazine.com/news-features/news/what-else-could-we-speak-about-teresa-margolles-at-the-mexican-pavilion/> Acesso 27 ago. 2016.
Fig. 32. Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009. Bandeira ensanguentada e Bordada, Pavilhão da 53 Bienal de Veneza. Fonte<http://universes-in-universe.org/eng/bien/venice_biennale/2009/tour/mexico> Acesso 27 ago. 2016.
68
Teresa Margolles tem gerado, junto com outros artistas latino-americanos,
uma influência em novas gerações de artistas que trabalham com as dinâmicas do
resto e da pegada, assim o podemos ver em artistas como Roberto Scaglia (Lima
1981- ) com sua obra Stellar 3 de 2014 (Fig. 35). A obra é uma instalação em uma
galeria com objetos trazidos de uma ilha-presídio, penas, ossos, latas retorcidas,
escombros de uma arquitetura para presídio, se relacionam com umas impressões
de grande formato de um muro utilizado para os fuzilamentos na prisão.
Em ambos os casos, é uma obra que se refere à memória. Não parece ser
possível falar de uma relação com a realidade que seja mimética, não é uma copia
da circunstância originária, “embora, a noção de testemunha permite uma leitura
que mantém a complexidade da relação dessas obras com o real” (SELIGMANN-
SILVA, 200, p. 24), estes artistas compartilham a noção dos objetos, das peças
como provas da existência de um fato.
Fig. 33. Teresa Margolles. ¿De qué otra cosa podríamos hablar?. 2009. Lençol tingido com sangue colocado como Bandeira substituindo à de México no Pavilhão de la 53 bienal de Veneza. Fonte:<http://www.stephengdewyer.com> Acesso 27 ago. 2016.
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O objeto artístico que não tem uma relação de imagem mimética com o real
tem uma noção como objeto testemunhal complexa, sua própria natureza é ser uma
recreação da imaginação, é um objeto manipulado com elevadas doses de ficção,
portanto não é aceito na categoria de verdade histórica, razão pela qual busca
relações de outra natureza e com outras disciplinas para fazer valer sua condição
indicial dos fatos. Na obra de Magolles, há uma disseminação por contaminação: o
observador fica infectado, (traumatizado) devido a sua interação na obra e aquilo
que viu nela, é essa uma ideia testemunhal mais próxima da psicologia forense que
tenta a restituição da cena do crime; no entanto, seu lugar de exposição e interação
está em cada um dos espectadores, que são ao mesmo tempo tribunal e
testemunho.
3.5. A RELÍQUIA
A obra de Teresa Margolles apresenta uma relação difícil com a
representação da morte, particularmente com respeito à ideia de relíquia, a qual é
tratada não só como vestígio do passado, senão que lhe constrói pedestais e
receptáculos nos quais deposita os restos materiais de seres humanos mortos pela
violência. É impossível negar a relação com a forte carga simbólica relacionada com
a herança religiosa cristã no México, onde é comum a representação do martírio e
Fig. 34. Giancarlo Scaglia. Stellar 3. 2014. Díptico, tinta sobre papel japonês 310 x 225 cm. Fonte:<http://www.blogto.com/events/giancarlo-scaglia-stellar/> Acesso 18 Jun. 2016.
70
do cadáver, especialmente se é considerado que esses objetos são elevados de
alguma forma a nível de culto nos espaços expositivos, sublimados como objetos de
veneração nos pedestais do Museu.
Um exemplo claro de uma relação material e simbólica problemática pode
apreciar-se na obra Entierro, de 1999 (Fig. 36 ); essa peça contém encapsulado o
pequeno cadáver de um feto que sua mãe não pode custear um enterro. Nesta
peça, é importante expor a pena, o luto, o estado de existência de um ser que não
tinha um lugar, não obstante, cria uma tumba móvel para ser exposta e deslocada,
sujeita a necessidades expositivas e curatoriais, existindo um vazio legal ao respeito
nas leis mexicanas sobre os não nascidos, confere ao cadáver uma existência, e um
lugar como obra de arte, de um nicho, cria um objeto manipulável, estranho e
mórbido.
Essa obra apresenta uma qualidade de pegada (empreinte18), que dá conta
de uma ação desenvolvida, conserva a ideia de relíquia como resto. Mas também,
este objeto-escultura-resto-tumba é uma impressão, no sentido mais amplo da
palavra, é uma impressão sensorial que pode ser percebida como uma presença
física, mas também é uma impressão mental profunda, um tipo de lembrança 18 Ibid. p 16.
Fig. 35. Teresa Margolles . Entierro. 1999. Cimento e matéria orgânica. Fonte:<http://www.labor.org.mx/en/teresa-margolles/> Acesso 19 jun. 2016
71
traumática e chocante que se manifesta só depois de ler a ficha e saber o conteúdo
do molde de cimento.
Também há outras peças com a ideia das representações religiosas, em
particular em referência ao Sudário, como em Catafalco de 2005 (Fig. 37) que é
escultura e impressão ao mesmo tempo. É um molde de um cadáver que leva
consigo a projeção de um corpo violentado. É o vazio da carne; a contra-forma; o
negativo (HUBERMAN, 2009) ; pressiona os limites esculturais materiais por meio de
uma tactilidade que se lê no processo do molde. Apresenta uma impressão corporal
que remete a realidade por meio da semelhança por contato, está exposta como
contraparte necessária da imitação mimética. Assim, o objeto artístico pode agir
como comissura ao resistir-se ao discernimento por ser mais velado, mais opaco,
menos legível.
Fig. 36. Teresa Margolles . Catafalco. 2005 matéria orgânica e gesso, 300 x 300 x 500 cm. Fonte:<http://arteypoliticateresamargolles.blogspot.com>Acesso 19 jun. 2016
72
3.6. O ARQUIVO DA VIOLÊNCIA
A natureza do arquivo não parece dar conta do mundo como é ou tem sido.
Só há vestígios. “O arquivo dá conta das cinzas que ficam após o incêndio do véu do
real, ficam apenas os pedaços, as cinzas sobreviventes heterogêneas e
anacrônicas.” (DIDI HUBERMANN, 2013, p.9). A utilização de recursos mnemônicos
e a acumulação de imagens, objetos e a utilização de conceitos e estratégias
relacionados à sequência, repetição, inventário, índice, serialização entre outros na
obra de Teresa Margolles, permitem enquadrar seu trabalho dentro das práticas que
têm o arquivo como paradigma. Seu projeto poético revela uma intencionalidade
que a coloca rumo a um interesse na recuperação da memória, embora, isto seja
levado a cabo à partir de uma reorientação radical da representação da história.
Operação que se dá por meio de outra lógica da experiência, de deixar de vermos
história como uma lógica progressiva e linear.
Um exemplo se dá na coleção de objetos punço-cortantes elaborados por
prisioneiros e usados em fatos violentos dentro de presídios. Nesse trabalho da
artista, estes objetos são exibidos em caixas de metal e catalogados com o nome de
Puntas (Fig. 38).
Nesta série, podemos ver a resignificação dos objetos por meio da sequência,
do inventário e catalogação dos mesmos em caixas; entretanto não parecem ter a
intenção de ser um memorial que procura preservar a dignidade ou identidade de
seus autores: na obra, o objeto é anônimo e atemporal e uma prova do submundo
prisional; fala de experiência e de ação; de elementos contingentes que formam
parte da compreensão da memória de um objeto, que modificam e contaminam a
ideia do inventário impoluto.
73
Um exemplo de outro artista com quem compartilha essa conexão entre o
arquivo e o trauma na construção da memória e da identidade, é o francês Christian
Boltanski (Fig. 39). Este artista centra o seu trabalho na reativação de objetos
carregados física e historicamente, também apresenta a materialidade como uma
comissura com a capacidade para potencializar processos memoriais os quais são
catalogados e identificados como objetos que ficam nos limites da antropologia, a
etnografia e os estudos forenses.
Fig. 37. Teresa Margolles . Puntas 4. 2003. Objeto cortante elaborado em prisão, caixa de aço,10.7 x 47.5 x 10.9 cm. Fonte: <http://www.bartschi.ch/>. Acesso 19 ago. 2016..
74
São eles dois artistas que olham de frente para a catástrofe e que têm uma
necessidade de coletar objetos que recuperem a memória, dando ênfase em que
essa coleção, esse arquivo de objetos “não é significativa sem seu contexto, assim
como também são significativos os processos dos quais procedem” (GUASCH,
2011, p.181), manipulam os objetos e os transformam em agentes livres de registro,
seus arquivos são lugares onde reside o testemunho e a memória dos fatos sem
necessidade de serem validados por um outro agente que não seja a instituição da
Arte.
Teresa Margolles usa o poder da evocação por meio da materialidade dos
objetos que aludem aos fatos, mesmo assim em sua obra as catalogações não são
imparciais, em sua ideia de arquivo é notória a intenção da mão que faz a escolha e,
longe dos lineamentos mais tradicionais sobre o arquivo, que o mencionam como
um lugar de depósito de memória alheio à nossa experiência intima e pessoal
(GUASCH, 2011, p.49), seu trabalho fala, de forma direta, da experiência de um
trauma coletivo, mas com a voz de quem, por sua vez, o experimenta pessoal e
individualmente.
Ela manipula os seus objetos, os ficciona de um modo que podem chegar ao
absurdo. Exemplo disto é o trabalho para a serie Ajuste de cuentas, de 2007 (Fig.
Fig. 38. Christian Boltanski, Reconstitution, essai de reconstitution en pâte a modeler effectué le 15 novembre de 1970 d´un fusil en bois que possédait C.B. entre 1949 e 1951. 1970. Caixa de metal, malha, pasta de modelar e materiais diversos. Fonte: <http://www.mam-st-etienne.fr> Acesso em : 19 Jun. 2016
75
40). Nele, Teresa Margolles nos apresenta uma série de 21 artefatos de joalheria
encomendados pela artista a um joalheiro que costuma fazer peças para os
narcotraficantes. Nos objetos da artista, entretanto, em vez de colocar incrustações
de pedras preciosas, estão inseridos fragmentos de vidros encontrados no local
onde aconteceu um assassinato ligado à narcoviolência.
Essa obra é um exemplo de hibridação nos objetos do arquivo, embora
conserve a ideia de serialização, catalogação e contenha os dados forenses
tomados pelos peritos especializados no lugar do crime. Os objetos estão longe de
serem puros, de motu proprio, a artista faz um comentário pessoal e irônico, uma
piada sobre a cultura do mau gosto dos traficantes, ação que fica no seu arquivo de
objetos relacionados à narcoviolência. A partir de gestos como esse, sobre objetos
que são encontrados e catalogados, mas também criados para o arquivo mesmo, a
artista faz obra que problematiza a circunstância da visão histórica dos fatos por
meio da intervenção dos objetos que produz como arte.
Fig. 39. Teresa Margolles. Ajuste de cuentas 13. 2007. Joalharia em ouro com vidro encontrado em cenas de crimes violentos. Fonte: <http://www.larepublicacultural.es/fotovid737.html> Acesso 16 abr. 2016.
76
No trabalho de Teresa Margolles parecem ser evidenciadas diversas
estratégias que nos fazem pensar numa visão arqueológica da violência,
apresentada por objetos produto de ações violentas, como se fossem artefatos em
vitrines e pedestais no museu. Em várias ocasiões, as fichas são as etiquetas de
catalogação, embora, na sua obra os objetos não sejam puros, há um grau de
perversidade e manipulação que leva o espectador ao limite. É esse um trabalho
que mostra claramente a problemática da relação entre arte e arquivo, que muitas
vezes pode parecer paradoxal ao apresentar descontinuidades, manipulações e
contraposições num mesmo artista e até numa mesma obra.
3.7 VIOLÊNCIA POSMINIMAL OU ENTRE O CUBO BRANCO E O HORROR
Na obra de Teresa Margolles, a tomada de posição crítica se faz desde
diferentes níveis, há uma hibridação das práticas artísticas que ultrapassa os limites
institucionais, políticos, artísticos e, em algumas vezes também éticos, esta obra
envolve a incriminação tácita do observador, questiona os limites de uma sociedade
que considera algumas vidas menos importantes que outras.
O discurso sobre a violência no trabalho de Margolles, circula ao redor de
uma híbrida relação dos componentes de sua obra. Na fase inicial de sua carreira,
começou com a busca de materiais no espaço dos necrotérios e apresentava restos
de vítimas e cadáveres de animais, tudo de forma grosseira. Este é um distintivo dos
primeiros períodos do seu trabalho, quando fazia parte do coletivo artístico mexicano
SEMEFO, criado pela artista em 1990 19 (Fig. 41).
Embora, as estratégias da artista tenham mudado na medida em que a
violência se fez também no México. Quando aconteceu o aumento da violência na
vida quotidiana no país, seu trabalho sai também às ruas; ao sair, suas estratégias
mudaram, modificaram-se por meios mais sutis de representação mais próximos das
práticas pós-minimalistas e pós-conceptuais, a fim, aparentemente, de opor
19 Teresa Margolles criou o coletivo artístico SEMEFO (abreviatura do Serviço Médico Forense de México) em 1990 em conjunto com os artistas Arturo Angulo Gallardo, Juan Luis García Zavaleta e Carlos López Orozco. O grupo irrompeu na cena artística mexicana trabalhando com cadáveres, fluidos corporais e outros materiais, principalmente orgânicos, que conseguiam com ou sem autorização dos necrotérios, aproveitando as debilidades do poder do estado e da corrupção administrativa. (www.museodeartecarrillogil.com)
77
resistência à onipresença da imagem do espetáculo dos meios massivos de
comunicação.
Na peça En el aire, de 2003 (Fig. 42) podemos ver a sutileza, a economia de
meios e a necessidade da interação do público para a ativação da obra. Nela, o
espectador atravessa uma sala cheia de bolhas de sabão, no início parece ser uma
inocente e inofensiva diversão na qual o público pode interagir e até brincar com as
bolhas de sabão, mas o horror se faz presente no momento de se ler a ficha técnica
da obra. Nela se explica que a instalação consta de água com sabão procedente da
lavagem de cadáveres. Não importa que a água tenha sido higienizada. Pelo
simples fato dela ter tocado primeiro nos mortos e depois nos vivos quebra a
distância corporal e temporal entre o cadáver e o eu; nojo e medo da morte se fazem
presentes; tabus sobre os fluídos e a morte são quebrados por meio de estratégias
derivadas do minimalismo e da arte conceitual.
Fig. 40. Grupo SEMEFO. Lengua. 2000. língua de um jovem assassinado. Fonte: <www.museodeartecarrillogil.com> Acesso: 1 Dic. 2015.
78
Desde finais dos anos noventa do século XX, sua obra tende a expor uma
arte indicial da violência; a exposição de um objeto que busca um transfundo
psicológico em sua abjeção contida, fato quase de violência passivo-agressiva, em
vez da apresentação ou a representação explícita da mesma, como podemos ver na
obra La promesa (2012) (Fig. 43 ), onde que expõe os restos pulverizados de uma
moradia social abandonada por causa principalmente da migração por medo do
narcotráfico, na Cidade de Juárez, cidade onde a causa da violência o projeto de
casa para os trabalhadores e acesso a uma melhor qualidade de vida fracassou. A
promessa não foi cumprida, só ficou a ruína.
Essa obra expõe uma escultura que atravessa uma sala inteira, feita com o pó
da ruína comprimido com água, ao longo do tempo da exposição, participantes
voluntários removeram estes escombros, espalhando-os pela sala até a escultura
desaparecer.
Fig. 41. Teresa Margolles. En el aire. 2000. Bolhas de sabão feitas com água usada para lavar cadáveres, medidas variáveis. Fonte:<http://arteypoliticateresamargolles.blogspot.com.br/> Acesso 25 Mar. 2016.
79
Esse tipo de necessidades expositivas denota que a obra de Teresa
Margolles circula e faz sentido em um lugar: a instituição expositiva da arte, chame-
se museu, galeria, cartão postal ou livro, ainda quando se apropria do espaço
urbano (Fig. 44 ). Como seu trabalho revela uma intencionalidade de transgressão e
confronto à violência por meio dos espectadores no museu, o uso, apropriação
destas espacialidades institucionais da arte confere ao espectador uma função
social, a de estar junto a (BOURRIAUD, 2008, p.14), a missão de ser partícipe de
um estado de decomposição social e urbana. A artista parece buscar o choque para
não diluir-se no entorno, embora os indícios contidos no trabalho apelam não só à
sensação de repulsão, como também a introduzir-se na psiquê daquele que
observa, que se encontra com objetos para os quais tem que olhar mais de uma vez
para poderem ser apreendidos. Para isso, precisa do cubo branco do espaço
expositivo, como um lugar onde o tempo e o espaço se congelam para deter-se e
ver.
Fig. 42. Teresa Margolles. La promesa. 2012. Instalação. Muro realizado com escombro de casas de interesse social abandonadas de Cidade Juárez. Fonte: < www.spleenjournal.com> Acesso 25 Nov. 2015
80
Margolles é uma artista que não pretende salvação nenhuma, sabe do poder
político e da exclusão é nisso se compraz, não eleva as práticas a um nível de
memorial e a esse respeito expressa: ”Minha miséria é a tua miséria, disso se trata
tudo isso, não nos medimos por meio da purificação de nós mesmos, senão
sobretudo por meio de compartilhar a nossa miséria”20.
3.8 ÉTICA E VIOLÊNCIA
A apresentação simbólica da violência na obra de Teresa Margolles parece
implicar em um questionamento sobre se a violência e a dor que emanam, dessas
obras estão encenadas de modo a impossibilitar qualquer forma de identificação
imediata. Aqui, como no caso dos meios massivos de comunicação, também a
sobreposição da dor e a violência pode cair em uma forma de espetacularização do
20 My misery is your misery. That’s what it was all about. We don’t level ourselves through purifying ourselves but rather through sharing our misery. Teresa Margolles. Tradução da autora.
Fig. 43. Teresa Margolles. Para que aprendan a respetar. 2006. Intervenção,pública
no cinema México, Puebla. Fonte:< ( http://discursovisual.net)>Acesso 25 Nov. 2015.
81
grotesco, reduzindo tudo à uma performance estetizada que culmine em uma falha
da percepção, ou seja, de tanto expor os sentidos, corremos o risco de que a
sensibilidade fique saturada e atrofiada.
Em primeira instância, buscando fugir de uma análise pela potencialidade
espetaculizadora do ato de exposição rotineira da violência, temos que pensar o
projeto poético de Teresa Margolles inscrito nas práticas da arte política, uma forma
que entende a arte como “una redisposición de los objetos y de las imágenes que
forman el mundo ya dado”, (RANCIÈRE, 2005, p. 15). Sendo parte do mundo, sua
obra tenta recompor e construir relações com outros indivíduos.
Vários questionamentos parecem surgir da obra percebida nos limites da arte
e da ética na contemporaneidade: será que podemos alienar os espectadores da
arte política? Será que o crime pode perpetuar-se de forma infinita com o artista
como cúmplice? Estaremos comemorando uma nova barbárie ou é uma arte de
denúncia? Antes, segundo Kant, no livro A crítica do juízo (1764), a arte elevava o
estético por meio do sublime, na arte da violência o prazer voyerista do espectador
é explorado, “sublimado”, por assim dizer, por meio do abjeto que não apela para
uma sublimação senão a uma degradação, a um processo de antiestética.
Por sua vez, ao apagar os limites da ética na representação, na estetização
da morte e a espetacularização do cadáver e da violência, parece existir o perigo de
que nesse processo e na presença extrema do abjeto, e suas modalidades, - seja
uma encenação, um objeto intervindo ou uma fotografia -, o espectador fique mudo e
cego, que na repetição se sobrecarreguem os sentidos até perder o significado.21
Pensamos, ainda, que Teresa Margolles poderia estar dentro das práticas da
arte política que tornam mais visível o que o consenso dominante oculta, já que por
meio do choque denuncia a falta de abordagem crítica nessas manifestações,
embora seja real esse sentido crítico. Ou existe uma prática hegemônica e seu
suplemento?.
A radicalidade de uma prática artística, na sua execução deve ser orientada
para ter um efeito crítico, de outra maneira é só uma espécie de tique. Mas quais
são seus sujeitos? Quais seus objetos? O artista fica então nessa encruzilhada,
ainda que, toda prática é absorvida e a utopia radical não seja possível, cada artista
21 A recusa da ética na representação e na apresentação do objeto artístico referido à violência não renuncia a ser um fato político e é consequência da teoría da pos-modernidade que não é discussão desta pesquisa.
82
é responsável pelo menos por suas escolhas e pelas relações que estabelece entre
os elementos contidos na sua obra.
Uma prática que reproduz o sistema sem questionar não só o quadro
institucional e de poder, mais também as condições de enunciação, o sistema do
eu-sujeito-produtor, corre perigo. Expor os quadros não quebra necessariamente
com estes sistemas; pode ser que até os multiplique, já que deixaria muito mais
exposto o sujeito, que é reificado ao expor suas fraquezas. Ainda que a obra possa
gerar um incômodo que poderia se considerar como parte do desenvolvimento de
uma dinâmica de consciência política, sempre ficará a questão em relação ao
sentido ético da arte. O choque não reflete, estabelece um quadro confortável, já
que cria uma distancia com os espectadores.
Surgem algumas questões para serem resolvidas na obra: pode-se
estabelecer uma ética da prática artística? Como afastar-se da crítica moralizadora?
Na apresentação da abjeção, pode esta estar atuando de forma moralista, pastoral?
Cada artista que age no âmbito da arte explicitamente política trabalha sobre estes
limites, cada um deles oferece uma resposta na relação com o público e o nível de
atuação que lhe permite como espectador ativo ou passivo na recepção da obra.
A obra de Margolles tende a ser comparada com outros artistas, porém ao
contrário de artistas que tentam apresentar o anonimato tanto dos objetos como dos
sujeitos, na obra de Teresa Margolles todo objeto tem uma relação contextual, tanto
no espaço como no tempo e tem um referente político e histórico, que remete à sua
origem de forma imediata, compromete o espectador no momento da ação,
espacializa sensações e compromete os sentidos
Contudo, como toda arte do choque, envolve uma dúvida sobre se a
exposição da violência é só uma utilização instrumental (FOSTER, 2011, p.157) para
criar escândalo, estratégia de aproximação com o público ou só é o afã de
protagonismo. Será que a espectacularização da violência consegue o efeito
inverso? Um prazer pelo distanciamento em vez do rito de passagem, que mostraria
uma outra opção ao leigo, ao cidadão que não é artista?
A condição de abjetar o mais infame da sociedade, de evidenciá-lo, pode ser
uma operação reguladora (FOSTER, p.160), uma projeção de si mesma, uma
sensação de catarse na expressão deslocada da violência, ou pelo contrário, é por
acaso uma banalização?. Facilita um afastamento que torna ao espectador em um
83
ente cúmplice tal como aquele que assiste um filme snuff22?, não é por acaso uma
espécie a mais de espetáculo da violência?.
A possibilidade da existência de uma arte que pudesse emancipar o homem
não é realizável, mesmo assim, é importante considerar a opção de uma arte que
possa buscar um equilíbrio, uma unidade mental-psíquica-afetiva, que fale de uma
cultura humanizadora viável no mundo contemporâneo, por meio do vínculo, não só
entre indivíduos, mas também com a obra, sua materialidade e seu conceito.
Esse modo de aproximação com abjeção corporal revela tendências e
intenções do projeto poético da obra de Margolles, entretanto, há outros modos de
aproximação com este fenômeno. No próximo capítulo dessa dissertação
apresentaremos uma outra possibilidade de enfrentar a abjeção corporal em relação
à violência, assim também apresentaremos outra possibilidade discursiva sobre o
problema da ética na arte.
22 O snuff é um termo da lingua inglesa que significa morte, é em geral utilizado para designar filmes que mostram crimes reais de morte e assassintao de pessoas com o propósito de entretenimento e exploração financiera.
84
IV. O OBJETO COMO DUELO. DORIS SALCEDO
85
4. O OBJETO COMO MEMENTO. DORIS SALCEDO
“El arte es la inminencia de una revelación que no se produce”
Jorge Luis Borges
Na obra da colombiana Doris Salcedo ( Bogotá, 1958- ) parece haver uma
redefinição da relação corpo-espaço, ela nos enfrenta ao duelo por meio de uma
topologia de morte, amor e violência, em obras que referem à situação de violência
de narco-guerrilha que se vive na Colômbia há mais de 20 anos. Um estudo de seu
projeto poético revela que ela tem trabalhado com intencionalidades e tendências
que revelam preocupações sociais e políticas, viaja a e se muda para as regiões em
conflito, estabelece vínculos com familiares das vítimas da violência, testemunha os
esforços por buscar corpos etc. Embora a obra de Doris Salcedo pareça evitar a
aparição da violência literal, não tem interesse na revisão da tragédia nem dos fatos
concretos, suas esculturas assumem um carácter bastante metafórico, quase
abstratas, têm uma aparente faculdade de evocar de forma fantasmagórica e
intuitiva, e procuram criar uma relação afetiva que transmita e provoque uma
empatia pelas vítimas.
Nas suas esculturas e instalações, há uma revelação do esquecido, do corpo
ausente, mais implicitamente presente, o objeto parece ficar lá onde há um tempo no
qual algo está velado infinitamente e revelado ao mesmo tempo. A evocação do
corpo e sua ausência parece ser dada pela existência de um objeto que registra a
presença física de alguém. Por meio de objetos reconhecíveis e cotidianos, comuns,
parece se estabelecer a possibilidade de qualquer um para ocupar os ocos e os
vazios, no confronto com o próprio desaparecimento está presente um intento por
devolver aquilo que identifica os indivíduos como seres humanos.
Diante da impossibilidade da presença do corpo desaparecido, a artista
constrói um campo de relações que se estabelece na sua obra entre as pegadas
físicas que restaram das pessoas e seus pertences: os objetos quotidianos são
86
convocados diretamente à cena, mas sua função tem sido modificada. Há uma
construção de um objeto híbrido, que fica num lugar entre a escultura e o objeto23, o
não representado e a evocação.
Na obra de Doris Salcedo parece haver uma tendência de evidenciar os
processos de rememoração, e revela-se uma intencionalidade de que sua presença
não se opere meramente como testemunho ou simples evidência de um mal. As
esculturas e objetos recuperam antes a história com a vontade de fraturar e também
de cancelar as ordens e hierarquias que configuram determinados poderes,
evidenciam a perda e o conflito causados pelo abuso desses poderes.
4. 1. A SUPERVIVÊNCIA NA NOSTALGIA
A dinâmica do resto atesta uma semelhança com o vivo, a maneira como é
apresentado na obra de Dóris Salcedo dá conta dos objetos que, para sobreviver
enquanto obras, devem ter alguém que tenha desaparecido: a vida desses objetos é
dada enquanto a vida de alguém é perdida; é um jogo dialético entre o
desaparecimento e a aparição de uma nova forma que assombra por meio de sua
presença.
Salcedo apresenta os objetos do cotidiano das vítimas, como cadeiras,
camisas, sapatos, mesas, armários (Fig. 45) com a intenção de preservá-los como
os restos difusos e dolorosos daqueles que não se têm uma lembrança muito clara;
são os objetos reconhecíveis e que dão forma à ausência; são produto do
sofrimento; são objetos que tentam mostrar a aflição diante da temporalidade e da
finitude; são obras que mostram como a incapacidade de viver o luto leva à
melancolia.
23 Para situar esta ideia, podemos pensar na situação da escultura como foi exposta pela crítica norteamericana Rossalind Krauss no seu texto A escultura no campo ampliado (1979) , como um primeiro momento, no qual a escultura a partir dos anos sesSenta evoluiu para expandir novos âmbitos que não são propriamente escultura, mas que estão dentro de um novo campo ampliado da escultura. No caso latino-americano essas teorías parecem ter sido ampliadas pelas ideias de Nestor García Canclini (2003) sobre o conceito do hÍbrido que permIte explorar no contexto socio-cultural da América Latina práticas que integram objetos que operam uma mistura de linguagens já conhecidas, de estruturas e maneiras de fazer que existiam de forma separada, mas que se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.
87
4. 2. VAZIO E ÍNDICE
Doris Salcedo produz memória a partir do vazio. A ausência parece ser
apresentada por meio da moldagem do espaço negativo, do desaparecido no qual a
memória e a sensação são o material da sobrevivência. O esvaziamento do espaço
negativo parece deixar um índice da ausência, ou seja, acontece uma transformação
de um espaço aparentemente negativo, aparentemente vazio, em uma presença
com forma positiva, que dá evidência do desaparecimento, do desconforto. É
geralmente uma estratégia utilizada por alguns artistas porque é favorável para o
conteúdo político e de denúncia, pelo fato de dar visibilidade ao que se pretende
desaparecer ou esconder.
Doris Salcedo apresenta os objetos como reconhecíveis, mas ao mesmo
tempo, a estranheza de sua negatividade parece transformá-lós em dublês bizarros
de si mesmos; neste caso, atuam como uma fotografia, embora o que vemos seja a
impressão negativa de uma presença num objeto, mas para resolver o horror vacui -
horror ao vazio- não fica nada. A impressão positiva não é possível e, na construção
do objeto artístico, o original é alterado ou destruído.
Fig. 44 . Doris Salcedo. Atrabiliarios.1992. instalação,sapatos , pele de animal . Fonte:< http://http://humanoymundano.blogspot.mx> Acesso em: 16 jan. 2017.
88
O índice não cria nem recria sua origem, apresenta evidências, traços. É
neste caminho do já existente que Salcedo parece desenvolver o projeto poético de
sua obra. Não molda, nem esculpe no sentido tradicional, seus moldes não são atos
criativos para serem eternizados, mas sim túmulos do real; rememoram um espaço
vivido por meio de uma presença que se refere, sem dúvida, à medida humana. Não
obstante na inversão do molde, toda possibilidade de fazer um percurso é anulada,
modela o espaço e a única possibilidade parece ser a experiência de quem está na
presença de um sepulcro. O contato direto do objeto imprime, transcreve, mas
coloca ao inverso o objeto referido (HUBERMAN, 2009); é uma projeção inversa,
negativa que na sua estranheza permite questionar a forma e a natureza do objeto
que a imprimiu. Assim, podemos pensar então que essa materialização não tem
somente uma função simbólica, mas também espacial. Ele –o objeto indicial, a obra-
é uma comissura que organiza o que se situa entre a memória e o real como um
espaço imaginário do vivido. A obra produzida pela artista parece utilizar o
imaginário para organizar simbolicamente esse real.
O índice na obra de Salcedo – fortemente carregado de uma função simbólica
- solidifica a distância entre o objeto e a recordação, as práticas indiciais permitem
um exercício de memória. Essa qualidade está inscrita na maneira como são
codificadas: fisicamente presentes, mas temporariamente remotas; elas permitem a
quebra da tela da realidade por meio de um paradoxo físico-temporário; projetam
algo que já não é, mas ao mesmo tempo o trazem e recriam em cada um dos
espectadores pelo poder da evocação e da empatia, da semelhança, da proximidade
material. Esse movimento parece aproximar sua obra da ideia da rememoração que
caracteriza o conceito de monumento, porém o que ela rememora não edifica, não
são fatos a serem relembrados, mas sim, devem ser esquecidos, escondidos. Daí,
pensarmos esses objetos pelo viés do não monumento, ou do antimonumento.
4.3. ANTIMONUMENTO E RUÍNA
O termo “monumento” tem sua origem no latim monere que significa lembrar,
exortar. A tradição do monumento no ocidente e no sentido mais antigo é referido a
uma obra realizada pela mão humana ligada geralmente à comemoração (de
personagens ilustres, vitórias bélicas, fatos nobres e edificantes etc.) com o intuito
89
de manter essas memórias vivas e presentes na consciência das gerações futuras
(RIEGL,1903, p. 23), mas, depois da Segunda Guerra Mundial e do extermínio
nazista conhecido como a Shoah, foi que se desenvolveu uma estética distinta no
que diz respeito ao monumento: o antimonumento (SELIGMANN-SILVA, 2014).
Um antimonumento apresenta várias características. Há nele uma ausência
tingida de nostalgia, é um trabalho evocador que constrói a lembrança por meio de
um memorial ao vazio, que é por sua vez uma ruína, tem o componente de um
material arquitetônico que entrega o peso à matéria-lembrança (DUQUE, 2001, p.
160- 163), que refere às promessas inerentes a certo tipo de construções; o pedestal
como promessa falida da conservação da memória, como tumba da grandeza mais
do que como um reforço da memória coletiva, como na obra da artista Rachel
Whiteread (Fig. 46 ). Tal obra, se coloca como uma referência às promessas não
cumpridas para a coletividade, ao desamparo da gentrificação, algo que remete ao
conceito de “roça humana”24 (DUQUE, p. 12). Mas, também, refere-se aos
processos de qualquer construção, sua eventual decadência, ruína e, como
aconteceu neste caso, sua destruição.
24 Aquí em referência ao termo em espanhol “roza” que se refere à ação de desmatar um campo para a semeadura, como metáfora da eliminação dos habitantes originais nas cidades nos processos de gentrificação, segundo o pensamanto de Félix Duque.
Fig. 45. Rachel Whiteread.1993. House. Casa moldada em concreto. Fonte: <https://www.reddit.com> Acesso em: 15 dec. 2015.
90
O antimonumento nessa concepção de Duque e de Seligman-Silva, combina
a tradição do monumento com a comemoração fúnebre. Assim, o sentido heróico é
deslocado para um local de lembrança mas de forma distinta em relação a outras
tradições mortuárias como aquelas das pirâmides. No antimonumento há um sentido
moral de admoestação de lembrança crítica, bem como uma homenagem aos
mortos. Reintroduz uma visão histórica sobre a morte e a comemoração aos mortos
nas culturas contemporâneas de corte ocidental, mais estabelece uma ampla
diferença ao respeito da durabilidade dos materiais, apostando na capacidade tanto
conceitual como afetiva dos gestos e dos conteúdos.
O antimonumento desenvolve-se com o intuito de dirigir-se a uma sociedade
específica para interatuar com ela; vai além da imposição do monumento e busca
relembrar ativamente o passado e dar conta da condição de luto, mas na
impossibilidade de abranger os fatos aos quais se refere se apresenta ele mesmo
como precário (SELIGMANN-SILVA, 2016, p. 51). Faz ele um ato de consciência e
resistência, cria uma espécie de buraco no espaço-tempo da memória coletiva25 , é
ele um espaço simbólico, mistura de memória e esquecimento, irrompe na cidade
que produz uma mesma imagem de arquiteturas similares, quebra o espaço na
procura da sobrevivência da memória.
Um exemplo de um dos mais reconhecidos desses antimonumentos, é o
Monument against Fascism (Monumento contra o fascismo), feito por Jochen Gerz
and Esther Shalev-Gerz em Hamburg (Fig. 47), entre os anos de 1986 até 1993. Era
um obelisco de 12 metros de altura, de base quadrada com um metro de cada lado,
coberto de chumbo. O público era convidado a escrever seus nomes na obra com
cinzéis presos à ela.
Conceitualmente, os artistas chamavam os cidadãos à participação coletiva
no trabalho e ao mesmo tempo faziam notar a precariedade da memória por meio
da utilização dos materiais que ficaram expostos a todo tipo de intervenções, (tiros,
frases em contra e ao favor do nazismo etc.). Quando a superfície ficava cheia de
nomes o monumento era enterrado na profundidade de 2 metros para permitir uma
nova superfície acessível para mais inscrições, até que em 1993 foi soterrado
finalmente. Hoje, só há uma placa em 7 diferentes línguas contando essa história.
25 A memória coletiva neste caso considerada como um grupo de pessoas que costrói sua identidade a partir de uma “grande narrativa” de fatos e personagens históricos ou que se identificam também por grandes catástrofes, rupturas ou derrotas.(SILVA, 2016, p.3.)
91
Essa obra é muito importante no pensamento contemporâneo sobre o
antimonumento, especialmente no que se refere á cultura da memória, e na forma
como esta pode ser introduzida em relação ao real, nessa obra podemos ver a
maneira como se guarda a memória por meio de traços, cuja apresentação e não
sua representação questiona a forma em que um fato traumático é relembrado.
Assim, também a obra quebra o sentido literal da representação e permite abrir para
o espectador um espaço simbólico para outras opções críticas.
Os antimonumentos têm sido pensados a partir dos modos de representação
e seu compromisso com o real. São obras que questionam os limites da ética sobre
a representação de um fato que implica um trauma, que falam do poder, do trabalho,
da memória individual dos artistas que tem um interesse em agir na memória
construída pela sociedade.
No caso de Doris Salcedo, em obras como 1550 Chairs Stacked Between
Two City Buildings de 2003 (Fig. 48), podemos apreciar a qualidade efêmera do
Fig. 46. Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, Monumento contra o fascismo. 1986-1993. Coluna com estrutura de aço e revestimento de chumbo. 12m x 1m x 1m. Fonte: <https://www.pagina12.com.ar> Acesso em: 25 Dec. 2015.
92
conceito de antimonumento, a precariedade de um móvel, de uma homenagem à
áqueles que têm desaparecido.
Os trabalhos urbanos de Doris Salcedo são um prolongamento de sua prática
como escultora, baseada na transformação de objetos domésticos. Desde princípios
dos anos 2000, a escala tem aumentado, centrando-se em espaços públicos; o
quotidiano e privado têm invadido as ruas; surgem como respostas a arquiteturas
específicas que estão por sua vez carregadas pela situação geográfica e política do
lugar onde estão situadas. As obras trabalham sobre a força da violência, do trauma
cultural coletivo e da tragédia da perda.
Fig. 47. Doris Salcedo, 1550 Chairs Stacked Between Two City Buildings. 2003. Instalação na VIII Bienal de Estambul. Fonte:<http://www.fucsia.co/edicion-impresa/articulo/doris-salcedo-artista/60311>. Acesso 15 mar. 2017.
93
4.3.1 OS MATERIAIS
As soluções formais e materiais nos antimonumentos estão longe de implicar
na pacificação das consciências. Por meio do poder da imaginação e da evocação
dão conta do poder do protesto social de uma fonte considerada não fidedigna como
fato histórico, mas que afirma o poder da arte como testemunho.
Em Doris Salcedo, podemos ver uma obra que também tem um interesse em
velar partes da memória, mas em seu trabalho, podemos ver uma outra natureza
dos fatos, outro sensório, a exploração do meio associado por outras formas, fratura
e contraposição de materiais. A materialidade em sua obra é também uma reflexão
da função da arte na sociedade burguesa capitalista.
O material não é uma escolha aleatória, o embalsamento e enterramento do
passado tem relação com materiais simples, como os quais funcionam do mesmo
jeito para se construir tumbas ou casas. Para certas culturas, materiais como o
chumbo fazem referência a certa cultura da morte e nele se inscreve o nome
daquele a rememorar. No entanto, em regiões periféricas e pobres, em
enterramentos clandestinos ou fossas, o material da morte é sempre mais precário:
cimento, barro, gesso, cal, fazem o papel do chumbo na memória coletiva. Existem
enterramentos nos quais, nem sempre há dinheiro ou oportunidade para gravar o
nome na tumba…
E é esta capacidade evocativa dos materiais que vai permitir criar um
interstício entre a memória e o fato, “Y se comprueba que son los materiales más
plásticos y, por lo tanto, los menos valorados del arte escultórico -cera, yeso,
terracota- los que resultan capaces de franquear el camino de las supervivencias en
el inconsciente de las formas”26 (HUBERMAN, 2014, p.145). Podemos dizer que a
plasticidade é uma caraterística esscencial da resistência ao esquecimento, um ato
de exercício da memória, no qual o objeto é rastro e relíquia ao mesmo tempo.
26 E se verifica que são os materiais mais plásticos e portanto, os menos valorizados da arte escultórica – cera, gesso, terracota- os que resultam capazes de franquear o caminho das sobrevivências no inconsciente das formas. Tradução da autora.
94
4. 4. A TEMPORALIDADE
A forma na obra de Doris Salcedo está diretamente relacionada com o
presente da artista que a faz e do espectador que a experimenta. Não tem o que
podemos chamar de uma interlinearidade cronológica, porque a memória em sua
obra não parece funcionar assim. Nos parece que a memória de que Doris Salcedo
fala é fragmentária; e não é que a obra não possua temporalidade, é uma aparente
suspensão da temporalidade (SELIGMANN-SILVA, 2005). A existência da obra se
dá sempre em um momento anacrônico, é dessa forma que os seus trabalhos
sempre tem essa qualidade em que o objeto artístico aparece ou faz referência a
uma espécie de congelamento, de detenção, de peso, de opacidade. Sensações
todas que produzem uma atmosfera rarefeita e desaceleram o tempo do espectador. Na obra de Salcedo, permanência e estabilidade ficam misturados com
contingência e instabilidade; materiais efêmeros e perenes juntos. Vestígios de
situações temporárias ficam ocultos, expandidos enquanto memória, mas
congelados enquanto experiências. Um exemplo dessa particular temporalidade na
obra de Salcedo é a performance-instalação Noviembre 6 y 7, de 2002 (Fig. 49),
realizada no centro de Bogotá (Colômbia). Essa obra se tratava de uma intervenção
no espaço público, onde 280 cadeiras desceram continuamente durante 53 horas
do teto do Palácio de Justiça, de acordo com a quantidade de mortos do dia 6 e 7
de novembro de 1985, quando membros do grupo dissidente 19 de abril (M-19)
assaltaram o prédio e tomaram como reféns vários trabalhadores. Na retomada do
palácio pelo governo colombiano houve mortos, feridos, desaparecidos e um
incêndio, fatos que converteram este evento num dos mais trágicos da história
recente da Colômbia.
Noviembre 6 y 7 é uma obra sutil que pretende rememorar o trauma coletivo
que marcaram tais fatos de 1985. Doris Salcedo apresenta a temporalidade por meio
de uma dupla suspensão, a primeira física - aquela das cadeiras vazias suspensas
que representam cada uma das pessoas mortas e desaparecidas -; na segunda, o
tempo parece ser desacelerado e depois suspendido, congelado, oferecendo a
possibilidade de criar um espaço-tempo no qual o trauma coletivo pode habitar a
contemplação.
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4. 5. O MÓVEL E A TUMBA
As esculturas de Doris Salcedo são configuradas como uma espécie de lugar
para habitar a morte, ao contrário de uma casa que é feita para habitar a vida; em
sua obra, parece habitar a destruição do território privado, podemos pensar que são
como túmulos, como pequenos mausoléus estetizados e politicamente engajados
em uma denúncia social por meio da arte.
A artista expõe conjuntos de objetos pertencentes aos interiores das moradias
das vítimas. Há um aparente desconforto ao se que ver objetos pessoais em uma
espécie de tumba de concreto, um bloco de cimento com um objeto em seu interior
que não pode ser removido (Fig. 50). Esse objeto que é semi-visível e reconhecível
para o espectador, são objetos universais de uso quotidiano que viram relíquias,
aquilo que deveria ser íntimo e privado, agora está desnudado e apresentado em
um árido espaço expositivo, à vista de qualquer um.
Fig. 48. Doris Salcedo, Noviembre 6 y 7. 2002. Instalação e ação. Fonte:<http://www.alejandradeargos.com> Acesso em: 16 jan. 2017.
96
A obra é uma taxonomia de objetos do habitar. É uma obra que tem a
intencionalidade de quebrar o limite entre o público e o privado; o intercâmbio entre
o interior e o exterior; os significados dos objetos do espaço doméstico e sua
memória. Os objetos de Salcedo parecem violar as exigências físicas de sua
utilidade originária; inicialmente, feitos para serem habitados no âmbito privado, são
plasticamente transformados em obras de arte. Os objetos chocam e se
contrapõem, são deformados, desequilibrados. A metáfora da casa e do corpo se
cruzam numa desconstrução estética do real, mas transportam consigo a memória
que lhes constitui.
A casa, a ordem, os corpos como unidade física e simbólica têm sido
destruídos; a falta de corpo é macabramente apresentada, como na obra Unland:
the orphan's tunic , de 1997 (Fig. 51 e 52 ), na qual podemos ver o incessante
trabalho de bordar com cabelo humano. Mas, parece haver um choque de materiais
perecíveis. O corpo está presente por distintos meios, indiretamente pelo móvel
inutilizado, fisicamente pelo cabelo preso na escultura. Tudo isso vira um
antimonumento, no qual o cimento conforma novos objetos e os transforma em um
grande sepulcro.
Fig. 49. Doris Salcedo. Sem título. 2015. Vista de instalação, móveis com intervenções. Museu Guggenheim. Fonte: <http://ifacontemporary.org> Acesso: 18 Jan. 2017.
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Essa intencionalidade do projeto poético de Doris Salcedo provoca a
percepção de novos habitares desabilitados; são não lugares27 disformes, lugares
sem história e sem território, onde todo limite se perde na recomposição: o horizontal
se torna vertical, o central, periférico; o privado, público, a intimidade em tema
político.
O que poderia ser mais próximo da proporção humana que um móvel? Esse
diferencia dos imóveis, são mais perecíveis e ficam carregados da impressão das
pessoas pelo uso quotidiano. Não é por acaso o caixão o nosso móvel mais próximo
e pessoal? Embora seja o móvel mais paradoxal, já que é uma coisa que é criada
para ser descartada e destruída, só existe para um devir como resto.
Na obra de Salcedo há uma beleza doméstica num delicado equilíbrio com o
peso simbólico da morte; interiores corpóreos congelados que criam emoções, é
uma forma empática de pensar sobre o lar, por meio da memória e do espaço,
corporizados numa obra artística. Seu trabalho transforma móveis em espécie de
monolitos, apresenta sua qualidade de bloco como resistência, do cimento como
estojo, mas também como guarda que recolhe e retém as impressões da memória
no tempo.
27 Aqui em referência à qualidade de indiferença histórica e cultural no pensamento de Augé sobre o não lugar.
Fig. 50. Doris Salcedo, Unland: the orphan's tunic . 1997. madeira, tecido, cola e cabelo, 90 x 245 x 80 cm. "La Caixa" Contemporary Art Collection. Fonte: <www. art21.org> Acesso: 27 Nov.2015
98
4.6. A DOR ALHEIA
Plegaria muda, de 2008-2010 (Fig. 53), é uma instalação de mesas, feitas
aproximadamente na medida das proporções de uma pessoa adulta, e que tem
grama nascente dos espeços vazios entre as tábuas de madeira de suas estruturas.
Uma alusão à ideia de que cada um dos desaparecidos merece uma tumba, um
lugar para ser lembrado.
Plegaria Muda resulta de um longo período de produção e investigação sobre
as condições de exclusão e suas manifestações na contemporaneidade. Na origem
desta instalação, encontramos um acontecimento específico: a morte de jovens
colombianos, habitantes de diferentes zonas marginais do país que foram
assassinados pelo exército, entre 2003 e 2009, em troca por uma recompensa do
governo oferecida pelo aniquilamento de guerrilheiros opositores ao regime.
Fig. 51. Doris Salcedo, Unland: the orphan's tunic . 1997. Detalhe. Fonte: <www. art21.org> Acesso: 27 Nov.2015
99
A condição de pobreza e de vulnerabilidade daqueles jovens, que os colocava
já por si numa zona de indistinção entre o direito ou não à cidadania, ou entre a vida
e a morte, possibilitou que o exército facilmente os assassinasse, os enterrasse em
valas comuns sem identificação e os considerasse então como guerrilheiros. Poder
esse do regime do governo, que dá lugar aos mais diversos estados de exceção,
excluindo grupos e indivíduos da plena cidadania e destituindo-os de todos os
direitos, inclusive do direito a uma morte individual, singular, identificada e
reconhecida.
Porém, Plegaria Muda está longe de citar este acontecimento de violência de
forma explícita. Na nave central, onde a obra foi apresentada pela primeira vez, tinha
uma instalação composta por 162 elementos escultóricos idênticos com um sistema
de irrigação próprio. Cada um dos elementos é constituído por duas mesas de
madeira sobrepostas e com os tampos virados um para o outro. Entre dois tampos,
uma camada espessa de terra evidencia-se, enquanto através de uma fenda no
meio de cada mesa invertida brotam ervas. Dispersas no espaço, estas esculturas
convidam o público a percorrê-las com atenção e a identificá-las com a forma e a
Fig. 52. Doris Salcedo. Plegaria muda. 2008-2010. Mesas de madeira, terra e plantas, instalação, medidas variáveis. Fonte:<http://muac.unam.mx.s94803.gridserver.com/webpage/ver_exposicion.php?id_exposicion=30#> Acesso 4 Jul 2016.
100
dimensão usual de caixões funerários. Subitamente a paisagem configurada pelas
esculturas transforma-se em cemitério e o percurso do público institui um ritual,
aquele de ir a um funeral, tornando o espectador parte dele.
O projeto poético de Doris Salcedo propõe devolver, nesta obra, a cada uma
das vítimas a possibilidade de um enterro próprio, mas também resgatá-las da
esfera do anonimato e do esquecimento social, conferindo-lhes lugar, singularidade,
visibilidade e voz. Se o trabalho de Salcedo é muitas vezes designado como político,
é porque ele opera no político em vez de representá-lo, por meio de uma ação
tensa e quase sempre inesperada, como também nos sugere as ervas de Plegaria
Muda que resistem nas fendas das mesas e se apresentam resilientes ao nosso
olhar.
Ao colocar-se como um terceiro, cria-se uma certa autoridade de poder, a
obra condena, tem sua própria lei que mostra e desgarra o manto do esquecimento,
mas que também pode mostrar os seus objetos como tombados, rejeitados, fala do
real abominável que se torna inacessível como um gozo violento e doloroso.
4. 7. É POSSÍVEL A AFETIVIDADE?
El artista y el historiador tendrían por lo tanto una responsabilidad
común, hacer visible la tragedia en la cultura (para no apartarla de su historia), pero también la cultura en la tragedia (para no apartarla de su memoria).
Didi Hubermann.
A representação da dor alheia tem uma longa tradição na arte ocidental, a
representação da dor pode ser utilizada como uma estratégia para expor ao
espectador ao drama com uma distância que proporciona uma certa segurança.
Mas, é esse um ponto muito importante nas discussões sobre uma arte
comprometida com uma poética-ética da memória, como representar a dor sem se
converter o espectador num voyeur?.
Os sentimentos têm uma capacidade de criar afetos, por sua vez esses são
considerados como modificadores do espírito ou da mente dos sujeitos. A afeição
significa ser ou estar afetado por algo, implica uma impressão de uma coisa em
outra e por tanto uma modificação do ser ou sujeito que se altera pelo objeto que o
101
afeta. A a arte apela à essa modificação, por meio do contato do ser humano com
objetos provocadores (CASTILLA, 2000, p.31). Neste caso os objetos são artísticos,
cuja missão é buscar uma surpresa, uma necessidade ou interesse de conhecer
esses objetos, que em si mesmos acarretam a intenção de ver o mundo de outra
forma possível, por meio de um vínculo afetivo com seu espectador.
Como instalar a memória política no museu? Para Salcedo, a fenda
Shibboleth, de 2007-2008 (Fig. 54), na galeria Tate Modern, em Londres, é uma
resposta. Essa obra não foi concebida para admirá-la com os olhos postos no alto
na busca da expressão da grandeza. Sibboleth obriga o espectador a baixar a
cabeça, é um antimonumento que nega a condição construída de novidade e
pretendida glória sobre um espaço que foi uma central elétrica e que agora abriga a
Galería Tate Modern, obriga a olharmos para o chão, a percebermos o espaço
negativo, vazio, a tumba, a fronteira, o limite, faz pensar no caos, em terremotos,
em cismas, em irrupções indesejadas e pelo mesmo nos indesejáveis também.
Fig. 53 . Doris Salcedo, Shibboleth. 2007-2008. Sala de las Turbinas, fenda no chão de turbinas da Galería Tate Modern, 1670 cm.x70 cm de profundidad. Fonte: <www.alejandradeargos.com> Acesso: 28 Nov. 2015.
102
Na interação com a arquitetura, a obra nos fala não apenas de uma falha no
chão ou da estrutura interna do edifício, mas sim do sistema ideológico que o
cimenta, da exclusão que impõe em sua violência uma distância com o outro,
apresenta a arquitetura do museu como um dispositivo falido, uma ruína.
No descobrimento da fragilidade corporal alheia, da vulnerabilidade do outro,
pode aparecer a piedade pelos mortos, a solidariedade na condolência, porém as
possibilidades de uma arte que pudesse emancipar o homem são impossíveis.
Mesmo assim, é importante a opção da existência de uma arte que se refira à
unidade mental-psíquico-afetiva, que fale de uma cultura humanizadora possível no
mundo contemporâneo por meio do estabelecimento de vínculos, não só entre os
indivíduos, mais também com a obra, com sua materialidade e seu conceito. É
importante que a arte gere uma reação antagônica na mesma medida dos objetos
ou situações à que se refere. Para poder significar e fazer frente a essas situações,
é importante ter consciência dos perigos do radical e sua representação (ou
repetição), já que no caminho da absoluta degradação corre perigo de deixar de ser
tragédia e virar farsa.
A obra que implica a noção de duelo busca dar testemunho para ampliar a
memória, dar forma ao intangível, não por meio da repetição dos fatos, porque “a
precariedade impõe certo tipo de obrigações éticas aos vivos”28 (BUTLER, 2010, p.
42), mas dando “textura” a essas sensações por meio da prática artística, por meio
de estratégias que criam objetos que, utilizando os materiais aparentemente mais
crus e simples se opõem em sua mínima expressão às imagens sensacionalistas
dos meios de comunicação massiva. É uma obra que procura evitar a
espectacularização que massifica e dilui a violência até o ponto de voltá-la cotidiana,
normal, já que esses processos de massas regulam as disposições afetivas e
provocam uma seletividade no duelo, ou seja que façam que certas vidas não sejam
consideradas como perdidas ou dignas de ser choradas. (BUTLER, 2010, p. 43).
Salcedo apresenta sua obra em um interstício entre o objeto e a memória;
enchendo com ela o lugar do esquecimento. Em suas obras, busca dignificar as
vítimas por meio dos índices de sua presença. Sobre a existência das vidas
28 Tradução da autora. “la precariedad impone cierto tipo de obligaciones éticas a los vivos “.
103
minimizadas e desaparecidas cria espaços mentais e intuitivos com os
espectadores.
“Toda arte é política e ideológica” (SALCEDO, 2015), embora, a impotência
prive a artista de agência no mundo da vítima. O âmbito do artista está em seus
espectadores e em suas relações com o mundo da arte, aí onde a arte se relaciona
à violência, dignifica a humanidade, na memória, na resistência ao esquecimento. A
obra de Doris Salcedo permite uma intimidade e uma interioridade por meio da
criação de uma suspensão do espaço, de um tempo para refletir desde o luto, para
aceitar a precariedade e a violência a partir de uma postura crítica na qual possamos
entender que não é a violência em si mesma o que é mais problemático, mas sim os
sistemas que a permitem e o esquecimento que a perpetua.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa, que resulta na dissertação aqui apresentada, teve por
objetivo trazer à tona algumas reflexões sobre arte latino-americana, em
especial a partir da produção artística contemporânea em três artistas
mulheres, demarcando uma aproximação política do tema e de sua
abordagem. Este trabalho centraliza-se especificamente em aspectos do
processo criativo de Janine Antoni (Bahamas, 1962-) , Teresa Margolles
(México,1963- ) e Dóris Salcedo (Colômbia 1958-), mulheres que procuram
uma exploração da noção de corporalidade por meio da análise de alguns
processos esculturais-objetuais em produções artísticas que parecem trabalhar
de maneira a repetir ou sugerir fatos, embora evitam a representação realista e
que têm um interesse como obra de protesto.
O projeto poético das três artistas parece indicar uma intencionalidade
de utilização da presença corporal em sua relação com o real, apresentando
uma obra de cunho político, na qual a repetição ou impressão é o que retorna,
não é o fato original, mas sim, sua sombra, sua memória. É no encontro com
ela, a obra, que se produz um estranhamento no sujeito, uma ansiedade e
angústia traumática que parecem permitir sair do cotidiano e cogitar outras
possibilidades de viver no mundo. Os resultados revelam as obras que
parecem funcionar como testemunhas de processos vivenciais que permitem
uma revisão de diferentes estados da poética corporal envolvida com a
problemática de índole política características de espaços de violência física e
simbólica marcadas pelo narcotráfico na América Latina.
É esta uma revisão de três momentos, de três possibilidades na vasta
produção de arte corporal na América-Latina; aponta certas noções sobre o
desenvolvimento do objeto e sua materialidade que visam uma possibilidade
para a arte de protesto, por meio da ambiguidade em objetos esculturais e
ações que sugerem um conflito na política do corpo.
104
105
As obras das artistas envolvidas nesta pesquisa desvelam um conflito
entre as políticas do que pode ou não ser visível, entre o interno e o externo,
entre o público e o privado. Por meio da manipulação material, essas artistas
modelam, à vontade, uma realidade que se pensava imutável. Suas obras são
impressões, fantasmas, sugestões. Utilizam gestos que referem a uma pugna,
um embate, entre o corpo e os materiais que cedem perante o trabalho das
artistas que meticulosamente os transformam; revelam ainda uma luta social
de denúncia da violência ligada ao narcotráfico, tanto de maneira direta, como
mais sutil, como podemos ver na análise da obra das artistas. A contingência
dos corpos e sua temporalidade é expressada de distintas formas em obras
que olham diretamente, ao espectador que o incomodam.
Ao passar por aspectos do processo criativo de algumas de suas obras
recentes, podemos pensar que há nas três artistas uma preocupação pelos
processos memoriais, pela perda e a desaparição física das pessoas, dos
corpos, centram suas obras no evidenciar o fato de que cada perda implica um
esquecimento contra o qual deve haver uma luta, o que revela tendências e
intencionalidades poéticas que permitem a aproximação das artistas aqui
apresentadas e analisadas. As obras procuram uma reivindicação do valor dos
indivíduos, e percebemos que cada artista trabalha sobre os direitos de
existência, terem levado em consideração o protesto e terem dado significado
a existências consideradas periféricas ou historicamente ignoradas, numa clara
reação estético-política contra as determinações de uma cultura de violência e
segregação do corpo e da memória do indivíduo.
Também observamos uma raiz firme em suas próprias características
locais, cada material fala por si mesmo de uma carga cultural e histórica, o que
acreditamos seja resultante do fato de não ser possível falar de uma América
Latina como uma região de forma generalizada, já que há várias Américas e,
consequentemente, várias realidades particularizadas em muitos pontos,
embora compartilhadas em aspectos coletivizantes. Assim, podem ser
rastreados processos com características em comum, que são compartilhadas
como preocupações, usos e costumes1 que embora se tenham desenvolvido
1 Os usos e costumes são métodos normativos internos que se referem a tradições transmitidas e repetidas de geração em geração sem necessariamente ter um sistema escrito, na América latina são muito comuns em comunidades e/ou demarcações territoriais indígenas.
105
106
de formas distintas, são comuns a várias regiões, temas como a morte, a
contingência, a carga simbólica de alguns materiais e de alguma forma
também na maneira em que as artistas pervertem a carga simbólica do
conhecido e do familiar. Podemos destacar, como uma particularidade comum
às três artistas, o fato de compartilharem aspectos da violência política e
ideológica da violência do narcotráfico latino-americano, em especial na
América Espanhola, cujas característica da narcoviolência assume
materializações diferentes da América Portuguesa.
Uma outra característica em comum é a ideia do rastro e da memória
como um repertório que pode ser considerado como toda uma série de
comportamentos em processos que fortalecem a hibridação, que misturam e
integram, não só o pensamento e os sistemas concebidos desde latitudes
distantes e considerados como cultura dominante, mas também misturam a
memória local e seus costumes, assim como conhecimentos e disciplinas
diversas como a antropologia, a sociologia, as ciências forenses, a química, a
psicologia, entre muitas outras. Obras com essas características colocam-se
como possibilidades, como exemplos de novas práticas sobre a arte do corpo
que iluminam a realidade contemporânea da arte latino-americana e enfatizam
seu caráter heterogêneo.
Quanto à materialidade que se presentifica na obra de Janine Antoni,
Doris Salcedo e Teresa Margolles, podemos afirmar agora que há nessas três
artistas uma forte crença no poder transformador da carga simbólica dos
objetos por meio da manipulação dos materiais. O processo dessas artistas
parece revelar que elas acreditam no esforço físico que fica impresso na obra,
no poder do fazer delas uma espécie de testemunha de existência e de
resistência. Combinam a permanência e o efêmero com a provável intenção
de falar de uma possível mudança cultural, utilizando como motor noções de
dor física e/ou espiritual de maneira direta, e onde qualquer um poderá se
reconhecer a si mesmo nos rastros deixados nas obras.
Esses trabalhos têm uma ideia da obra como fantasma, cuja missão
consiste em atuar politicamente ainda que ultrapassem aos vivos, suas obras
têm a dimensão do vazio, de um algo que resiste apenas a desaparição. No
caso de Janine Antoni, faz um fantasma se si mesma, por meio da não
presença do afastamento que estabalece com aquele que entra em contato
106
107
com sua obra. Em Teresa Margolles, os restos físicos assombram as obras e
as consciências e precisamente agem pelo fato das pessoas não serem mais
vivas. Em Doris Salcedo, a atmosfera espectral de suas obras é dada pela
dimensão fantasma, espectral, daqueles que não estão mais presentes, mas
que tingem toda a obra.
Nos trabalhos das três artistas, há sombras violentadas, erodidas,
consumidas e abjetadas; há uma evocação sem imagem ou com uma imagem
velada, seus objetos escultóricos são todos memórias extremas que não são
mimese mas duplicação, contra-formas. Mesmo com as diferenças e
especificidades no trabalho de cada uma das artistas, podemos observar que
há uma preocupação por criar uma obra que expresse uma precariedade 2,
mas que ao mesmo tempo desafie a vulnerabilidade das pessoas e a
capacidade de serem danificadas pelo sistema que as envolve.
Suas práticas discutem a exposição do corpo, a criação da identidade, a
resistência; são tensas, mas essa é uma forma de entender o mundo
contemporâneo e sua relação com a corporalidade, de permitir uma forma ativa
de discussão e possibilitar a construção de novos paradigmas capazes de
envolver as pessoas de forma direta, ao vivo. A radicalidade dos processos
corporais das três artistas da presente pesquisa tenta pôr em tensão certas
categorias consideradas como ”oficiais”, especialmente no que se refere a o
que é considerado obra, processo e ato artístico. Diluem por meio de suas
estratégias noções de representação e verossimilhança entre o real, o político
e o poético, discutem sobre o campo da geopolítica da arte e seus sistemas de
representação corporal e identitário.
Corpo e sujeito são envolvidos em uma outra ordem de construção do
real mais próxima da ideia do hibridismo (CANCLINI, 2001) que quebra com o
sistema do pensamento em que só existem opostos unidirecionais e
excludentes. A ideia do hibridismo funciona na obra delas como parte de um
método de articulação de preceitos em aparência opostos, elas empregam
esse método para poder entender e explicar todo um campo de relações
heterogêneas existentes em suas obras em relação com a corporalidade que é
própria dos seus contextos, relações que de outra forma ficariam inexplicáveis.
2 Aqui a precariedade expressada como uma noção relacionada ao âmbito político.
107
108
O hibridismo é um conceito útil para sintetizar o devir dos processos
multiculturais e sócias irregulares que definem a identidade na America Latina,
e de certo modo, podemos afirmar que ele está presente nas obras destas
artistas. Na exploração da identidade corporal na arte contemporânea
possibilita e testemunha a ampliação do considerado arte e a abertura do
campo, que fica menos preocupado pela preservação da pureza e enfoca a
importância na produtividade das misturas culturais.
Na obra aqui analisada as artistas incorporam de um modo híbrido
práticas, saberes e costumes, tanto hegemônicos quanto não hegemônicos,
cultos e populares, como estratégias de sobrevivência e de protesto frente a
políticas culturais e sociais sobre a identidade e a corporalidade. Mas também
negociam com as instituições e os poderes que dão visibilidade a suas obras,
já que a perda da pureza não só e dada na quebra dos mas estritos cânones
da arte, mas também quebram os preconceitos sobre o papel dos artistas na
sociedade.
É um fato que a mistura cultural acontece, e que de tinha sido nomeada
já historicamente como miscigenação, mas é esse um conceito que não falava
da capacidade includente dessas combinações e que as subordinava à
hegemonia conceitual eurocêntrica, na qual há um domínio de uma sobre a
outra, enquanto sob o conceito de hibridação todas essas manifestações
diversas não só vão misturar-se mas também potencializar-se com benefício da
construção de um discurso artístico critico para America Latina, nesse caso
especificamente no campo da corporalidade e sua presença na obra de arte
contemporânea.
Há indícios de que, na obra das três artistas, a lógica da exclusão é
quebrada pela união de alteridades dialógicas: interno-externo, acima-abaixo,
morto-vivo, culto-popular etc. - que poderia permitir uma expansão sobre as
representações e definições sobre o corpo, a sensibilidade e a construção do
real, mas também em grande medida pela utilização de estratégias neo–
conceituais e pós-minimalistas que se originam da crítica hegemônica da arte
em conjunto com noções da psicologia - como a abjeção - e de seus âmbitos
locais e de suas próprias produções críticas.
As discussões apresentadas sobre a problemática de gênero, em Janine
Antoni; da dinâmica do choque, em Teresa Margolles; e de duelo em Doris
108
109
Salcedo, por sua vez tentam estabelecer possíveis conexões e intersecções
que têm sido apresentadas como três momentos na vida de um corpo que luta
por um reconhecimento.
Em um primeiro momento apresentamos a obra de Janine Antoni como
uma forma de lidar como o corpo desde si mesmo: a aparição da abjeção
corporal do próprio corpo da artista. Em um segundo momento, Teresa
Margolles e a dinâmica do choque com uma abordagem do corpo violentado
desde uma posição de distância, com um ênfase na abjeção corporal que faz
referencia ao cadáver. E em um terceiro momento, com Doris Salcedo e a
desaparição do corpo, cuja forma do abjeto é dada por meio da memória dos
desaparecidos e dos mortos que ficaram nos objetos utilizados por eles, os
quais ela depois incorpora e modifica na obra.
A apresentação da ordem das artistas envolvidas nessa pesquisa, não
tem uma pretensão evolutiva, nem hierárquica. É a partir dessas leituras dos
seus processos artísticos delas que se pretende um modo de análise que se
tentou explorar uma pequena parte da problemática na arte latino-americana
de cunho político, especificamente aquela referida ao corpo, à materialidade e
à arte-ação.
O que nos parece relevante é que nas três artistas há uma subversão
na percepção do corpo que parece indagar sobre a representação e a
construção simbólica da identidade dentro do pensamento crítico que aceita e
questiona os fragmentos e restos específicos de suas sociedades na busca por
ampliar as fronteiras de sua designação como arte latino-americana.
109
110
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